REVISTA FUNDAMENTO KLEBER LOURENÇO
EDITORIAL
De Pernambuco para Alagoas, depois de volta para Pernambuco e, em seguida, para Belém do Pará. Em seguida, a volta para Pernambuco e mais uma mudança, desta vez para São Paulo, onde está até hoje. Assim, o ator, diretor e bailarino Kleber Lourenço se equilibra pela vida, com espetáculos que trazem questionamentos sobre deslocamentos sociais e sobre a inserção do negro na vida brasileira. Produções como Jandira, Negro de estimação e Estar aqui ou ali catapultaram seu trabalho em artes cênicas a nível internacional, sempre agregando seus conhecimentos no teatro e na dança, suas maiores formações. Também se aventurou pela direção de outros atores, com trabalhos como o auto do salão do automóvel, adaptação para os palcos da peça de Osman Lins, e já em São Paulo, com o grupo de teatro Capulanas. A infância, a formação em teatro e dança, seus companheiros de geração e seus interesses fizeram parte da conversa que ele teve com a Revista Fundamento, cujo resultado pode ser conferido nas próximas páginas.
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ENTREVISTA
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ÍN DI CE
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RECEITAS: CUSCUZ
MAPA AFETIVO
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A TUA PRESENÇA É NEGRA
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DE HERÓIS DO NOVO MUNDO A NEGROS DE ESTIMAÇÃO: AS MÚLTIPLAS FACES DO NEGRO ICONOGRAFIA DOS NEGROS NOS SÉCULOS XIX E XX
ENSAIO FOTOGRÁFICO
A T S I V ENTRE
Em que circunstâncias você veio ao mundo? Quem são seus pais, seus avós e o que eles faziam? Nasci em Caruaru, no bairro do Salgado, que é o bairro do “pa-pa-pa” (simulando tiros). E meus avós também foram criados lá, minha família toda foi criada lá. As famílias do meu pai e da minha mãe tinham uma relação de vizinhança, foi ali que meus pais se conheceram. Sei que eles namoravam desde adolescentes, até casarem. Minha mãe casou muito jovem, com 18 ou 19 anos. Nasci em 1980 e não lembro de nada dos meus cinco primeiros anos de vida. Nessa idade, fomos morar em Arapiraca, em Alagoas. Meu avô era caminhoneiro e vivia na estrada. Ele percorria o Nordeste inteiro, até Belém do Pará. Tenho uma lembrança muito grande de passar férias em Caruaru e vivenciar a chegada do meu avô, com o caminhão cheio de coisas, de comida, era uma festa. Essa ideia do trânsito permeia minha vida desde criança. Você pode detalhar um pouco mais o papel desse avô na sua vida? Meu avô materno era negro e a família dele era toda ligada à umbanda. Meus bisavós são descendentes diretos de escravos, eles tinham roçado em Caruaru e viviam dessa plantação. O meu bisavô era carroceiro, desses que a gente ainda encontra raramente na urbanidade, que carregam coisas com cavalo. O que seus pais fazem da vida? Minha mãe sempre foi dona-de-casa e meu pai trabalhava. Primeiro, ele foi jogador de futebol, e minha corporalidade também vem muito desse lugar. Minha família por parte de mãe também tem vários jogadores de futebol. Um dos meus primos trabalha profissionalmente com futebol, um tio é técnico, outro é goleiro... Quando meu pai casou, deixou de jogar e foi trabalhar em uma concessionária da Mercedes Benz. Começou como mecânico, fez cursos técnicos e trilhou uma carreira até chegar a gerente. Era isso que o fazia ser transferido de lugar para lugar.
Ele começou a trilhar uma carreira em Caruaru, depois foi chamado para trabalhar em Arapiraca, Alagoas, e, de lá, fomos morar em Palmares (PE). Em seguida, fomos para Belém do Pará, voltamos para Pernambuco, e aí, quando eu tinha 15 anos, meus pais se separaram. Hoje, meu pai continua morando no Pará e minha mãe em Caruaru. Como foi sua infância com todas essas mudanças de cidade? Em Arapiraca, eu brincava na rua, mas era um contexto diferente de Caruaru. Em Caruaru eu ia para a lama, indo para a casa dos meus avós, e acontecia uma coisa marcante para mim. Lá, eu tinha essa ligação com a natureza, com a terra, que não acontecia em Arapiraca. Era o momento das férias, que, naquela época, eram mais longas. Também não tinha parentes, e os amigos eram os amigos do colégio. Quando minha irmã nasceu, eu tinha 7 anos e foi outro momento de chegada, porque eu tinha sido uma criança muito solitária nesses sete primeiros anos, já que não tinha com quem brincar. Quando minha mãe engravidou, foi uma festa. Sempre tive uma relação muito boa com minha irmã. Hoje, eu moro em São Paulo e ela mora no Recife. É psicóloga, mas gosta muito do universo artístico, acompanha bastante. Fui muito criado por mulheres, e me identifico muito com a obra de Nelson Rodrigues, nesse sentido, de ser criado pelas tias e pela avó, com uma presença feminina muito forte. O feminino é uma coisa muito presente na minha vida e no meu trabalho, tanto é que meu solo, Jandira, é sobre o arquétipo feminino. Também no Negro de Estimação, que é outro solo, tem muitas personagens femininas. Esse universo está muito presente no meu corpo e na forma com a qual me relaciono com o mundo. E quando você começou a se interessar por arte? Quando eu tinha dez anos, saímos de Arapiraca e fomos morar em Maceió, onde passamos três
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meses. Depois, fomos morar em Palmares, onde passamos três anos. Foi essa última cidade o primeiro marco da minha vida artística, foi lá onde tudo realmente começou. Na verdade, desde Arapiraca, gostava muito de fazer atividade física, de dar estrelinha em casa, de abrir escala, eu sempre fui muito alongado.E também era fascinado por televisão, assistia novela todo dia, decorava tudo. Eu tinha um universo muito solitário, mas era um universo já artístico. Meu pai tinha muitos livros, então eu brincava sozinho de escola, eu ficava conversando com alunos imaginários, estabelecia a relação de plateia, ator e espectador. Coisa da imaginação. Brincava muito dentro do universo das palavras, dos livros, sempre gostei muito de ler, de estudar. E o que você lia? Como eu comecei a fazer teatro muito cedo, aos dez anos de idade, li muita literatura dramática. Com 11, 12 anos, eu ia para a biblioteca em Palmares para ler todas as peças de Maria Clara Machado, para ler Ascenso Ferreira, por que o universo teatral estava me instigando, me chamando. Fui uma criança meio precoce. A casa do meu avô, por sua vez, sempre foi muito festiva, e sempre se escutava samba, pagode... Isso permeava muito o meu universo, porque, desde criança, eu assistia todos os anos os desfiles das escolas de samba e tinha um caderno onde eu anotava a apuração das notas. Fiz isso dos 13 aos 18 anos. Ainda na infância, reuni os pirralhos da minha rua e montei uma escola de samba, com papel, papelão, porta-bandeira. Eu desenhava a porta-bandeira, inventava os figurinos, e tudo isso por essa relação de ver na televisão, de ouvir a música. Este já era o universo de encenação.Na escola, também desenvolvi muito meu espírito de liderança. Então, quando eu trabalhava com teatro, eu escrevia o texto, dirigia a peça, e atuava, então eu tinha essa coisa de estar envolvido com tudo. Minha formação, naturalmente, envolveu todas as linguagens.
E como você começou a fazer teatro de fato? Eu dizia que queria ser ator, porque eu não sabia qual a diferença do teatro, dança, cinema... Com 10 ou 11 anos, falei sobre isso pela primeira vez com meu pai. Tinha um menino na rua que já gostava de teatro, queria estudar isso e me despertou para esse termo. Para mim, aquilo que a gente fazia no colégio era representar. Aí eu disse: “papai, quero estudar teatro também”. Depois disso, meu pai até que procurou, mas não achou nenhum lugar em Arapiraca onde eu pudesse estudar teatro. Nenhum? Nenhum. Lembro de dizer para ele com 11 anos: “painho, eu já sei o que quero ser, eu quero ser ator”. E aí ele respondeu: “tudo bem, meu filho, se você quer ser ator, vai ter que ser bom ator, por que você vai ter que aprender a dançar, a cantar, a fazer tudo, por que ator não faz só uma coisa”. E isso marcou muito a minha vida, porque, já adulto, descobri que isso foi um diferencial para a minha formação. Quando nos mudamos para Palmares, eu fazia teatro na escola, e meu pai encontrou um grupo de teatro amador na cidade, me matriculando para fazer aula de teatro aos sábados. Na escola, eu também dançava num grupo de folclore, que, na época chamava de “Dança Folclórica”. Na verdade, fui fazer aula num grupo de teatro, e não numa escola. A primeira peça foi Pluft, o fantasminha, algo bem óbvio. Uma vez, num ensaio de teatro, nesse grupo de teatro, com 11 anos, a dona de uma academia de dança da cidade, que tinha aulas de balé e jazz, Gil Sales, foi ver o ensaio, porque ela estava precisando de homens para dançar. No ensaio, ela me viu alongando, já que eu era super alongado. Então ela me chamou. Meu pai não se opôs e comecei a estudar dança tecnicamente, fazendo balé e jazz. E como se deu essa adolescência já nas artes cênicas? Fazia teatro, balé, jazz, inglês e ainda fui escoteiro. Tudo foi muito junto na minha vida.
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Fui estudar dança nessa academia e fazia teatro nesse grupo, e foi aí que começou de forma mais profissional o meu trabalho com teatro. Aprendi a fazer produção, figurino, a pedir tecido nas lojas, a prender luz, tudo na prática, por que não existia uma escola de formação de atores em Palmares. Fiz alguns espetáculos com esse grupo, e esse período de formação foi muito forte para mim. De Palmares, meu pai foi transferido para Belém do Pará. Chegando lá, comecei a entrar em uma etapa bem mais forte em relação a esse estudo técnico da linguagem. Meu pai foi buscar os grupos de teatro para eu trabalhar e entrei para um grupo de teatro de lá, chamado Tico Tico no Fubá, já bastante profissional. Na verdade, eu cheguei com um espetáculo já pronto e entrei para substituir. Fiz dois espetáculos com eles: É uma brasa, mora?, sobre os anos 60, e o outro era “É isso aí, bicho”, sobre a década de 1970. Foi a primeira vez que eu fiquei nu em cena, com 14 anos de idade, e a nudez é outro dado que está ligado ao meu trabalho até hoje. Essa relação com o lugar da nudez, do corpo como objeto de pesquisa, de alguma maneira veio daí. Fiz outro espetáculo lá, chamado “Bela e a Fera” e, conhecendo as pessoas, eu fui fazer escola de balé profissionalizante. Fiz até o terceiro ano de balé clássico com Jaime Amaral, que tinha sido do Ballet Stagium e morado na Alemanha antes de voltar ao Brasil.
