REVISTA FUNDAMENTO GABRIEL MASCARO
EditOrial
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abriel Mascaro começou sua trajetória no audiovisual como aluno de Rádio e TV da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), no início dos anos 2000. Na instituição, conheceu amigos com quem montaria uma produtora chamada de Símio Filmes e acompanhou, no olho do furacão, a movimentação do cinema pernambucano pós-retomada. Aos poucos, sua produção entrou em um fluxo de reconhecimento internacional que culminou em seu longa-metragem de ficção mais recente, Boi neon, de 2015. A produção recebeu o prêmio especial da Mostra Horizontes do Festival de Veneza, para onde o mundo do cinema inteiro olha a cada edição, no mês de agosto. Aos 32 anos, a trajetória de Gabriel já acumula conquistas que impressionam mesmo artistas com mais tempo de carreira. Além de Boi Neon, Ventos de agosto (2014), sua primeira ficção, foi exibida no Festival de Locarno, na Suíça, um dos mais importantes do mundo. De seu primeiro curta-metragem, O rastro e a cor (2004), até aqui, Gabriel também se interessou em deixar as definições sobre seu trabalho um pouco mais frouxas: o audiovisual no qual ele acredita traz a experimentação e a dissolução de fronteiras como motes. Prova disso é o quanto as suas ideias se tornam aceitas também por instituições ligadas às artes visuais. A Bienal de São Paulo, em 2014, trouxe um exemplo claro desse cruzamento, ao exibir o curtametragem Não é sobre sapatos, no qual a vigilância da polícia sobre os cidadãos toma um contorno muito particular.
A partir de 2010, Gabriel deixou de fazer parte da Símio Filmes para fundar a produtora Desvia, com Rachel Ellis, e sedimentar sua escolha por pesquisas narrativas experimentais. A moda, matriz da Revista Fundamento Pernambuco, também transparece na entrevista com o cineasta como seu objeto de curiosidade e interesse. Não à toa, as potências e contradições do segmento tangenciam Boi neon, que traz um personagem masculino, vaqueiro, com o sonho de ser estilista. O figurinista Beto Normal, que trabalhou com Gabriel no set de Cinema, aspirinas e urubus (2005), também ilumina a relação complexa entre cinema e moda por meio do figurino. Para falar um pouco mais sobre o alcance do trabalho do cineasta, construímos a seção Mapa, com uma relação de prêmios e festivais mais importantes onde os filmes dele foram exibidos. Uma reflexão sobre o som direto – elemento importante em Ventos de Agosto, também tem vez neste número. A edição conta, ainda, com um texto de recapitulação do cinema pernambucano pós-retomada, para contextualizar o momento no qual Gabriel vive e trabalha.
ENTREVISTA....................07 MAPAS AFETIVOS................23 BETO NORMAL...................37 PANORAMA DO CINEMA PERNAMBUCANO..................44 FIGURINISTAS E ESTILISTAS NO CINEMA.....................57 SOM DIRETO NICOLAU DOMINGUES.............69
ÍndIcE
RECEITA.......................75
FILME |VENTOS DE AGOSTO
ENTREVISTA
GABRIEL MASCARO
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ineasta pernambucano de 33 anos, é um dos realizadores mais prolíficos e questionadores do audiovisual local. É muito difícil vê-lo sem um projeto engatilhado. Várias de suas obras colocam à baila as relações de poder construídas no Brasil e, ao mesmo tempo, colocam em primeiro plano suas escolhas como diretor, em detrimento de uma rigidez de formas e suportes. Entre os cineastas pernambucanos de sua geração, ele é o que mais passeia por outros formatos, começando pelo documentário, se aventurando por instalações, em um cruzamento de fronteiras com as artes visuais, e em seus dois últimos filmes, Ventos de Agosto e Boi Neon, experimentou trabalhar com ficção. Por sinal, o documentário e a ficção, para Gabriel, são gêneros não necessariamente separados, o que pode ser visto em suas obras restantes: KFZ-1348, de 2008, em parceria com Marcelo Pedroso, Um lugar ao sol (2008), As aventuras de Paulo Bruscky (2010), Avenida Brasília Teimosa (2010), A onda traz, o vento leva (2012), Doméstica (2012) e Ventos de agosto (2014), que ganhou dois prêmios no Festival de Locarno, na Suíça, um dos mais prestigiados do mundo.
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FILME |UM LUGAR AO SOL
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inquietação de Gabriel foi direcionada para o audiovisual desde a escolha pelo curso de Rádio e TV, na Universidade Federal de Pernambuco, onde estudou. Lá, conheceu um grupo de amigos, com os quais tocou, em meados dos anos 2000, a produtora Símio Filmes, da qual fez parte até 2010. Com pouco mais de 20 anos, participou de filmes emblemáticos desse novo ciclo do cinema pernambucano: Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes, no qual foi estagiário de direção, e Baixio das Bestas (2006), de Cláudio Assis, do qual foi assistente de direção. A noção de autoria das imagens também faz parte das investigações de Gabriel, a partir de seu trabalho em curtas como Doméstica, no qual deu uma câmera a jovens de classe média para que eles filmassem o cotidiano das empregadas domésticas de suas casas. A edição foi feita pelo diretor. Com reconhecimento internacional tanto no campo das artes visuais, com participação na Bienal de São Paulo, quanto no cinema, ao fazer parte de inúmeros festivais internacionais, Gabriel agora viu seu prestígio aumentar ainda mais com Boi Neon (2015), que enfoca o interior pernambucano por dois prismas muito particulares: o circuito das vaquejadas e a indústria da confecção. Para a Revista Fundamento Pernambuco, Gabriel traz sua visão a respeito da moda e de como as marcas, o figurino e o vestuário podem fazer parte da experiência humana.
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Você chega a pensar em moda no seu cotidiano, ou presta atenção no que está usando e no que as outras pessoas vestem?
autoria, uma linguagem, uma extensão da pele, dimensão que se aprofunda, um laboratório, aí sim eu começo a me interessar.
Sim. Lembro que minha mãe sempre costurou pra mim, então pelo fato de usar, desde pequeno, as roupas feitas por ela, tinha aquela memória afetiva muito forte desse processo de escolha. Ela comprava vários retalhos de tecidos. Cresci familiarizado com os termos “tactel”, “viscose”, “viscolycra”... Claro que ela provava as criações dela em mim desde que eu era muito pequeno. Parávamos de brincar para provar roupa e eu achava muito chato, porque minhas tias ficavam com os alfinetes me furando. Todo mundo ia brincar e eu tinha que estar lá. Mas, com o tempo, isso passou a ser uma coisa boa, a dar vontade de produzir, de me inserir um pouco nesse universo.
Você considera isso algum tipo de referência ligada a moda no seu trabalho, mesmo que seja algo transversal?
