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REVISTA FUNDAMENTO IZA DO AMPARO
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foto: Diego Di Niglio 4
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Iza do Amparo, tão conhecida por sua forte ligação com Olinda, na verdade é baiana, da cidade do Conde. Maria Luiza Mendes Lins nasceu em um ambiente no qual a mãe também tinha veia artística, mas não pôde viver plenamente sua condição. Foi na época da ditadura militar, quando entrou no curso de Arquitetura, que se aprofundou na arte, talento que sempre teve em si. Sua curiosidade e seu impulso de viver dela a trouxeram ao Recife, a reboque de amigos e de uma paixão. Deu à luz dois filhos que, a seu modo, seguiram as tendências artísticas da família – o pai de ambos, Humberto Magno, também é artista. Ainda em Salvador, nasceu Paulo, conhecido em Olinda e fora dela como Paulinho do Amparo. A filha, Catarina, é Catarina dee Jah, cantora e DJ que já pavimentou seu caminho próprio na música.
EDITORIAL
Na virada do fim dos anos 70 para o início dos anos 80, Iza chegou em Pernambuco, primeiro no bairro do Parnamirim e só depois em Olinda. Já tinha passado por momentos difíceis o suficiente na Bahia – em 1968, ela participou da 2ª Bienal da Bahia, um dos eventos mais importantes de artes plásticas no Brasil, fechada pela ditadura e com dez obras apreendidas por serem consideradas “subversivas”. No entanto, ela se enturmou logo na cidade e começou a consolidar sua arte. Iza é uma agregadora.
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A casa 179 da Rua do Amparo traz a arte em todos os cantos. Da calçada já é possível ver as obras que Iza pinta, seja em tecido, carimbos, adesivos ou em outros suportes, como telas. A casa está aberta para quem quiser entrar, conversar, conhecer os trabalhos que a artista-matriarca vende. Os filhos também se arriscam nas artes visuais, Catarina, de forma mais errática, mas Paulo se tornou conhecido por suas serigrafias. A história de Iza, portanto, se tornou inseparável da de sua família, que respira tanta arte. Neste número da Revista Fundamento, o leitor vai ter a oportunidade de conhecer um pouco mais dessa Olinda que circunda Iza: suas referências sonoras, alguns de seus amigos, parte de sua história e, ainda, vai ver a reprodução das fichas de romaneio do início de sua carreira, que puderam ser vistas em 2014, na mostra Fichário, realizada no Museu Murillo La Greca, no Recife. Era nelas que a ainda estudante de arquitetura Maria Luíza começava a experimentar a relação das cores e geometrismos. As composições pictóricas, feitas com hidrocor e tinta, guardam relação com seu trabalho de hoje e mostram como se dá o pensamento artístico da homenageada desta edição.
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OLHAR
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MAPA AFETIVO >>>
RUA DO AMPARO A RUA EM QUE CABE
UMA CIDADE
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Costurada por religião, arte e boemia, Rua do Amparo é síntese da Cidade Alta. Escolhida por vários artistas. Dona de casario que guarda séculos de história de Pernambuco. No Carnaval, os foliões aguardam ansiosos para o momento em que o bloco Eu Acho É Pouco caminha frevando sobre ela. A Rua do Amparo é um dos caminhos fundamentais para quem deseja desfrutar de um passeio bucólico por Olinda antiga. Basta dizer que o casario da casa de número 28 data do século XVI. O nome da rua surgiu por causa da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, construída em 1613 pela Irmandade de Nossa Senhora do Amparo dos Homens Pardos. A igreja, famosa pela presença da arte sacra barroca, chegou a ser incendiada, em 1631, durante a guerra contra os holandeses, mas foi reconstruída em 1644 e resiste até os dias de hoje.
A Rua do Amparo foi o ponto em Olinda eleito para residência fixa de vários artistas e suas obras. As mulheres fascinantes de Tereza Costa Rego estão lá. Os bonecos gigantes que povoam o Carnaval e nasceram das mãos de Sílvio Botelho também. Além deles, habitam a Rua do Amparo os universos dos artistas Sérgio Vilanova, Iza do Amparo e Betty Gatis, que também possuam uma ligação afetiva com essa rua de uso misto – tanto oferece suas calçadas para residentes quanto para clientes do comércio, que segue vivo por lá. A Oficina do Sabor, um dos restaurantes responsáveis por unir o paladar regional à contemporaneidade, possui endereço na Rua do Amparo. A Bodega do Véio, lugar fundamental para quem deseja compreender a vida boêmia da Cidade Alta também está situada lá, assim como a romântica Pousada do Amparo, cujos corredores levam ao Restaurante Beijupirá, próximo da Ladeira da Misericórdia e do Alto da Sé, de onde se pode ver Recife e Olinda. Os visitantes e moradores podem sentir a alma olindense em cada um dos paralelepípedos que dão graça a esse microcosmo de cidade.