A partir daí, se abriu um monte de coisa na minha vida, que foi a minha relação com a língua francesa e a música clássica. Paralelo a isso, eu consumia inteiramente a cultura paraense, porque eu dançava carimbo, siriá...
Em que mais Belém te marcou e como foi sua saída de lá? Foi o momento da minha adolescência, onde eu estava descobrindo a minha sexualidade, me reconhecendo e me assumindo como gay para mim mesmo. Nunca tive problema com isso, por incrível que pareça. Mas, nessa época, meus pais se separaram e veio o conflito. Meu pai
ficou em Belém e minha mãe decidiu voltar para Pernambuco. Vim com ela e voltamos a morar em Caruaru. Eu não conhecia a cidade, eu não tinha lembranças, pois tinha saído de lá aos 5 anos. Minhas memórias eram da casa da minha avó, das férias, do São João. Eu dançava muito forró e adorava, pois isso está sempre ligado à vida, a espontaneidade. Acho que é esse o ensinamento das tradições populares. É a sua relação com o meio, de onde você vem, e como é que essas coisas te atravessam. O primeiro lugar onde eu aprendi a dançar foi ali. Ninguém me ensinou a sambar, por exemplo. Via as pessoas se movimentando e aprendi. Chegava a fazer
dois, três espetáculos por ano. Eu vivia com minha mãe, porque com o dinheiro das aulas ainda não dava para eu me sustentar. Também participei do Teatro Estudantil do Agreste (Feteag), no qual ganhei um prêmio, aos 16 anos. Aos 17 anos, eu resolvi fazer vestibular. Já estava mais do que claro que o meu ofício era esse, nunca pensei em fazer outra coisa. Mas voltando, quando cheguei, fui fazer teatro no Sesc e criei uma rede de amigos. Um deles me levou também para uma academia de dança de lá, chamada Estúdio de Danças. Aos 16 anos, tive minha primeira turma de balé como professor.
E como foi tua vivência como jovem artista em Caruaru? Caruaru foi intenso, porque foi outro momento de formação das minhas amizades e descobertas com o teatro. Eu trabalhava profissionalmente, não para ganhar dinheiro, mas porque aquele era meu ofício. Descobri que no Recife tinha licenciatura em teatro, passei no vestibular da UFPE e vim morar no Recife. Quando cheguei, fui morar com umas tias que viviam no Arruda. Na minha turma, que entrou em 1998, tem uma porção de artistas que hoje ocupam posições de destaque: Irandhir Santos, Jorge de Paula, Galiana Brasil, Breno Fittipaldi. Na faculdade, foi outro passo para estudar e ler bastante. Era a hora de juntar minha prática de artista com o saber teórico e, sobretudo, ter um olhar pedagógico. Foi lá na universidade que descobri o olhar para a direção teatral – que é algo que exercito hoje – e para o ensino. Convivi profissionalmente com muitos atores e diretores de Caruaru, que me passavam seus conhecimentos. Lá, conheci mestres como Roberto Lúcio e Marcondes Lima, que foi um mestrão e de quem sou amigo. Roberto foi muito importante também por conta do seu trabalho pedagógico, que ele faz muito bem e no qual me espelhava muito. Sobre o trabalho de ator, o pouco que eu aprendi, teoricamente, foi com ele, tanto nas disciplinas que ele dava, quanto com os trabalhos que eu consegui fazer com ele como ator. Tem também João Denys, um monstro. Eu ficava impressionado com o saber múltiplo dele, por que ele é iluminador, é figurinista, é cenógrafo, é dramaturgo, é diretor, é ator. E como foi essa sua adaptação ao Recife? Algumas pessoas entram em choque quando ingressam na UFPE, por não ter um bacharelado em teatro, só licenciatura, mas, para mim isso não foi um choque, foi muito complementar. Depois que cheguei, comecei a trabalhar com companhias de dança do Recife. Atrasei meu curso para terminar, primeiro por que eu peguei todas aquelas grandes greves, e segundo, porque eu já trabalhava com o Grupo Grial de Dança, e viajava pelo Brasil e pelo exterior com eles. Em certos momentos, a formação prática estava me dizendo muito, às vezes até mais que a teórica. Quando eu voltava para a teoria, uma coisa complementava a outra. Aliás, quando cheguei no Recife, em 1998, de cara eu já comecei a dar aula, no segundo semestre, num projeto...
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De dança? Não, de Teatro. Foi um projeto que se chamava “Viva a Cultura Popular”, um projeto realizado por Antúlio, Antônio Madureira, né? Alguns alunos de artes cênicas foram selecionados para ser professores e monitores. Eu fui selecionado para ser professor de teatro, mas fiz esse cruzamento com a dança. Eu já tinha dançado em um grupo de dança popular de Caruaru, chamado “Asa Branca”, então eu conhecia superficialmente o coco de roda, a ciranda, o frevo, algumas danças da cultura popular. Nesse projeto, eu dirigia um espetáculo do Hermilo Borba Filho, chamado O Misterioso Boi de Afogados, um bumba-meu-boi, que é, na verdade, é o nosso Cavalo Marinho. Ele escreveu o texto baseado no Cavalo Marinho do Capitão Antônio Pereira, que ele assistiu e transformou em texto teatral. E eu ainda não conhecia nada sobre o Cavalo Marinho. Eu dirigi esse espetáculo e, um tempo depois eu fui cair no Grial, que foi onde dancei por seis anos. Minha dissertação de mestrado é sobre o cavalo marinho, e isso está na minha formação. Voltando à sua adolescência, quando você viu a sua primeira peça de teatro e o que você sentiu? Uma peça específica me marcou porque não a vi uma vez só, devo tê-la visto umas três vezes, quando tinha 11 ou 12 anos, lá em Palmares. A Federação do Teatro de Pernambuco, a Feteape, atuava muito no interior e eles iam muito a Palmares com esses projetos de circulação. Na época, assisti uma peça chamada Minha Infância Querida, com texto de Maria Clara Machado e direção de Carlos Sales. O espetáculo era lindo, muito musical. Me emocionei, chorei. Eu era uma criança fazendo teatro, então isso me marcou em vários aspectos, por descobrir a carpintaria teatral, por conviver com essas pessoas.
E com relação a tua própria experiência das artes cênicas, o que o seu olhar de criança viu de tão especial ali? Era um lugar que, para mim, fascinava pela possibilidade de eu poder ser muitas coisas. Era o lugar das máscaras. Eu podia dançar, cantar, escrever textos e representar diferentes tipos. E na dança, em princípio, tinha uma coisa que era de descoberta do próprio corpo, por que eu já dançava forró, samba. Ali era o lugar do prazer, mas quando eu comecei a estudar mesmo dança, com o balé, tinha um negócio da disciplina que me proporcionava ter um outro corpo: esticar mais a perna, fazer coisas que, no cotidiano, eu não faria. Isso era fascinante enquanto criança, a possibilidade de ver um universo extracotidiano, ser outras coisas, fazer outras formas do corpo. Rodar muito, saltar muito, isso me fascinava bastante. E era prazeroso.
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Qual a tua ligação com a religião de matriz africana nesses teus anos de formação? Existe uma separação nessa educação religiosa: a família da minha mãe e a família do meu pai. A família do meu pai não tinha ligação nenhuma com os rituais africanos, era católica, e fui batizado como católico. No entanto, a família da minha mãe tinha. Só que isso nunca me foi ensinado e nem falado. Às vezes, rolavam sessões na casa da minha avó e isso era bem ligado à umbanda. Às vezes, minha tia recebia entidades como o Zé Pilintra ou Pomba Gira. Sempre convivi com isso dessa maneira fragmentada, sem entender o que era. Quando eu era adolescente e comecei a estudar, fui tendo contato teoricamente com essas informações, comecei a fazer associações, mas nunca conversei com meus pais sobre isso. Aí, já na adolescência, com 17 anos, comecei a ir em terreiros com a minha mãe, porque, aí sim, minha mãe assumiu para mim que participava de terreiros de umbanda e de candomblé.
Meu pai via isso como bruxaria, macumba, então não queria que os filhos tivessem contato com isso, por isso minha mãe fazia tudo escondido. Foi como pesquisador, trabalhando no Grial, que aprofundei esse contato com a cultura popular e as raízes africanas. Fui entendendo a formação da minha família enquanto negros, e isso me levou a fazer o Negro de Estimação. E qual se tornou seu posicionamento político com relação a essa descoberta de uma negritude na sua trajetória? A agressividade foi o meu primeiro mote. Por quê? Primeiro, porque é uma escolha estética falar com o recurso da ironia, que o Negro de estimação carrega, e com o recurso da provocação. Acho que esse negócio de provocar e trabalhar com a ironia é uma coisa que tem a ver comigo e está presente em todos os meus trabalhos. Na minha vida, está presente no tipo de dramaturgia que eu me interesso, que é a dramaturgia marginal: Plínio Marcos, Nelson Rodrigues, Bernard-Marie Koltès... Narrativas provocativas... Narrativas provocativas de um universo que, para a sociedade, é considerado marginal. Provocar e trazer à tona esses universos é a maneira como eu vejo arte e penso o mundo. E aí, no Negro de Estimação tem isso. Me deparei com os contos do Marcelino Freire que, por si só, já carregam essa realidade, e aí eu me identifiquei.