A partir desse processo de identificação, a moda se tornou uma escolha, em vez de uma simples assimilação? Sim, e tem outra coisa: nunca gostei muito de roupa de marca, ou com nomes de marca. Isso é uma coisa que eu nunca usei. Cresci sem ter as referências das grandes marcas, e cheguei ao ponto de procurar roupas sem grife nenhuma e nome nenhum. Sempre preferi ter essa relação de procura e pesquisa do pano, e acho que minha mãe tem um talento incrível. Ela tem 52 anos e disse: “vou me aposentar”. Eu respondi: “de jeito nenhum, você vai fazer moda!”. É engraçado observar isso depois de ver minha mãe durante todos esses anos como professora de Educação Física, de vêla nessa ralação corporal, e agora, observá-la fazer o que gosta. Quando se fala de marcas, você vê algum estilista que considera como um criador? Não. Quando eu era adolescente eu era da ordem de estabelecer a veste como uma extensão de “contrahegemonizar” um padrão de consumo maior. Essa percepção da produção da moda em um contexto mais da cultura e arte, que se confunde com a arte contemporânea, com instalação, com performance, passou a me interessar como um outro elemento de produção. Quando perceber uma trajetória, uma
No meu trabalho, lembro que participei de uma experiência muito bacana, que foi trabalhar no filme Cinema, Aspirinas e Urubus. Eu era estagiário de direção, e uma das minhas funções era procurar os figurantes que iam participar do filme em lugares bem longínquos, no meio do Sertão. A gente andava 10 quilômetros para achar uma pessoa que aceitasse esse trabalho de figuração. Eu acompanhava o figurinista do filme, Beto Normal, e, naquele momento, ele tinha a estratégia de trocar o figurino novo que ele havia feito para o filme por uma roupa velha desse sertanejo, e essa roupa usada seria a do personagem. Ele trocava o novo pelo velho, sim, mas era um novo customizado por ele, então isso era uma troca simbólica interessante. É complexo, é paradoxal, por que também era uma mudança de custo, de algo que era para um fim, elaborado, desenhado, mas que não agradou, não cumpriu uma lógica da estética. Ao mesmo tempo, foi importante para mim perceber o figurino como parte de um elemento vivo, de estar organicamente estabelecido dentro de uma relação de construção. Foi esse gesto de processo, enquanto estratégia para o figurino no cinema, que me interessou, me instigou. Me pareceu que a assinatura estava muito mais conectada com essa lógica processual. Na moda há muito a vaidade da assinatura, por exemplo, e o fato de a roupa que ele pensou não ter dado certo poderia tê-lo condenado no trabalho, mas passou longe disso. Isso veio, então, como uma solução, não é? Sim, veio como mudança de curso, mudança de rumo, tudo o que eu valorizo também como processo, que eu acho aberto para mudança. E, de alguma forma, a mudança de curso é parte da minha pesquisa de hoje. Muita coisa que eu faço é fruto de alguma solução para o que não funcionou.
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FILME | DOMÉSTICA
Com relação ao seu pensamento sobre a roupa que as pessoas usam, como isso vai refletir no seu trabalho? Fiz um curta, chamado A onda traz, o vento leva, no qual me relaciono com o figurino. Tínhamos uma equipe muito pequena, de quatro pessoas. Esse modelo foi usado por mim em outro longa, onde eu tive participação direta na arte e no figurino. Em A onda traz, o vento leva, há um personagem surdo, Rodrigo, que tinha uma roupa dele com luzes de led. Ele vai à boate e esta é a sua forma de sedução. Também comprei uma roupa também que tinha um sensor, um equalizer na roupa, e ele só começava a dançar a partir dessa experiência da visão dele com o som. Esse personagem passava a entender uma ideia de compasso a partir da visualização da frequência, da equalização da música no próprio corpo. Este é um filme muito sobre corpo e som. E, de alguma forma, é muito forte que questões positivas venham da roupa. As partes do filme que eu mais gosto são quando o figurino aparece e a galera vai à loucura. É um momento muito engraçado, porque nele há a língua de sinais. É um dos meus filmes com melhor desempenho dentro do circuito, e ele foi muito pequeno. Tive uma participação muito forte nessa área do figurino, e foi um prazer muito grande poder conceber, construir, um personagem dentro da experiência corporal da roupa. O personagem constrói o paradoxo entre o corpo e a sedução, onde a roupa está ali exalando a sedução do personagem. Você repetiu em outros filmes o procedimento de ir a comunidades e escolher figurino?
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No documentário Avenida Brasília Formosa, por exemplo, foi Thales Junqueira, mas não costumo estabelecer uma lógica hierárquica, de diretor de arte, de cena, figurinista, nos meus trabalhos. Em A onda traz, o vento leva,fui eu quem concebeu, e em Ventos de agosto fui escolher as roupas junto com a produtora. Como você vê esse processo de negação da hierarquia e das engrenagens do cinema em seus últimos trabalhos? Apesar da função hieraquicamente pré-estabelecida na ordem da relação de trabalho não estar lá, tem alguém pensando e executando funções. No caso do figurino, pode não ser o figurinista, mas alguém certamente vai pensar isso. Existe uma lógica muito subjetiva de como você interage com a experiência visual do outro e o próprio ato de se deixar afetar pelo outro é também um filtro, é uma estratégia de afirmação de uma experiência estética. E você tem algum filme que tenha te marcado quanto às escolhas do figurino? Não, mas eu tive uma experiência muito pessoal. A produção de cinema na Ásia tem me tocado, diante dos paradoxos tão contemporâneos que ele traz. Diante desse encanto, fui convidado para um festival em Bangkok, na Tailândia, e pude ver a experiência do figurino do budista, que interage no espaço urbano de forma muito nãosacralizada. É quase uma fantasia, um fetiche sacro. Em muitos casos por aqui, vemos filmes que tratam o figurino de forma muito estereotipada, como filmes que
falam do Evangelho. Aquela roupa estabelece uma caricatura muito incorrespondente. Ela caracteriza uma linha, e mostra com tintas fortes que aquela pessoa é evangélica. Ou seja, já se sabe tudo daquele personagem, ele não te coloca paradoxos além daquilo que a gente está vendo. Quando fui à Tailândia, peguei carona em um barco cheio de gente indo ao trabalho, e vi um monge fumando cigarro. Aquilo era quase uma cena e achei incrível ver como todo mundo tirava foto dele e queria sacralizar aquela experiência. A grosso modo, é como se eu tirasse uma foto de um evangélico na rua. Pregando? Pregando não, caminhando, indo para o trabalho, indo para a missa, tendo aquela experiência de andar com a Bíblia debaixo do braçov. Com essas cenas cotidianas, você percebe também a forma de lidar com as experiências ordinárias do mundo, e isso diz respeito também à forma com a qual você se relaciona politicamente com aquelas experiências. Eu via que, no cinema brasileiro, estereotipam demais a partir da roupa. Não se cria um paradoxo, algo que pode ser dissonante daquela experiência... Você é levado a pensar em uma única possibilidade? Isso, mas ali, na Tailândia, eu via que havia um caminho duplo e, ao mesmo tempo, há sim uma relação sacralizada, no caso da roupa do monge. Ninguém pode tocar na roupa dele. Para mim, foi muito forte, porque eu fiquei muito perto dele e minha vontade era de tocar.
E como isso passou a afetar tua visão de figurino?
promovida por Beto Normal. Ele ouviu os caminhos.
Mais do que figurinos clássicos que, de alguma forma, marcam a história do cinema como signos marcantes de uma experiência, o que me afeta mais são os processos, o ato de ler e ver formas diferentes de relacionar com experiências que levam para um outro caminho. Um caminho além de uma lógica que pode mensurar o impacto daquilo do começo ao fim. Por isso que eu falo da troca de roupa
É algo que está vivo, não é? Sim, que está vivo. Os exercícios e processos me tocam muito mais do que o resultado em si. Obviamente, o resultado é o que chega às pessoas quando se assiste a um filme meu, mas não penso muito nisso quando estou vendo o produto final. Gosto de ver quando o figurino está orgânico.
FILME | SONHO DE DERIVA
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FILME | VENTOS DE AGOSTO
MAPA AFETIVO
A OBRA DE GABRIEL MASCARO CHAMOU A ATENÇÃO DE VÁRIOS FESTIVAIS NACIONAIS E INTERNACIONAIS PELA VARIEDADE E DENSIDADE NA ABORDAGEM DE SEUS TEMAS. AS RELAÇÕES DE AFETO, TENSÃO E PODER VIVIDAS A PARTIR DE MOMENTOS APARENTEMENTE COTIDIANOS PERPASSAM TODO O TRABALHO DO ARTISTA. O RECONHECIMENTO DE SEU DISCURSO NÃO FICOU RESTRITO AOS FESTIVAIS DE CINEMA; ESPAÇOS DEDICADOS ÀS ARTES VISUAIS TAMBÉM ABRIRAM ESPAÇO PARA O OLHAR SINGULAR DE GABRIEL. NA SEÇÃO MAPA, A REVISTA FUNDAMENTO PERNAMBUCO PASSA EM REVISTA A OBRA DO CINEASTA, A PARTIR DOS LOCAIS POR ONDE ELA PASSOU E PRÊMIOS QUE ELA GANHOU, SEJA EM FESTIVAIS IMPORTANTES DE AUDIOVISUAL OU EM EXPOSIÇÕES E BIENAIS AO REDOR DO MUNDO.
