REVISTA FUNDAMENTO EDUARDO FERREIRA
Eduardo Ferreira despontou como estilista em um momento no qual Pernambuco conseguiu uma visibilidade artística ímpar. No início dos anos 90, a ponte entre o local e o global defendida pelo Movimento Mangue foi a chave para que o Estado se destacasse na produção cultural nacional e Eduardo foi parte integrante desse processo. Este número da Revista Fundamento Pernambuco traz Eduardo como homenageado e ajuda a desvendar as referências que permearam a sua vida, inclusive sua atuação como a pessoa que melhor vocalizou, na moda local, essa ânsia de ser contemporâneo. No entanto, os leitores da revista verão que, apesar de Eduardo ter se notabilizado justamente com o manguebeat, suas referências estéticas não se esgotaram com o movimento. Desde muito cedo, o estilista procurou se cercar das mais variadas fontes de informação e aprofundar suas informações sobre a cultura local. Essa característica se traduziu em ideias para suas coleções, como uma abordagem estética do cangaço, assunto abordado em matéria com o historiador Frederico Pernambucano de Mello, um dos especialistas mais renomados sobre o tema no Brasil. O sociólogo Gilberto Freyre, que abordou a moda em seus escritos, foi outra fonte de inspiração para Eduardo, e esse legado freyreano é abordado pelo pesquisador Anco Márcio. A pesquisa do estilista com a artesania no Agreste do Estado, especialmente com a renda renascença, também ilustra um mapa afetivo que apresenta as cidades pelas quais ele passou. Outra faceta importante do trabalho de Eduardo são as parcerias estabelecidas por ele ao longo da vida. As criações do designer de sapatos Jailson Marcos, um dos entrevistados desta edição, já calçaram várias modelos dos desfiles de Eduardo. O fotógrafo Renato Filho, amigo de longa data de Eduardo Ferreira, realizou um editorial especialmente para a Fundamento com um olhar que também contempla o pensamento do estilista. Outros profissionais ligados a ele, como o maquiador Henrique Mello, a produtora de moda Marcella Bérgamo e a ex-modelo e atriz Fabiana Pirro também dão seus depoimentos neste número. Hoje, Eduardo volta a pavimentar seu próprio caminho na moda pernambucana, criando em seu ateliê e continuando as pesquisas que o fizeram ser um dos nomes mais instigantes e criativos do Estado.
ENTREVISTA
JAILSON MARCOS 08
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A INDUMENTÁRIA, A ARTE E OS TRÓPICOS: DIALÓGOS ENTRE GILBERTO FREIRE E FLÁVIO DE CARVALHO
ÍND
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46 MONCHO
CANGAÇO E A MODA
ISABELLE BARROS
CLUBE DA FOFOCA
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54
ICE
58 ENSAIO FOTOGRÁFICO
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SONORA
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RECEITA
>>>ENTREVISTA
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Como uma antena seletiva que capta as informações do mundo inteiro e as traduz para seu próprio universo, o estilista pernambucano Eduardo Ferreira traz um trabalho em moda que começou ainda nos anos 80 e ainda traz a marca da atemporalidade. O universo artístico e a riqueza da cultura negra sempre circundaram a infância e adolescência de Eduardo, que sempre usou o desenho de moda como forma de expressão, mesmo sem saber o que era estilismo. O uso da roupa como expressão o fisgou desde cedo e o levou a uma temporada como figurinista, seja no Recife, sua cidade natal, como no Rio de Janeiro, onde trabalhou na extinta Rede Manchete.
A antropofagia visual o levou ao reconhecimento no Brasil inteiro ao longo dos anos 90, quando trouxe referências locais para as passarelas em um formato que atendia às exigências mais ferrenhas da alta costura. Sua coleção Mangue fashion - que acompanhava um movimento especial das artes pernambucanas, como contemporânea do movimento mangue – causou burburinho nacional. A moda pernambucana estava nos holofotes de todo o país, com suas coleções que chegaram a São Paulo e atraíram a atenção de personalidades da moda como Cristina Franco. A pesquisa com a cultura, a história e os materiais pernambucanos o fez desenvolver uma linguagem própria de moda, aprofundada em viagens pelo interior. A pesquisa de materiais artesanais como a renda renascença se tornaram marcas de identidade, que hoje compõem o seu estilo.
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Como você veio ao mundo e como eram seus pais? Nasci no final de 1967. Minha mãe, Eulina Amâncio, era uma exímia cozinheira e artista de primeira grandeza. Comecei a ter uma relação muito lúdica com os aspectos dos sentidos, do paladar, por ela ser uma excelente doceira, boleira, quituteira. Ela também era bordadeira e tinha muita delicadeza e habilidade com a cor. Minha mãe fazia enxovais e o meu primeiro enxoval foi feito a mão por ela. Como ela não fazia nada costurado a máquina, comercializava esses produtos para algumas famílias tradicionais do Recife. Minha mãe era uma libriana nascida em Catende com ascendência indígena. No imaginário dela, os engenhos, a cana-de-açúcar eram muito fortes. A minha avó era índia e se chamava América. Todas as mulheres da minha família eram muito fortes, lúdicas, criativas. Quando minha mãe era pequena, minha avó pegava os filhos e passava dias inteiros nas matas e nos entornos dos engenhos, brincando de índio. Meu padrasto era de Limoeiro e tinha crescido com o imaginário da literatura de cordel e, todo dia antes de dormir, eu ouvia historinhas de cordel, sempre voltadas para o surreal e o fantástico. O ato de fantasiar, de contar histórias vem da minha infância, do meu DNA.
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Onde você passou a infância? Eu era ribeirinho do Rio Capibaribe. Nasci no Derby, vivi lá até os 2 anos de idade e depois fomos morar na Caxangá, onde fiquei dos 2 aos 11 anos. Hoje, a comunidade onde vivi, a comunidade Aimorés, na rua Aimorés, quase não existe mais. Nela, havia uma administração com um grande condomínio ribeirinho que tinha como centro uma vacaria. Havia muitos negros por lá. Era praticamente um quilombo urbano. Todas essas pessoas eram muito ligadas ao candomblé e eu ficava encantado quando via minhas amigas pendurarem nos varais as roupas de Oxum, Iansã, Iemanjá. Também tinha vizinhas que organizavam anualmente pastoris e maracatus. Até hoje fico impressionado com a força do imaginário de uma comunidade tão pequena. Fiquei louco quando fui a um candomblé pela primeira vez, porque era um lugar que tinha todos os elementos sensoriais que hoje são fundamentais pra criação de moda. Tinha o cheiro da alfazema, tinha a música com uma percussão riquíssima, os volumes, as cores, o sincretismo, elementos que formam meu contexto de criação.
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Qual foi a tua experiência estetica?
primeira
Eu já criava roupas e histórias antes mesmo de me alfabetizar. Quando eu era criança, fazia storyboards. Como tínhamos dificuldade de conseguir papel quando eu era criança, em 1973, 1974, eu pegava os livros de receitas da minha mãe e fazia croquis nos espaços que sobravam. Ela ilustrava os livros de receitas com recortes e, nesse espaço vago, eu criava roupas para variadas situações como, por exemplo, para ir ao supermercado de manhã. Eu também já sofria muita influência da TV. Eu já via novelas, seriados, os cultos de candomblé, então misturava todas essas referências na hora de criar.
Você tinha ideia do que era o estilismo naquela época?
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VORE DE JÚLIA Falcão Olga Ferrario, Luiza Fontes, Arílson Lopes, 2008]
Quis ser estilista desde muito cedo e vivia desenhando, embora não soubesse o que era estilismo. Fiz meu primeiro vestido de noiva aos 12 anos, e já era apaixonado por esse universo da noiva, da roupa pra festa, de você ter uma roupa especial para um momento especial. Quando eu era adolescente, no entanto, eu era muito militante, ligado ao teatro da igreja e à umbanda. Eu achava que era impossível conciliar um conceito político dentro do universo da moda, que engloba um mercado de consumo, glamour e beleza. Dos 15 aos 17 anos, fui arte-educador e participei de projetos de implantação de escolas no Recife. Eu alfabetizava pessoas e criava conteúdos a partir do universo cultural desses lugares. Nessa época, me afastei um pouco do estilismo para me voltar à alfabetização.
Quais eram tuas referências estéticas na adolescência? Eu já pintava, já esculpia, já ia para São José do Egito, para Tracunhaém, tudo por conta própria, de carona. Conseguia uma grana, comprava barro em Tracunhaém, trazia ao Recife, pintava e saía vendendo de porta em porta. Conheci uma tapeceira, Izabel do Recife que, na minha opinião é revolucionária. Quando eu vi os tapetes, os arraiolos, foi um choque, e comecei a trazer tudo isso pro meu universo. Até que, aos 18 anos, conheci um designer italiano chamado Fortunato Cravana e tive contato com outro universo. Ele me trouxe as primeiras Vogues italianas. Por intermédio dele, fui trabalhar, aos 18 anos, na extinta TV Manchete. Comecei em Carmen, a primeira novela de Glória Perez. Eu era assistente de figurino e lá comecei a trabalhar o estilismo.
Como foi esse trabalho inicial com o figurino? Foi um aprendizado enorme. Vesti Beatriz Segall – e dava um trabalho enorme deixála com cara de pobre. Também vesti Lucélia Santos, que era uma verdadeira pombagira. De lá, estagiei durante três meses com Cao Albuquerque, que foi figurinista da Globo no programa Armação Ilimitada. Quando ia ser contratado pela Globo, minha mãe começou a ficar doente, e eu, filho único, já estava havia quase três anos fora. Voltei para ficar com ela.
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A partir de que momento você concluiu que era necessário partir em voo solo? A geração que surgiu no fim dos anos 80 e início dos anos 90 foi muito boa. A gente vivia outro mercado, outro contexto e aí veio a necessidade de buscar novas referências. Quando vi pela primeira vez as coleções de JeanPaul Gaultier e Vivienne Westwood, eu entendi o contexto histórico e político que a moda poderia ter. Gaultier, mesmo com sua obra voltada muito para o erótico, tinha uma postura política muito forte, desde a década de 80. Já Vivienne, no acabamento e na textura de suas roupas, conta a história da civilização por meio da roupa. Aí vi a moda como linguagem política, com expressão, ate mesmo como veículo de transformação social, porque, antes mesmo de existir esse discurso de sustentabilidade, eu sempre acreditava na utopia de que, através das marcas, das roupas, você perdia transformar contextos sociais. Em Beto, comecei a ficar cansado e querendo buscar a minha identidade como estilista. A gente tinha um segmento que tinha um apelo tropical, mas eu quis ir mais fundo. Por fim, pedi demissão.
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Qual a sua ligação com o contexto musical e cultural da cidade naquela época? Vi um show de Chico Science na Rua do Lima e aquilo me bateu na hora: é isso o que quero fazer em criação de moda. Eu queria unir tradição e modernidade. A postura de Chico sempre foi revolucionária e eu via Chico como um ícone de moda. Eu sempre fui muito ligado à história da moda e pesquisador autodidata. Vi que ali tinha pano pra manga havia: rock, música, atitude, tradição e achei que aquilo ali desembocaria naturalmente pra moda. Comecei a retomar essa minha infância de pastoris, de terreiros e depois juntei tudo. Pedi minhas contas, não sabia do que ia viver e quis aprofundar uma pesquisa sobre a antropologia do cangaço da roupa. Nesta época, também comecei a estudar o movimento armorial.
E como as pessoas passaram a conhecer melhor o seu trabalho? Por coincidência, o Sebrae estava realizando um evento chamado Salão de Moda de Pernambuco naquela época e fui convidado a participar. Nesse momento, eu já usava materiais como plástico e papel, em uma estética bem definida. Mas aconteceu um drama: fiz um ensaio no Shopping Recife dois dias antes do evento e deixei as roupas guardadas em um carro. Quando fui retirálas, não tinha mais nada, sumiu tudo. Surtei e comecei a fazer o que pude até o domingo, dia do salão. As roupas apareceram dois dias depois. Fui o vencedor desse evento com a coleção Mangue Fashion, inspirada no mangue e no movimento armorial, e isso reforçou em mim um interesse quase doentio de busca por identidade, seja de qual país ela for. A moda serve como síntese, podemos contar a história da humanidade por meio dela.