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M O S T R A RECUPERA BIENAIS DOS ANOS DE CHUMBO
BIENAL DA BAHIA DE 2014 RELEMBROU EXPOSIÇÕES QUE FORAM REALIZADAS DURANTE OS ANOS DE 1966 E 1968, SOB O REGIME MILITAR
Idealizada pelos artistas Juarez Paraíso, Chico Liberato e Riolan, com o apoio do Governo do Estado da Bahia, a 1ª Bienal trazia a proposta de descentralizar a produção artística no Brasil, fortalecendo o diálogo do cenário do Nordeste com as outras regiões do país. A notícia do lançamento da 1ª Bienal da Bahia foi recebida com entusiasmo pela comunidade artística. Porém, o clima festivo não se repetiu na segunda edição, montada no Convento da Lapa, onde hoje é um campus da Universidade Católica. A mostra de 1968 apresentava ao público cerca de três mil trabalhos, porém o evento foi fechado dois dias após sua abertura e reaberto um mês depois, com dez obras a menos, consideradas de teor subversivo pelo Regime Militar. As peças confiscadas foram de artistas como Juarez Paraiso (que estava à frente da mostra), Lênio Braga, Claudio Tozzi, Siron Franco, Antonio Manoel e Farnese de Andrade. Em solidariedade aos colegas que sofreram censura, outros artistas optaram por também retirar suas obras. Expoente das artes visuais de Pernambuco, Iza do Amparo foi um dos nomes presentes na Bienal de 1968. Ela ainda residia na Bahia e era conhecida por Maria Izabel, já que adotou o Iza do Amparo depois que passou a morar em Olinda, em 1982. Para Marcelo Rezende, curador-chefe da Bienal de 2014, a ideia da Reencenação nasce de um princípio benjaminiano (em referência a Walter Benjamin): pesquisar a fim de entender potências do passado não realizadas, mas que podem se realizar em outro momento da história, o nosso presente. “Reencenar não é repetir ou imitar. Mas observar e propor, nesse ato, uma leitura crítica do presente pela via dos potencias não realizados do passado. Reencenamos, nesse caso, não as exposições das Bienais de 66 e 68 na Bahia, mas as lutas culturais ainda vivas”. Rezende considera que a recuperação dos acontecimentos das Bienais de 66 e 68, permite integrar de modo direto a narrativa da história da arte brasileira com um de seus momentos mais dramáticos, documentando essa memória e possibilitando que ela possa ser conhecida e estudada, já que houve um intervalo de 46 anos entre a segunda e a terceira edições da Bienal da Bahia.
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O paralelo entre arte e politica é necessário, afinal o potencial de criar dissensos é um dos mais valorosos componentes da Arte. A possibilidade de lançar novos olhares sobre o mundo e/ou de se insurgir contra o senso comum é o motivo mais simplista pelo qual regimes totalitários tentam manter sob domínio ou no exílio artistas e demais atores da Cultura. Um dos eventos que retomaram fatos obscurecidos pelos tempos de chumbo foi a mostra Reencenação, parte da programação da 3ª Bienal da Bahia. A mostra relembra a 1ª Bienal, de 1966, e resgata a Bienal de 1968, realizada no Convento da Lapa e vítima da intransigência da ditadura que perseguia a expressão artística no país. Dois dias depois da abertura da exposição, o Regime Militar destruiu e/ou confiscou obras expostas no Convento da Lapa durante a 2ª Bienal. Na época da realização das duas primeiras bienais, o país estava sob as rédeas do Marechal Humberto de Alencar Castello Branco e, em seguida, do Marechal Artur da Costa e Silva. As artes sofreram com o impacto dos atos institucionais impetrados pelo regime militar, que instituíam o fim do pluripartidarismo, extinguiam os direitos políticos dos opositores do governo e impediam manifestações de natureza política. Foi este contexto político-cultural que a Reencenação abordou, sendo montada, não por acaso, no Convento do Carmo. A construção histórica de Salvador recebeu a 1ª Bienal, de 1966, um marco da história da arte brasileira, que contou com a presença de artistas que ajudaram a construir a vanguarda das artes visuais brasileiras: Lygia Clark, Rubem Valentim, Rubens Gerchman e Hélio Oiticica.