KFZ-1348 (2008) O documentário de Gabriel, dirigido juntamente com Marcelo Pedroso, participou de vinte festivais no Brasil e no exterior e traz a jornada de um Fusca, desde o primeiro ao último dono. Em 1965, o veículo começava a rodar pelas mãos de um jovem engenheiro civil de São Paulo e passou por mais sete mãos até encontrar o caminho de um ferrovelho. O caminho percorrido pelos cineastas ao resgatar essa história deixa entrever as mudanças sociais pelas quais o Brasil passou ao longo de quatro décadas, tendo o carro como fio condutor. No ano de seu lançamento, KFZ1348 teve como maior vitória o Prêmio Especial do Júri da 32ª Mostra Internacional de São Paulo. SÃO PAULO
AS AVENTURAS DE PAULO BRUSCKY (2010) A interação de Gabriel com as artes visuais é explorada a fundo com As aventuras de Paulo Bruscky, que o cineasta faz em parceria com o artista visual pernambucano. Os dois se encontram na plataforma virtual Second Life e Paulo pede a Gabriel para fazer um registro de suas aventuras. Fora do mundo dito “real”, Bruscky consegue realizar ações que não seriam possíveis de outra forma. Por meio da exibição deste trabalho no Festival Videobrasil de 2011, Gabriel ganha um prêmio de residência artística no festival VIDEOFORMES, em Clermont-Ferrand, na França. FRANÇA
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NÃO É SOBRE SAPATOS (2014) “Em tempos de faces anônimas, o que fazer com os pés?”. É essa a pergunta que Gabriel faz na instalação Não é sobre sapatos, que fez parte da Bienal de São Paulo, maior evento de artes visuais da América Latina, em 2014. O artista se concentrou nas imagens que a polícia fez de manifestantes das Jornadas de Junho, em 2013. Embora eles trocassem de roupa ou escondessem o rosto, eles podiam ser reconhecidos pelos sapatos que usavam, pois essas peças de roupa raramente eram trocadas. O vídeo também foi exibido no Recife no 6º Continuum Festival, em 2016. RECIFE
UM LUGAR AO SOL (2009) O trabalho participou de 42 festivais de cinema no mundo inteiro e ganhou menção especial no Bafici Buenos Aires Independent Film Festival ao falar sobre o universo dos ricos brasileiros, a partir de entrevistas com moradores de cobertura em vários pontos do país. Eles foram encontrados a partir de um livro com 125 dessas pessoas, e nove aceitaram conceder entrevistas. O poder econômico e a desigualdade social no Brasil são abordados sobre um novo ponto de vista, a partir do desejo de distinção e da relação entre ricos e pobres. O filme, de 66 minutos, foi lançado em DVD. BUENOS AIRES
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DOMÉSTICA (2012) A relação muito brasileira de poder entre patrões e empregadas domésticas é colocada em evidência neste documentário, onde sete adolescentes registraram por uma semana o cotidiano de suas famílias com suas empregadas e entregaram o material bruto ao diretor. Essa visão externa potencializou o choque e o estranhamento em um contexto onde afeto e trabalho andam unidos de uma forma extremamente complexa. O filme estreou internacionalmente no 25º International Documentary Film Festival Amsterdam, concorreu na mostra competitiva. HOLANDA
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SONHO DE DERIVA E MEU TEMPO LIVRE (2013) Na residência artística realizada no Festival VIDEOFORMES, na França, Gabriel desenvolveu dois trabalhos, Sonho de deriva e Meu tempo livre. O primeiro é uma meditação sobre espaço, tempo e afeto, ao mostrar um casal dormindo em cima de um colchão que flutua em um rio, enquanto o curso de água leva os dois corpos e o nível da água sobe. Já o segundo é uma instalação com dimensões variadas na qual Gabriel mostra o funcionamento de um dispositivo da empresa Amazon chamado Amazon Mechanical Turks. Seus usuários ajudam a empresa a mapear hábitos e desejos de consumo a partir de respostas a questionários. O artista propõe a compra de tempo dos usuários, mediante a comprovação, via imagem de que eles efetivamente tiveram o tempo “livre”. Pelas regras da Amazon, é proibido revelar a identidade dos usuários e, ao burlar essa regra, Gabriel foi advertido pela empresa. FRANÇA
VENTOS DE AGOSTO (2014) O filme estreou e ganhou menção especial no 67º Festival de Locarno, um dos mais renomados do mundo. O longa de ficção também participou de mais de 50 festivais brasileiros e estrangeiros. No filme, uma garota chamada Shirley sai da cidade grande e volta ao interior para cuidar de sua avó e conhece Jeison, um rapaz que faz pesca submarina nas horas vagas. Em agosto, época de tempestades e maré alta, um pesquisador de ventos chega à vila onde Shirley mora, e faz a vida dela e de Jeison ter uma mudança crucial, ligada à memória e à perda. LOCARTO (SUIÇA)
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A ONDA TRAZ, O VENTO LEVA (2012) Além de participar de mais de 50 festivais ao redor do mundo, o filme ganhou três exibições em locais voltados à arte contemporânea na Espanha: Museu de Arte Contemporânea de Barcelona à Capella MACBA, La casa encendida e Museu de Arte Contemporânea de Vigo. O projeto foi proposto pela Artaids Espanha, que trata da discussão do HIV/AIDS pelo viés artístico. No filme, Rodrigo é um jovem surdo, que trabalha instalando sons em carros e cria sozinho a filha de quatro anos. Por mais que ele não possa ouvir, os sons estão sempre em sua vida, em uma percepção sensorial do mundo. ESPANHA
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Entrevista
Beto Normal
No distrito de Pão de Açúcar, em Taquaritinga do Norte, João Roberto Assis forjou sua maneira de ver o mundo, e ela passa por tecidos, linhas e cores. O estilista, figurinista e diretor, conhecido como BETO NORMAL, teve uma trajetória que sempre tangenciou o trabalho com moda, até que ele encontrasse nessa linguagem a sua forma de se comunicar pela arte.
Depois de ir morar em São Paulo, aos 10 anos, fazer parte de seu curso de jornalismo por lá e voltar a Pernambuco, sua carreira se consolidou ao unir moda e cinema com seus trabalhos no figurino de vários filmes pernambucanos. Antes disso, desenhou coleções e participou de feiras como o Mercado Mundo Mix e o Mercado Pop, que agitaram a moda, respectivamente, em São Paulo e no Recife. Hoje, a volta à sua raiz, o Agreste, se dá de forma física: com o Polo de Confecções do Agreste bem à porta de sua cidade natal, Beto alia seu trabalho no interior a projetos de cinema.
De que forma você busca referências para suas criações autorais em moda? O que é passível de te inspirar para criar roupas? Você está trabalhando em alguma nova coleção no momento? Desenvolvi uma coleção para a Refazenda, marca pernambucana que fez 25 anos em 2015. O convite veio do desejo da marca em comemorar a data convidando parceiros que ao longo desse tempo fizeram algum trabalho com ela. O tema que escolhi vem da arquitetura e é muito pernambucano e universal. O trabalho com pessoas que você sempre acompanha, ou amigos, como Marcelo Gomes, também é algo digno de nota em sua trajetória no cinema. Que peso você atribui a esse movimento, o de estar confortável em trabalhar com pessoas próximas? Isso ajuda na tua criação? Trabalhar com Marcelo é sempre muito prazeroso. Ele tem humor e inteligência
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combinados. Isso dá confiança para criar. Ele é exigente de forma que te impulsiona a somar aos filmes que realiza. Mas o processo é quase o mesmo. Dos diretores amigos e não amigos você tem que extrair do juízo deles o que não está no roteiro para ajudar na dramaturgia. É um desafio. Para você, existem princípios que o figurino para cinema deve seguir sempre ou cada trabalho tem suas características próprias e ajustadas a cada momento? Existem princípios, meios e fins. O princípio é o figurino se adequar à história que está sendo contada, sendo visível e, ao mesmo tempo, invisível a serviço da dramaturgia. Agora temos que ter meios para isso, dados pela produção do filme. Cada filme nos coloca numa sinuca, imposta pelo orçamento. E com a experiência você pode dizer “com essa grana tem como fazer o figurino que o filme exige”. Figurino é muito importante. Pode destruir um filme.