Quem viu essa coleção? O Sebrae trouxe editores de moda como Giovani Frasson e Cristina Franco. Era uma geração que pensav a moda como expressão, como linguagem, com textos e conceitos profundos. Abri o desfile com dois caboclos de lança, pai e filho, sem música nenhuma, só com o som do chocalho. Eles entravam na passarela e saíam. Imediatamente após isso acontecer, uma música de Chico Science começava a tocar. Também escrevi um manifesto, chamado Mangue Fashion, no qual eu falava do meu interesse pelas ruas, pelo urbano, pelo armorial e pela estética operária como linguagem de moda. Peguei a artista circense Índia Morena e fiz uma roupa maravilhosa para ela. Isso foi em 1995. Três dias depois do desfile, eu estava no quadro Ponto de Vista, que Cristina Franco apresentava no Jornal Hoje, falando para o Brasil inteiro, ao lado de matérias com Johnny Luxo, matérias de Paris... Meses depois, fui a São Paulo participar do Phytoervas Fashion, que depois seria conhecido como São Paulo Fashion Week.
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Como foi a experiência de sair do estado e apresentar sua coleção para outra plateia? A platéia formadora de opinião estava tava chocada. Eu era um mero desconhecido na frente de uma platéia quatrocentona boquiaberta, sem entender - Costanza Pascolato até hoje não entendeu – mas as pessoas aplaudiam. Eu e Índia Morena viramos celebridades. Paulo Borges, que organizava o evento, deu uma limpada, mas ainda assim saiu tudo com muita identidade. A Mangue Fashion foi uma aventura. Aí eu criei essa linha de pensamento calcada na busca da identidade brasileira, porque eu tinha essa relação com o regionalismo diferente da maioria. Na época, ganhei uma bolsa para ir a Paris, concorrendo com nomes como Jum Nakao e Ronaldo Fraga. Nessa época, conheci Marie Rucki, do Institut Berçot, de Paris. Ela falava que, no futuro, só existiriam dois pólos: um altamente tecnológico, futurista e caro, e outro cultural, ancestral e primitivo. Com ela, aprendi a criar painéis, a trabalhar a tridimensionalidade na moda, a trabalhar a cartela de cores com mais precisão. Ela me chamava o tempo inteiro de temperamental e cheguei a brigar com ela em algumas situações, mas ela foi muito importante pra minha formação.
E qual foi a ideia da sua coleção seguinte? Pesquisando o cangaço, vendo os arabescos, as estrelas de Davi, comecei a perceber a influência judaica, ibérica e moura na nossa cultura. Na época, os historiadores da UFPE disseram que eu estava delirando, então insisti e achei um livro de Câmara Cascudo chamado A influência moura na tradição popular brasileira. A segunda coleção foi homônima ao livro e fiz uma reinterpretação desse contexto. Tudo foi construído em Bezerros, com um costureiro de nome Alexandre, um gênio da modelagem e do acabamento. Passei um mês inteiro lá e criei diálogos com couro de porco, couro de bode, com o significado desses materiais na cultura judaica. Essa coleção tinha sandálias de Jailson Marcos com papel machê, tinha bordado, renda, muito tecido importado.
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Qual caminho você tomou a partir daí? Minha terceira coleção se chamava Movimentos brasileiros, na qual eu traçava um paralelo estético entre os principais movimentos brasileiros do século XX que tinham em comum a questão da identidade da moda, no comportamento e na arte: modernismo, regionalismo, tropicalismo, o manguebeat, o armorial. A história do Brasil é sempre uma tentativa na qual agente avança e depois retrocede. Hoje penso na história como uma ficção verossímil. Depois do Phytoervas, migrei pra Casa dos Criadores. Foi um período de muita experiência, de muito laboratório, de material, viajava o Brasil inteiro por minha conta, procurando comunidades artesãs. Parei em Pirangi, no Rio Grande do Norte na virada dos anos 90 para 2000 para desenvolver produtos com fibras naturais e passei a me interessar muito pelo artesanato. Eu cheguei a desenvolver roupas para a Daslu com o Daruê Malungo. Um grupo de meninos de lá fazia bordados em calças da NK Store. As calças eram caríssimas e ganhamos um bom dinheiro.
Você também mergulhou no universo do artesanato pernambucano, abraçando a renda como material de trabalho. Como foi essa descoberta? Me apaixonei totalmente pela renda renascença e fiz um percurso invertido. Talvez eu tenha me perdido nesse processo. Enquanto todos na minha geração estavam preocupados em consolidar sua marca enquanto criadores, eu fui para o Agreste pernambucano passar temporadas e participar das feiras em cidades como Pesqueira e Jataúba. Larguei tudo, vivi de verdade o universo da renda e como ela era criada e vendida. Conheci o bordado de Passira, o frivolité de Orobó, a renda Richelieu, a renda renascença e o bordado ponto cheio de Jataúba, além da xilogravura de Bezerros, que é pura moda. Isso fazia parte do meu processo de identidade, de buscar uma exclusividade no meu trabalho. Acho muito interessante o paradoxo de ver uma roupa ser feita na zona rural de pesqueira e vendida na Daslu, ou saindo na capa de uma revista, vestindo a it girl do momento. Também acho engraçadíssimo ir para Pesqueira e Poção e ver meus riscos copiados nas vitrines das lojas. Faz mais de 5 anos que isso acontece. Meu trabalho está incorporado no imaginário das rendeiras. Isso está lado a lado com um padrão hollywoodiano de lojas e butiques com vitrines de vidro que vendem mini vestidos com um ombro só, ou roupas de manga comprida. Já ganhei muito dinheiro, já perdi muito dinheiro, já levei renda pro mundo. Tenho uma relação muito louca com isso. Eu adoraria fazer uma exposição mostrando os atores por trás da renda, porque hoje temos muito mais acesso aos atravessadores do que aos artesãos.
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Qual a importância da musica em seu processo de criação? Ela é a linguagem que, para mim, consegue sintetizar melhor as sensações. Ela precisa sintetizar todo o universo estético das minhas coleções. Tem que haver um diálogo ou um contraponto com o que está na passarela. Na minha primeira coleção, havia Chico Science na trilha, e a segunda já tinha uma sonoridade mais ibérica, com o Mestre Ambrósio. Quando escolho umas setlist, passo dias, até meses, ouvindo a mesma música. Fico muito no exagero, na repetição, e adoro bandagem sonoras nos desfiles. Gosto de ouvir palavras junto com outras sons. Numa das coleções, a trilha de DJ Dolores tinha a voz de Gilberto Freyre falando sobre contradição, e em outra, tinha o pronunciamento que anunciava o AI-5. Também coloquei modelos como Claudia Liz na passarela, falando “é a morte do boi”. No que a apropriação da obra de Gilberto Freyre acrescentou à tua obra? Mesmo sabendo do perigo político do pensamento de Freyre, sinto que seu legado é maior do que qualquer visão preconceituosa sobre sua figura. Acho que ele foi o maior pensador brasileiro que abordou a moda, com Modos de homem e modas de mulher. Mas antes mesmo dele, existem algumas iconografias fundamentais para o meu imaginário, como a do manto tupinambá, a roupa mais importante da moda brasileira, levada do Brasil por Maurício de Nassau e hoje no Museu Nacional da Dinamarca. É a primeira peça de moda brasileira, com a nossa identidade.
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Qual a sua opinião da apropriação do conceito mangue? Não tenho nenhum discurso formado sobre o movimento mangue, embora me considere privilegiado de tê-lo vivido, em meados dos anos 90. Fomos na contramão, mas, ao mesmo tempo, dialogamos com vários movimentos do mundo inteiro. O meu olhar foi muito pessoal e emocional para com aquela turma. Era como se eu não pudesse deixar aquilo passar sem colar neles. Era tão moderno e tinha tanto a ver com minhas buscas estéticas e sonoras que, pra mim, era impossível estar em Recife e ignorar esses caras. No entanto, fui até vitima disso. O que era inspiração virou um compromisso, um rótulo de tudo. Mas quando o poder institucional se apropria de um movimento como esse, ele vira um código mais a serviço do poder do que dos artistas. Quando isso estava começando a acontecer, Chico saiu do nosso convívio. Se fala muito do legado de Chico como ícone de comportamento, de atitude, mas sua importância como poeta é uma coisa da qual pouco se lembra. As letras, a atmosfera que Chico criou e deixou são eternas. Ele criou um estilo e até hoje acho que o movimento é muito inspirador. Não à toa há estilistas no Rio e SP se inspirando no movimento.
Quais são as referências para as quais você sempre volta? Que subtextos a sua roupa tem?
Qual o seu brinquedo na moda? O que você gosta mais em termos de texturas e tramas? Acho que minha parte preferida no processo de fazer uma roupa é a elaboração do conceito. É um tiro em um lago escuro. Faço cada roupa como se fosse a primeira vez, principalmente roupa de ateliê, de clientes. Muita coisa me salta aos olhos quando vejo uma pessoa, sua história. Tento equilibrar o meu desejo com o da cliente e usar minha técnica naquele momento. É minha brincadeira cotidiana. Meu processo de criação em moda é completamente lúdico e descomprometido de qualquer questão mercadológica, de tendência. É como brincar de boneca, é o transporte da abstração para o concreto. Para mim, esse é o melhor momento. Às vezes eu me apaixono pela roupa e nem quer entregá-la. Gosto muito do sensorial, do desafio do novo, do começo de cada coleção, de viajar, de pirar. Confesso que acho a parte da execução meio sem graça, embora reconheça sua
Esse olhar exagerado e dramático sobre a própria realidade é uma herança do expressionismo alemão, que está na Acho que isso está na genealogia imagética contemporânea brasileira, sobretudo na minha geração. A gente adorava cineastas como Fritz Lang, e obras como Aurora, de Murnau, ou Dr. Mabuse. Há também uma teatralidade no meu olhar, mas isso nem sempre está explícito na roupa mas implícito na minha criação. Eu passei por um processo de formação teatral, não apenas como figurinista, mas como ator. Trabalhei com Moncho Rodriguez quase dois anos, na peça Woyzeck. Eu era um menino, tinha 17 anos, e o figurino tinha referências incríveis pra minha formação. Foi quando eu conheci o trabalho de Peter Brueghel, Hieronymus Bosch. Os figurinos eram inspirados nisso. Como Woyzeck é um texto inacabado, ele criou as cenas isoladamente e só as junto depois da estreia. Tinha muita música, muito instrumento, os atores aprenderam a cantar, era um processo louquíssimo no qual vários atores saíram chorando surtado do ensaio para nunca mais voltar. Um ator, pra ser bom, tem de ler sobre moda, saber o que é tendência, o que está na cabeça dos estilistas. Isso está muito claro no trabalho dele.
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Em que mais essa referência cênica te alimentou? Passei um período bonequeiro com o Mamulengo Só-riso. O professor Tiridá embalou uma geração. Eles criaram uma trupe fazendo os bonecos mais requintados do mundo e criando dramaturgias, historinhas de sucesso. Antes do estilismo, passei um tempo com eles, aprendendo a fazer bonecos, figurinos, tudo com acabamento e direção de arte, tudo voltado pro histórico. As personagens femininas tinham anquinhas, eram sempre requintadas, com um glamour meio exagerado. Às vezes me acho um filho bastardo da moda. Há um desconforto que vai migrando para onde quer que ela esteja. Até agora, fiz 28 espetáculos, entre figurinos de dança, de teatro, e de shows. Já trabalhei com Rui Pereira, da Cia. Seraquê, com a São Paulo Companhia de Dança. Tive um período baiano, quando trabalhei com a Timbalada. A moda é uma das linguagens que mais se alimenta dos outros contextos culturais, artísticos, sociais, econômicos. Ela é uma vampira, porque ela consegue absorver esses contextos e dar uma identidade pra isso. A moda também tem uma coisa meio perversa:, ao mesmo tempo que ela cria identidade, também pode padronizar. Esses dois polos são fascinantes. A moda ainda tem o poder de agregar e servir como instrumento de identificação? Mesmo com todo esse processo vergonhoso de mão-de-obra escrava no Brasil, que é uma vergonha, e do consumo desenfreado, a moda ainda consegue ser humana, mesmo com todas as tecnologias por trás dela. Ela não se descaracterizou enquanto uma linguagem que reflete a alma. Por isso eu a acho cada vez mais importante no processo cultural. Ela, por si só, também é uma linguagem que elitiza, exclui, que propõe um dialogo muito intimo com o poder.