Eu precisava realmente gritar sobre mim, eu precisava falar de mim nesse contexto, porque eu sofri aquela agressividade enquanto negro. Dentro da escola, dentro dos ambientes teatrais, no meio cultural pernambucano e recifense, de mesa de bar, de conviver com a classe média dita mais elitizada. Era um lugar de dizer: “gente, sou eu”, e eu vou colocar no espetáculo dessa maneira. Eu quero que o espetáculo provoque, você pode levantar e ir embora, e não gostar. A questão não é de gosto, é ser provocado por algo que eu estou querendo dialogar com você. No Negro de Estimação, tudo aquilo que é apresentado no palco é uma realidade da desigualdade social do país. E tem um realismo fantástico, nada ali é distante. Não, nada! Tudo passou por mim. Os contos que eu escolho para ler no espetáculo, são contos cujas situações vivenciei, elas estão em mim. É a relação com a Xuxa, a relação com a TV, ter essa infância alienada, essa coisa da Universidade, das cotas. Há a escolha de falar dessa negritude dessa maneira agressiva e provocadora, porque ela é assim também, e ela precisa ser dita como revolta. Em alguma esfera, nós, negros, precisamos gritar esse lugar para os outros da sociedade. Eu escolho no espetáculo falar dessa maneira também. Ainda assim, eu acho que o espetáculo equilibra essa reação. O Negro de Estimação é provocador, mas tem momentos de pura poesia. Ele mostra esse outro negro, que é o do coletivo, que se orgulha da sua pele, da sua cor, do seu cabelo, da sua dança, do marido, da memória do avô que ensinou a sambar, que se orgulha da tia, que, mesmo sem dizer que era candomblé, umbanda, estava ali na minha formação. O espetáculo carrega, sim, um discurso provocador e social, mas mostra uma estética de negritude, que é de afirmação. Entende? Eu carrego, hoje em dia, esses dois lugares. E agora, trabalhando com a Capulanas Cia. de Arte Negra, em São Paulo, mostro isso também. No espetáculo Sangoma, trazemos relatos doloridíssimos, de uma menina que foi estuprada pelo pai, de outra que fez aborto quando ainda era criança...
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Mas, o tempo inteiro, a gente mostra a cura disso pelo lugar do afeto, do comer junto, tanto é que a gente faz uma comida no final do espetáculo, que é o “omolocum”, que é uma comida para Oxum. A gente ensaia tudo com essa comida e essa comida é feita dentro da casa toda semana. Cantamos juntos, dançamos juntos, vamos para terreiros de candomblé algumas das meninas são iniciadas – vamos para rap juntos, então, é o lugar da coletividade. Tem a ver com o orgulho também... Sim, do orgulho com a afirmação. Se tem uma coisa que me indigna muito nessas questões é que, por exemplo, eu também sofro uma série de preconceitos tanto dos próprios negros, quanto dos outros, porque o meu fenótipo é outro. Tem gente que olha para mim e diz: “você é branco, você não é negro”. Eu sou negro, porque a minha formação toda está ligada a isso e eu me identifico no mundo como negro, independente do meu cabelo ou da roupa que eu uso. Posso usar uma roupa de shopping, pouco importa, importa o que está dentro de mim e a maneira como eu me articulo no mundo, com as pessoas e com quem eu falo. É um jeito meu revidar de uma maneira mais provocativa, mas eu hoje acho que dialogo com esses dois lugares, tentando me encontrar. A umbanda e o candomblé também tem muita dramaticidade. Como você coloca isso em seus espetáculos? A dramaturgia do Negro de Estimação é construída a partir desse olhar e dessa observação com a ideia de ritual. Eu construo isso próximo da cena, mas este é um ritual que faz analogia aos rituais de candomblé e de umbanda também. Faço uma analogia entre a corporificação de uma entidade com a corporificação do personagem pelo ator. Todas as personagens que faço no espetáculo chegam através de um toque, tem o toque que chama, que corporifica, o personagem diz o que tem para dizer e vai embora a partir de um outro toque...Ao mesmo tempo, não tenho nenhuma obrigação de transpor para a cena a religiosidade ou os códigos da religiosidade.
Eu faço uma releitura, uma ressignificação desses códigos para o ritual que eu quero construir com as palavras do Marcelino. Isso está, inclusive, ligado à minha pesquisa de mestrado e à maneira como eu vejo a tradição. Eu a percebo como algo em evolução, não biologicamente. Ela não é conservadora, ou pura, ela se transforma em outras coisas, é atravessada pela contemporaneidade. Eu pego certos códigos e os releio para a dramaturgia que eu estou criando. Então, o espetáculo é ritual, mas no campo da performance ritual, e não do ritual religioso. Quem também você acha que faz isso no Brasil? As meninas do Capulanas fazem isso em São Paulo, além do Coletivo Negro e do grupo Os Crespos, oriundo do movimento negro da capital paulista. Acho que, de alguma maneira, o Bando de Teatro Olodum, de Salvador, também faz isso. Esses são os mais conhecidos, mas também há grupos no Rio, em Porto Alegre, que também trabalham com a estética de matriz africana, buscando fazer releitura. Contextualizada? Tem o Luiz de Abreu, que faz isso no samba. Gosto muito do trabalho dele, já chegamos a fazer projetos juntos, e o Samba do Crioulo Doido é um trabalho que me impactou bastante. Por vários aspectos, desde o trabalho com a nudez, que eu já fazia com Jandira. Tinha a livre disponibilidade do corpo negro muito forte e até... O hibridismo que te pertence... O hibridismo que me pertence. Foi o lugar de ver outro negro fazendo o que eu também estava projetando. O lugar provocativo me chama atenção, mas não só ele. Há outros grupos que nem trabalham com estéticas negras e também me influenciaram muito. O trabalho da Lia Rodrigues, no Rio de Janeiro, que é uma companhia de dança, mas trabalha com um universo performativo muito grande, também me inspirou muito no momento em que eu estava criando esses trabalhos. Inicialmente, o Zé Celso dizia que tentava incorporar esses aspectos dos rituais africanos, mas mais pela sugestão do adereço, que também é um dispositivo cênico que você utiliza, não é? Sim. Gosto muito do que ele pensa como teatro, de sua estética, do seu pensamento antropofágico na linguagem teatral, é mega inspirador, mas não consigo identificar claramente esses lugares das matrizes africanas no trabalho dele. Como foi dito, para mim isso é apenas sugerido através da indumentária, ou por meio da presença de atores negros em cena, mas não necessariamente há uma exploração a fundo naquela temática. Aí, nesse sentido, ele é mais antropofágico mesmo, no sentido de misturar tudo. Mas ele, para mim, é bastante inspirador quanto à atmosfera do ritual, de disponibilidade, despojamento, de discurso social atrelado a uma poética, a uma narrativa cênica.
E como você coloca esse recurso nos seus espetáculos? No Negro de Estimação, as roupas vão se transformando em outras coisas, em elementos que vão somando, que sugerem, e não necessariamente representam a figura. No Jandira, o corpo todo é nu, mas há adereços que vão sugerindo coisas ligadas ao universo do visual. E às vezes nesse lugar, ele dialoga com a performance e com as artes visuais, algo que faço no Estar aqui ou ali. Nesse trabalho, uso uma imensidão de adereços que vão construindo ambientes, pessoas, personagens, estereótipos. Vou construindo um avatar de mim mesmo e, às vezes, um avatar do estereótipo do que é ser nordestino, negro, gay, ou seja, do que sou. E como você procura estudar, teoricamente, pensadores que te ajudem a pensar o que é ritual, ou o que é performance? Eu estou lendo a obra de um estudioso chamado Richard Schechner. Ele foi do movimento Performance Group de Nova Iorque, dos anos 60, e ele pensa a performance pelo lugar antropológico. E foi isso o que estudei no mestrado. Uso um dos conceitos dele, o de matriz e motriz. O que eu trago, por exemplo, da minha vivência no candomblé e no cavalo-marinho, eu transformo em matriz, em vocabulário, em código. Ou seja, em parte do seu repertório... Sim. Mas como transformo isso em poética corporal? Aí sim eu saio da matriz e transformo isso em motriz. Uso um pouco esse conceito para falar um pouco da minha formação, de algo em movimento. Não é uma coisa fixa, não é pura. Você é atravessado por um monte de coisas e coloca isso em processamento. Então eu pego essas matrizes e as transformo em outra coisa. Faço isso na dança de Negro de Estimação. Você, de Pernambuco, pode até reconhecer o braço do maracatu, mas fui a Cabo Verde apresentar esse trabalho e as pessoas não conheciam. O que elas reconhecem é a matriz africana, que vem pela coluna. Esta é uma gestualidade que está na memória do meu corpo. Isso é motriz, isso é performativo, isso está em evolução no momento.
A sua experiência corpórea, nesse caso, também apresenta um papel importante... Exatamente. A sua experiência é a relação com o meio onde você vive. Morei muito tempo aqui, isso atravessa minha identidade artística, e vou para São Paulo sendo eu. Eu não vou para São Paulo e chegar lá para dizer: “oi, eu vou fazer o Papa agora”, ou algo do tipo. Quero trabalhar com essas pessoas, mas sendo eu, trazendo a minha história. Acredito muito na formação do artista dessa maneira. É importante a gente vivenciar os códigos, mas depois o que eu faço com eles? Onde está a autoria? Isso vai para onde? Vou virar um mero reprodutor daquilo que eu aprendi com o mestre de cavalo marinho? Ou transformo isso em outra coisa? Acho que é isso o que pessoas como Alessandra e Siba fazem na música e tento fazer no meu teatro, na minha dança. Qual a sua reação com o som em seu trabalho? No meu dia-a-dia, sou atravessado por um monte de coisas. Já tive momentos nos quais ouvia muita música clássica, e isso veio um pouco da minha formação com balé, e outros momentos de ouvir muita música popular brasileira. Eu não tive, por exemplo, uma formação de música internacional, norte-americana. Ouvi os cantores mais clichês, como Madonna, na adolescência. Minha viagem era a música popular, o samba-enredo, a canção brasileira que você escuta em família. Também ouvia coisas que atravessavam a cultura de massa, como música sertaneja e axé music. Conforme o tempo foi passando, eu fui descobrindo outras coisas. Em Belém, descobri Caetano Veloso e a música brasileira nesse lugar do tropicalismo. Me chamava atenção que essa música trazia um contexto poético, ou seja, ela trazia letras distantes daquele universo que meus pais ouviam. O universo auditivo deles era de sertanejo, ou samba, por um contexto de hereditariedade, de narrativa de onde eles vêm.
Então não havia, para você, a noção do que era “cult”... Exato. Me deparei com essa noção quando comecei a estudar, fazer teatro e conviver com pessoas que tinham formações outras, mais teóricas, mais “cults”, e passei a conhecer essas músicas também. Na fase adulta, já morando e trabalhando no Recife, me apaixonei, como eu sou apaixonado até hoje, pelo movimento cultural da cidade, e aí passei a ouvir a música da cidade, porque eu passei a ter contato direto com a cultura popular. Sou, talvez, um dos grandes divulgadores dessa música que é feita aqui dentro e que lá em São Paulo, ou em outros lugares, há quem não conheça. Na minha residência, em Portugal, todos os experimentos que eu fiz lá eram com Catarina Dee Jah, Júnior Black, Siba, com bandas de Brasília, que eu conheci pesquisando na internet. É um universo atualizado, de pessoas que estão em uma esfera mais distante, e quero trazê-las para a roda, porque elas inspiram. Em determinado momento, me deparei com o trabalho do Missionário José. Trabalhamos juntos em um espetáculo que Marcondes Lima dirigiu. Eu fazia a coreografia e o Zé fez a trilha, um trabalho incrível, pelo qual fiquei apaixonado. Anos depois, quando fiz o Negro de Estimação, o convidei para fazer a trilha e, de lá para cá, ele se tornou meu parceiro musical. Ele também fez a trilha de Estar aqui ou ali, do Auto do Salão do Automóvel e uma série de jams comigo. No meu próximo trabalho solo, quero trabalhar com a ideia de músicos em cena. Esse som estaria mais ligado a releituras mesmo. Há grupos, como o Bixiga 70, de São Paulo, que me impulsionam bastante nesse sentido. Também me interesso pela releitura de manifestações populares. Escuto bastante.