Você também chegou a produzir figurinos de bandas como a extinta Cordel do Fogo Encantado. Você percebe especificidades desse trabalho para o universo da música? São encontros maravilhosos e difíceis. O que faço é interpretar o momento criativo de uma banda com vários integrantes e sugerir na roupa essa ideia. A roupa é um lugar onde você habita. É um trabalho psicanalítico para além do estético. É maravilhoso quando você consegue essa iluminação de troca.
Você acalenta o desejo de voltar a dirigir ou a codirigir algum filme? Há algum projeto em andamento nesse sentido? Sim. Estou desenvolvendo um projeto de roteiro de um documentário. É um recorte do rio Capibaribe, que passa na minha aldeia. Vai discutir o rio atual como um não-lugar a partir de memórias.
Você continua tendo uma ligação umbilical como o Agreste, onde nasceu. Tem como você especificar de que forma sua rotina é dividida hoje, com essa ponte rodoviária que você estabeleceu? De que forma o contato com o Agreste impacta nas suas escolhas estéticas? O agreste é o não-lugar onde insisto em pertencer. Quando finalizar o documentário sobre o rio das minhas e das outras memórias irei entender melhor essa relação. Talvez nem precise mais de terapia.
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A passagem por São Paulo abrangeu uma época importante de sua formação como pessoa. De que forma essa experiência em uma metrópole como a capital paulista te impactou como ser humano e influenciou também suas escolhas artísticas? Foi muito impactante mesmo. Saí de um lugar com 300 habitantes, onde tudo mundo se conhecia, uma Dogville agrestina. A princípio foi difícil, embora estivesse com meus pais e irmãos. Tinha 10 anos, era o início da adolescência. Eu morria de saudade do rio Capibaribe, que passava atrás da minha casa, e dos meus amigos! Foi quando senti na pele o que era ser estrangeiro, ser nordestino. Na sala de aula tinha japonês, chileno, negro! Achava bizarro que não houvesse o entendimento de que éramos multiculturais e que meu sotaque fosse motivo de chacota. Odiava aquilo. Mas aprendi o que era alteridade, na porrada. Isso me enriqueceu. Isso me deu o entendimento sobre o que a intolerância tem de fascismo e a importância da minha origem. Você já teve uma multiplicidade de funções, tanto no cinema como fora dele. Em que momento a moda te fisgou? A moda, como eu a captei para me expressar, foi minha salvação. Sai de um jornal medíocre para não me tornar um jornalista medíocre. Por um bom tempo a moda me encantou, nos anos 90 e tantos. Havia naquele momento ventos soprando no Brasil e no Recife, e eles me assopraram também. Nasci no que hoje é o Pólo de Confecção do Agreste. Minha mãe comprava retalhos e transformava em roupas que chamávamos, na época, de sulanca. Fiquei impregnado daquilo, de presenciar mamãe colecionar tiras por cores e estampas e transformar em roupa. Então, quando me despedi do jornalismo, comecei a criar roupas. Hoje, estou partindo para a pesquisa da memória têxtil de Pernambuco. Este é meu novo olhar.
Em que circunstâncias você conheceu Gabriel Mascaro? Já havia alguma aproximação antes de vocês se encontrarem no set de Cinema, Aspirinas e Urubus? E você costuma acompanhar o trabalho dele desde então? R: Conheci Gabriel na pré-produção do Aspirina e, depois, nas filmagens. Foi uma experiência incrível para todos nós. Depois, o Gabriel começou a realizar seus próprios trabalhos. Nos encontramos no set do KFZ em Pão de Açúcar, onde tenho casa, quando ele entrevistava meu irmão mais velho, que tinha um fusca. Foi um reencontro maravilhoso. O trabalho do Gabriel é provocador e extremamente sensível. Gabriel comentou em entrevista que, no trabalho em Cinema, Aspirinas e Urubus, você chegou a trocar roupas novas por velhas, que tinham a história de seus donos e pareciam mais apropriadas para contar aquela trama. Quais foram os desafios encontrados por você para demarcar aquele universo específico por meio das roupas? Foi uma solução acertada. O figurino dos personagens principais foram todos criados e confeccionados. Mas o filme tinha uma figuração enorme e era complicado confeccionar tudo aquilo. Fizemos muitas roupas para essa figuração, mas achamos melhor e mais interessante para o filme trocá-las por roupas já usadas. Fizemos isso nas comunidades onde filmamos o Aspirina. Claro que isso foi feito obedecendo a estética do filme, à cor, ao tipo de tecido que remetesse àquele tempo, o da Segunda Guerra Mundial no Nordeste do Brasil. Foi um trabalho intenso de criação e escolhas. Minha grande escola de figurino foi o Aspirina pelas experimentações e acertos. Foi Inesquecível. Nos anos 90, você começou a criar várias coleções no Recife. Que lições você tirou daquela época com relação ao mercado de moda? As experimentações daquela época ainda encontram eco hoje em você? Moda é uma engrenagem muito louca de consumo. É criar e vender num espaço de tempo exíguo. Você precisa ter um sócio com muita grana para vender a imagem da marca ou produto e disputar com gigantes. Não crio mais coleções como naqueles anos. Abri outros horizontes no audiovisual, por exemplo. A moda, a meu modo, me ajuda hoje a caminhar para outros lugares.
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PANORAMA DO CINE
MA PERNAMBUCANO
PERNAMBUCO TEVE DE ESPERAR QUASE TRINTA ANOS PARA QUE O SURGIMENTO DAS SESSÕES DE CINEMA INSPIRASSE, DE FATO, UM CICLO DE PRODUÇÕES NO ESTADO. O PERÍODO CONHECIDO COMO O CICLO DO RECIFE, NOS ANOS 20, FOI FRUTO DE UM ESTÍMULO PARA QUE SE REALIZASSEM FILMES NO BRASIL, COM A INSTALAÇÃO DE MAIS SALAS DE EXIBIÇÃO E O SURGIMENTO DE REVISTAS DA ÁREA. NA MESMA ÉPOCA, HOUVE A CHEGADA DE DOIS ESTRANGEIROS, J. CAMBIÈRE E UGO FALANGOLA, QUE CHEGARAM AO RECIFE COM UMA MÁQUINA FILMADORA E FUNDARAM A PERNAMBUCO-FILMS. A FIRMA TINHA COMO OBJETIVO PRIMÁRIO CAPTAR IMAGENS DE FORMA MAIS DOCUMENTAL, COM IMAGENS QUE ERAM EXIBIDAS ANTES DA EXIBIÇÃO DOS FILMES, INCLUINDO CINEJORNAIS.