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Qual seria o paraíso e o inferno de Pernambuco pra você? O paraíso talvez seja o livre acesso a canais extremamente bem conectados de expressão cultural, de histórias de vida, com pessoas incríveis e uma grande tradição. O inferno talvez seja a vaidade por trás disso tudo, uma falsa modéstia, uma falsa ausência de preconceito. Na verdade, temos algo de muito elitista, coronelista que conseguiu passar para a contemporaneidade. O limbo talvez seja a possibilidade que Pernambuco tem de se refazer. Recife é uma cidade aberta para o novo, a transformação. O que faz de pernambucano?
você
um
artista
É um clichê dizer que uma das maiores características do artista pernambucano é a pluralidade. O pernambucano se leva muito a sério. Meu trabalho é possível em qualquer lugar do planeta, mas optei por ficar em Pernambuco para criar uma casca, uma solidez estética e conceitual para o meu trabalho, e também para me distanciar da indústria da moda. Tive ateliê em Lyon, na França, por dois meses, com costureiras portuguesas, árabes, era uma Torre de Babel, e eu conseguia produzir, porque conseguimos levar esse imaginário local para onde formos. Temos um savoir-faire muito próprio. A gente tem uma coisa que é verdadeira, apesar dos resquícios coronelistas: conseguimos dialogar com todas as classes. São várias cidades dentro de cada cidade, e o Sertão é de uma riqueza ímpar. Uma das coisas que mais me orgulham em Pernambuco é o apego que temos pela poesia. Basta ir a São José do Egito para encontrar jovens apaixonados pela palavra.
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B
astam poucos segundos para bater o olho em um sapato de
marcos
e identificar a marca do seu criador.
as
Jailson
sandálias com ponteira
levantada se tornaram peças clássicas da moda pernambucana e chamaram a atenção a ponto de surgirem imitações.
recife
o
designer potiguar escolheu o
como base para suas criações, que Já fizeram parte de coleções de
ronaldo fraga. sua ligação mais duradoura, porém, é com eduardo ferreira, com o qual tem quase 30 anos de amizade e parceria criativa. em entrevista concedida na sua casa-ateliê, Jailson passa em revista a sua traJetória, ao lembrar do início da carreira, explicar seu processo de criação, avaliar a situação do mercado da moda e fazer uma avaliação do seu legado na moda nacional. estilistas renomados como
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JAILSON MARCOS
Em que contexto você e Eduardo começaram a trabalhar juntos?
Nunca quis ser um estilista. Meu foco sempre foram os acessórios, cintos, Qual foi o seu primeiro contato com
sapatos e brincos. Eduardo sempre
Eduardo Ferreira?
pensou no todo, mas como a atenção dele era concentrada nas roupas, nós nos complementamos. No fim dos anos
Foi em meados dos anos 80. Eu estava em um ônibus, voltando de Boa Viagem, e vi uma pessoa que me chamou a atenção
novelas, mas a primeira experiência marcante dele foi com Beto Kelner. Nos primeiros desfiles da marca, ele sugeriu
pelo estilo diferente, tanto na forma de se
que eu fizesse algumas plataformas.
vestir quanto no cabelo. Mesmo assim, o
Esse foi o meu primeiro contato com as
que mais atraiu o meu olhar foi uma revista
passarelas. Eu não tinha capital, eu tinha
de moda que ele folheava, pois eu já havia
só o desejo de poder realizar alguma coisa.
começado a acompanhar o assunto.
Fomos pela via do absurdo e criamos
Começamos a conversar e descobrimos
plataformas
que tínhamos as mesmas referências, como o programa Ponto de Vista, de Cristina Franco. A partir daí, viramos amigos. Foi Eduardo quem despertou em mim a visão da passarela, do show na moda, que tem de existir. Um desfile tem
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80, Eduardo já tinha feito figurinos para
que
eram
verdadeiros
tijolos. Era até difícil para as modelos se equilibrarem, mas foi uma experiência muito
interessante.
Durante
algum
tempo, forneci sapatos para a loja de Beto Kelner por intermédio de Eduardo. Ele sempre tinha a ideia de fazer algo diferente e nunca chegou para mim com
15 minutos de duração, mas os conceitos
uma concepção pré-determinada do que
dele têm de ser muito bem pensados.
desejava. Sempre pensávamos juntos.
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Houve algum estímulo familiar para que você enveredasse pela moda?
Você lembra de algum momento especialmente curioso durante esses anos de parceria com Eduardo?
Eduardo me convidou para fazer os sapatos do segundo desfile dele no extinto Phytoervas Fashion. Resolvemos criar tamancos de papel machê. Era uma verdadeira escultura de sapato. Comecei a moldar os calçados com papel machê, e eu secava, cortava e lixava. Quando chegamos em São Paulo, as peças não haviam secado completamente e elas começaram a quebrar, também por conta do clima frio. Mesmo assim, alguns chegaram a ser usados na passarela e foram fotografados na Vogue.
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Não há ninguém ligado a essa área na minha família, mas a minha mãe costurava as minhas roupas e as das minhas irmãs e eu ajudava a escolher os tecidos. Herdei a habilidade artística da minha mãe. Ela pintava, bordava, fazia crochê. Eu adorava comprar brincos para as minhas irmãs e dar opiniões sobre os sapatos usados por elas. Porém, meu olhar nem era voltado especificamente para a moda, mas para a arte em geral. Sou potiguar e, quando fiz vestibular no Rio Grande do Norte, escolhi Arquitetura, mas, dependendo da média, o aluno ia cursar Educação Artística. Foi o que aconteceu comigo e fiz o curso de artes até o 6° período. Foi quando resolvi me mudar para o Recife. As pessoas vêem muita semelhança do meu trabalho com a alpercata do sertanejo, mas esta foi uma influência natural. Sou filho de vaqueiro, mas nunca pensei em colocar essas referências de infância de maneira intencional no meu trabalho.
Em que contexto você e Eduardo começaram a trabalhar juntos?
Nunca quis ser um estilista. Meu foco sempre foram os acessórios, cintos, sapatos e brincos. Eduardo sempre pensou no todo, mas como a atenção dele era concentrada nas roupas, nós nos complementamos. No fim dos anos 80, Eduardo já tinha feito figurinos para novelas, mas a primeira experiência marcante dele foi com Beto Kelner. Nos primeiros desfiles da marca, ele sugeriu que eu fizesse algumas plataformas. Esse foi o meu primeiro contato com as passarelas. Eu não tinha capital, eu tinha só o desejo de poder realizar alguma coisa. Fomos pela via do absurdo e criamos plataformas que eram verdadeiros tijolos. Era até difícil para as modelos se equilibrarem, mas foi uma experiência muito interessante. Durante algum tempo, forneci sapatos para a loja de Beto Kelner por intermédio de Eduardo. Ele sempre tinha a ideia de fazer algo diferente e nunca chegou para mim com uma concepção prédeterminada do que desejava. Sempre pensávamos juntos.
Como foram os seus primeiros momentos no Recife?
Houve algum estímulo familiar para que você enveredasse pela moda?
Você lembra de algum momento especialmente curioso durante esses anos de parceria com Eduardo?
Eduardo me convidou para fazer os sapatos do segundo desfile dele no extinto Phytoervas Fashion. Resolvemos criar tamancos de papel machê. Era uma verdadeira escultura de sapato. Comecei a moldar os calçados com papel machê, e eu secava, cortava e lixava. Quando chegamos em São Paulo, as peças não haviam secado completamente e elas começaram a quebrar, também por conta do clima frio. Mesmo assim, alguns chegaram a ser usados na passarela e foram fotografados na Vogue.
Não há ninguém ligado a essa área na minha família, mas a minha mãe costurava as minhas roupas e as das minhas irmãs e eu ajudava a escolher os tecidos. Herdei a habilidade artística da minha mãe. Ela pintava, bordava, fazia crochê. Eu adorava comprar brincos para as minhas irmãs e dar opiniões sobre os sapatos usados por elas. Porém, meu olhar nem era voltado especificamente para a moda, mas para a arte em geral. Sou potiguar e, quando fiz vestibular no Rio Grande do Norte, escolhi Arquitetura, mas, dependendo da média, o aluno ia cursar Educação Artística. Foi o que aconteceu comigo e fiz o curso de artes até o 6° período. Foi quando resolvi me mudar para o Recife. As pessoas vêem muita semelhança do meu trabalho com a alpercata do sertanejo, mas esta foi uma influência natural. Sou filho de vaqueiro, mas nunca pensei em colocar essas referências de infância de maneira intencional no meu trabalho.
Tive de recomeçar a minha vida. Eu tinha um emprego estável na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Norte e fazia faculdade, mas era muito insatisfeito. Quando pedi demissão, minha família e meus amigos não acreditaram. Tinha 22 anos quando vim morar no Recife. Para me manter, arrumei um emprego em uma multinacional, onde fiquei durante 4 anos e meio, ,mas também não gostava. Fui demitido e conheci Eduardo logo depois disso. Quando já estava livre desse emprego, senti necessidade de fazer moda, de trabalhar com o artesanal. Aluguei um quarto na Rua das Ninfas e o transformei em meu primeiro ateliê. Primeiro, comecei a fazer bolsas e cintos, que vendia em repartições públicas e para as amigas das minhas irmãs. Só comecei a fazer sapatos depois de ter um argentino como meu vizinho de quarto. Ele me via fazendo as bolsas e eu disse que queria aprender a fazer sapatos, assim como ele. Antes de voltar para a Argentina, esse meu vizinho me ensinou a técnica. Comecei a usar minhas primeiras peças e os amigos gostaram, então fiz uma sapatilha de camurça para a minha irmã e as amigas dela começaram a fazer pedidos. Desde esse período, sempre houve compradores para as minhas criações, mesmo aquelas que hoje considero malfeitas ou de mau gosto.
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De que forma você começa a pensar em suas criações? Qualquer coisa pode me inspirar a criar, seja a partir de uma planta, de algum elemento de arquitetura ou nas artes plásticas. Faço sapatos para pessoas que buscam o novo. Não costumo trabalhar primeiramente a partir de um tema específico, mas, se eu tiver de inventar algo inspirado, por exemplo, no Egito, vou estudar as referências sobre ele e criar a partir disso. Normalmente, corto um papel e faço rabiscos livremente. Brinco um pouco com as formas e, quando vejo algum traço que me chama a atenção, colo isso em outro papel. Gosto das formas e das linhas que vestem o pé. Para uma criação estar completa, preciso visualizála em 360 graus. Às vezes, pego as modelagens que foram cortadas de maneira errada e fico mexendo nelas, sem pensar em nada. Uma tira já faz a diferença. Meu único pensamento é querer fazer algo diferente de tudo o que eu já vi. Ao mesmo tempo, tenho um processo um pouco diferente dos outros criadores de sapatos, pois trabalho muito a partir de algo já feito por mim. Até tenho um banco de imagens, mas nunca recorro a ele.
Qual é a sua criação mais icônica? Sempre gostei de usar alpercatas do Mercado de São José. Em 1996, Eduardo me chamou para fazer calçados para um editorial dele da Revista Elle em Olinda. Ele queria gladiadores e sandálias de dedo. Essa alpercata tinha um cabedal que cobria o dedo dos pés e, inspirado nisso, virei o bico da sandália e fiz uma sandália masculina para mim, além de uma versão feminina. Depois percebi que esse calçado criado por mim tinha uma influência oriental e batizei-o de oriental dedo. Eduardo se apaixonou pela peça quando a viu e aconteceu a mesma coisa com a editora da revista quando as fotos do editorial chegaram em São Paulo.A primeira pessoa de moda do Recife a calçar essa sandália foi Marcela Bérgamo, uma das pioneiras na área de produção por aqui. As pessoas dizem que esta é uma sandália do sertão, mas não pensei nisso quando a criei. Ela foi feita para o mundo.
Qual a sua rotina de trabalho no ateliê? Sempre morei no meu local de trabalho e, quando acordo, os funcionários já estão por aqui. Eu moro no ateliê e sinto necessidade de ter um outro espaço Depois de sair da multinacional, quando já fazia sapatos, resolvi montar uma sociedade em uma empresa de alimentação industrial, de quentinhas. Fiquei, mais uma vez, insatisfeito, pois o ateliê ficou parado. Eu trabalhava o dia inteiro e quando eu voltava para casa, meu ateliê estava sem vida. Coloquei minha cama onde era anteriormente a minha fábrica e percebi que não dava pra separar mais minha casa do meu ofício.