E a respeito do paladar, o que te atrai sensorialmente? Gosto muito de comer e do hábito de me reunir para comer. E a comida que perpassa a minha vida inteira, por incrível que pareça, é o cuscuz. Era o que eu comia em casa, em Caruaru, o que eu comia na França quando fiz residência artística lá, o que eu cozinhava em Portugal e o que eu faço em São Paulo hoje. Voltando ao terreno da moda, que é o tema da revista, qual a sua relação com o vestir? Sou muito ligado à moda, não às tendências, mas à roupa. Isso vem desde a adolescência, a partir da influência de amigos. Sou filho de Iemanjá com Xangô, mas tenho uma Oxum braba, então sou bastante vaidoso, cuido bastante de mim. Tenho uma vaidade muito acirrada. Lembro que meu pai também era bem vaidoso e ele me levava para comprar roupa. Era um momento que eu adorava. Tive uma fase na qual queria me vestir ajeitadinho e outra na qual quis me vestir de um jeito diferente. Já tive fase de andar de saia, enfim, esses momentos pelos quais todo mundo passa. Em um determinado momento da minha fase adulta, tive um namorado que era modelo e passei a conviver com gente da moda, além de acompanhar mais as tendências.
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E o que você descobriu?
Você traz isso para seus espetáculos?
Ia ver desfiles de Eduardo Ferreira, era apaixonado por Fabiana Pirro, e fui conhecendo as pessoas. Quando os estilistas do Recife faziam desfile em Caruaru, convivia com essas pessoas da moda. Assistia a desfiles na TV, acompanhava revistas, nomes de modelos. Hoje, para mim, moda é estar à vontade consigo mesmo e ter algo ligado a sua identidade, ao que você é. Eu sou muito híbrido, eu gosto de me perceber em combinações, talvez usando uma roupa toda preta, talvez usando uma roupa toda colorida, e depois talvez usando uma bermuda com uma camiseta. Acho que já fui mais ousado nesse aspecto, mas acho que agora, com o caminhar da idade, vou tentando ficar essencial. Que essencialidade é essa que me identifica, do ponto de vista do vestuário, da indumentária? Eu não poderia dizer seriamente, mas gosto de pensar nessa possibilidade de unir estilos.
Não sei se trago de forma tão forte, porque a indumentária está vinculada à dramaturgia. No Negro de Estimação, por exemplo, a ideia é trabalhar com o mínimo, então o espetáculo parte de um corpo nu, que se veste, e essa peça que está vestida se transforma em outras coisas. Eu gosto dessa ideia de transformação e de sugestão. Em Jandira também há um corpo nu que pega pequenos adereços, que sugerem imagens, mas não necessariamente identificam você como um personagem. Como o Está aqui ou ali é um trabalho de intervenção urbana, ele se aproxima mais da maneira que penso. Eu uso um monte de coisas, de adereços, de roupas e de peças, que eu vou tirando e botando, e essa ação me identifica como essa pessoa híbrida, que copia e cola. Acho que isso define o homem contemporâneo e a sociedade na qual vivemos hoje e também é mais propícia criar um discurso sobre isso.
O que passou a te encantar na moda a partir dessas descobertas?
E no teatro, você acompanha pessoas que sejam hábeis no trabalho com o figurino ou estilistas locais?
É perceber a moda que as pessoas combinam na rua. Hoje, tudo está muito acessível. Você pode comprar uma roupa de brechó, usar com uma roupa que uma costureira fez, ou com uma roupa de loja, produzida, e criar um tipo a partir disso. E, em São Paulo, ninguém se mete nas suas escolhas. Você não é um bicho estranho se você sair com combinações aleatórias. São Paulo é o lugar onde todo mundo tolera a diferença, mas não necessariamente convive. Há muitas tribos, muita separação. Mesmo assim, você encontra essa profusão de identidades, de vestimenta. Isso é a minha maneira de pensar.
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Infelizmente não. Mas, ao mesmo tempo, sempre estive muito conectado a marcas locais como o ACRE ou o Período Fértil, além de ir a brechós. Acho que esses nomes também releem a cultura popular, como estou fazendo. Foi bom conhecer essas pessoas, algumas delas, em mesas de bar, festas, porque, aí, você se identifica ou não. Em um determinado período, comprei muita roupa na Galeria Joana D’Arc. Além disso, mesmo não comprando, eu admirava esteticamente o que o Eduardo Ferreira propunha, enquanto moda. O Melk-ZDa, por sua vez, também traz proposições que me interessam como linguagem, embora não o conheça tão a fundo. Em outro momento da minha vida, comprei muitas roupas do Ronaldo Fraga, e o admiro porque seus desfiles já vinham com uma carga muito grande de encenação. Ele também me chama a atenção pela forma como articula sua linguagem, ligando-a à cultura pop, às tradições.
Mapa afetivo de Kleber Lourenรงo
A vida artística de Kleber Lourenço tem um pouco de cada cidade onde ele morou ao longo da vida: Caruaru, onde nasceu e para onde voltou aos 15 anos, Arapiraca, onde viveu dos 5 aos 10 anos, Palmares e Belém, onde passou o início da adolescência, Recife, onde se formou, e São Paulo, para onde se mudou. A Revista Fundamento dá um rasante em alguns desses locais e mostra algumas de suas ligações com a cultura e a arte.
Caruaru Pernambuco
A cidade onde Kleber Lourenço nasceu tem uma história bastante antiga e que não se resume apenas à sua vocação comercial, simbolizada pela famosa feira livre do município. O primeiro ajuntamento onde hoje há a cidade foi registrado em 1681, quando o local foi concedido como sesmaria à família Rodrigues de Sá. A elevação à categoria de cidade aconteceu em 1857 e, atualmente, Caruaru conta com 347.088 habitantes, de acordo com contagem do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A pujança cultural da cidade também se traduz na arte popular, com os artesãos do Alto do Moura, e com a existência do Teatro Experimental de Arte (TEA) fundado em 1962 por Argemiro Pascoal e Arary Marrocos e considerado, desde 2008, como Patrimônio Vivo de Pernambuco. O filho de ambos, Fábio Pascoal, foi um dos dois fundadores do Feteag – Festival de Teatro do Agreste, criado juntamente com Chico Neto.
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PALMARES Pernambuco
A história de Palmares, onde Kleber Lourenço morou no início da adolescência, tem, historicamente, a ver com sua pesquisa artística relacionada à identidade e à ancestralidade negra. O nome do município é uma homenagem ao Quilombo dos Palmares, que estava localizado nas proximidades. A cidade, emancipada do município de Água Preta em 1879, também é conhecida como a Atenas pernambucana, por ser o local de nascimento de vários artistas, como o teatrólogo Hermilo Borba Filho e o poeta Ascenso Ferreira, além do pintor Murillo La Greca. Atualmente, Palmares conta com uma população estimada em 62.571 habitantes e é considerada uma cidade-polo da Mata Sul. A fertilidade do território também fez a cidade se tornar famosa por seus engenhos. Na área cultural, a cidade também é conhecida por abrigar um cineteatro, chamado Theatro Apollo, fundado em 1914 e considerado um dos mais antigos de Pernambuco e o mais antigo do interior.
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BELÉM Pará
Belém, capital do Pará, tem em sua cultura uma mistura forte de música e dança, com manifestações culturais como o carimbó, dança de roda de origem indígena com influência negra reconhecida em 2014 como Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil. Tem como um de seus equipamentos culturais mais famosos a Casa das Onze Janelas, construída no século XVIII. Com pouco menos de 1,5 milhão de habitantes, também tem entre seus monumentos o Theatro da Paz, inspirado no Teatro Alla Scala, de Milão.
São Paulo São Paulo
Em São Paulo, casa atual de Kleber Lourenço, as discussões a respeito da representatividade dos negros no teatro deram origem a vários grupos que lutam por um aprofundamento dessas questões. Entre eles, estão o Grupo Clariô de Teatro, o Coletivo Negro, Os Crespos e as Capulanas, com as quais Kleber já colaborou ao dirigir o espetáculo Sangoma. O primeiro foi criado em 2002 em Taboão da Serra, na Região Metropolitana de São Paulo, em um trabalho voltado para a periferia e pela periferia. O segundo, por sua vez, foi fundado em 2008 e se caracteriza por uma pesquisa cênico-poética-racial. O gurpo os Crespos foi formado em 2005 por atores negros egressos da Escola de Arte Dramática da USP e a Capulanas Cia. De Arte Negra é composta por jovens negras de movimentos artísticos e políticos da capital paulista.
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TUA PRESENÇA
É NEGRA Artistas do teatro e da dança trazem a a ancestralidade negra para a cena como opção poética e política
N
as artes cênicas brasileiras, a participação do negro foi, durante décadas, pautada pelo preconceito. Os negros eram retratados como moleques de recado, empregados ou empregadas domésticas, quando não escravos sem voz nem relevância dramática. Personagens com esse tom de pele eram retratados de forma cômica ou depreciativa, isso quando não havia o “blackface”, em que brancos representavam negros ao se pintar de tinta ou graxa, prática hoje considerada racista.
O
silenciamento dos negros era regra até nos palcos brasileiros, e a situação mudou apenas em meados do século 20, quando foi fundado o Teatro Experimental do Negro. Hoje, tanto no teatro como na dança, os artistas trazem para sua poética uma identidade forte e uma militância que colocou em evidência as dores e os valores dessa parcela da sociedade.
E
m Pernambuco, quem assume esta postura de valorização da cultura negra no teatro é o grupo O Poste Soluções Luminosas, fundado em 2004 inicialmente como coletivo de iluminadores. Seus integrantes, Samuel Santos, Agrinez Melo e Naná Sodré, tomaram a ancestralidade como fonte de pesquisa a partir de 2009, com a estreia do espetáculo Cordel do amor sem fim, escrito por Cláudia Barral. A volta dos três à cena, seja como atores ou diretores, se deu por meio de uma observação incômoda para eles. “Nós somos negros, mas nossos filhos começaram a não se identificar como tais. Montamos a luz de vários espetáculos e não víamos negros atuando. Isso fortaleceu nossa vontade de sair dos bastidores”, afirma Naná Sodré.