No entanto, assim como aconteceu nos primórdios do cinema propriamente dito, as imagens de tipo documental não se tornaram suficientes para mostrar a subjetividade de quem filmava. Começaram a surgir os filmes de enredo. A partir daí, foram homens e mulheres radicados em Pernambuco que tomaram a dianteira da produção. O primeiro ficcional em cartaz no Recife foi Retribuição, de Gentil Roiz, cuja estreia ocorreu em 1925. As estrelas eram a atriz Almery Steves e Barreto Júnior, com uma trama relacionada à busca por um tesouro. A recepção positiva fez com que várias produtoras cinematográficas fossem fundadas em Pernambuco na época, como a Aurora Films.A partir daí, surgiram películas como Aitaré da Praia (1925), Jurando vingar (1925), Herói do século vinte (1926); A filha do advogado (1927), Revezes (1927) e Destino das rosas (1929). Os temas regionais passaram a aparecer, ainda que dividindo espaço com enredos e caracterizações que buscavam emular os sucessos hollywoodianos da época. Em sua tese de doutorado, a pesquisadora Amanda Mansur levanta a reflexão de que o cinema local sempre se valeu dos afetos e das interações em amizades promovidas por grupos formados por jovens com ideias afins. Isso teria começado já no Ciclo do Recife, com nomes como Ary Severo, Edson Chagas, Gentil Roiz e Jota Soares tecendo relações de amizade e, eventualmente, de rivalidade. No entanto, após a chegada do cinema sonoro, o impulso para que o cinema local conseguisse se manter foi perdido. Os custos de produção e a tecnologia necessária para manter uma produção sonora se tornaram algo inacessível para os realizadores locais. A partir de 1931, o que se convencionou chamar de Ciclo do Recife arrefeceu e se transformou em iniciativas erráticas de produção, em um fluxo que só foi interrompido nos anos 70, com outro ciclo: o do Super 8. Na década de 40, um suspiro foi conseguido com O coelho sai (1942), de Newton Paiva e Firmo Neto, o primeiro filme falado do Nordeste. A câmera Super 8, que gravava o som sincronizado com a imagem, foi o grande vetor desse ciclo e ela também era fruto de avanços tecnológicos. Pequena e fácil de transportar, a máquina criada pela Kodak
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nos anos 60 se tornou a favorita de muitas famílias para registros caseiros de intimidade. O equipamento também se tornou uma opção para quem tinha a vontade de experimentar linguagens fílmicas, por conta do baixo custo. Quem abraçou o formato 8 milímetros foram principalmente filósofos, artistas e jornalistas, como Fernando Spencer, por décadas crítico de cinema do Diario de Pernambuco, além de Celso Marconi, Jomard Muniz de Brito, Geneton Moraes Neto e outros nomes. Os festivais de cinema foram os locais onde estes filmes circulavam mais. Nos anos 80, um grupo de alunos da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) começou a se interessar em fazer cinema e alguns integrantes se tornaram, nas décadas seguintes, nomes absolutamente reconhecíveis no cenário pernambucano. Entre eles, estão Adelina Pontual, Cláudio Assis e Lírio Ferreira. O aprendizado deles iniciou de forma empírica, vendo, discutindo filmes, participando de cineclubes e, aos poucos evoluiu para o que se tornou o marco zero da retomada do cinema pernambucano: Baile Perfumado, de 1996. A história do mascate libanês Benjamin Abraão, que conviveu com Lampião e fez imagens do cangaço, ganhou prêmio de Melhor Filme pelo Festival de Brasília e mostrou que era possível criar um caminho para o cinema pernambucano a partir de então. De acordo com a cineasta e psicanalista Isabela Cribari, corresponsável pela caixa de DVD Antologia do Cinema Pernambucano junto com a produtora cultural Germana Pereira, Baile Perfumado teve uma influência grande na confiança de quem se interessava em fazer audiovisual em Pernambuco. “Ele teve poucos recursos, foi um dos primeiros a utilizar a Lei Rouanet. Com o sucesso do Baile, houve maior organização da classe em Pernambuco e maior exigência de investimentos. Os gestores perceberam a importância de um cinema de qualidade, autoral e tiveram que assimilar a crescente de conscientização e pressão da classe. Isso viabilizou a realização de mais filmes, o exercício da utilização de recursos públicos e a formação da nova geração, que aprendeu no set, na prática”.
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Figurino “Amarelo Manga”
A partir do terreno aplainado por Baile Perfumado, começaram a aparecer outros longa-metragens, como o documentário O rap do pequeno príncipe contra as almas sebosas (2000), de Paulo Caldas e Marcelo Luna, Amarelo manga (2003), de Cláudio Assis, Cinema, aspirinas e urubus (2005), de Marcelo Gomes, Baixio das bestas (2006), de Cláudio Assis, Deserto Feliz (2007), de Paulo Caldas, Era uma vez eu, Verônica (2012), de Marcelo Gomes, Rio Doce/CDU, de Adelina Pontual (2013) e Tatuagem (2013), primeiro longa-metragem de ficção de Hilton Lacerda, que também roteirizou filmes de Cláudio Assis. Lírio Ferreira, por sua vez, realizou o seu segundo longa-metragem de ficção, Árido movie (2005) e, depois investiu em documentários: Cartola (2007), em parceria com Hilton Lacerda e O homem que engarrafava nuvens (2009), sobre a história de Humberto Teixiera, parceiro de composições de Luiz Gonzaga. Sua última incursão nos longas-metragens de ficção foi Sangue azul (2014), exibido no Festival de Berlim de 2015. Enquanto os cineastas que começaram a carreira nos anos 80 tiveram sua produção reconhecida, outro movimento começou a surgir:
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o de coletivos que começaram a surgir na virada dos anos 90 para os anos 2000 e também agrupavam alunos da Universidade Federal de Pernambuco, especialmente do curso de Comunicação Social. Entre eles, estão a Símio Filmes e a Trincheira Filmes. A Símio Filmes tinha quatro integrantes: Daniel Bandeira, Juliano Dornelles, Marcelo Pedroso e Gabriel Mascaro, que deixou o coletivo em 2010. O grupo se juntou a partir de um interesse comum pelo cinema que desaguou na criação do Cineclube Barravento, na virada dos anos 90 para os anos 2000. A realização de curtas-metragens se tornou, então, um passo natural. Após a realização desses curtas, eles produziram longas como Amigos de risco (2007), de Daniel Bandeira, KFZ-1348 (2008), de Gabriel Mascaro e Marcelo Pedroso, Pacific (2009) e Um lugar ao sol (2009), de Gabriel Mascaro.Já a Trincheira Filmes composta por Leonardo Lacca, Tião (Bruno Bezerra) e Marcelo Lordello e também conseguiu boa aceitação em festivais no Brasil e no exterior. Muro (2008), dirigido por Tião, ganhou prêmio na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes. Eles voltam (2012), de Lordello, estreou no Festival de Rotterdam.
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O grupo fez pontos de contato com o trabalho de outros cineastas a partir do trabalho de Gabriel Mascaro, que trabalhou como assistente de direção Cinema, aspirinas e urubus, Baixio das bestas e os curta-metragens Rapsódia para um homem comum (2005), de Camilo Cavalcanti e Entre paredes, de Eric Laurence (2004). “Acompanho o trabalho de Marcelo, Paulo, Cláudio, Adelina.... Trabalho duro, muito duro, sem nenhum ou quase nenhum incentivo governamental. Eles abriram o caminho, ensinaram os mais jovens nos seus sets de filmagem, com a prática mesmo. Não vejo uma geração tentar se sobrepor à outra, e vejo que é sempre positiva a troca de informação, o debate, de modo que acredito em certo paradoxo, pra contrapor uma resposta anterior: não se faz o velho sem o novo. Há espaço para todos”, pontua Isabela. Daniel Bandeira, por sua vez, trabalhou com o jornalista e cineasta Kleber Mendonça Filho no curta-metragem A menina do algodão (2003), assinado por ambos, e Vinil verde (2005), dirigido apenas por Kleber. Tanto Juliano quanto Daniel trabalharam, posteriormente, com Kleber em seu primeiro longa-metragem, o Som ao redor (2013): o primeiro na direção de arte e o segundo como consultor artístico. Em Aquarius (2016), filme ainda a ser lançado no circuito comercial no Brasil, a parceria se repetiu, com ambos nas mesmas funções. O nome de Kleber Mendonça Filho se tornou incontornável quando se fala do cinema pernambucano. Responsável, entre 1998 e 2016, pela programação do Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, em parceria com o jornalista Luiz Joaquim, Kleber formou gerações de cinéfilos e levou o cinema local a um novo nível de reconhecimento mundial. Essa situação foi impulsionada com a aceitação de seus dois longas-metragens em um circuito de festivais que inclui o Festival de Cannes, frequentado pelo cineasta durante anos, enquanto exercia a função de crítico de cinema do Jornal do Commercio. Ele já havia participado de Cannes em 2005, com o curta-metragem Vinil verde. Os festivais internacionais, por sinal, foram locais que acolheram os trabalhos de realizadores pernambucanos ao longo dos anos 2000. Baixio das bestas (2006), de Cláudio Assis, foi premiado no Festival de Cinema de Rotterdam, um dos cinco mais importantes do mundo. Boa sorte, meu amor (2012), de Daniel Aragão foi premiado no Festival de Locarno, na Suíça, e Ventos de Agosto (2014), de Daniel Mascaro, também foi exibido na cidade.