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Qual foi o momento mais marcante da sua carreira? Foi a criação da sandália de dedo, que eu criei do zero, apenas pelo impulso de querer fazer. Mas houve outro momento muito importante, que ocorreu justamente em um desfile de Eduardo. Em uma das edições do Recife Fashion, criei um scarpin de plástico de bico finíssimo, com detalhes de couro, para um desfile dele. Durante a prova de roupa, o stylist deu um piti com os sapates e disse que eles não estavam adequados para a coleção. Eduardo disse para ele “ou as modelos calçam esses sapatos ou não tem desfile”. E deu tudo certo. Outra época importante foi a participação no Mercado Pop, nos anos 90, que marcou a minha carreira e a de muitos outros. Muitas vezes, ia para lá apenas com as minhas sandálias, sem dinheiro nem para voltar para casa. Vendia tudo e conseguia dinheiro para criar nos dias seguintes. Além das parcerias com Eduardo, quais foram os trabalhos com outros estilistas que mais te marcaram? Ronaldo Fraga gostou do meu trabalho, veio para cá e disse que queria me conhecer. Trabalhamos juntos na coleção Turista Aprendiz, na primavera/verão 2010/2011. Ele me dava muita liberdade. Eu recebia um briefing da coleção, as informações sobre as cartelas de cores, e sempre chegávamos a um acordo. Daniela Jansen, da Maria Bonita, viu alguém usando um dos meus sapatos no Rio de Janeiro e viu que tinha a cara da marca. Ela veio ao Recife e trocamos ideias. Também trabalhei com Gustavo Silvestre. Fiz alguns dos primeiros desfiles dele, que apresentam referências fortes do cangaço, do couro. Foi quando comecei a trabalhar com pespontos. Quais são os nomes da sapataria nacional ou internacional cujo trabalho você admira? Salvatore Ferragamo. Gostaria muito de visitar o museu dele em Florença, na Itália. Foi uma jornalista de São Paulo, Carol Garcia, quem me falou dele pela primeira vez, comparando as minhas plataformas aos trabalhos dele. Não conhecia o trabalho de Ferragamo, perguntei a ela quem era e, depois disso, comecei a pesquisar. Por coincidência, nascemos no mesmo dia: 5 de junho. Esse designer de sapatos já fez vários trabalhos para atores e atrizes e, para mim, ele é um dos maiores criadores nessa área.
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Qual o seu produto de maior aceitação? São as sandálias que chamo de oriental dedo e oriental étnica. Nunca vou deixar de fazê-las, assim como a Chanel nunca vai deixar de fazer sua bolsa de correntes, porque essa é a minha identidade, o meu trabalho. Quando o cliente volta, é impressionante ver como ele sempre compra esse mesmo modelo. Esses tipos de sandália já têm várias versões, cores e viraram uma família de calçados com numeração: oriental dedo 1, dedo 2, dedo 3. Já experimentei muita coisa, pois antes havia mais tempo e disponibilidade para isso. Hoje, o ambiente do mercado está mais voltado para o comercial. De que forma você avalia as forças e fraquezas do mercado de calçados no Brasil? O mercado está vivo e funcionando. Temos bons estilistas e uma indústria ativa. Não se quantificar em números, mas o sapato brasileiro é reconhecido e bem vendido no exterior. No entanto, é cada vez mais difícil encontrar mão-de-obra especializada. Ainda nos anos 90, quando vi que não poderia mais produzir sozinho, tive de procurar alguém para me ajudar. Encontrei um sapateiro, seu Nino, e ele está no meu ateliê há 16 anos. É um verdadeiro casamento, porque já tivemos brigas e discussões, mas ele sempre está por aqui. Há também pessoas que chegaram no ateliê sem saber quase nada e tive de treinar para que continuassem trabalhando comigo.
Como você lida com o fato de existirem cópias de seu trabalho? Isso me incomodava muito no início. Quando vi as primeiras cópias, fiquei doente, mas depois vi que não precisava me preocupar. Chanel dizia que só teve ideia do sucesso do seu trabalho quando começou a ver as primeiras imitações. Quem consome as cópias alimenta o desejo de ter um original. Sempre vejo algumas delas no Mercado de São José e soube também que um artesão em Salvador faz essas imitações do meu trabalho. Essa situação não deixa de me incomodar, mas o que posso fazer? Já criei tantas outras coisas…
Você já chegou a fazer uma revisão da própria carreira? E quais são as perspectivas a partir de agora? Já criei o meu estilo, a minha identidade, e acho que, daqui a dez gerações, vão saber que existiu um sapateiro que criou um trabalho de inspiração oriental. Quanto ao futuro, sinto necessidade de ampliar o meu espaço físico e tentar implantar uma loja. No entanto, não quero acelerar demais a minha carreira, pois isso descaracterizaria o meu produto. Quero atender bem as pessoas, e isso siginifica produzir em pequenas quantidades, em manter o caráter artesanal.
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A IndumentรกrIA, A Arte eA A INDUMENTร RIA, os trรณpIcos: diรกlogos entre Gilberto Freyre e Flรกvio de carvalho
ARTE E OS TRÓPICOS: DIÁLOGOS ENTRE GILBERTO FREIRE E FLÁVIO DE CARVALHO
Anco Márcio Tenório Vieira* Anco Márcio Tenório Vieira*
A moda e o vestuário perpassam o conjunto da obra de Gilberto Freyre (1900-198 Vira e mexe, deparamo-nos, dentro do seu projeto civilizatório de um Brasil que de A moda e o vestuário perpassam conjunto da obra de Gilberto Freyre (1900-1987). ser pensado como ouma unidade (Tradição) constituída pela diversidade (Região), co Vira e mexe, deparamo-nos, dentro edointerpretações seu projeto civilizatório de um Brasil queedeve descrições, análises de vestimentas, roupas trajes usados no Bra ser pensado como uma unidade (Tradição) constituída pela diversidade (Região), com Descrições, análises e interpretações que ele, não raras vezes, estende ao mundo que descrições, análises e interpretações de vestimentas, e trajes usados no Brasil. português criou e às regiões tropicaisroupas ou semitropicais. Durante os debates e plenárias Descrições, análises e interpretações que ele, não raras vezes, estende ao mundo que o 1° Congresso Regionalista do Nordeste, que transcorreu entre os dias 7 e 11 de feverei português criou e às regiões tropicais ou semitropicais. Durante os debates e plenárias do de 1926, nodo Recife, o Diario de Pernambuco dedias 11 de registra a sugestão, acata 1° Congresso Regionalista Nordeste, que transcorreu entre os 7 efevereiro 11 de fevereiro unanimemente pelos presentes, “que as roupas brancasacatada de linho ou brim, seja de 1926, no Recife, o Diario de Pernambuco de 11 dedefevereiro registra a sugestão, permitidas em quaisquer solenidades onde o traje de rigor seja exigido”. unanimemente pelos presentes, de “que as roupas brancas de linho ou brim, sejam sugestão de fazendas roupas que seja fossem adequadas às condições tropicais, tenta permitidas em Essa quaisquer solenidades onde oetraje de rigor exigido”. inscrever noque século XXadequadas e sepultar por definitivo o modo inapropriado como Essa sugestão de fazendasoe País roupas fossem às condições tropicais, tentava inscrever o País no séculoseXX e sepultar por definitivo o modo como osdo século XX recebe brasileiros vestiam, revertendo a herança que oinapropriado Brasil republicano brasileiros se vestiam, revertendo a herança que o Brasil republicano do século XX recebera do Brasil Colônia e do Brasil Império: a dependência dos trajos, tecidos e modas copiad do Brasil Colônia e do Brasil Império: a dependência dos trajos, tecidos e modas copiados da Europa. Lembra Freyre, em Casa-Grande & senzala (1933), que um dos motivos da Europa. Lembra Freyre,de emhemorróidas Casa-Grande entre & senzala (1933), que um dosou motivos do e seus descenden alto índice “os portugueses ricos letrados alto índice de hemorróidas entre “os portugueses ricos ou letrados e seus descendentes no Brasil” dos séculos XVI, XVII e XVIII, eram as roupas inapropriadas ao clima, com no Brasil” dos séculos XVI, XVII e XVIII, eram as roupas inapropriadas ao clima, como o veludo, a seda e o damasco. Acrescente-se às “roupas inapropriadas”, os meios o veludo, a seda e o damasco. Acrescente-se às “roupas inapropriadas”, os meios de transporte usados para osdesses deslocamentos senhores deaengenho transporte usados para os deslocamentos senhores de desses engenho e fidalgos: rede e o e fidalgos: a rede e palanquim. Este, no caso, forrado comazuis, “pesados azuis, verdes palanquim. Este, no caso, forrado com “pesados tapetes verdestapetes e encarnados ou de e encarnados ou grossas cortinas”. O resultado, dizer de palanquins Freyre, é que esses palanquins se constituíam e grossas cortinas”. O resultado, no dizer de Freyre,no é que esses se constituíam em “uns verdadeiros fornos ambulantes”. Carregados por escravos “uns verdadeiros fornos ambulantes”. Carregados por escravos durante o dia inteiro durante (“uns o dia inteiro (“u viajando de umviajando engenho adeoutro; outros passeando ruas das cidades, onde se avistarem um engenho a outro; pelas outros passeando pelas ruas das cidades, onde se avistare dois conhecidos, cada um na sua rede, era costume pararem para conversar; mas sempre dois conhecidos, cada um na sua rede, era costume pararem para conversar; mas semp deitados ou sentados nas almofadas pegando fogo”), esses senhores e senhoras de engenhos deitados ou sentados nas almofadas pegando fogo”), esses senhores e senhoras de engenh permaneciam sentados ou deitados nas redes quando também estavam recolhidos suas recolhidos em su permaneciam sentados ou deitados nas redes quando tambémem estavam casas. Hábito que se estendia à Igreja. No caso das senhoras, “esparramavam-se pelo chão casas. Hábito que se estendia à Igreja. No caso das senhoras, “esparramavam-se pelo ch — sentando-se de pernas cruzadas sobre as sepulturas, às vezes ainda frescas”. — sentando-se de pernas cruzadas sobre as sepulturas, às vezes ainda frescas”. No foi diferente ao longo dos oitocentos essa inadaptação do trajo brasileiro aos trópicos: No foi diferente aocontinuaram longo dos oitocentos trajo brasileiro aos trópic “homens, mulheres e até meninos a vestir-se essa para inadaptação a missa, para do as visitas e “homens, mulheres e atédemeninos continuaram a felpudo, vestir-seespinhento para a missa, para as visita para ir ao colégio como se um eterno luto mães os obrigasse ao preto paraFreyre. ir ao colégio como se um eterno obrigasse ao preto e solene”, assinala O uso de cartola ao longo doluto dia ededamães noiteosera parte quase que felpudo, espinhen solene”, assinala Freyre.livres. O usoQuando de cartola ao longo dodefendiam dia e da “que noite era parte quase q obrigatória da eindumentária dos homens os regionalistas as roupas brancas de linho da ou indumentária brim, sejam permitidas em quaisquer solenidades onde o obrigatória dos homens livres. Quando os regionalistas defendiam “q traje de rigor seja exigido”, eles estavam se insurgindo contra permitidas o hábito ainda as roupas brancas de linho ou brim, sejam em arraigado, quaisquer solenidades onde nas primeiras duas décadas do século XX, dos que “só achavam jeito de andar de cartola e traje de rigor seja exigido”, eles estavam se insurgindo contra o hábito ainda arraigad sobrecasaca preta”, como muitos professores, médicos, advogados e os estudantes de Direito nas primeiras duas décadas do século XX, dos que “só achavam jeito de andar de cartol (São Paulo e Recife) e Medicina (Salvador e Rio de Janeiro). No entanto, lembra Freyre, sobrecasaca preta”, como muitos professores, médicos, advogados e os estudantes de Dire “um ou outro chapéu-do-chile mais afoito branquejou no meio desse preto ortodoxo de (São Paulo e Recife) e Medicina (Salvador e Rio de Janeiro). No entanto, lembra Frey cartolas”, assim como o uso das calças brancas, particularmente na Bahia e no Recife. Nestes “um ou outro mais como afoitoalguns branquejou noadvogados, meio desse preto ortodoxo dois locais, os comerciantes dechapéu-do-chile açúcar e de café, assim médicos, cartolas”, assim públicos, como o uso das calçasasbrancas, particularmente na Bahia e no Recife. Nes professores e altos funcionários combinavam calças brancas com a sobrecasaca dois locais, os comerciantes açúcar e de café, assimdiante comodaalguns preta e a cartola. Eram insurgências, sim, mas de insurgências ainda tímidas moda médicos, advogad do “eterno lutoprofessores de mães”. e altos funcionários públicos, combinavam as calças brancas com a sobrecasa preta e a cartola. Eram insurgências, sim, mas insurgências ainda tímidas diante da mo do “eterno luto de mães”.