BIENAL DA BAHIA
Cinquenta anos depois do Golpe Militar, documentários, debates e mostras recontaram ao país os anos difíceis vividos sob as duas décadas de ditadura. A reflexão trazida pelo campo da cultura se mostra oportuna: de acordo com o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap), o congresso eleito de 2014 (pelo voto direto e democrático, conquistado pelos cidadãos brasileiros há apenas 30 anos) é o mais conservador desde 1964. Houve aumento no número de parlamentares vinculados a setores conservadores da sociedade, como militares, ruralistas e representantes de igrejas evangélicas e queda do quantitativo de deputados que possuem relação com movimentos sociais.
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A BELEZA O BRILHO
DE CELINHA CRIADORA INCANSÁVEL, ELA SE INSPIRA NA MEMÓRIA AFETIVA QUE VAI DO SERTÃO AO LITORAL
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EM MENOS DE UM MINUTO DE CONVERSA, CELINHA DO CARIRI DESARMA QUALQUER INTERLOCUTOR, DEIXANDO QUALQUER PESSOA À VONTADE, RENDIDA À SUA SIMPATIA E GENEROSIDADE.CELINHA DEIXOU SUA CIDADE NATAL, O CRATO, PARA MORAR NO RECIFE EM 1975, COM 26 ANOS. FEZ HISTÓRIA NA CIDADE MISTURANDO AS CORES DAS FEIRAS LIVRES DO SERTÃO COM A LEVEZA DO LITORAL.
Recife fica a cerca de 600 km do Crato e do Juazeiro do Norte, cidades irmãs assim como a capital próxima de Olinda. Mas a proximidade com Pernambuco começa bem antes, através da fronteiriça Exu, também no Sertão do Cariri, que fica a menos de 50 km do Crato, com quem partilha o clima do semi-árido, a cultura e a política da região. Esse intercâmbio, afirma Celinha, fez com quem Recife fosse por muito tempo a cidade escolhida para os estudos, para compras, para encomendar enxoval de noiva, etc. Isso tornou a ligação do Crato, do Cariri bem mais intensa com o Recife do que com a capital do Ceará, Fortaleza,o que tornou a vinda para cá algo natural. “Somos vizinhos de porta, fazemos fronteira. O Crato está de um lado da Serra do Araripe e a cidade de Exú do outro. Temos ligações históricas com Pernambuco. Então, mudar para Recife foi uma consequência dessa identidade, dessa boa vizinhança, desse trânsito entre essas cidades. E aqui estou”, conta. A presença do Cariri no trabalho de Celinha é constante, é parte da sua inspiração e da sua marca. A memória afetiva dela apresenta uma vida sertaneja colorida, um caldeirão de referências em que se misturam as colchas de retalhos da feira, as bonecas de pano, as peças de barro, o verde da Serra do Araripe e o baião de dois com pequi, fruto espinhoso típico da região usado como tempero. “O Cariri é a porta-bandeira do meu trabalho, é minha estação primeira, é o meu céu, é o meu chão, onde está enterrado o meu umbigo, as raízes do meu DNA. E está presente no meu trabalho em prosa e verso: nas cores, nos sentimentos, nos sabores”.