Uma questão que veio bastante à tona no mesmo período em que grupos como a Trincheira Filmes e e Símio Filmes levantam é a da institucionalização da «brodagem”, ou de uma rede de afetos que permeia o ambiente profissional do cinema em Pernambuco e permite a colaboração de profissionais do cinema nas obras de colegas. “O ‘broder’ ou a ‘síster’ são quase entidades do cinema de Pernambuco. Mas não dá para assinar a carteira profissional com essas ocupações, não é? Com mais recursos, técnicos melhor capacitados, espera-se que as relações sejam mais profissionais no cinema que se faz em Pernambuco. Mas sei também que se uma pessoa tiver uma ideia muito boa e não tiver muito dinheiro, muita gente entra e faz o filme também. Há um vínculo e um sentimento de grupo muito forte por aqui. O cinema em Pernambuco sempre foi, é e será muito colaborativo. Criativo. De reflexão. Combativo. De ocupação. Humano. De resistência”, avalia Isabela. Embora a “brodagem” tenha se tornado parte integrante do modus operandi do cinema pernambucano, há artistas que não estão, necessariamente, atrelados ao um grupo específico. É o caso de Camilo Cavalcante e Renata Pinheiro, uma das poucas mulheres diretoras nesse universo. O primeiro trabalha como diretor e roteirista desde 2005 e já realizou vários curtas-metragens. Seu primeiro longa, A história da eternidade, levou 12 anos entre a concepção e o lançamento, e foi exibido em momentos como a 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em 2014. Já Renata estreou seu primeiro longa, Amor, plástico e barulho (2014), sobre o universo brega, após trabalhar durante anos como diretora de arte, em filmes como Amarelo manga. Seu primeiro curtametragem Superbarroco, de sua autoria, foi selecionado para exibição no Festival de Cannes em 2009. A profissionalização do cinema pernambucano também ficou expressa em dois movimentos importantes: a realização de um edital estadual exclusivo para o setor, o Funcultura Audiovisual, em 2007, e a criação do curso de Cinema da Universidade Federal de Pernambuco, em 2008. Ambos deram impulso ao setor, injetando tanto mão-de-obra quanto dinheiro público para financiar as produções. O cinema pernambucano, com sua multiplicidade de visões, superou uma defasagem histórica e conseguiu seu lugar na produção mundial. O protesto relacionado à exibição de Aquarius na seleção oficial do Festival de Cannes também ajudou a trazer as atenções para essa produção audiovisual que passou a representar o Brasil.
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“O filme é, para mim, uma tentativa de atualizar o imaginário político e simbólico da contemporização das relações humanas no Brasil em meio à recente onda de prosperidade econômica, em especial no Nordeste brasileiro, lugar onde nasci e desde sempre vivi. Boi Neon lança uma nova luz sobre as transformações recentes
do país a partir de um recorte narrativo que se
apropria da vida de um grupo de vaqueiros que vivem na estrada transportando boi para as festas da vaquejada, um dos maiores eventos de agribusiness do Brasil.
E tendo a vaquejada com palco alegórico dessas transformações recentes
em meio à paisagem monocromática do Nordeste, eu pesquiso as cores que reluzem as contradições do consumo e dilato as noções de identidade e gênero em personagens que convivem em novas escalas de sonhos possíveis.
Boi Neon é uma pesquisa sobre corpo, luz e a transformação da paisagem humana” A
nota de Gabriel
Mascaro,
diretor de Boi
Neon, traz em si a essência das preocupações do filme, seu segundo 2015. Entre os festivais dos quais participou, estão o Festival de Veneza e o Festival de Toronto. O filme traz a potência do desejo de Iremar, vaqueiro que tem o sonho de desenhar roupas em meio à vida no semiárido nordestino. A vida na estrada também trouxe a ele três companheiros: o parceiro de curral Zé, a dançarina e motorista de caminhão Galega e a filha dela, Cacá. longa-metragem de ficção, lançado em
Os sonhos de Iremar esbarram, necessariamente, em pré-definições de gênero: um estilista que se sente deslocado em meio a uma paisagem rude. Já Galega dança na noite e, ao mesmo tempo, mostra habilidades mecânicas como caminhoneira. A criança, Cacá, se permite transitar entre realidade, sonho e imaginação a partir de seu amor pelos cavalos. As pré-definições de Nordeste como local seco e totalmente sem perspectivas sedimentadas especialmente por meio dos noticiários e de filmes do Cinema Novo também sofrem uma revitalização. O que se vê no filme é a possibilidade de entrada de Iremar em uma indústria têxtil imersa em um modo capitalista de produção.
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FIGURINISTAS E ESTILISTAS NO
CINEMA
A importância do figurino no cinema é impossível de ser subestimada. A lista de atores e filmes que tiveram seus personagens envoltos em roupas icônicas é enorme e inclui desde Marlene Dietrich e seu figurino que trazia uma aura de androginia e mistério até Marilyn Monroe e seu famoso vestido branco em O pecado mora ao lado. A luso-brasileira Carmen Miranda, com um esplendor único dado pela era do Technicolor, é mais um exemplo de como as roupas têm o poder de atiçar o imaginário de pessoas ao redor do mundo. As roupas das estrelas de Hollywood, muitas vezes, transcendiam a sua função de auxiliares na construção de um personagem e ajudaram, durante décadas, a alimentar sonhos, além de aumentar o poder da indústria da moda como um todo. Desde cedo, a aliança entre grandes estilistas e os figurinistas passou a ser uma constante no cinema hollywoodiano. Mas antes mesmo de entrar nesse tema, é preciso delimitar as áreas de atuação de cada profissional: enquanto os estilistas têm a criação delimitada pela sua própria subjetividade, os figurinistas têm como baliza um conceito que já existe: o do filme em si. É a isso que ele e os demais profissionais de cada trabalho estão subordinados, mesmo que o figurinista também possa desenhar roupas especialmente para o filme para o qual trabalha. E, embora a associação entre o glamour de roupas de alta-costura e os filmes americanos seja inescapável quando se fala em história do figurino, profissionais do mundo inteiro, hoje, têm à disposição uma gama quase infinita de possibilidades de trabalho. A Fundamento Pernambuco traz alguns exemplos de figurinistas nacionais e internacionais que tiveram atuação marcante em suas áreas para ilustrar o quão relevante é a contribuição desse setor na hora de contar uma história.
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EDITH HEAD Com 35 indicações ao Oscar, Edith Head (1898-1981) ganhou a estatueta por oito filmes: Tarde demais (1950), Sansão e Dalila (1951), A malvada (1951), Um lugar ao sol (1952), A princesa e o plebeu (1954), Sabrina (1955), O jogo proibido do amor (1961) e Um golpe de mestre (1974). Um clássico estranhamento entre estilista e figurinista aconteceu justamente com Edith Head, quando ela não agradeceu ao estilista Hubert Givenchy no momento em que ganhou o Oscar pelo filme Sabrina, estrelado pela atriz Audrey Hepburn. Na segunda fase do filme, Audrey Hepburn aparece apenas com roupas de Givenchy. Edith trabalhou com virtualmente todas as estrelas da Era de Ouro de Hollywood, desde Bette Davis até Elizabeth Taylor. Outra de suas contribuições renomadas foi com Alfred Hitchcock, com quem trabalhou em oito filmes, como Janela Indiscreta e Um corpo que cai.
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TRAVIS BANTON O artista estudou design de moda, se tornando estilista antes de ser figurinista renomado. Uma das contribuições mais conhecidas de Travis foi ter trabalhado com Carmen Miranda em dois filmes: Serenata tropical (1940) e Uma noite no Rio (1941). Ele também foi um dos mentores de Edith Head no início da carreira dela nos estúdios Paramount. Foi ele quem vestiu Marlene Dietrich em O expresso de Xangai e os dois mantiveram uma relação de confiança que ajudou ambos a conquistar uma posição de destaque em Hollywood. Suas criações eram, muitas vezes, compostas por materiais luxuosos, complexos, caros e com muitos elementos, como plumagens. Para Carmen Miranda, suas roupas e turbantes alcançaram novos níveis de cores e estruturas; para Marlene Dietrich, o mistério em sua figura era potencializado pelos cortes e acessórios.