A
vontade de levar estes questionamentos aos palcos também deu origem aos espetáculos Anjo negro e Ombela, que estrearam em 2014. A primeira peça, escrita por Nelson Rodrigues, traz a história de Ismael, médico negro que renega sua cor, e a segunda tem texto do escritor angolano Manuel Rui, cujas palavras, de forma poética, abordam as forças da natureza, especialmente a água. “Nos perguntamos o porquê de não trazer isso para a cena. Nosso teatro busca uma poética universal e, para chegar no público, temos de fazer um trabalho profundo de interpretação. É muito bom ver negros vindo aos espetáculos e discutindo conosco”, afirma Samuel. Esta também é outra questão delicada: a falta de negros na plateia, pelos mais variados motivos socioeconômicos. “Ao fim de uma das sessões de Anjo negro, Samuel percebeu que não havia negros na plateia e disse ‘agora negro não paga’. Na sessão seguinte havia muitos negros na plateia. Foi aí que percebemos a necessidade do discurso virar prática”.
O
grupo O Poste Soluções Luminosas também foi citado no livro A história do negro no teatro brasileiro, publicação de referência na área escrita pelo historiador e professor Joel Rufino dos Santos (1941-2015). Além de mapear os grupos de todo o Brasil que abordam essa temática, a obra também dá destaque a atores, atrizes e diretores importantes para abrir caminhos para a geração atual, como Ruth de Souza, intérprete atualmente com 95 anos.
O
professor Elton Bruno Siqueira idealizou um grupo de estudos na Universidade Federal de Pernambuco sobre dramaturgia em língua portuguesa, e este recorte também aborda autores de países como Moçambique e São Tomé e Príncipe. Segundo o docente, o negro era representado por personagens caricaturais, ligados à comédia, sem discutir necessariamente a questão do preconceito racial. “Um ponto de virada foi a criação do Teatro Experimental do Negro (TEN), liderado por Abdias do Nascimento, nos anos 40, que ia contra a imposição de uma postura subalterna do negro nos palcos. O grupo poderia ter tido um alcance muito maior, mas isso não ocorreu justamente por conta do prconceito presente na sociedade brasileira.
A
inda assim, é muito importante registrar a atuação deles em um momento em que se silenciava e encobria a realidade nacional com relação ao tema”. Em Pernambuco, foi a dança que primeiro anteviu a necessidade de se posicionar artisticamente em defesa de uma identidade negra. O Balé Primitivo de Arte Negra, fundado em 1981, foi o primeiro a trabalhar com as danças afro.
E
ssa reflexão também se estendeu à dança contemporânea. O bailarino Giorrdani de Souza, conhecido como Kiran, junto com o bailarino Jorge Kildery, começaram a pesquisar, a partir de 2009, a religiosidade afro-brasileira na coreografia de Elégùn – um corpo em trânsito, baseado no desenho corporal dos “cavalos”, ou seja, dos médiuns que recebem as energias do orixás.
V
oltando ao teatro, o ator e cantor Marconi Bispo também teve a ideia de abordar sua ancestralidade negra em um espetáculo recém-estreado, chamado Luzir é Negro!, assinado pelo coletivo Teatro de Fronteira e dirigido por Rodrigo Dourado. “Eu queria entender como o racismo havia afetado – ou ainda afeta – as minhas relações íntimas, desde os primeiros elos dentro da minha família, até as escolhas e não-escolhas que determinavam meus relacionamentos na fase adulta. Para mim, era importante saber se o fato de ser candomblecista, por exemplo, e externar isto das mais variadas formas (deixar minhas guias de orixás aparentes, assumir isto nas redes sociais, etc.) estava determinando o fato de estar sem ‘namorar’ há mais de dez anos”.
Espetáculo Ombela Grupo O Poste Soluções Luminosas Com Agrinez Melo e Naná Sodré Fotos de Thaís Lima
DE HERÓIS DO NOVO MUNDO A NEGROS DE ESTIMAÇÃO:
AS MÚLTIPLAS FACES DO NEGRO Kleber de Oliveira Silva
“O
mundo começava nos seios de Jandira” é o verso que abre o poema “Jandira”, de Murilo Mendes, e aponta o início de uma pesquisa estética (2006) orquestrada pelo bailarino, ator, encenador e coreógrafo Kleber Lourenço, calcada no entrecruzamento das linguagens do teatro, da performance, da dança contemporânea e da literatura. Prosseguindo esse projeto de caráter intersemiótico, Kleber Lourenço selecionou, em 2007, oito narrativas, sendo sete do livro “Contos negreiros”, de Marcelino Freire, e um texto ainda inédito do mesmo contista – “Para Iemanjá” (apesar de não ser interpretado, partiu deste conto a concepção dos movimentos corporais executados no fim do espetáculo) – com o objetivo de construir o seu “Negro de estimação”. O título do livro de Marcelino chama atenção pela referência à poesia de Castro Alves “O navio negreiro” (texto integrante da obra Os escravos). Além disso, as narrativas que constituem a obra (16 ao todo) recebem a terminologia “canto”, outro indicador que alude ao texto do poeta dos escravos. Desse modo, são 16 cantos/contos. Propositalmente, uma vez que Marcelino faz uma leitura bem divergente da ótica de Castro Alves a respeito do negro.
O ponto discrepante entre “Jandira” e “Negro de estimação” é o modo pelo qual os textos são dramatizados. A encenação em “Jandira” foi realizada a partir da descrição do eu-lírico acerca da personagem que dá nome à poesia. O bailarino existencia as informações sugeridas pela voz poética, enquanto que em “Negro de estimação” ele vivencia cada narrador-personagem dos textos selecionados, expondo as várias facetas de uma mesma raça. O espetáculo começa e logo visualizamos o ator com uma máscara, que remete a uma cabeça de carneiro. Cabeça que será oferecida à platéia, aludindo aos rituais do Candomblé, em que os fiéis sacrificam os animais para oferecer às entidades. Ao mesmo tempo, faz referência à analogia entre animais e escravos, ambos vistos como propriedade. Os movimentos corporais executados por Lourenço aludem ao amanhecer de uma longa jornada de trabalho do animal e do escravo. A iluminação, âmbar, sugere essa idéia.
Começa fraca, indicando os primeiros raios de sol, e tão logo se intensifica. O corpo deitado transparece a dificuldade de acordar, que em alguns instantes hesita entre voltar a dormir e enfrentar mais um dia de labuta. Mas o desenvolvimento econômico e o sustento do proprietário necessitam desse trabalho dessas propriedades. A partir de então, Lourenço executa determinados movimentos, que sinalizam os afazeres dessas propriedades até chegar aos seus respectivos destinos: o abate do animal e o castigo dos escravos. Esses movimentos são retomados ao curso do espetáculo, a fim de mostrar
ao espectador que o cotidiano dos negros a ser dramatizado gira em torno da religiosidade e da idéia de propriedade, objeto, e que a dança e a música são signos de urdiduras desse povo.
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Passadas as apresentações integralmente corporais das primeiras facetas do negro (o negro na condição de oferenda às suas crenças e de bem privado) e iniciando as dramatizações das narrativas escolhidas, Lourenço interpreta “Trabalhadores do Brasil”. O corpo, que até então estava despido, aos poucos começa a receber as primeiras vestimentas: uma calça com suspensório pretos e uma camiseta branca. O negro começa a ser inserido na civilização, sendo utilizado como ferramenta de trabalho. Os movimentos de dança, que aludem ao balé e a outras danças clássicas, e que são acompanhados pela voz da personagem, paulatinamente vão ganhando movimentos sinuosos, jogadas de ombros e passos da Capoeira e do Candomblé. Gradativamente, esse negro vai se tornando agente transformador da civilização. O texto gira em torno da expressão “filhos de santo”, onde é abordado o cotidiano desses “filhos”, que recorrem às suas divindades a fim de pedir proteção contra as desigualdades sociais ou para melhorar de vida sem imprimir esforço:
“Enquanto a gente dança no bico da garrafinha Odé trabalha de segurança pega ladrão que não respeita quem ganha o pão que o Tição amassou honestamente enquanto Obatalá faz serviço pra muita gente que não levanta um saco de cimento tá me ouvindo bem?”
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O texto situa as entidades do Candomblé em uma situação real, revelando aspectos humanos dessas divindades. É esse traço que destoa o Candomblé do Catolicismo, por exemplo. Enquanto que no Catolicismo há a sacralização dos santos, no Candomblé as entidades nos aparecem enquanto mescla de homem e deus. Esse mesmo aspecto pode ser observado nos rituais de consagração. No Catolicismo, os fiéis se prostram diante das imagens dos santos, adorando-os. No Candomblé, os filhos de santo encarnam as entidades, numa relação mais direta entre o crente e a divindade. E é justamente a partir dessa vivência que os negros das encenações de Lourenço e, por conseguinte, de Marcelino vão à luta: “Enquanto Olorum trabalha como cobrador de ônibus naquele transe infernal de trânsito Ossonhe sonha com um novo amor pra ganhar 1 passe ou 2 na praça turbulenta do Pelô fazer sexo oral anal seja lá com quem for tá me ouvindo bem?” O título “Trabalhadores do Brasil” alude à frase que introduzia os discursos de Getúlio Vargas dirigidos à nação. Implicitamente, existe a idéia de que todos os trabalhadores são iguais em sua altivez. Nas narrativas de Marcelino, percebemos que os trabalhos executados pelas entidades não são diretamente responsáveis pelo desenvolvimento e pela dignidade da nação.
São ofícios de segunda, ou, por extensão, bicos, trabalhos instáveis: “Enquanto Zumbi trabalha cortando cana na zona da mata pernambucana Olorô-Quê vende carne de segunda a segunda ninguém vive aqui com a bunda preta pra cima tá me ouvindo bem?” Nesse trecho, percebemos a ironia contida na frase “vende carne de segunda a segunda”. Passagem esta que dá margem para duas leituras: ou Olorô-Quê vende carne durante toda a semana, ou seja, de segunda-feira a segunda-feira, ou Olorô-Quê vende carne de baixa qualidade – esta, garantida pela expressão idiomática “de segunda”, ou seja, ruim. Partindo dessa pressuposição, destacamos o atributo “dialógico” dos textos de Marcelino. Ou seja, estórias construídas a partir de diálogos, caracterizadas por uma linguagem marcada pela oralidade. Interpretada a narrativa que introduz o livro de Marcelino e o espetáculo de Lourenço, o olhar do bailarino se debruça sobre o protesto dos negros, os quais, quando são presos, encontram nos programas policiais da grande mídia uma válvula de escape da denúncia contra a violência desgovernada e banalizada nos centros urbanos: “Violência é o carrão parar em cima do pé da gente e fechar a janela de vidro fumê e a gente nem ter a chance de ver a cara do palhaço de gravata para não perder a hora ele olhar o tempo perdido no rolex dourado.”