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Mas o amor pelo Crato não impede que Celinha se deixa influenciar pela cultura das cidades que a receberam. O coração de Celinha é aberto, livre e acolhe as referências que Olinda e Recife fazem desaguar sobre sua criação. “Eu sou do Cariri. Mas é claro que eu também sou daqui, sou de Olinda, sou do Recife”. Afinal, foi essa a terra que ela escolheu para viver, onde teve um filho. “E foi aqui, a partir de Olinda, que meu trabalho floresceu, onde eu me firmei profissionalmente e lindamente. Olinda e Recife me dão régua, compasso, frevo e maracatu, generosamente”. Na trajetória bem-sucedida de Celinha, ela destaca desfiles memoráveis no Mercado da Ribeira, no MAC e no MAMAM. Além da criação de vários figurinos para o cinema, para músicos, bandas, bonecos gigantes. Celinha também contribuiu par a formação de vários profissionais, dando oficinas de figurino, cujo resultado pôde apresentar com os alunos em eventos como o Festival de Cinema de Triunfo. Avessa a tendências, Celinha defende que moda é arquitetura, é magia. Ela deixa claro que nem tudo que está na moda é bonito ou fica necessariamente bem em todos, indistintamente. ”O que deve prevalecer é o bom senso. O que está na moda é o que veste bem em cada um particularmente e não um padrão imposto a todos como se não existisse diferenças” pontua. Em oposição suave ao uso de tecidos sintéticos, Celinha propõe a maciez do algodão, o brilho e o caimento da seda pura e as texturas do linho e da cambraia. “Gosto dos crepes, dos devorês, e de outras coisitas mais”, diz. Celinha explica que os tecidos sintéticos não lhe agradam por causa do toque e da textura deles no corpo. Celinha se diz movida pela teimosia, pela vontade de fazer, de viver de moda. Ela se posiciona a favor da criação de peças únicas. “Vou contra a mesmice massificada que ocupa as paradas. O que me inspira a criar é a cachoeira de idéias que tem dentro da minha cabeça, é o gosto que eu tenho pelo belo. Adoro panos , gosto da textura deles, de brincar com as suas cores e suas estampas, gosto de fazer essa segunda pele que chamamos de roupa”. As peças criadas por Celinha podem ser adquiridas no ateliê que ela mantém em Boa Viagem. A área de criação de moda tem enfrentado tempos difíceis nos últimos anos. Várias lojas de tecidos fecharam, um processo que se desencadeia há alguns anos, gerando precariedade na oferta de material. Porém, para Celinha, os desafios maiores são outros. “Fazer moda no Recife esta cada vez mais difícil e mais complexo. Mas o que dificulta mesmo é a falta de incentivos concretos para a moda e de talentos de fato criativos. Se pode aprender moda na escola , técnica e tudo mais , agora talento e bom gosto é pessoal, nasce contigo”.
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Betty Gatis Betty Gatis e Jairo Arcoverde comentam a trajetória da carreira artística dos dois
Jairo arcoverde Dois nomes que estão presentes na Arte de Pernambuco desde os anos 60 e 70, Jairo Arcoverde e Betty Gatis construíram uma parceria criativa, desenvolvendo trabalhos em linguagens distintas. Jairo Arcoverde começou sua carreira nas Artes Plásticas na década de 60. Neste período, conheceu Betty Gatis, jovem que circulava entre os artistas do Recife e que possuía uma sensibilidade artística aguçada. Juntos, montaram ateliê, fábrica de cerâmica, participaram de salões e exposições e criaram cinco filhos. Eles já fixaram residência em Caruaru, no Recife, em Olinda e hoje moram no Janga, em uma casa agradável e ampla.
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Tudo o que construíram juntos veio do trabalho artístico, como gostam de frisar. Jairo começou a carreira na década de 60. “No começo eu estava procurando. Era um adolescente desajustado, me encontrei na pintura. Tinha amigos que estudavam arquitetura e conheci a revista francesa Graphos. Daí comecei a pintar, me encantei pela pintura abstrata de Miró, Paul Klee, Kandinsky. Antes desse contato, eu já fazia pinturas de sobrados, que eram abstratos, imaginados”. Jairo foi convidado para expor em um salão em Minas Gerais. Na época, alguém disse que os sobrados que Jairo fazia não eram adequados para um salão de arte. “Pintei um leão, que chamei de Santo Leão. Vicente do Rêgo Monteiro elogiou meu trabalho assim como os diretores da Escola de Belas Artes”, conta Jairo. A partir desse momento, ele continuou pesquisando. “Não assistia aula na escola, mas tinha um espaço lá em que eu
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pintava. Daí fui desenvolvendo. Quando voltei de Belo Horizonte, fui premiado por um dos quadros numa exposição estudantil, que aconteceu em uma galeria que ficava na Avenida Guararapes, perto do Rio Capibaribe, construída por Miguel Arraes quando ele foi prefeito do Recife. Descobri também que outro quadro meu havia sido vendido”. Na década de 70, Jairo e Betty começaram a namorar e poucos meses depois estavam casados. Betty era amiga de muitos artistas da cidade e foi assim que eles se conheceram. Os dois decidiram morar em Caruaru, na casa da mãe de Jairo. Na época, Betty estava estudando para prestar vestibular para o curso de Arquitetura. Tinha cerca de 22 anos. Autodidata assim como Jairo, quando Betty chegou a Caruaru e conheceu o Alto do Moura botou na cabeça que queria fazer cerâmica. Comecei colocando minhas peças para vender na Feira de Caruaru e também trazia para o Recife.