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Trinta anos depois do 1° Congresso Regionalista, particularmente em 22 de agosto de 1956, Gilberto Freyre, em conferência intitulada de Morals and social change, pronunciada no Terceiro Congresso Mundial de Sociologia, em Amsterdam, faz novas sugestões de vestimentas, roupas, trajes e tecidos que deveriam ser adotados por aqueles que moram nas regiões tropicais ou semitropicais; sugestões que vão muito além das “roupas brancas de linho ou brim” de três décadas atrás. Homem do seu tempo, Freyre como que aproveita as transformações sociais e morais que o mundo do pós-guerra começa a vivenciar para sugerir a ressurgências de certas vestimentas que foram sendo abandonadas pela civilização ocidental ou ocidentalizada. Inicialmente ele evoca o século XVII e as censuras que os ingleses fizeram aos portugueses estabelecidos no Oriente e que substituíram a calça e o trajo masculino europeu pelo trajo oriental. Para Freyre, “por essa transformação — mudança cultural e, por extensão, mudança social — eles [os portugueses] estavam agindo cientificamente, desde que, como tem sido notado por estudiosos idôneos dos problemas de higiene do trajo em climas tropicas ou semitropicais, os vestidos e as saias femininas são basicamente mais adequados nestes climas do que as calças ocidentais”. Tomando o exemplo desses portugueses seiscentista, Freyre defende que o robe, o hábito talar, a túnica, o camisolão maometano e as “togas viris” são os melhores trajos, seja para o homem, seja para a mulher, para os que habitam tanto os desertos quanto os trópicos ou as áreas semitropicais. No entanto, ele advoga, como sugestão “mais moderada”, mas também “no sentido de uma revolução científica nas vestimentas a serem usadas pelos ocidentais em países quentes”, que “o segundo melhor trajo (de homem civilizado no trópico) seria o uso de um paletó curto e frouxo e de calças frouxas — pantalões como os dos palhaços, com suspensórios, ao invés de cinturão. Sendo frouxas, essas vestimentas teriam alguns dos benefícios do robe”. Mas a sugestão de Freyre pode ser considerada modesta se for comparada com a que foi apresentada pelo arquiteto, dramaturgo e pintor fluminense Flávio de Carvalho (1899-1973) naquele mesmo ano de 1956, particularmente em 18 de outubro, em performance pelas ruas de São Paulo, e por ele intitulada de “Experiência n°3“: o uso de um saiote em substituição às calças e, no lugar do paletó, uma camisa de manga comprida e gravata, além de uma blusa de mangas curtas e folgadas. Em seus estudos sobre a moda, publicados em uma coluna intitulada “A Moda e o Novo Homem”, no jornal Diário de São Paulo, Flávio defendia que a história da moda seguia duas leis imutáveis: as manifestações “curvilíneas fecundantes” e as “retas paralelas antifecundantes”. Se as primeiras estão ligadas a determinados eventos históricos que levam à alegria e à fecundação, as segundas estão associadas ao luto e à tristeza. Para ele, as vestimentas usadas no Império Romano eram antifecudantes, pois traduziam o luto advindo das guerras e das conquistas do Império. O Mesmo ocorria no período pós-Revolução Francesa, em 1789, com as prisões e execuções de membros da nobreza, e na França pós-1870, depois da Guerra Franco-Germânica, e a queda de Napoleão III e o início da Terceira República Francesa. Já das manifestações “curvilíneas fecundantes” são exemplos a moda espanhola das verdugadas e das Crinolinas nos séculos XVI e XVII. A mesma crinolina que será observada durante o citado reinado de Napoleão III, entre as décadas de 1850 e 1860, na França. Segundo Flávio de Carvalho, durante esse período “a alegria volta para o mundo: inclusive a alegria sexual, a cintura que se encontrava em baixo dos seios desce para os quadris. Os homens passam a usar cintura fina. A mulher usa cintura fina, colete apertado, de barbatanas de ferro. Alguns homens, também. As mulheres usam, além disso, seios postiços enormes e quadris postiços”.
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Carvalho ainda observava que “quando a moda reta-paralela entra em cena na história da indumentária, a cintura se encontra sempre abaixo dos seios. Quando a moda curvilínea entra em cena, a cintura está nos quadris”. Outro conceito lançado pelo artista plástico foi o de “idade púbere”. No caso, trata-se de momentos da história em que “o homem e a mulher usam a mesma indumentária”, a exemplo do que ocorre na Roma Antiga. Sua proposta, traduzida na “Experiência n°3“, perseguia uma tendência curvilínea e sinalizava para uma nova “idade púbere”. No entanto, o seu trabalho, diverso do de Gilberto Freyre, encerrava aspectos conceituais e artísticos que iam além de um novo modo de vestir masculino. Ao inscrevê-lo em uma série de performances denominada de “Experiência”, Flávio de Carvalho buscava testar, com o seu gesto de transeunte solitário no meio da multidão, em pleno Viaduto do Chá, em São Paulo, os limites da tolerância, das crenças e dos valores morais, religiosos e existenciais do homem. Fora assim como a “Experiência n° 2” (a “Experiência n° 1” fracassou e não foi divulgada), realizada em 1931, também na capital paulista, e que consistiu em caminhar no sentido contrário ao de uma procissão católica, com um chapéu na cabeça. Quase linchado pelos fieis, fora salvo pela polícia, e a experiência sobre “a psicologia das multidões” recolhida no livro Experiência n° 2. Assim, em Freyre, a roupa é tomada tanto pelo o modo como o Homem situado históricosocialmente vê e quer ser visto pelo outro, quanto como parte do seu projeto civilizatório; em Flávio de Carvalho, o corpo é tomado como o meio para testar os limites entre o sujeito e o outro, a individualidade e a moral coletiva, a psicologia pessoal e a das “multidões” e, por decorrência, sinalizar para a possibilidade de um outro mundo possível. Talvez seja aqui que as idéias de Freyre e de Carvalho se encontrem: no sonho de sinalizarem, mesmo que seja apenas por sugestão, para um outro mundo diverso daquele que se apresenta no presente. Uma revolução menos ambiciosa do que a apregoada por muitas ideologias políticas, mas talvez mais perene e cheia de alegria e de vida. XXXXXXXXX________________XXXXXXXXXXXXXXXXX * Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE
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Moncho
A vida do diretor, dramaturgo e figurinista Moncho Rodriguez lembra uma antiga vocação do teatro: a itinerância. Nascido em 1951 em Vigo, na Galícia, região espanhola que já foi, no passado, um reino independente, o artista conviveu desde cedo com o impulso para imigrar. Assim, Ramon Rodríguez Guisande se mudou para o Brasil na primeira infância, aos três anos, e só voltou à Espanha aos doze anos. Os caminhos de sua carreira também o levaram a Portugal e, ao longo de sua carreira, este país, a Espanha e o Brasil se converteram em vértices de um triângulo que contempla suas ambições teatrais. No entanto, foi aqui no Brasil, onde passou seus anos de formação, onde o artista disse ter despertado sua sensibilidade para a cultura popular. “Vivi primeiro no sul, em São Paulo e no Paraná, e depois na Paraíba. Morei em Campina Grande, numa época em que as rádios tocavam baião, as festas de São João eram com fogueiras de verdade e não se ouvia falar de resgatar a cultura popular, pois ela era tão somente tudo o que existia. Naquele lugar, viviam poetas populares e cantadores de viola, repentistas e cordelistas de imaginários fabulosos. Era também um museu vivo do homem nordestino e ibérico, uma feira que contaminava com suas cores, cheiros, sabores, melodias de falas e dizeres ritmados, rimados, metrificados”. Era uma época na qual Campina Grande era um dos entrepostos de algodão mais importantes do Nordeste.
A
grande movimentação cultural de Campina Grande não passava despercebida, também, para uma geração imediatamente anterior, que teve as mesmas referências culturais e deu figuras importantes à cultura brasileira. Entre as crianças e adolescentes que viveram, estudaram ou passaram por Campina Grande no fim dos anos 50 e ao longo dos anos 60, estavam nomes como o jornalista e escritor José Nêumane Pinto, Chico Pereira, o escritor e compositor Bráulio Tavares, a cantora Elba Ramalho, os cantores e compositores Geraldo Vandré e Zé Ramalho, os artistas plásticos Chico Pereira, Eladio Barbosa e Antonio Dias. Segundo Moncho, a vontade de trabalhar com teatro surgiu ainda na adolescência, a partir das vivências em Campina Grande e, depois, ao conhecer a estética barroca do teatro clássico espanhol. “São universos opostos, contradições profundas, mas foi assim que em mim se produziu a mistura entre o clássico e o popular, entre o cantador de viola e a interpretação dos versos de Tirso de Molina. Percebi que tinha que saber quem sou, de onde vim, para poder estar aqui e dizer: quero participar! este é o meu teatro, a expressão da minha gente, o fabuloso do imaginário da minha cultura é com ele que quero ser contemporâneo”. Ainda no fim da adolescência, na Espanha do fim dos anos 70, Moncho dirige uma peça chamada Romance de Micomicón e Adhelala, uma farsa escrita por Eduardo Blanco Amor. Era um ensaio dos papeis que o artista viria a desempenhar nas dezenas de peças nas quais esteve envolvido em mais de 30 anos de carreira, em um padrão que se repetiria pelas obras seguintes. Dificilmente o artista se contentaria em desempenhar apenas um papel nos bastidores. “Fui o encenador, o construtor de cenários, de figurinos, diretor de atores, iluminador...eu queria desde cedo, dominar todas as variantes do ofício, todas essas possibilidades de criação sempre me atraíram muito. Aprendi o teatro como um ofício por inteiro”.
No entanto, a carreira de Moncho no teatro europeu não foi longa, ao menos nessa primeira temporada. Nos anos 80, o encenador passou uma temporada no Recife, onde montou peças como Woyzeck, encenada em 1986, no Forte das Cinco Pontas, no bairro de São José. “Decidi abandonar o conforto e a formalidade do teatro europeu para rumar ao encontro de outro teatro, o do improviso, do imprevisível, da precariedade, o teatro sem subsídios, o das praças e ruas, dos brincantes. Por sorte, encontrei o Recife num momento fabuloso de inquietação e mudança. Era um momento conturbado de pelejas entre o teatro do ‘besteirol’, comercial, importado de outros lugares, e o resgate de um teatro popular com identidade própria. A capital pernambucana era uma cidade com jovens atores talentosos, na procura de projetos experimentais em novas linguagens. Recife é o pórtico para quem deseja entrar no vivencial do imaginário poético da cultura popular brasileira e ibérica. Quem quer conhecer o Brasil, tem que passar por ele”. O elenco para a peça foi selecionado a partir de uma oficina realizada pelo próprio Moncho. Na época, participaram da peça atores locais como Paulo Falcão, Magdale Alves, Gilberto Brito, Raimundo Branco, Augusta Ferraz e Manuel Constantino, que ou já eram consagrados no cenário do teatro pernambucano da época ou estavam em vias de serem reconhecidos por seu talento. A peça também tinha Eduardo Ferreira nos bastidores, na equipe de figurino. Ao longo da carreira no Recife, foram estabelecidas outras parcerias, com o médico, escritor e dramaturgo Ronaldo Correia de Brito e com Fabiana Pirro e Lívia Falcão, que criaram há dez anos, junto com Moncho, o espetáculo Caetana. Na construção de seus espetáculos, Moncho também afirma não se interessar em representar a realidade no palco de forma naturalista, por mais que suas peças possam ser influenciadas por elementos presentes no cotidiano.
“Fujo de tudo que é óbvio e lógico. Procuro a poética em cada elemento, em cada objeto, nos adereços, nas roupas, prefiro sempre deixar que o invisível e o encantamento ocupem todos os espaços da cena e que ela possa ter uma unidade. O teatro celebra o invisível e é nele que nos podemos perpetuar, mesmo sendo passageiros e efêmeros. Gosto de reinventar texturas, cores, de subverter formas, de reconstruir com tudo que é descartável. Quando impregnamos os materiais com a essência da energia do nosso imaginário, eles ganham mais que formas, ganham a força da poesia teatral, existem e permanecem com vida. Provocam sensações, multiplicam as visões, ganham significados no imaginário do espectador”.