O excerto, que introduz o texto, retirado do conto “Esquece”, é marcado pela ausência de vírgulas, recurso moderno que sinaliza a necessidade da aceleração do discurso do negro, uma vez que ele não dispõe de muito tempo para protestar. A encenação da referida narrativa é fragmentada – da mesma maneira que o texto é escrito. Durante todo o espetáculo outras passagens desse texto são interpretadas. Percebemos que em cada dramatização a voz e o corpo dessa personagem, que começam altivos, vão se rebaixando até chegarem ao chão, sendo pressionados pela estigmatização da cor e da condição social. Os movimentos corporais utilizados nesse momento retomam determinados gestos executados na abertura do referido espetáculo: o corpo deitado de bruços, os braços estirados em cruz e o torso que em alguns momentos se levanta. Porém, ao passo que grita mais baixo, mais forte discursa: “Violência é a gente receber tapa na cara e na bunda quando socam a gente naquela cela imunda cheia de gente e mais gente e mais gente e mais gente pensando como seria bom ter um carrão do ano e aquele relógio rolex mas isso fica para depois uma outra hora.”
A frase que conclui esse texto chama atenção para o retardamento de discussões políticas sobre a melhoria de vida da classe empobrecida. Assunto este que pode ficar para “uma outra hora”. Paralelamente à encenação do texto “Esquece”, Kleber Lourenço interpreta “Curso superior”. A narrativa discorre acerca do negro que não possui perspectiva de vida: “O meu medo é entrar na faculdade e tirar zero eu que nunca fui bom de matemática fraco no inglês eu que nunca gostei de química geografia e português o que é que eu faço agora hein mãe não sei.” O corpo e a voz agora se voltam para um negro franzino e cabisbaixo, apresentando uma timidez diante da vida. Também apontamos que a construção desse texto assemelha-se a da narrativa anterior, caracterizada pela ausência de pontuação. Além desta, ocorre a omissão de indicadores discursivos, de modo que não sabemos ao certo quem responde às indagações do narrador – é o próprio narrador ou a mãe dele? (Com perdão do trocadilho) Não sei. Sabemos que, implicitamente, ambas as personagens possuem as mesmas reflexões sobre a vida e, assim, as duas leituras a respeito de quem responde ao narrador-personagem procedem. Ambos não sabem como será o amanhã. O narradorpersonagem não sabe ao certo se
“mesmo com diploma debaixo do braço andando por aí desiludido e desempregado o policial me olhe de cara feia e eu acabe fazendo uma burrice sei lá uma besteira será que vou ter direito a uma cela especial hein mãe não sei.” A falta de expectativa diante da vida, restando apenas a cela como destino, é o estigma da raça e da condição social. Estigma este que se mostra como elo de confluência entre os dois textos. A partir dessa leitura, nos vem à mente os versos de “O navio negreiro”, de Castro Alves, tais como: “Presa dos elos de uma só cadeia A multidão faminta cambaleia E chora e dança ali!”. Esses versos relacionam-se perfeitamente com a proposta do cenário: um claustro completamente branco, formado pela sobreposição de vários tipos de tecido (da malha à renda), semelhante a uma moldura em torno do homem/animal que está dentro dela. É dentro dessa cela que Lourenço dramatiza determinadas faces do negro, que dança, chora e ri. E se o assunto gira em torno do negro, é quase que obrigatório a discussão sobre a concepção de liberdade. O texto “Nação Zumbi” põe em questão a ausência de liberdade na conduta do negro: “E o rim não é meu? Logo eu que ia ganhar dez mil, ia ganhar. Tinha até marcado uma feijoada pra quando eu voltar, uma feijoada. E roda de samba pra gente rodar. Até clarear, de manhã, pelas bandas de cá”.
“E o rim não é meu, saravá? Quem meu deu não foi Aquele-Lá-de-Cima, Meu Deus, Jesus e Oxalá?” A narrativa chama atenção para o comércio de órgãos, contudo, revela o olhar daquele que não vê problemas nessa empreitada, uma vez que o divino, além de lhe dar esses órgãos, lhe ofereceu o livre-arbítrio de fazer o que quiser com eles. O texto é polêmico? Pode ser, mas encerra uma discussão que não nos recorre no instante em que esse tema é trazido à baila: qual a postura daqueles que desejam vender os próprios órgãos?
As discussões publicadas na imprensa revelam o olhar da defensoria dos direitos humanos, contudo, vender o próprio órgão também não é um direito que assiste aos interessados? Se há esses questionamentos, é porque o narrador-personagem do texto em análise também busca uma resposta à ausência de liberdade presente na sua escolha: “Por que não cuidam eles deles, ora essa? O rim é meu ou não é?” O corpo que inicialmente é oferecido às entidades religiosas é o mesmo corpo que agora serve de oferenda ao lucro e é utilizado como ferramenta de sobrevivência: “Meu rim ia salvar uma vida, não ia salvar? Diz, não ia salvar? Perdi dez mil, e agora?” Essa frase é pontuada por um discurso que inicialmente beira à nobreza da ação, mas que no final se volta para o lucro, não deixando de ser uma atitude nobre, já que salvaria ambos os necessitados. Mais adiante, a temática do corpo enquanto meio de sobrevivência é reiterada na encenação do texto “Alemães vão à guerra”. Trata-se de uma conversa por telefone entre o narrador e Johann, onde são discutidos as belezas naturais e os atrativos sexuais dos trópicos: “Alô, Johann. Johann. Como as negrras do Nepal, tem. Das Ilhas Virgens também. É só irr. Feito as mocinhas da Guiana. Da prraia do Pina, depois do hotel, é só irr. Prreparra a mala, Johann. Deixa a mala prronta.” O texto é conduzido apenas pelo narrador, sem a participação direta da personagem Johann. Johann é apenas um vocativo. O olhar do narrador se debruça sobre a mesma temática que determinadas crônicas de viajantes quinhentistas tratavam: a descrição da paisagem tropical e a necessidade de salvar essa gente morena. Na missiva de Pero Vaz de Caminha, por exemplo, a salvação seria por intermédio da religião católica:
“Mas o melhor fruto que nela se pode fazer me parece é salvar esta gente. (...) bastaria, quanto mais disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento de nossa santa fé.” No referido conto, a salvação é garantida pelo turismo sexual: “Nosso dinheirro salvarria, por exemplo, as negrrinhas do Haiti. Barratas como as negras de Burrundi.” Durante a interpretação desse texto, Kleber Lourenço cria um ambiente de uma casa noturna ou do sambódromo da Sapucaí, onde há o culto e a exposição exacerbada do corpo, executando determinados movimentos corporais típicos do funk e do samba. Esses movimentos começam sincronizados e terminam rápidos, repetitivos, sugerindo a imagem de uma máquina, ferramenta sexual. A calça preta desce até a altura do tornozelo; a camisa branca sobe a fim de evidenciar as formas sinuosas da cintura e a cueca é cavada quase que totalmente na bunda, evidenciando o estereótipo da mulher brasileira – e o objeto de desejo dos estrangeiros está pronto. De costas para o público, Lourenço executa os movimentos, acompanhado pela narração em off do próprio escritor, Marcelino Freire. A imagem dessa cena assemelha-se a de um zoológico, um zoológico humano: a personagem, emoldurada por um corte quadrado no cenário (a sua jaula), exibe suas qualidade físicas, atraindo a atenção e o interesse do público espectador.
E se a presença negra foi determinante para a alegria do povo brasileiro, o espetáculo não poderia deixar de citar essa peculiaridade. A narrativa que pontua um dos momentos de riso da peça é “Nossa rainha”, numa alusão menos velada à Xuxa (antiga namorada de Pelé), a rainha dos baixinhos. O texto discursa sobre uma mulher que se revolta com a insistência da filha de uma vizinha em querer ser Xuxa: “Mãe, eu quero ser Xuxa. Mas minha filha. Eu quero ser Xuxa. A menina não tem nem nove anos, fica tagarelando com as bonecas. Com as pedras do Morro. Eu quero ser Xuxa. Mas minha filha.” O ator vivencia uma típica fofoqueira de bairro, descrente da possibilidade de a menina ser uma artista e, por extensão, ter uma vida menos estigmatizada: “Xuxa, Xuxa, Xuxa. Pelo amor de Deus! Faz essa menina calar a boca. Diz pra ela pensar em outra coisa, sonhar com os pés no chão.” Implicitamente, o narrador-personagem também tem problemas, contudo, direciona para o outro as suas preocupações, numa tentativa de esquecer as suas dificuldades. Percebemos o preconceito do negro com o negro, que transfere para o outro o destino dos seus: ser traficante, ladrão, prostituta etc. Partindo dessa leitura, assinalamos que o caminho dessas personagens já está traçado, não havendo quaisquer possibilidades de quebra de paradigma. Contudo, a narrativa a seguir “Negro de estimação”, que empresta seu nome ao trabalho de Lourenço, revela o olhar do negro embranquecido. A construção da imagem desse negro é feita por um travesti, vangloriado pelo fato de ter um homem que “não trabalha. Não precisa mais se sujar de borracha” e “não fede a graxa. Meu homem agora dirige. Quando não pode, tem quem faça.” Percebemos um traço de não-aceitação por parte desse negro, que nega sua origem social e, por sua vez, tenta esquecer os estigmas imputados aos negros brasileiros, passando a valorizar o estilo de vida da classe média alta que, em sua grande maioria, é branca.