O casal pegou a estrada de volta para a capital fazendo todo o percurso de carona com outros viajantes. No retorno, alugaram um sobrado na Rua do Chacon e se tornaram vizinhos de Ariano Suassuna e de Maximiano Campos. A casa virou ponto de encontro de artistas músicos arquitetos. “Todo mundo ia pra lá”, relembra Jairo. “Um amigo de Jairo, Jether Peixoto, dava aulas de cerâmica para madames. Pedi para dar um curso junto com ele. Comecei a ensinar sem saber, mas também não parei mais”. Betty fazia a cerâmica no forno a lenha, mas a fumaça incomodava os vizinhos. “Já vendia bem e queria comprar um forno elétrico. Fomos atrás de financiamento mas não conseguimos. Disseram que se fosse para um carro seria mais fácil”. Já morando na Caxangá, eles receberam uma indenização por terem sido atingidos pela cheia de 1975. Com o dinheiro, Jairo e Betty compraram um terreno no Alto do Moura e pegaram novamente a rota da BR 232. No retorno a Caruaru, Betty começou a produzir muito e Jairo se afastou um pouco do universo de exposições, mas continuou vendendo bem seus quadros. Eles montaram uma fábrica no Alto do Moura e construíram uma casa. O trabalho de Betty caiu nas graças da arquiteta Janete Costa,
que já a conhecia desde os tempos da Rua do Chacon. Janete incluiu as peças de Betty em seus projetos, o que lhe rendeu projeção nacional. “Até novelas da Globo tinham minhas peças. Cheguei também a exportar”, conta Betty. Aos poucos, alguns dos cinco filhos do casal demonstraram interesse em deixar o Agreste para viver no Litoral. “Joana veio primeiro, depois Marisa. Depois, foram os outros. Ficamos sozinhos em Caruaru”, conta Betty. Tempos depois, ela e Jairo optaram por morar em Olinda. Este momento foi o marco também para que todos os filhos do casal se envolvessem com arte. Hoje, Jairo e Betty moram no Janga, onde seguem desenvolvendo seus trabalhos. No momento, Betty está catalogando o acervo de Jairo, que será representado pela curadora Bete Araruna dentro e fora de Pernambuco e do Brasil. A ideia é ampliar a circulação do trabalho de Jairo. “O mercado da Arte no Recife não está como antes. Quem mais tem investido são as empresas mesmo que colecionadores se mantenham ativos”, comenta Betty. Recentemente, Jairo produziu paineis para o Sheraton da Reserva do Paiva. “Pinto pelo prazer da arte pela arte”, afima Jairo. “Eu produzo pelo prazer de fazer”, diz Betty.
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>>>FICHAS Na década de 70, na Bahia, Iza produziu uma coleção de fichas de romaneio quando trabalhava como arte-finalista em projetos editorais (função hoje conhecida como designer gráfico). Na época , não havia editoração digital, o processo era artesanal e a função exigia acuidade técnica de desenho. Maria Luiza fazia preenchimento de mapas e tabelas em publicações técnicas de geografia e estatística, e utilizava as fichas para desenvolver estudos de composição gráfica e paleta de cores. A apropriação e intervenção em objetos banais era uma busca dos artistas da época,no momento em que tentavam produzir uma arte mais relacionada com o cotidiano.As composições das fichas foram desdobradas e aprimoradas em obras produzidas ao longo dos ultimos 30 anos.Alguns quadros apresentados foram pintados várias vezes. Há na artista uma permanente atitude de mudança. Uma inquietação resolvida em fazer, refazer, cortar, carimbar, costurar, tecer, pintar, repintar. Iza é tão transparente que toda sua personalidade transparece na sua pintura. Luz decomposta em multicolores, refletida em espelhos em efeito caleidoscópio. Importante também tomar consciencia de que “Iza é daquelas pessoas que acredita em gente, acredita em bicho, em planta, em flor, em folha, em deuses e em santos”. (descrição de Raul Lody) 45
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PINTOR, ESCULTOR, ESCRITOR E ILUSTRADOR, MONTEZ MAGNO INICIOU SUA TRAJETÓRIA ARTÍSTICA EM 1954. CAMALEÔNICO E COM UM SENSO ARTÍSTICO MUITO PRÓPRIO, ELE AJUDOU IZA A SE AMBIENTAR EM OLINDA NOS PRIMEIROS TEMPOS DE SUA CHEGADA DEFINITIVA A PERNAMBUCO. A ARTISTA É AMIGA DELE ATÉ HOJE. O ARTISTA TEM, EM SEU ACERVO PESSOAL, APROXIMADAMENTE 1500 OBRAS, ENTRE DESENHOS, PINTURAS, GRAVURAS, XEROARTE, ESCULTURAS, OBJETOS, LIVROS DE ARTISTA, PARTITURAS DE MÚSICA ALEATÓRIA, FOTOMONTAGENS, MAQUETES, PROJETOS DE ARTE AMBIENTAL E INSTALAÇÕES, REGISTROS DE PERFORMANCES, ALÉM DE SUA PRODUÇÃO POÉTICA, COM 10 LIVROS EDITADOS. O PRÓPRIO MONTEZ CEDEU À REVISTA FUNDAMENTO A PUBLICAÇÃO DO SEGUINTE POEMA, PUBLICADO NO LIVRO OVO, ORGANIZADO PELA CURADORA PERNAMBUCANA CLARISSA DINIZ E PUBLICADO PELA EDITORA PAÉS.