RALPH LAUREN Ralph Lauren é um exemplo de como a parceria entre cinema e moda pode ser fértil. Ele foi o estilista mais bem sucedido em transformar o espírito americano em peças de roupa sofisticadas e, ao mesmo tempo, acessíveis à imaginação de pessoas do mundo inteiro. Suas camisas e suéteres se tornaram, rapidamente, objetos de desejo para quem queria estar bem vestido de forma sóbria. Hollywood – especialmente os anos 40 e 50 - foi uma inspiração significativa para as criações dele como estilista. Seu trabalho, de forma bastante contemporânea, extrapolou as passarelas e o levou a criar também para filmes que depois se tornariam clássicos, assim como suas roupas. Isso aconteceu com O Grande Gatsby (1974), estrelado por Robert Redford, e Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de Woody Allen, que mostrou de forma arrojada, e ao mesmo tempo casual, Diane Keaton com um figurino composto por várias peças masculinas.
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COCO CHANEL Embora a francesa Coco Chanel (1883 – 1971) tivesse começado seu trabalho como figurinista nas artes cênicas, ela também assinalou uma parte importante da absorção dos códigos da moda por Hollywood. Durante a Grande Depressão, no início dos anos 30, ela foi contratada pelos estúdios Metro Goldwyn-Mayer para desenhar roupas, na esperança de que uma estilista parisiense famosa como ela ajudasse a atrair mais público. A parceria durou três filmes, menos de um ano e custou um milhão de dólares: O homem do outro mundo (1931), Esta noite ou nunca (1931) e Cortesãs modernas (1932). Chanel preferiu seguir sua carreira como estilista e colaborar esporadicamente com cineastas de seu país, como Jean Renoir, que dirigiu o clássico A regra do jogo (1939), filme que, na época de seu lançamento, foi execrado pelo público e crítica. Chanel também desenhou a maioria dos vestidos usados por Delphine Seyrig em O ano passado em Marienbad (1959), outro filme dirigido por um francês, Alain Resnais, que causou polêmica entre a crítica.
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COLEEN ATWOOD A americana Coleen Atwood é outro nome de peso da indústria de Hollywood e ganhou três Oscars por Chicago (2003), Memórias de uma gueixa (2005) e Alice no País das Maravilhas (2010). Ela trabalhou com Tim Burton em sete filmes e o primeiro dele foi Edward Mãos de Tesoura (1990), que trouxe à tona uma caracterização singular de Johnny Depp. Outro filme impactante do qual ela participou como figurinista foi O silêncio dos inocentes (1991), de Jonathan Demme, outro diretor com quem ela costuma trabalhar.
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MILENA CANONERO A figurinista italiana Milena Canonero é outra artista que teve uma parceria prolífica com um diretor específico. No caso dela, isso aconteceu com Stanley Kubrick, com quem começou a trabalhar em Laranja mecânica (1971). No filme, estava condensada a essência da estética pós-anos 60, como as formas geométricas, e a pop art. A união artística perdurou por outros filmes, como Barry Lyndon (1975) – pelo qual ganhou um Oscar - e O iluminado (1980). Ganhou seu segundo Oscar por Carruagens de fogo (1981), o terceiro por Maria Antonieta (2006), de Sofia Coppola, no qual foi ousada o suficiente para colocar personagens da França do Antigo Regime usando tênis All Star, e o quarto por O Grande Hotel Budapeste (2014).
CLÁUDIA KOPKE A fluminense de 57 anos começou no cinema após passagens pela música, vestindo os astros do rock brasileiro dos anos 80. Depois, começou a trabalhar em programas de televisão, especialmente com Regina Casé, que a convidou para fazer seu primeiro filme como figurinista, Eu, tu, eles (2000). Seguiu carreira com trabalhos em Dois filhos de Francisco (2005), Casa de areia (2005), Tropa de elite (2007), Tropa de elite 2 (2010) e Que horas ela volta? (2014), seu filme mais recente, dirigido por Anna Muylaert.
JOANA GATIS E BÁRBARA CUNHA Joana Gatis se tornou uma das figurinistas pernambucanas mais requisitadas para trabalhos em cinema. Ela começou em Baixio das bestas (2006), de Cláudio Assis, e seguiu trabalhando em curtas e longas-metragens, como Febre do rato, também de Cláudio Assis, Au revoir, de Milena Times, e Amor, plástico e barulho, de Renata Pinheiro. Ela também codirigiu e coroteirizou o curta-metragem Soledad, junto com Flávia Vilela e Daniel Bandeira. Já a figurinista pernambucana Bárbara Cunha trabalhou em projetos como Amarelo manga (2002), de Cláudio Assis, e O país do desejo (2011), de Paulo Caldas.
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SOM DIRETO
NICOLAU DONINGUES
FOTO |CLARISSA DUTRA
O advento do som no cinema é uma consequência da popularidade do próprio suporte, conseguida já a partir de suas primeiras décadas. Antes do filme O cantor de jazz, lançado pela Warner em 1929, havia uma necessidade do público em acoplar o som à experiência visual da projeção cinematográfica, com pianistas que tocavam canções ao vivo durante as sessões. O avanço da tecnologia deu ao cinema seu status de arte audiovisual e também proporcionou terreno para que surgissem profissionais especializados na linguagem sonora dentro desta arte no mundo inteiro. A partir disso, o som se tornou não apenas parte objetiva de um filme, mas expressão de uma linguagem. Isto é especialmente verdade em filmes pernambucanos como O som ao redor, de Kleber Mendonça Filho, ou Ventos de Agosto, de Gabriel Mascaro, no qual o próprio diretor entra no filme como um pesquisador que usa o som para captar os ruídos dos ventos alísios comuns no Nordeste brasileiro. No panorama cinematográfico local, o surgimento de uma cadeia produtiva ligada ao audiovisual, a partir dos anos 90, fez com que houvesse uma demanda de profissionais relacionados tanto à captação do som no set, denominada de som direto, quanto a uma conceituação global do som em cada filme, que é o trabalho do sound designer. A revista Fundamento Pernambuco convidou um profissional da área para trazer reflexões sobre o tema: o sound designer Nicolau Domingues, coproprietário da empresa Sound 8, junto com o sócio Rafael Travassos. Ambos trabalham com trilha sonora, som direto, sound design, edição de som e mixagem. Entre os trabalhos de Nicolau, estão a mixagem, a edição de som e a trilha sonora de O delírio é a redenção dos aflitos, selecionado para a Semana da Crítica do Festival de Cannes de 2016. REQUISITOS PARA SE TRABALHAR COM SOM O técnico deve ter consciência do que é trabalhar em equipe. Além disso, o ouvido é fundamental para identificar
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o que pode vir a ser um problema depois. Ele é a principal ferramenta de um técnico de som, antes de qualquer microfone. Essa relação e percepção sonora do entorno deve ser treinada e aperfeiçoada e os problemas devem ser identificados imediatamente. Se algum problema é programado para ser resolvido na pós-produção, isso deve ser uma opção consciente e deve ser decidido de comum acordo com a produção e a direção. Esse tipo de percepção vem com o tempo e com o acúmulo de acertos e erros. DIFERENÇAS ENTRE DESENHO DE SOM E SOM DIRETO No caso de desenho de som, nos vemos diante de um trabalho que possui uma carga técnica grande, mas que tem muito mais de estética e conceito artístico/narrativo. É fundamental, nesse caso, entender de cinema, de como o som de um filme pode afetar e alterar determinada cena e como construir uma narrativa com essas ferramentas. No set, na grande maioria das vezes, o trabalho é muito objetivo e o foco é a captação perfeita dos elementos fundamentais do filme como por exemplo os diálogos. Na pósprodução é que se vislumbra a criação e construção da narrativa através do som e isso tem a ver com ouvido, percepção e sensibilidade artística em várias áreas: cênicas, fotografia, música e etc. Acredito também que, para um profissional de som direto, é fundamental entender também de todo o processo de pós-produção. Quando você ouve o som que você gravou na ilha de edição, a percepção é bem diferente. Às vezes, no calor e confusão do set, algumas decisões são tomadas sem que se perceba qual o caminho correto. ETAPAS DO TRABALHO DE UM SOUND DESIGNER O conceito sonoro deve ser pensado bem antes do processo de filmagem e a partir daí se determina tudo o que será gravado. Se um diretor ou roteirista quer que o conceito artístico do som do seu filme se sobressaia esse diálogo deve vir já na concepção da
ideia. Os profissionais de som devem entrar o quanto antes. O desenho de som de um filme é tão fundamental quanto a fotografia e quando um diretor/roteirista/produtor entende isso, é bem natural que ele sinta a necessidade de ter esse profissional ao lado desde a concepção. Às vezes, coisas em relação ao som passam despercebidas pela equipe de produção e, por isso, estar próximo das fases iniciais é imprescindível. No entanto, é muito comum sermos chamados nos segundos finais da pré-produção. Outro ponto importante é que cada filme tem sua demanda técnica específica para o som e cada set oferece desafios diferentes. Chegar em cima da hora não é bom para nenhum departamento e só prejudica o próprio filme. RELAÇÃO ENTRE DIRETOR E SOUND DESIGNER Há diretores que já chegam com muita coisa definida na concepção sonora do filme e precisam de um profissional para viabilizar a execução técnica desse trabalho. Por outro lado, alguns diretores preferem que o desenhista desenvolva seu trabalho com liberdade artística para construir uma identidade para o som do filme, seja dentro de um universo pré-estabelecido, seja apresentando novos universos que o diretor não tinha imaginado. Na minha opinião, concentrar tudo em uma só cabeça pensante limita o universo criativo para onde o filme pode caminhar. O som pode e deve potencializar os elementos de uma obra. Com a manipulação correta dos elementos, você pode valorizar desde um movimento de câmera à relação entre dois personagens. Muitas vezes, isso é construído de forma subliminar, onde o espectador absorve tudo de maneira fluida, sem perceber que está sendo levado naquele caminho. Esse é o tipo de escolha que sempre tento seguir, onde o som trabalha em conjunto com os outros elementos desenvolvendo e reforçando coisas que já estão concebidas, além de chamar a atenção para outras que não seriam notadas facilmente sem uma intervenção sonora.