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Se a leitura desse texto dá margem a um posicionamento generalizante, é porque a narrativa em questão sugere essa leitura: “Meu homem é uma outra pessoa. Não quer mais saber de samba [gênero musical criado pelos negros]. Nem de futebol [uma alusão a Garrincha e Pelé, jogadores negros que revolucionaram o futebol]. Não gosta de feijoada [prato típico brasileiro inventado por negros]. Meu homem não quer voltar para casa. Foge de lá porque tem medo de levar bala à toa.” O título e a tônica da narrativa “Negro de estimação” sugerem a imagem do negro na condição de propriedade, sobre a qual o dono tem plenos direitos: “Meu homem leva jeito para ser modelo. Mas eu não deixo. Coloco, assim, um cabresto. Para ele não me deixar tão cedo.” A temática abordada nessa passagem também pode ser encontrada em alguns anúncios publicitários que circulavam nos periódicos do Brasil oitocentista:
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“ESCRAVO FUGIDO
Fugio no dia 30 de Junho pp o escravo de nome Anacleto; creoulo, representando idade de 30 a 35 annos, com os seguintes signaes: altura mediana, côr fula, corpo delgado, rosto comprido e um pouco entortado, boca regular e falta de 2 ou 3 dentes da parte de cima, um signal de cada lado das maçans, do rosto, cabello cortado rente; a entrada da testa do lado esquerdo é maior do que a do lado direito, falla manso mostrando humildade. Sabe lêr e escrever e costuma inculcar-se forro e voluntário da pátria. Levou vestido paletot e calça de casimira preta com pouco uso e uma trouxa de roupa com calças e paletots brancos. Usa tambem de bigode e barba rapada. Quem o prender e trouxer em Campinas e pozer na Cadêa receberá de gratificação 100$000 do sr Joaquim Candido Thevenar (Gazeta de Campinas, 17 de julho de 1870)”.
“ANIMAL DESAPPARECIDO Na noite de domingo para segunda-feira, foi roubado em frente do Chico Pinto um animal com os seguintes signaes ruano, calçado dos quatro pés, tem no queixo um osso saliente para fora, andar de trote. O referido estava arreado com basto, novo, pellego imitação de carneiro, sobrexincha de cadarço verde. Quem der notícias certas ou entregar ao proprietário, será gratificado com 50$000. Antonio Victorino da Silva Jahú, 1º de agosto de 1897. (Correio do Jahu, 08 de agosto de 1897).”
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A semelhança entre os textos reside na descrição em detalhes das características e o oferecimento de gratificações pela captura, localização ou notícia dos desaparecidos. Se um escravo fugido e um cavalo roubado recebiam tratamentos tão parecidos na imprensa no final do século XIX, inferimos que a mentalidade escravocrata brasileira, racista e condenável, julgava permitido colocá-los no mesmo patamar. Para estender a discussão a respeito desse tema, considera-se a litografia “Um jantar brasileiro”, produzida por Jean Baptiste Debret (um dos principais representantes da Missão Artística Francesa), datada de 1827: A gravura chama atenção pela maneira que a branca oferece comida à criança negra e pelo alinhamento da outra criança, sentada no chão, aos pés da sinhá e do sinhozinho. A condição de ambas as crianças lembra a disposição dos animais de estimação, que sentam próximo aos donos a fim de receber um afago ou, do mesmo modo que na imagem, um pedaço de comida. A partir desse pressuposto, reiteramos a analogia entre escravos e animais, que, dispostos no mesmo patamar, eram vistos como propriedade/ferramenta de trabalho. O modo como as crianças estão comendo nos remetem ao poema O Bicho, de Manuel Bandeira: “Vi ontem um bicho Na imundície do pátio Catando comida entre os detritos. Quando achava alguma coisa, Não examinava nem cheirava: Engolia com voracidade. O bicho não era um cão, Não era um gato, Não era um rato. O bicho, meu Deus, era um homem.” Outra personagem da gravura que chama a nossa atenção é o escravo que está em pé, no lado direito, próximo ao sinhozinho. A expressão facial do negro, que esboça um leve sorriso, revela a sua naturalidade ao assistir à situação abjeta das crianças, reforçando o tom “afetuoso” com que a patroa presta assistência à criança.
Ao mesmo tempo, percebemos nessa narrativa de Marcelino um traço recíproco de escravização entre o narrador e o negro descrito. Mesmo imprimindo um tom de proprietário ao seu discurso, o narrador também se sente propriedade desse negro embranquecido: “Meu homem me obedece e me respeita. Por incrível que pareça, mesmo quando me põe de quatro, me machuca, me prende à vara da cama. Quando me chicoteia. Meu homem diz que eu serei seu escravo a vida inteira.” O figurino utilizado por Lourenço para interpretar o narrador desse texto é um vestido curto de corte irregular, com mangas longas e excesso de tecido até a altura da cintura, que vai se desmanchando em uma minissaia, e saltos plataforma, reforçando o comportamento desengonçado da personagem. O tecido é caracterizado por correntes, indicando a simbologia dos grilhões e das algemas, vinculada à figura do escravo. De cor dourada, a vestimenta remete tanto ao luxo e à riqueza da classe a que essa personagem pertence quanto à deusa Oxum, rainha das águas doces, representada no Candomblé por colares de ouro e um espelho que carrega na mão. riqueza da classe a que essa personagem pertence quanto à deusa Oxum, rainha das águas doces, representada no Candomblé por colares de ouro e um espelho que carrega na mão. O tom grave da voz, imprimido pelo ator, sugere, de fato, a idéia de um travesti. No final dessa interpretação, Lourenço se despe e a maneira pela qual ele dispõe os calçados da personagem chama a atenção dos espectadores: um salto deitado, numa posição de 90º, e o outro colocado em posição normal sobre aquele, formando uma cruz. Essa disposição metaforiza a dupla situação do narrador, marcada por instantes de poder e subordinação ao seu negro. Vivenciadas todas as facetas do negro, o olhar de Lourenço agora se volta para a trajetória do trabalho por ele executado, marcado por peças de roupas, dispostas no palco durante o fim de cada interpretação das facetas de um mesmo negro: oferenda, preso, adolescente sem perspectiva de vida, vizinha fofoqueira, mulata gostosona, travesti.
O bailarino está despido, tendo apenas guias do Candomblé, azuis, numa referência direta a Iemanjá – entidade que rege o ator. O corpo dele se torna agora oferta à rainha do mar. Agradecido por mais um trabalho cumprido, Lourenço executa determinados movimentos provenientes dos rituais do Candomblé, como giros e batidas de braços, criados a partir da narrativa “Para Iemanjá”, em meio a um cenário incandescente e pacífico. E se a análise feita por esse artigo sugere uma situação inexorável, da qual o negro não poderá se desvencilhar, é porque ao longo dos 120 anos da abolição da escravatura o negro não deixou de ser visto como propriedade
e, por extensão, escravo da cor: neguinho, macaco, pretinho, escurinho... A discussão promovida pelas narrativas de Marcelino e, por conseguinte, pelo espetáculo de Lourenço refere-se às caricaturas que norteiam a imagística do negro na nossa sociedade, que foram e vem sendo criadas desde a colonização. Os trabalhos anteriormente mencionados não se propõem a tratar desse assunto exclusivamente a partir da condição vitimada do negro. Nem tampouco sugere uma leitura idealizada do negro – essa leitura deixemos para Castro Alves e os condoreiros. Mas, pelo que nos parece, a importância dessa raça para a formação do povo brasileiro, que de heróis do novo mundo passaram a ser negros de estimação.
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I
CONOGRAFIA DO NEGRO NOS SÉCULOS XIX E XX
A visibilidade do negro na arte brasileira - ou da arte feita sobre o Brasil por artistas estrangeiros - começou a acontecer ainda na época da colonização. No entanto, essa representação é, historicamente, ligada à situação desfavorável socialmente para o negro devido à escravidão, ou seja, eram os brancos que tinham a primazia da imagem relacionada aos africanos e dos afrodescendentes. A pintura, a gravura e a fotografia mostravam os negros em suas tarefas, seja a de cuidar da casa e das crianças, seja em momentos de trabalho na rua. Mesmo assim, especialmente a partir do século XIX, havia afrodescendentes que buscavam o protagonismo nas artes, especialmente na pintura. De temas essencialmente acadêmicos, com a naturezamorta, até retratos de negros, esses homens eram exceções que, ainda hoje, são pouco conhecidas.
A contribuição do negro como artista e não como retratado ainda é um tópico discutido até mesmo nos círculos artísticos e museológicos. Este legado foi trazido de forma mas incisiva ao público pelo museólogo e artista plástico E m a n o e l Araújo, uma das referências em cultura negra no Brasil, com a exposição Pintores Negros, realizada em 2008. O recorte da mostra trazia trabalhos de artistas que atuaram entre meados do século 19 e o início do século 20. Muitas vezes, esses artistas tveram aulas ou foram discípulos de alguns dos pintores brasileiros mais conhecidos do período, como Rodolfo Amoedo. Entre eles, estão Estêvão Silva (1845-1891), o primeiro pintor negro a se formar na Academia Imperial de Belas Artes e um dos melhores pintores brasileiros de naturezasmortas do século XIX, F i r m i n o
Monteiro (1855-1888), também formado pela Academia Imperial de Belas Artes e aluno de Victor Meirelles, e João Timóteo (1879-1932), irmão do também pintor Arthur Timóteo e que deixou cerca de 600 obras. Além de quadros, pintou também espaços como o Copacabana Palace e a sede do Fluminense, no Rio de Janeiro. Outra faceta importante dessa representação dos negros ao longos da história brasileira está no relato dos viajantes estrangeiros. Uma demonstração importante de como se davam as relações sociais nos momentos finais da colônia está na ilustração Um fazendeiro e sua esposa em viagem, presente no livro Viagens ao Nordeste do Brasil, do português de origem britânica Henry Koster, lançado em 1816. O lugar do homem branco e dos escravos na imagem resumia muito do que ainda acontece no país e o tema escravidão também era tema de suas crônicas.
Outro era o caso de pintores como Johann Moritz Rugendas e Jean-Baptiste Debret. Este último, vindo em nome da Missão Artística Francesa à América do Sul, passou quinze anos no país. Suas observações renderam a publicação Viagem pitoresca e histórica ao Brasil, cujo segundo tomo é dedicado à representação dos escravos negros. Por sua vez, Rugendas representou o negro brasileiro de forma descritiva e detalhista, se preocupando inclusive em mostrar de quais tribos africanas eram alguns dos escravos que encontrou. A fotografia também passu a dar uma nova dimensão à representação dos negros. Embora o franco-brasileiro Marc Ferrez, um dos mais importantes fotógrafos do século XIX em atividade no Brasil, tenha registrado en passant as atividades de alguns negros no Rio de Janeiro, sua terra natal, outros fotógrafos se dedicaram a produzir uma iconografia da população negra
brasileira. Foi o caso de Alberto Henschel (1827-1882), alemão que se estabeleceu no Recife em 1866 e, posteriormente, também abriu empresas em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. Era um exímio retratista e foi dessa forma que ele eternizou o rosto de muitos escravos e negros libertos das cidades onde atuou. Fez a série Tipos Negros, e nelas a população de origem africana era mostrada de uma forma mais variada, não apenas em momentos subalternos, como na foto da babá (sem nome) com o menino Eugen Keller. Já no século XX, o fotógrafo Pierre Verger (1902-1996) foi mais um estrangeiro a se debruçar sobre a herança negra presente no Brasil e sua relação tanto com as matrizes africanas quanto com outros espaços onde havia afrodescendentes, como o Caribe. Sua ligação com Salvador era muito forte - era lá onde ele tinha sua base no Brasil e a Fundação Pierre Verger está sediada lá -, mas ele também fotografou o xangô no Recife. O notável em Verger é sua visão empática do negro, mostrando-o
sem poses, em momentos do cotidiano ou em ocasiões especiais, sem necessariamente querer catalogá-lo ou estudálo.