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TUDO O QUE SE VÊ É TUDO E NÃO É NADA HÁ UM MOVIMENTO INTERNO QUE NÃO VEMOS ALHEIO E SUPERIOR A TUDO QUE SABEMOS EXISTIR AO NOSSO REDOR, QUE NOS ESPANTA: NÃO SEI BEM O QUE ELE É MAS DESCONFIO DE QUE NO INTERIOR DO SER, NO SEU ALTAR SAGRADO, ESTÁ UM MOTOR QUE É A MÁQUINA DO MUNDO, QUE SABE SEM SABER E MESMO SEM CIÊNCIA PERCEBE QUE É LUZ, QUE É FOGO INTENSO SEM O QUAL O ENTENDIMENTO DA EXISTÊNCIA E DAS COISAS MAIS SIMPLES QUE A VIDA FORJA SÃO DISFARCES SUTIS E ENGANADORES COMO AS MALHAS DE VIDRO COBRINDO O RAREFEITO AR DA METRÓPOLE CHEIA DE PIRÂMIDES. TUDO ESTÁ NO OLHAR SERENO DE QUEM VÊ MAS SE O OLHO NÃO TEM DENTRO DA RETINA UM FACHO DE LUZ QUE O INCENDEIE NADA SERÁ VISTO SENÃO FORMAS CORRIQUEIRAS, OBJETOS QUE SE MOVEM OU NÃO À NOSSA VOLTA, UMA SÉRIE DE EVIDÊNCIAS COSTUMEIRAS. MAS QUEM ENTRAR NO INTERIOR DAS COISAS PERCEBERÁ QUE OS ÁTOMOS ESTÃO SEMPRE SE ABRINDO, QUE A ALMA DE TUDO É TAMBÉM MATÉRIA VIVA, QUE O ESPÍRITO SEM FORMA É FORÇA DISFARÇADA, TUDO O QUE SE VÊ É TUDO E NÃO É NADA. MONTEZ MAGNO 17 DE FEVEREIRO DE 2002.
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ENSAIO
UMA CABEÇA QUE ESPREITA POR UMA PEQUENA ABERTURA NA BRAGUILHA DA CALÇA DE UM BONECO DO CARNAVAL DE OLINDA, NÃO PODIA DEIXAR INDIFERENTE IZA DO AMPARO. APROVEITANDO OS VÁRIOS CARREGADORES DE BONECOS QUE DURANTE O CARNAVAL PASSAM POR SUA RUA, IZA DESENVOLVEU ESTE ENSAIO FOTOGRÁFICO . (CARREGADORES DE BONECOS EM DESTAQUE) 58
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A poucas quadras da casa-ateliê de Iza do Amparo, está a casa do músico e agora cineasta Alceu Valença. O morador ilustre do Sítio Histórico de Olinda tem sua casa como atração da cidade, especialmente no Carnaval, quando ela se torna um ponto de referência para os foliões que gostam de subir e descer as ladeiras da Cidade Patrimônio. A Revista Fundamento convidou Paulo Rafael, guitarrista e produtor dos discos de Alceu desde os anos 70, para selecionar cinco discos importantes da carreira do músico, que se tornou um dos maiores divulgadores de Olinda e segundo a própria Iza, trilha sonora da vida na cidade.