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Sobre o trabalho específico do figurinista, Moncho tece considerações que visam uma diferenciação entre o ofício do estilista e a tarefa de vestir um Sobre o trabalhopersonagem. específico do“Quem figurinista, Moncho tece considerações que escolher o caminho do figurino deve pensar como visam uma diferenciação entre o ofício do estilista e a tarefa de vestir um um escultor que vai revestir corpos invisíveis, dando significado as almas personagem. “Quem escolherno o caminho deve pensarAcomo que habitam labirinto do de figurino cada personagem. cumplicidade com a um escultor queencenação vai revestiré corpos invisíveis, dando significado as almas fundamental, pois o figurinista vai sempre executar como que habitam no labirinto de personagem. A cumplicidade com eadas personagens. criador técnicocada as visões que o encenador tem da cena encenação é fundamental, o figurinista sempre executardos como É preciso se pois deixar contaminarvaipelo movimento gestos. Não tenham criador técnico as visões que o encenador tem da cena e das personagens. medo de subverter os materiais, mas cuidado: é preciso evitar que uma É preciso se deixar contaminar pelo movimento dos gestos. Não tenham personagem transporte todas as loucuras do figurinista para além das suas medo de subverter os materiais, mas cuidado: é preciso evitar que uma próprias loucuras. Procurem o essencial, o simples, e, como no próprio personagem transporte todas as loucuras do figurinista para além das suas ator, todos os gestos tenham sentido e significado”. próprias loucuras. Procurem o essencial, o simples, e, como no próprio Há sete anos, Moncho trabalha em Portugal, com atuação em duas cidades. ator, todos os gestos tenham sentido e significado”. A primeira foi Póvoa de Lanhoso, onde existiu durante Há sete anos, Moncho trabalha em Portugal, com atuação em duas cidades.seis anos o Centro Cultural Póvoa deonde Lanhoso. longo seis da duração dessa iniciativa, peças A primeira foi Póvoa de Lanhoso, existiuAo durante anos o Centro porAo Moncho, como A Visita, de amor e morte e O Cultural Póvoadirigidas de Lanhoso. longo da duração dessa Labirinto iniciativa, peças pássaro de papel foram Labirinto encenadasdeem Pernambuco. A segunda é Fafe, dirigidas por Moncho, como A Visita, amor e morte e O que, há um ano, recebe projeto Fafe Cidade das Artes, pássaro de papel foram encenadas emoPernambuco. A segunda é Fafe,capitaneado pelo local organiza residências artísticas que já receberam atores e que, há um ano,artista. recebeO o projeto Fafe Cidade das Artes, capitaneado pelo pernambucanos ao longo 2013. “Fafe nãoe tem mais que 50 artista. O localbailarinos organiza residências artísticas que já de receberam atores mil habitantes e mantém viva a memória e arquitetura bailarinos pernambucanos ao longo de 2013. “Fafe não tem mais que 50 do século XIX, muitos nodo Brasil, doaram mil habitantes quando e mantém viva afafenses, memóriaemigrantes e arquitetura século XIX, parte das suas construir com estilo, quando muitosfortunas fafenses,para emigrantes no uma Brasil,cidade doaram parte das gosto suas e pensamento e único: Fafecom dos brasileiros”. fortunas para particular construir uma cidade estilo, gosto e pensamento Ao refletir sobre sua trajetória teatral, Moncho afirma que, em sua carreira, particular e único: Fafe dos brasileiros”. via estãoteatral, entrelaçados. grande ator brasileiro, Ao refletir sobrearte suaetrajetória Moncho“Um afirma que, em sua carreira, Paulo Gracindo, arte e via estão aentrelaçados. “Um grande ator brasileiro, Paulo Gracindo, quem homenageei recentemente criando o espetáculo Canastrões a quem homenageei recentemente criando o espetáculo Canastrões costumava dizer: ‘ eu represento na vida e vivo no teatro’. Eu já nem costumava dizer: eu represento e vivo no teatro’ . EuVivo já nem sei ‘onde começa a na vidavida e onde acaba o teatro. no teatro da minha sei onde começa a vidainterpretando e onde acaba os o teatro. no teatro daserem minhasonhos, como diz criação sonhosVivo da vida que por criação interpretando os sonhos da vida que por seremsão. sonhos, Calderón de la Barca, apenas sonhos É nocomo teatrodizque aprendo a ser Calderón de la livre Barca, apenasosonhos são.da É no teatro que aprendo a ser e utilizo privilégio minha liberdade para doar-me ao mundo”. livre e utilizo o privilégio da minha liberdade para doar-me ao mundo”.
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exceto pelos uten crescido que os p época, a calça do inteira, pois ele a de estrada real, larga. “A repres então ele não tin especializar o seu
Já nos anos 20 intensifica e o can real rumo à caatin sobe, acompanha calçada com mei momento que oc trajes: eles começa “É a partir daí qu
Perfumes franceses, lenços de seda pura, aviamentos escolhidos a dedo, trabalhos artesanais feitos por mãos peritas tanto em matar quanto em costurar. Era também disso que se compunha o cangaço, fenômeno social de luta armada que sacudiu o Nordeste durante mais de duzentos anos, até meados do século XX. O cangaço produziu uma estética que se tornou tão indissociável do imaginário nordestino quanto a indumentária do vaqueiro. Chapéu de couro, coberta, bornal, cartucheira, tudo era decorado com variados graus de engenho e arte, seja por paisanos, ou civis, seja pelos próprios cangaceiros.
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ia ao sertão ou para reprimir, com a políc nsílios de guerra e pelo topete para coletar impostos”. primeiros adotavam. Até essa Perfumes franceses, lenço o cangaceiro cobria a perna a Já nos anos 30, há escolhidos mais referências extern andava pelo que se chamava aviamentos adota a perneira para entrar nos lugares mais SEGUNDO o historiador Frederico vestimenta dofeitos A mãos Revolução difíceis do sertão, ocangaceiro. banco de macambira, ou seja, uma estrada Pernambucano de Mello,mais autor do livro Estrelas artesanais por per que é um tapete infernal. Era preciso que os de couro: a estética do cangaço, o advento da e a chegada das revistas no s cangaceiros dessem as mãos e pisassemilustradas no ssão era praticamente nula, documentação por imagem do sertanejo, no quanto em costurar. Era ta ‘olho’ ou no centro dessa planta para avançar. início do século XX, traz um ponto de virada também ajudaram a modificar a perc Se caíssem, eram feridos pelos espinhos. Esse na forma com a qual osem cangaceiros eram nha porque se preocupar tipo de vegetação era o grande aliado do vistos. A partir da década de 10, haviacompunha pouca odascangaço, fenôm sertanejo contra a presença do litorâneo, que roupas. O c que ele tinha próprias diferença entre o traje dele e do paisano – u traje”, afirma. ia ao sertão ou para reprimir, com a polícia, ou exceto pelos utensílios de guerra e pelo topete para coletar que impostos”. uma peça militarsacudiu por excelência, passa crescido que os primeiros adotavam. Até essa armada o Nord época, a calça do cangaceiro cobria a perna Já nos anos mais referências externasde na roupa já em inteira, pois ele andava pelose que se chamava adotado e30,ahátúnica, peça 0, a repressão policial mead vestimenta do cangaceiro.anos, A Revolução de até 30 de estrada real, ou seja, uma estradade mais duzentos e a chegada das revistas ilustradas no sertão larga. “A repressão era praticamente nula, na também época, também fica mais militar ngaceiro se desvia da estrada ajudaram a modificar a percepção então ele não tinha porque se preocupar em cangaço uma estétic que ele tinhaproduziu das próprias roupas. O culote, especializar o seu traje”, afirma. “Nesta época, Lampião já estava com nga. O comprimento da calça uma peça militar por excelência, passa a ser adotado e a túnica, peça dedo em uso Já nos anos 20, a repressão policial se indissociável domínio rigorosoroupa dajá imaginário área rural de ado da alpercata, sandália, na época, também fica mais militarizada. intensificaou e o cangaceiro se desvia da estrada “Nesta época, Lampião já estava com um rumo à caatinga. O comprimento da calça estados Houve inúmeras m ia. Também real é a partir desse a indumentária do domínionordestinos. rigoroso da área rural de setevaqueiro sobe, acompanhado da alpercata, ou sandália, estados nordestinos. Houve inúmeras modas calçada com meia. Também é a partir desse no cangaço, estética no cangaço, mas mas a estética a cangaceira deste cangaceira corre uma especialização momento que ocorre umanos especialização nos coberta, bornal, cartucheira período é uma estética do ocaso, mas é um trajes: eles começam a se tornar inconfundíveis. período é uma estética do ocaso, mas ocaso de ouro”, avalia Frederico. am a se tornar“Éinconfundíveis. a partir daí que se com variados graus de engen ocaso de ouro”, avalia Frederico. ue se
paisanos, ou civis, seja pelos pr
Em uma época na qual o homem sertanejo ainda engatinhava na percepção de sua própria imagem fotografada e gravada, Lampião usava “O cangaceiro Candeeiro me disse que umavestimentas época na qual o homem a estética deEm suas como fator sertanejo de Lampião sentava, pegava um papel na isso, percepção sua própria atenção paraainda a suaengatinhava figura. Para ele e de outros imagem fotografada e gravada, Lampião usava grosso, pardo, de venda, botava em membros de seu bando usavam a habilidade a estética de suas vestimentas como fator de da costura, atenção comum tanto cima da coxa e saía desenhando. parano a suasertão figura. Para isso,entre ele e outros Ainda de acordo com Frederico, é freqüente que homens quanto entre mulheres. “Às vezes, membros de seu bando usavam a habilidade da costura, comum no Zé sertão tantoe entre policiais e outras pessoas que vivam constantemente os cangaceiros do bando, como Baiano Aindade de morte acordo se com Frederico, freqüente cerquem deépatuás, deque figas. homens quanto entre mulheres. “Às vezes, em risco Português, podiam passar uma semana inteira policiais e outras pessoas que vivam constantemente os cangaceiros do bando, como Zé Baiano e “O cangaceiro vai se apropriar dos sinais que o costurando em uma máquina Singer. O chefe em risco de morte se cerquem de patuás, de figas. Português, podiam passar uma semana inteira sertanejo já usava em momentos de necessidade e de grupo podia ornamentar seus cabras e dar a “O cangaceiro vai se apropriar dos sinais que o costurando em uma máquina Singer. O chefe vai embelezá-los ao máximo, usando outras formas, eles o orgulho existência cangaceira. sertanejo já usava em momentos de necessidade e de da grupo podia ornamentar seusAlguns cabras e dar a como a flor-de-lis e a cruz de malta, e se formas, cercando vai embelezá-los ao máximo, usando outras também sabiam fazia as duasAlguns eles obordar. orgulho Lampião da existência cangaceira. flor-de-lis e a cruz de malta, se cercando em atodo o seu corpo e seu e equipamento, sabiam bordar. Lampião fazia as duas delascomo coisas e suas também peças eram soberbas. Maria Bonita delas em todo o aba seu corpo e seu do equipamento, especialmente na levantada chapéu de coisas e suas peças eram soberbas. Maria Bonita também fazia roupas, bornais, mas não com a especialmente na aba levantada do chapéu de também fazia roupas, bornais, mas não com a couro, que é o grande palco da estética do cangaço”. qualidade do seu marido”, pontua Frederico. qualidade do seu marido”, pontua Frederico.
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couro, que é o grande palco da estética do cangaço”.
Depois, na máquina, ele cobria o que tinha feito. A partir disso, concluí que Lampião não era só costureiro e O traje dos cangaceiros também era carregado bordador, mas estilista...” de significado místico, com o uso de símbolos já
No entanto, a originalidade de Lampião não se limitava à execução da costura ou do bordado. “O cangaceiro Candeeeiro me disse que Lampião sentava, pegava um papel grosso, pardo, dea venda, botava de em cima da coxa e saía No entanto, originalidade Lampião não se limitava à execução costura ou do ele cobria desenhando. Depois,da na maquina, bordado. “O tinha cangaceiro disseconcluí que o que feito.Candeeeiro A partir me disso, que Lampião sentava, pegava um papel grosso, Lampião não era só costureiro e bordador, mas pardo, de venda, botava em cima da coxa e saía estilista.Depois, Se, no na fundo da caatinga alguém pegou desenhando. maquina, ele cobria um pedaço de papel e concebeu uma o que tinha feito. A partir disso, concluí que roupa ou acessório, isso faz dessa pessoamas estilista. Isso Lampião não era só costureiro e bordador, estilista. Se, no afundo da caatinga alguém pegou nobilita criação, porque não há apenas o ofício um pedaço de papel e concebeu umaespírito”. roupa ouNo entanto, manual, mas uma ação do acessório, isso faz dessa pessoa estilista. Isso esse trabalho também tinha desafios logísticos. nobilita a criação, porque não há apenas o ofício Emmas épocas de batalha, a atividade de costura era manual, uma ação do espírito”. No entanto, reduzida ou interrompida e esse trabalho podia esse trabalho também tinha desafios logísticos. Em épocas batalha, a atividadeou deseja, costura era de apoio ficar de com os coiteiros, pessoal reduzida interrompida esse trabalho podia aos ou subgrupos do ebando de Lampião.
conhecidos dos sertanejos, como a estrela de seis pontas, que a função de abrir caminhos e O traje dostinha cangaceiros também era carregado de significado o uso de símbolos já é conhecida no místico, interiorcom nordestino como signo conhecidos dos sertanejos, como a estrela de seis de Salomão. “O cangaço foi muito competente que tinha a tanto funçãona de abrir caminhos e em pontas, criar símbolos, sua indumentária é conhecida no interior nordestino como signo quanto em imagens propriamente ditas. Esses de Salomão. “O cangaço foi muito competente símbolos já eram conhecidos e usados tanto em criar símbolos, tanto na sua indumentária como sinais proteção e defesa,ditas. no Esses caso do quanto em de imagens propriamente símbolos já eram conhecidos amuleto, quanto para devolvereausados ofensatanto a quem como sinais de proteção e defesa, no caso a originou, como no caso do talismã”. do ficar com os coiteiros, ou seja, pessoal de apoio amuleto, quanto para devolver a ofensa a quem a originou, como no caso do talismã”.
aos subgrupos do bando de Lampião.