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o c fi รก r g o t o F o i a s En
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arconi, de 39 anos, tem 21 deles dedicados às artes cênicas e vislumbrou trabalhar, por meio de suas memórias, pontos sensíveis da formação do povo brasileiro e de como o negro é visto no teatro, em peças como Os Negros, de Jean Genet, Arena Conta Zumbi, de Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal e Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes. Tudo isso a partir do uso do biodrama, ou seja, de vivências reais tomadas como material para dramaturgia. Para Marconi, que tem uma cor de pele mais clara, a sua designação como “moreno” é uma metáfora da falsa democracia racial no Brasil. Para os artistas que se reconhecem negros e trazem esse conceito como motor de sua atuação, o teatro e a dança têm uma potência que precisa ser direcionada para o reconhecimento da importância da cultura afrobrasileira, para o bem da própria sociedade.
Fotos de Ricardo Maciel
Os sons que Kleber ouviu ao longo da vida são parte integrante de sua formação como artista, em uma experiência auditiva na qual a música brasileira tem um lugar muito importante. Embora a música clássica e o pop internacional tenham passado por seus ouvidos, o protagonismo de sua percepção sonora é reservado às sonoridades nacionais.
SONORA KLEBER
LOURENÇO
A Revista Fundamento traz um pouco mais da visão de Kleber a respeito das referências presentes em sua trajetória, seja a nível pessoal, seja em suas experiências como ator, bailarino e diretor. Gêneros musicais com o samba e a Música Popular Brasileira estão presentes, assim como a admiração por cantoras contemporâneas pernambucanas.
SAMBA Uma das memórias mais vívidas da infância e adolescência de Kleber era a paixão que o avô nutria pelo samba, tanto por nomes como Agepê, que cantava sucessos como Deixa eu te amar, quanto pelo universo do samba-enredo carioca. Também foi daí que a propensão para a dança começou a tomar uma proporção maior na vida do artista. “Todo ano ele comprava discos de samba-enredo. Na infância, eu reuni os pirralhos da rua e montei uma escola de samba, com papel e papelão. Desde criança, eu assistia todos os anos os desfiles das escolas de samba e anotava as notas em um caderninho. Ninguém me ensinou a sambar. Via as pessoas se movimentando e aprendi”. PERNAMBUCO CONTEMPORÂNEO As cantoras pernambucanas Catarina Dee Jah, Alessandra Leão e Isaar são nomes admirados por Kleber. Ele considera as três capazes de transformar as diferentes linguagens musicais historicamente associadas a Pernambuco em referências devidamente misturadas a sonoridades contemporâneas. “Morando aqui no Recife, me deparei com esse movimento cultural pelo qual me apaixonei. Passei a ouvir a música produzida na cidade e em uma residência artística que fiz em Portugal, todos os experimentos eram conduzidos por meio dessa trilha sonora. É uma sonoridade que traz uma ambiência de um determinado local, mas que, ao mesmo tempo, é híbrida”. MÚSICA POPULAR BRASILEIRA O período no qual Kleber viveu em Belém do Pará também abriu uma nova possibilidade de ouvir sons brasileiros, mas por meio da MPB, a partir de medalhões como Caetano Veloso e Marisa Monte. “Descobri a
música brasileira nesse lugar do tropicalismo, da MPB clássica. Me chamava a atenção que essa música, diferente da que eu ouvia em casa, trazia um contexto poético com letras distantes das que meus pais ouviam. Era algo diferente da hereditariedade deles, do samba, do sertanejo, do forró, de onde eles vieram”. TRILHAS SONORAS DOS ESPETÁCULOS As trilhas sonoras de Negro de Estimação, Estar aqui ou ali e do espetáculo Auto do Salão do Automóvel, que Kleber dirigiu, foram compostas por Missionario José, nome artístico de José Guilherme Allen, músico, compositor, professor e produtor musical atualmente radicado em São Paulo. “Em determinado momento, meu deparei com ele, em um espetáculo dirigido por Marcondes Lima. Eu fazia a coreografia e ele fazia a trilha sonora. Fiquei apaixonado pelas ideias dele, a trilha ficou incrível e ele se tornou um parceiro musical. A trilha de Estar aqui ou ali é muito eletrônica, é uma música sintética. Pedi para ele trabalhar dessa forma”. SÃO PAULO Outra das bandas admiradas por Kleber, especialmente após ele ir morar em São Paulo, é o Bixiga 70, criado em 2010 e que traz em sua sonoridade uma influência do afrobeat, da música latina e do jazz. O nome vem do endereço do estúdio onde os integrantes ensaiavam em São Paulo, na Rua 13 de maio, 70, no bairro do Bixiga. “É um grupo que tem raízes, mas está ligado a muitas outras coisas, e consigo ler muita coisa ali dentro. A música negra é muito forte ali”, percebe Kleber. Entre as referências do grupo, estão o etíope Mulatu Astatke, o nigeriano Fela Kuti e brasileiros como Hermeto Pascoal, Moacir Santos e Baden Powell.
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RECEITA:
CUSCUZ
FA L E
a palavra “cuscuz” para um nordestino e descubra o quanto o povo da região é apegado a essa patrimônio gastronômico cozido no vapor. O prato, assim como a carne de sol, é uma chave para a identidade gustativa da região e é considerado uma iguaria nutritiva e saborosa. No entanto, este prato não é exclusivo do Nordeste, nem é produzido apenas com flocos de milho. Na verdade, a história do prato remonta a outro local, bem distante do Brasil: o Magreb, região do Norte da África que compreende países como a Argélia e o Marrocos. Lá, o couscous é feito com a sêmola ou farinha de cereais, principalmente o trigo, e, de lá, se espalhou para o restante do mundo árabe. Por lá, a massa tem bem mais ingredientes, como o grão-de-bico, e é marinada para incorporar os temperos. Os imigrantes da região e o intercâmbio com a cultura árabe se encarregaram de divulgar o prato em países da Europa como a França e Portugal. A colonização portuguesa, ao longo dos séculos, ajudou a popularizar o cuscuz, especialmente no interior brasileiro, onde era considerado comida de pobres e de bandeirantes, que precisavam de uma fonte de energia rápida e prática para suas longas viagens. No Sudeste, uma variação do prato é o cuscuz paulista, no qual também se colocam verduras e até ovos, em uma refeição praticamente completa, mas preferencialmente com farinha de milho. Entre as variações conhecidas no Brasil, estão os pratos feitos com farinha de arroz e de mandioca. A farinha escolhida é a base pela qual passa o gosto de cada um, já que até doce o cuscuz pode ser. No entanto, o que vale no Nordeste é mesmo uma mistura bem sertaneja, com leite e carne de sol. A revista Fundamento Pernambuco disponibiliza duas receitas de cuscuz, uma bem nordestina e o cuscuz paulista.
EXPERIMENTEM!
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CUSCUZ NORDESTINO Ingredientes 3 xícaras de flocos de milho 1 xícara de água 1 colher (de chá) de salsinha Modo de preparo Em um recipiente, adicione os flocos de milho, umedeça com água e acrescente sal. Deixe descansar por 5 minutos. Em seguida, coloque água na cuscuzeira até atingir a marca. Transfira os flocos de milho para a cuscuzeira e cozinhe por cerca de 10 minutos. Caso não haja cuscuzeira disponível, coloque água para ferver em uma panela e, em cima, coloque outra panela para cozinhar os flocos de milho a vapor. Sirva quente com manteiga, ovo frito, queijo de coalho, carne de sol ou carne de charque.
CUSCUZ PAULISTA Ingredientes 200g de caldo de galinha 300g de molho de tomate 1 pimentão vermelho 1 colher de molho de pimenta vermelha 2 xícaras de farinha de milho amarela ½ xícara de óleo de milho 200g de milho verde 400g de palmito 50g de azeitonas verdes 200g de sardinha 2 ovos cozidos 1 tomate em rodelas Salsinha a gosto Pimenta-do-reino a gosto Sal a gosto Modo de preparar Leve ao fogo uma panela com o caldo de galinha. Adicione o molho de tomate, o pimentão e molho de pimenta. Acrescente a farinha de milho, mexendo bem. Depois, adicione o óleo de milho. Coloque, em seguida, o milho, o palmito, as azeitonas e salsinha na mistura de farinha já cozida. Decore uma forma de pudim com a sardinha, os ovos e rodelas de tomate. Coloque a mistura na assadeira. Faça mais uma camada de sardinha, ovos e rodelas de tomate. Cubra com o restante da massa. Espere esfriar e retire da assadeira.
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................. Alessandra Leão
................. Paulo Bruscky
................. Isa do Amparo
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Gabriel Mascaro
Eduardo Ferreira
Kleber Lourenço
REVISTA
FUNDAMENTO
Uma revista que trata de temas relacionados à arte, moda e cultura de Pernambuco, tendo o olhar de alguns de seus artistas como fio condutor. Cada uma das seis edições da revista impressas e virtuais - tem um homenageado da área cultural, refletindo sobre sua carreira, legado, influências em sua produção ou interações com outros artistas. Entre as seções, estão entrevistas, reportagens, ensaios de moda e referências sensoriais, como indicações de som, imagem e elementos gastronômicos que fazem parte do universo de cada artista enfocado.
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EXPEDIENTE: Idealização: Cássio Bomfim Conselho Editorial: Isabelle Barros, Cássio Bomfim, Chia Beloto Coordenação: Rui Mendonça Edição: Rui Mendonça e Chia Beloto Assistente de Produção: Bia Rodrigues Reportagem: Isabelle Barros e Mariana Neponuceno Revisão: Isabelle Barros Assessoria de Imprensa: Isabelle Barros Capa, Diagramação e Desenho Gráfico: Chia Beloto e Zé Diniz Realização: Cabra Fulô Incentivo: Fundarpe/Funcultura
agradecimentos: Família Amparo, Celinha do Cariri, Betty e Jairo Arcoverde, Bruno Albertini,
INCENTIVO