“Foi o primeiro disco de estúdio de Alceu no qual toquei e comecei a participar mais ativamente. Como eu já morava no Rio de Janeiro fiquei na cidade para mixar o álbum. É o primeiro disco que tem a linguagem da cultura e da música nordestina unida à força e atitude do rock. Quase todas as músicas têm essa característica, mesmo as acústicas. Não estávamos copiando nenhuma linguagem e isso foi passado de geração em geração. Foi gravado com todas as pessoas cantando juntas”.
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“Como o mercado brasileiro estava muito esgotado, eu e Alceu fomos para Paris. Pensamos em um show acústico, com um violão e uma viola de 12 cordas. Na capital francesa, conhecemos um percussionista paraibano chamado Fernando Falcão, que sabia muito de percussão brasileira e árabe. Viramos um trio e fizemos um trabalho muito avançado para a época. Uma década depois é que viam mais formações semelhantes à nossa durante a temporada em Paris. No entanto, Saudade de Pernambuco continua sendo um álbum muito pouco conhecido. Só saiu quase 20 anos depois de gravado”.
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“Eu estava quase como produtor do álbum e nós já tínhamos a experiência de Espelho Cristalino, mais o tempo que passamos na França. É um disco que cristaliza e solidifica o que veio antes. Já havia nele a mistura do maracatu com o rock. Foi um trabalho com o qual Alceu estourou e, além de tudo, marcava uma sonoridade nova, um jeito de se tocar baixo, guitarra, bateria. Era um momento muito verdadeiro”.
“Foi pré-produzido na minha casa em Itamaracá e produzido por mim junto com Marco Mazzola. Foi gravado na Holanda e fecha o ciclo desses discos com atitude rock. Foi um álbum extremamente bem gravado, com uma sonoridade internacional, mas com um quê brasileiro. Tínhamos total liberdade e demos um pulo técnico muito grande. Não foi um disco muito vendido, mas tem músicas como Solidão, uma toada blues, e tem Dia Branco”.
“Sou o produtor desse álbum, que, a princípio, só teria frevos. Todo o repertório desse gênero gravado por Alceu Valença estava no projeto Asas da América e todas as músicas dessa fase foram sucesso. Por outro lado, não tínhamos um disco que reunia tudo, preservando os arranjos originais do Maestro Duda ou o modo de tocar do Maestro Spok, líder da Spok Frevo Orquestra. Colocamos ciranda, maracatu frevo-de-bloco, quisemos fazer um pacote só com a música pernambucana. A maior parte das gravações aconteceu entre 2000 e 2001, mas só em 2014, mixamos e masterizamos esse material. É uma obra que atravessou o tempo”.
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RECEITA
BOLO SOUZA LEÃO Iza desliza suas pinceladas como a colher de pau na bacia a amalgamar a massa de mandioca e todo o latifúndio transposto para a trama esticada. Manteiga da boa em fartas colheradas, muitas gemas redondamente amarelas, como se várias erupções solares se liquefizessem na mistura. Açúcar cheio de memórias, mas só o fogo do sol para torná-lo caramelo, quebra-queixo e no ponto. Os desejos obtusos das suas bandeiras coloridas e febris, e os barcos com seus pescadores esperando uma fatia desse petardo untuoso e macio. A supremacia do engenho Souza Leão e seu manjar idiossincrático, aristocrático e popularizado em suas versões fast fashion food. Nos tabuleiros de feira a bancas de mercados públicos ou de lanches, com menos ovos e margarina, mas nunca sem o seu alicerce pujante e alimento basilar dessa nação tupi, a massa de mandioca . Iza alimenta a vista e a alma, seus quintais fartos de sutilezas tropicais, seus rios e mares repletos, não precisem de nenhuma discussão. Diálogo sim. Como toda grande obra, seja gastronômica, culinária ou pictórica. Aceite uma fatia do bolo de Souza Leão, uma boa xícara de café e a contemple. O Bolo Souza Leão é considerado um dos mais antigos da extensa lista de doces brasileiros, além de ter o título de Patrimônio Cultural e Imaterial do estado de Pernambuco outorgado pela Lei nº 357, de 2007. *Texto do chef Leandro Ricardo
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INGREDIENTES 1/2 kg de açúcar 1 xícara (chá) de água fria 1 xícara (chá) de manteiga 1 colher (café) de sal 1/2 kg de massa de mandioca (puba, encontrada nas casas de produtos nordestinos) 8 gemas 1 e 1/2 xícara (chá) de leite de coco 2 paus de canela 1 colher (café) de cravos-da-índia 1 colher (café) de sementes de erva-doce
MODO DE PREPARO Em uma panela, ponha o açúcar e a água e leve ao fogo alto, sem parar de mexer, até o açúcar se dissolver e a calda começar a ferver. Pare de mexer e deixe a calda ficar em ponto de fio fino. Retire do fogo, junte a manteiga e o sal, misture bem e deixe esfriar completamente. Em uma tigela, ponha a massa de mandioca e acrescente as gemas, uma a uma, alternadas com o leite de coco, amassando bem. Adicione a calda fria e mexa. Coe por três vezes em uma peneira fina e acrescente a canela, o cravo e as sementes de erva-doce. Despeje a massa obtida em uma fôrma untada e leve ao forno médio preaquecido e asse até ficar dourada. Tire do forno e deixe amornar. Desenforme e sirva frio.