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A costura dos cangaceiros também era capaz de sutilezas, segundo o estudioso. “Todas as cores são harmônicas, não há uma transgressão estética digna de nota. O bornal de Maria Bonita era bordado a nove cores, inclusive lilás e salmão. Já o bornal de Zé Baiano, sujeito violentíssimo, tinha até linha cor-de-rosa. Não tenho duvida de que o dia inteiro em uma maquina de costura proporcionava aos cangaceiros uma higiene mental. Provavelmente os cangaceiros se sentissem bem com essa ocupação. Lampião, por exemplo, chegava a colocar linha branca no contraponto da costura de seu bornal, pois sabia que essa linha não iria aparecer e, assim, não desperdiçava material, ao contrário de outros cangaceiros”. Os tecidos usados para confeccionar as roupas dos cangaceiros – túnica, na parte superior , e calça e culote na parte inferior -, se dividiam entre o brim cáqui e a mescla azul, que podiam ser usados “emparelhados”, ou seja, com todas as peças de roupa feitas do mesmo material ou cor, e “desemparelhados”, em que a calça e o culote não precisassem necessariamente combinar com a túnica. “Lampião misturava: às vezes, fazia faixas e divisões de materiais diferentes. Ele também recebia seletivamente os materiais. Ao contrário do que se pode pensar, havia sim facilidade para encontrar utensílios de costura, máquinas Singer
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e linhas. As informações circulavam. As revistas da época, às quais os cangaceiros tinham acesso, traziam modelos de bordados. O cangaceiro Chico Pereira, por exemplo, se trajava segundo as revistas de cinema e o padrão de Hollywood”. O reconhecimento de uma estética do cangaço traz também a percepção da singularidade das referências que o Brasil pode ter na moda. A beleza das peças que os bandos de cangaceiros usavam não passou despercebida por grifes nacionais como a Forum e a Maria Bonita, que tomaram essas peças como fonte de inspiração para coleções passadas. Essa estética da simetria e da opulência vinda do sertão também tem a particularidade de ser atemporal, com o potencial de alimentar futuras criações de uma moda que pode falar para o mundo, mas ter raízes fincadas no sertão. BOX O livro Estrelas de couro: a estética do cangaço, do historiador Frederico Pernambucano de Mello, foi lançado em 2010 e se tornou referência para o estudo da atuação dos cangaceiros no imaginário nordestino. Todas as fotos que ilustram a matéria foram retiradas da publicação, finalista do Prêmio Jabuti 2011 nas categorias Produção Gráfica e Ciências Humanas. O escritor Ariano Suassuna, no prefácio do livro, afirmou que este era o livro que ele gostaria de ter escrito.
texto:Isabelle
“Sempre achei curioso um homem se vestir de mulher”. Para o ator Júlio César Araújo, de 41 anos, a inquietude com relação aos códigos de vestimenta eram algo a ser explorado artisticamente. Esses questionamentos levaram à criação de um dos personagens mais icônicos do fim dos anos 80 e dos anos 90 em Pernambuco: a drag queen Gilka Brechó, que foi hostess de boates, apresentadora de programas de televisão e uma das parceiras de trajetória de Eduardo Ferreira. A época no qual aconteceu o encontro entre Gilka e Eduardo foi uma das mais movimentadas em Pernambuco: o início dos anos 90, quando a moda aumentava a impressão de que o lugar para se estar no Brasil naquele momento era em Pernambuco. Nessa época, Gilka fazia parte de um universo no qual também estava incluído o designer de sapatos Jailson Marcos, que fez a ponte entre o personagem e Eduardo Ferreira. Era a época da primeira coleção de Eduardo, a Mangue fashion. Nos eventos de moda capitaneados pelo estilista, a drag queen era presença tarimbada como uma das maiores divulgadoras de seu trabalho, ao usar as roupas feitas por ele. O personagem surgiu a partir de um curso de iniciação teatral feito pelo ator Júlio César aos 17 aos, com o professor Manoel Constantino. A partir de experimentações no palco, surgia Gilka Brechó, espirituosa e de raciocínio rápido. A criação extrapolou as aulas de teatro e começou a animar festas de empresas. “No começo, Gilka era vestida apenas com peças recicladas, dos anos 70. Mas a influência mais importante para mim foi a minha mãe, Maria das Neves. Ela me emprestou os óculos que se tornaram marca registrada. O vestido e a peruca que usei no palco pela primeira vez também foram dela. Minha mãe foi a pessoa que mais acreditou em mim e embarcou na minha viagem”.
Barros
A atenção à moda, segundo Júlio César, vem do próprio universo do transformismo e das drag queens, que devotam atenção quase espiritual às roupas de cada apresentação. “Os transformistas são ultrafashion. Eles levavam moda para as boates, casas de shows e são atentos à beleza do figurino. A vontade do homem de se vestir de mulher pode remeter à história do carnaval, à psicanálise, mas, para mim, o mais interessante é ver isso em cena. Ninguém se veste para sumir, para ficar no escuro. Queremos provocar a imaginação e mostrar algo, até mesmo quem não somos”. A permissão social dada às drag queens para ousar em suas vestimentas permitiu a Eduardo e Jailson ampliarem a experimentação em suas criações e, ao mesmo tempo, permitiu a Júlio César documentar parte da moda pernambucana, ao formar um acervo com essas criações. “Eduardo sempre me deu roupas, nunca comprei nada. Até hoje, tenho peças dele que são raridades”. A visibilidade conseguida por Gilka como garota-propaganda da moda pernambucana também fez com que ela trabalhasse como hostess da extinta boate Doktor Froid. “Foi uma ótima experiência conviver com o publico da noite. Não é um teatro convencional e o palco desses personagens não é fixo. A cena acontece onde se está”. Segundo Júlio César, a importância de Eduardo reside na observação das referências de Pernambuco com um viés universal. “Essa é uma moda pensada, raciocinada e, ao mesmo tempo, ele não quer ter um rótulo. Como estilista, Eduardo não compara Pernambuco com mais nada. Sua linguagem vai ser bem-vinda em qualquer lugar. Ele tirou a caretice do jeans e transformou em coisas lindas. Vou usar um exemplo: qual a diferença entre usar um vison no inverno europeu e um chapéu de couro e gibão em um clima nordestino? Ambas as escolhas exigem audácia e eu vejo isso na moda desse estilista”. Ao lembrar do período no qual conheceu as criações de Eduardo, Júlio César afirma que suas criações teriam sido mais compreendidas se tivessem surgido hoje. “Há vinte anos, ele fazia vestidos que mostravam seu pensamento, suas convicções, mas nem todas as mulheres tinham coragem de vestir. Atualmente, ao meu ver, existe um público mais atento, especialmente os mais jovens. Eduardo surgiu em um momento mágico”. Hoje, Júlio César se apresenta como Gilka Brechó – agora chama de Dra. Gilka - para públicos específicos, em campanhas de conscientização desenvolvidas em instituições de saúde. “As drags e transformistas devem estar em todos os segmentos da sociedade, porque elas são as vedetes do passado. Hoje, escrevo muito teatro para divulgação de políticas públicas. Nunca gostei de trabalhar com vulgaridade, baixaria ou depreciação de quem quer que seja. Acho que meu personagem ainda tem muito o que colaborar para a sociedade, agora de outra forma. Mas sobre o que vivi com Eduardo, quero dizer que ele chegou em uma época ideal. Pernambuco o aguardava”.
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CLUB
FOFO
BE DA
OCA
Indomável, entusiasta, inconformada, instigante, profissional, lúdica, racional, doce e raivosa, mas antes de tudo, um agente transformador. Marcella Bergamo é aquela pessoa\ profissional que tem a capacidade de aglutinar sonhos, desejos e ideias ao seu redor e consegui isso sem fazer o menor esforço. Acho que sua personalidade forte e controversa nos instiga e nos mantém quase a sua disposição e por incrível que pareça, é muito bom! Jamais a moda, a música e a noite nos anos noventa seriam tão incríveis sem sua indefectível presença. E hoje como antes ela continua múltipla e com uma enorme capacidade de realização. Generosa, bela e bondosa, mas cuidado ela também pode te matar. #marcellabergamonaveia (Marcella Bérgamo por Renato Filho, fotógrafo e image maker)
Nos anos 90, Henrique estava começando a ter seu reconhecimento profissional em SP e fazia da sua morada uma espécie de lar das pernambucanas, acolhendo e incentivando as modelos que sonhavam com uma carreira bem sucedida no circuito da moda... eu tive esse acolhimento não só de residência (morei 1 ano com ele na Albuquerque Lins) mas ele foi e é meu anjo da guarda da beleza... me protegeu das almas sebosas que sempre rodam e me colocou diante dos melhores profissionais do mercado competitivo do Brasil... ele foi fundamental na minha formação como artista e como ser humano...seu talento vai alem dos pincéis...É muita generosidade e paixão pelo que faz e desta forma sua presença deixa qualquer ambiente mais iluminado! Amote Mello sou hoje um tantinho do muito que me ensinaste. (Marcella Bérgamo por Renato Filho, fotógrafo e image maker)
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Renato filho era um desbravador da imagem de moda nos anos 90, quando a própria moda brasileira engatinhava! E o cenário pernambucano era desprovido principalmente de material humano! Ele agregou pessoas e seus talentos, como quem encontrava agulha num palheiro, garimpando, e os fez destaques pra uma cena “fashion” vindoura, do qual ele foi percursor definitivamente! Através de muitos ensaios, laboratórios de montagem e produção, quase primários, ele conduziu pessoas semelhantes sob sua ótica construída, elaborada e sofisticada! Hoje, ele é referencial de imagem de moda e beleza, independentemente de tendências, modismos e modernidade na foto digital, sem abrir mão de seu olhar apurado e construções pensadas. Continua atual, contemporâneo e necessário à moda pernambucana, cuja história ele ajudou a construir! (Renato Filho por Henrique Mello, top maquiador e consultor de marcas de produtos estéticos)
Sem dúvida nenhuma, Bia, como é chamada carinhosamente pelos amigos é um ser de uma singularidade impressionante. Uma das modelos mais importantes da sua geração, ela ficou conhecida nacionalmente pela sua famosa barriga “de pedra” – como disse Érika Palomino, e pela beleza ímpar, além do seu magnetismo próprio. Conheci Fabiana quando ela tinha apenas 14 anos, uma menina gigante e linda, mas estava longe de se achar a última Coca Cola do deserto, muito pelo contrário, dona de uma simplicidade peculiar, ela encantava a todos. Os anos 90 foram uma loucura, um verdadeiro alvoroço, Fabiana virou uma top model conhecidíssima nos principais mercados de moda do planeta. Era a modelo e imagem do estilista Eduardo Ferreira em quase todas as coleções desenvolvidas por ele nessa época, foi contra capa da revista Time em uma campanha para uma bebida black label, desfilou nas temporadas de moda em São Paulo, “Phyitoervas Fashion” para Eduardo e arrebatou críticas pra lá de positivas dos fashionistas de plantão.