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ISA DOS CAJUS Ainda menino, a boca excitada pelo tanino dos cajus do Monte, a via passar como uma nesga da lua em noite pronunciada. Descia o Beco de Baúde, voo terreno, molhava a fronte na bica e subia até o terreno ao lado da casa de Branca Dias. Então, escorregava, flutuando pelas dunas alvíssimas, até o Poço das Pedras dos Milagres. De lá, trazia água que ninguém jamais usou beber. Dizem que Isa chegou com as obras da primeira doca de Olinda. Controlava o que as águas traziam para a porta do Bonsucesso. Molhada, veio subindo com seu andar miúdo e ligeiro, as costas curvadas de quem protege o mundo, os olhos atiçados, até encontrar a rua que ajudou a batizar: Amparo. Ali, Isa criou Paulinho, concebeu Catarina – a menina do primeiro beijo. Ao mundo, Isa deu a primeira rua chamada Amparo. Na Rua do Amparo, Isa inventou os cajus. Aquarelados como se mal disfarçassem o mistério, os cajus desenhados por Isa se transformaram na primeira fruta silenciosamente bissexual a copular e cobrir os futuros quintas de Olinda. Não que não existissem antes. Mas com Isa do Amparo, os cajueiros ganharam um jeito de estar no mundo. Adotaram o Método. “(...) Suas flores copularão displicentemente de setembro a dezembro. Ainda que hermafroditas, as flores brancas, pequenas, serão predominantemente masculinas. Serão as de maior recato. A receptividade dos pequenos e grandes lábios terá início cerca de 24 horas e se estenderá por até 48 horas depois da abertura da flor(...)”. Com Isa do Amparo, o cajueiro despertou da pedra. Desprezou a geometria. Livre pelas mãos da pintora, adquiriu a virtude de certas pessoas. Dono de folhas e galhos promiscuídos de tal forma, jamais nos será possível definir se estamos diante de uma ou várias plantas. Autor de Diário das Frutas e Nordeste, identidade Comestível, Bruno Albertim é jornalista e antropólogo
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................. Alessandra Leão
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................. Paulo Bruscky
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Gabriel Mascaro
REVISTA
Eduardo Ferreira
FUNDAMENTO
Uma revista que trata de temas relacionados à arte, moda e cultura de Pernambuco, tendo o olhar de alguns de seus artistas como fio condutor. Cada uma das seis edições da revista impressas e virtuais - tem um homenageado da área cultural, refletindo sobre sua carreira, legado, influências em sua produção ou interações com outros artistas. Entre as seções, estão entrevistas, reportagens, ensaios de moda e referências sensoriais, como indicações de som, imagem e elementos gastronômicos que fazem parte do universo de cada artista enfocado.
https://issuu.com/kabrafulo cabrafulo@gmail.com
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................. Isa do Amparo
................. Kleber Lourenço
EXPEDIENTE: Idealização: Cássio Bomfim Conselho Editorial: Isabelle Barros, Cássio Bomfim, Chia Beloto Coordenação: Rui Mendonça Edição: Rui Mendonça e Chia Beloto Assistente de Produção: Bia Rodrigues Reportagem: Isabelle Barros e Mariana Neponuceno Revisão: Isabelle Barros Assessoria de Imprensa: Isabelle Barros Capa, Diagramação e Desenho Gráfico: Chia Beloto e Zé Diniz Realização: Cabra Fulô Incentivo: Fundarpe/Funcultura
agradecimentos: Família Amparo, Celinha do Cariri, Betty e Jairo Arcoverde, Bruno Albertini,
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INCENTIVO
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