Embora arrasasse nas passarelas e nas campanhas de moda, isso nunca foi a sua paixão, nem o seu sonho. Ela queria e buscava algo mais, e em busca disso, montamos uma loja de roupas gringas chamada PB MIX. Viajamos inúmeras vezes para Nova Iorque sob o pretexto de abastecer a nossa loja e ainda arrumávamos tempo de produzir diversos shows da cena musical do movimento mangue beat. Dona de um enorme poder de persuasão, ela conseguiu me convencer a produzir com ela uma turnê com o grupo de rap Racionais MCs. Nesse mistura de acontecimentos e nessa comunhão de ideias, juntamente com a efervescência cultural dos anos 90, participamos de quase todas as manifestações culturais da cidade, tudo junto e misturado como mandava a estética da época. Enfim, Bia era e é tudo de bom. (Fabiana Pirro por Marcela Bérgamo, produtora executiva e de figurino e agente de carreiras para atores e modelos;)
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>>>ENSAIO A Mulher (d)e Eduardo Ferreira Manufatura, estética regionalista, etnografia nordestina, globalização. Essas são palavras-chave que fazem parte do universo estético construído por Eduardo Ferreira, por mais que possam parecer conceitos distantes à primeira vista. Um dos parceiros do estilista ao longo de sua trajetória é o fotógrafo Renato Filho, que clicou várias coleções de Eduardo, incluindo o histórico editorial Mangue Fashion, de 1995. Nas próximas páginas, as referências que marcaram a carreira do estilista são relidas por Renato e pelo stylist Néstor Mádenes. O feminino e o masculino são evocados a partir de múltiplas referências: moura, cangaceira, moradora de rua, prostituta, dândi, judia ou viúva. As peças deste ensaio, de coleções distintas, trazem o essencial de Eduardo, que ajudou a questionar as fronteiras entre regional e global.
jaqueta de lona costurada e rebordada a mão: Eduardo Ferreira saia:Lourdinha
Noyama
blusa de organza com laçarote:acervo
Camarim Pernambuco
óculos: acervo
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Iza
do
braceletes, brincos e anéis
Amparo;
: acervos ACRE Camarim Pernambuco
camisa estampada : Forum vestido verde com técnicas de tapeçaria e vestido roxo usado por baixo do verde, ambos : Eduardo Ferreira para o figurino do espetáculo teatral “A Árvore de Júlia” botas : Jaílson Marcos braceletes : Simone Andrade anéis e colares : acervo Camarim Pernambuco corrente usada no cabelo, acervo ACRE
pantalona e blusa ombro só estampados : Eduardo Ferreira colete com detalhes de renda e palhas : Eduardo Ferreira braceletes : Simone Andrade óculos : acervo Camarim Pernambuco sapato : Gabi Fonseca cinto prata :
Melk Z Da
terço de madeira : acervo Ander Oliveira terno, anéis, colares e brincos : acervo Camarim Pernambuco
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blusa renda renascença rebordada e vestido com aplicações de renda na barra: Eduardo Ferreira body vermelho: acervo Camarim Pernambuco colares, brincos, anéis e sapato: acervo Camarim Pernambuco
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Vestido de Noiva: Eduardo Ferreira Cabeça: Catarina Dee Jah Braceletes, brinco, meias e converse lamé dourado: acervo Camarim Pernambuco Macacão alfaiataria e camisa estampada de caranguejos: Eduardo Ferreira Botina: Vivienne Westwood para Melissa Camisa rosa, gravatá, camafeu, luvas, pulseira e anéis: acervo Camarim Pernambuco
Vestido de seda, capa de vampiro e blusa preta usada como vĂŠu: Eduardo Ferreira ChapĂŠu: acervo Ander Oliveira Luvas, pulseiras e anĂŠis: acervo Camarim Pernambuco
Eduardo Ferreira sabe que moda é feita de sonho e tapa na cara, de beleza e trabalhadores em regime de escravidão. Ele olha para esse instrumento mágicocapitalista capaz de acender a alma e nos ressignificar socialmente sabendo que há nele também a força de padronizar as existências das meninas do Sertão de Pernambuco ao centro de Porto Alegre. Força que tanto empodera quanto joga para baixo. Falou algumas vezes em nossa breve conversa por telefone sobre confronto, sobre paradoxo. É certo que moda é isso tanto quanto o próprio Eduardo encarna e materializa essa união de contrários. Estava se preparando para ir até Pesqueira, no agreste, região na qual vivem as rendeiras que o povoam há anos. Arrumou tempo para uma das minhas perguntas: como vê esse enorme elogio da copia-da copia-da copia de bolsas e de vidas, essa falada democratização da moda calcada no barateamento da força de trabalho, na desumanização e exploração? Falou um bocado, perguntou no meio se derivou demais, falou mais um pouco. Enquanto o ouvia, lembrei lá da primeira metade dos anos 90, quando organizei um desfile na universidade e busquei vários de seus vestidos. Um preto de saia dramática, com dois caranguejos vermelhos bordados no busto, me encantou. Exatos 20 anos depois eu conversava com Eduardo e me sentia intimamente feliz em ver que seu olhar sobre si e sobre o mundo ainda é permeado pelo susto, algo necessário para que continuemos a criar e a não nos acomodarmos sobre certezas transitórias. “O fast fashion ajuda a criar a falsa ideia de que fazemos parte de determinados grupos sociais. É um engodo, como essa coisa de fui dormir pobre e acordei na classe média”, acredita. Está construindo outra casa no bairro que
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adotou e que o adotou, Apipucos, onde diz conviver continuamente com a Casa Grande e a Senzala. Está mais interessado na última. Ou melhor, em como esta última está contida na primeira. É algo que o move a procurar não só as rendas feitas pelas mulheres que produzem maravilhas para grifes de todo o Brasil e exterior, mas a se aproximar da vida das próprias rendeiras. “Há um mercado pernicioso que as mantém afastadas em seus sítios enquanto os vestidos feitos com o material delas são vendidos a 20 mil reais.” Em sua fala está o desejo de ver compartilhado os tais sonhos e beleza gerados pela moda para mais gente, o desejo de ver esse sonho e beleza materializados em boa alimentação, cidadania, lazer. Eduardo está impregnado pelo passado, os dias em que a mãe Eulina fazia enxovais e cozinhava enquanto o padastro Manoel, ao seu lado, fazia piquete na frente das fábricas de tecelagem. Saiu de Catende, foi morar na Caxangá e ali via as saias vestidas pelas filhas de santo penduradas no varal, o Capibaribe ao fundo. “Olha aí o clichê”, ri o estilista, 47 anos, 20 dedicados ao fazer moda, 20 explicando para si e para o mundo que a ideia de sucesso é algo sempre muito particular. Está certo. Vive atualmente no luxo: está ciente de sua sensibilidade, de suas convicções – ainda que mutáveis -, de sua capacidade de absorção do ao redor. Da clareza: roupa serve pra pensar. Roupa serve para falar da gente e do mundo. Roupa serve para entender o outro. Aí vai em Gilberto Freyre, esse quase onipresente, e dele reconfigura uma frase. “Moda também é olhar pelo buraco da fechadura.” Eduardo Ferreira está fazendo sociologia e antropologia com suas linhas e agulhas. E um bocado de renda.
Fabiana Moraes
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SONORA
MOdA pARA OuvIR:
sonora//
Eduardo Ferrera, Chico Science e o manguebeat A moda e o manguebeat estiveram intimamente ligados nos anos 90, a partir da noção de que os artistas pernambucanos ligados ao movimento eram “caranguejos com cérebro”. A música de Chico Science e a moda de Eduardo Ferreira partiam do mesmo lugar: para ambos, não era preciso renunciar às raízes locais para falar ao mundo de forma cosmopolita. A ligação de ambos ultrapassou os limites das afinidades estéticas em culminou em parcerias concretas, quando o estilista colocou o ícone do manguebeat como trilha sonora em sua primeira coleção. O jornalista José Teles*, em seu livro Do frevo ao manguebeat (2000), ilustra a personalidade de Chico Science a partir de frases que o cantor e compositor formulou em entrevistas à imprensa nos anos anteriores à sua morte. Em cinco páginas, estão algumas das ideias que nortearam o pensamento musical de Chico, além de passagens de sua adolescência. *O trecho do livro foi gentilmente cedido por José Teles para esta edição da revista.
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BOLO DE ROLO Colchão de noiva, bolo de rolo e rocambole. Dos três nomes, com certeza dois você já ouviu falar, ou até já comeu. Mas o que eles têm em comum? São todos bolos de forma cilíndrica com recheio, cada um com sua especificidade. No caso do nosso iconoclasta bolo de rolo, a massa fininha é enrolada com uma camada de goiabada cremosa, dando a aparência de um rocambole. No entanto, neste último, são quatro camadas de massa e goiabada, muito mais finas que as do rocambole, que apresenta uma única camada de recheio. E as diferenças não param por aí, passam pelos ingredientes e estágios de preparo. Já o bolo português colchão de noiva é originário de Tavira (distrito de Faro, região do Algarve), atesta a pesquisadora Maria Lectícia Cavalcanti. Uma espécie de pãode-ló enrolado com recheio de nozes. Ao chegarem aqui, os portugueses passaram a trocar o recheio pela goiaba, fruta abundante no nordeste brasileiro, sempre dosada com muito açúcar dos engenhos da região. Até hoje é comum polvilhar-se o bolo de rolo com açúcar em sua camada externa, arrematando a apresentação da sobremesa. Durante muitos anos, esse bolo ficou restrito aos senhores de engenho e, de feudo em feudo, só se tornou popular muito posteriormente. Era servido como sobremesa ou lanche, muitas vezes ou quase invariavelmente escoltado por fatias de queijo do reino, e desta união surgiu a nossa versão para o mineiríssimo Romeu e Julieta. Um visitante ilustre não poderia sair de uma casa sem degustar uma fatia de bolo de rolo. Dessa maneira, foi utilizado como forma de estreitar os laços de amizades, de agradecimento, como presente e até para “amolecer” corações. Até o papa João Paulo II provou uma fatia durante sua visita ao Recife, em 1980. Essa fatia foi oferecida por Fernanda Dias, do empório gourmet Casa do Frios, e a empresa se tornou conhecida pela fabricação da sobremesa. Cada vez mais divulgado, o bolo de rolo ganhou fama e começou a ser feito em praticamente todos os estados do Nordeste brasileiro, embora o original de Pernambuco guarde características diferentes tanto no sabor como na maneira de fazer. Turistas e moradores de outros estados, encomendam o doce a algum amigo ou parente quando têm oportunidade. Pela Lei Ordinária nº 379/2007 o bolo de rolo foi reconhecido como patrimônio imaterial de Pernambuco.
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INGREDIENTES RECHEIO 500 gramas de goiabada picada 1 xícara (chá) de água (200ml) ou goiabada cremosa na mesma quantidade MASSA 2 xícaras (chá) de açúcar refinado (320g) 3 xícaras (chá) de farinha de trigo (330g) 1 e ½ xícara (chá) de manteiga (270g), mais manteiga para untar 7 ovos (cerca de 420g) Açúcar refinado para polvilhar o bolo Capacidade da xícara: 200 ml Tipo do recipiente: Cinco fôrmas retangulares Capacidade do recipiente: 1.500 ml (28x42x1,5cm) Temperatura do forno: Alta (200º C) Tempo de forno: Cerca de 5 minutos por fôrma Rendimento: Cerca de 20 porções
MODO DE FAZER RECHEIO Leve todos os ingredientes ao fogo, mexendo sempre, até ficar pastoso e ralo. Deixe esfriar e utilize. MASSA Bata o açúcar com a manteiga até obter um creme claro. Junte os ovos, um a um, batendo bem após cada adição. Incorpore a farinha aos poucos, sem bater. Distribua pelas cinco formas untadas e espalhe com uma espátula. Asse uma por vez no forno pré-aquecido, sem deixar corar. Desenforme a primeira sobre um pano úmido e polvilhado com açúcar. Cubra com uma camada fina de goiabada e enrole como um rocambole. Enquanto isso coloque rapidamente a segunda fôrma no forno. Desenforme a segunda, cubra com a goiabada e enrole com o primeiro rocambole. Repita a operação com as massas restantes, transformando o rolinho inicial num rolo grosso que deve esfriar completamente enrolado no pano bem apertado, para que fique perfeito. Sirva polvilhado com açúcar refinado. DICAS A espessura da massa deve ser bem fina, o suficiente para cobrir o fundo das fôrmas. Caso queira substituir a manteiga por margarina, utilize somente as que contenham teor igual ou superior a 70% de lipídeos na sua composição. CONGELAMENTO/DESCONGELAMENTO Embale, extraia o ar, etiquete e congele por até 3 meses. Descongele na embalagem, fora da geladeira.
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................. Alessandra Leão
................. Paulo Bruscky
................. Isa do Amparo
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Gabriel Mascaro
Eduardo Ferreira
Kleber Lourenço
REVISTA
FUNDAMENTO
Uma revista que trata de temas relacionados à arte, moda e cultura de Pernambuco, tendo o olhar de alguns de seus artistas como fio condutor. Cada uma das seis edições da revista impressas e virtuais - tem um homenageado da área cultural, refletindo sobre sua carreira, legado, influências em sua produção ou interações com outros artistas. Entre as seções, estão entrevistas, reportagens, ensaios de moda e referências sensoriais, como indicações de som, imagem e elementos gastronômicos que fazem parte do universo de cada artista enfocado.
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EXPEDIENTE: Idealização: Cássio Bonfim Conselho Editorial: Isabelle Barros, Cássio Bonfim, Chia Beloto Coordenação: Rui Mendonça Edição: Rui Mendonça e Chia Beloto Assistente de Produção: Bia Rodrigues Reportagem: Isabelle Barros e Mariana Neponuceno Capa, Diagramação e Desenho Gráfico: Chia Beloto e Zé Diniz Realização: Cabra Fulô Incentivo: Fundarpe/Funcultura
INCENTIVO