DESAFIOS DO TRABALHO COM O SOM NO AUDIOVISUAL Algo fundamental é a afinação da equipe técnica. Todos os departamentos podem influenciar direta e indiretamente na qualidade do som. Se não existir uma troca de informações entre o figurino e o som, o material das roupas, por exemplo, pode atrapalhar muito a utilização de alguns microfones. A mesma coisa vale para o departamento de fotografia que pode, dependendo de muitas variáveis, dificultar uma captação perfeita com ângulos e lentes que impedem o microfonista de entrar em uma posição boa. Esse diálogo deve ser sempre em função do que é necessário narrativamente. Às vezes, o aspecto visual deve sim falar mais alto e a opção por uma dublagem ou uma gravação de foley (na pós-produção) é totalmente aceitável e deve ser utilizada como solução. O som, mesmo tendo importância fundamental, não é mais importante do que todos os outros
elementos, tudo deve caminhar junto. Os equipamentos que você usa na gravação também são importantes e devem ser confiáveis, mas mais importante que isso é o seu domínio sobre eles. Por fim e não menos importante, as locações devem ser analisadas com cuidado. No Recife, por exemplo, é muito difícil encontrar um local que seja perfeito para uma gravação silenciosa e acredito que a equipe de produção no set deve estar sempre atenta para as demandas do som direto. Elas podem variar desde desligar uma música que está tocando em algum local próximo a garantir que toda a equipe esteja em silêncio na hora da gravação. RECONHECIMENTO DA PROFISSÃO No Brasil, em geral o som ainda é subestimado tanto profissionalmente quanto financeiramente. Percebo, ainda, uma falta de informação muito grande por parte de produtores e até diretores sobre como o processo de construção do som de um filme
funciona. Muitos elementos estão envolvidos e vemos um acúmulo de funções muito grande, tanto por falta de profissionais no mercado quanto por falta de um mercado que entenda a necessidade da existência desses profissionais. Para se ter uma ideia, uma equipe de pós produção em um filme fora do país pode passar de vinte pessoas. No Recife, trabalhamos com duas, em média. A própria classe aqui em Pernambuco trabalha e se esforça para proporcionar essa mudança sempre tentando, de maneira didática, transmitir o conhecimento entre os departamentos. Limitações orçamentárias são sempre o fator que pesa mais nas produções locais mas, às vezes, o problema é apenas uma dificuldade de entendimento ou uma falha de comunicação que vai se replicando desde a concepção do projeto. Quando chegamos na finalização, temos um grande problema nas mãos e isso foi fruto de um planejamento que não entendia o funcionamento do som desde o início.
FOTO |PABLO POLO
FORMAÇÃO PROFISSIONAL DO SETOR EM PERNAMBUCO A formação de som no setor ainda é muito autônoma, pois existem poucos cursos no Brasil que contemplam essa área. A grande maioria dos técnicos que atuam em Pernambuco estudaram ou fora do estado, ou fora do país por conta própria. Em Pernambuco, especificamente, temos o curso de cinema da UFPE com um viés mais teórico. Também temos o curso de Produção Fonográfica da AESO, que é bem geral e engloba também o mercado de música. O set de filmagem em si é uma grande escola e começar como assistente já é uma experiência bem interessante pra quem está querendo se iniciar na área. As leis de incentivo à cultura também já proporcionaram boas experiências por financiarem oficinas que ainda acontecem de maneira sazonal. Já dei oficinas no Recife e no interior do Estado e sempre me surpreendo com a quantidade de gente cada vez mais
interessada em trabalhar com som. Isso é ótimo para o mercado, pois alimenta a cadeia produtiva com novos técnicos e novas maneiras de se trabalhar e pensar o audiovisual. MOBILIZAÇÃO POR MELHORES CONDIÇÕES DE TRABALHO A parte que mais lutamos para resolver é a questão trabalhista. Acredito que, mesmo com toda a visibilidade mundial do cinema pernambucano, o que temos aqui é um protótipo de indústria que cresceu rapidamente e informalmente, deixando de lado muitos fatores importantes. Nós, profissionais de som de Pernambuco, hoje somos uma classe relativamente organizada que se reúne e discute a respeito das dificuldades enfrentadas em nosso processo de trabalho. Criamos o Coletivo de Som de Pernambuco, que é independente mas que tem conexões de filosofia com o STIC, Sindicato de técnicos que veio do Rio de Janeiro para atuar com uma delegacia
aqui. É comum em sets de filmagem da cidade, de grande ou pequeno porte, vermos profissionais que trabalham de graça, que são explorados, que tem carga horária muito acima do permitido, que viajam sem seguro, que tem seu salário atrasado por meses e isso é só a ponta do iceberg. Se formos parar para falar de machismo, por exemplo, teríamos outra matéria. Vejo movimentos como o das Mulheres no Audiovisual PE, formado recentemente, fundamentais para o amadurecimento do setor. No Recife, por exemplo, temos poucas mulheres trabalhando como técnicas de som direto. Por que isso acontece? Por um estigma e uma visão totalmente distorcida de que desenvolvimento técnico é limitado aos homens. Para mim não adianta o tapete vermelho se, por trás das câmeras, não existe respeito por uma profissão que deve ser regida pelas mesmas regras e leis de qualquer outra.
UM POUCO DE HISTÓRIA
BOX – COLETIVO DE SOM DE PERNAMBUCO
A primeira experiência realmente bem-sucedida em escala comercial ocorreu com o surgimento do Vitaphone, em 1915. Neste mecanismo, o prato do disco e o projetor acionavam o mesmo mecanismo para garantir a sincronicidade. Entre os anos 30 e os anos 60, havia, no entanto, um uso mais limitado do som direto, pelo aparato tecnológico que esse expediente ainda exigia. Os gravadores analógicos ainda pecavam em mobilidade. Um marco neste sentido foi o aparecimento do gravador Nagra – leve e portátil, popularizado na virada dos anos 50 para os anos 60 e muito usado em documentários. Isto abriu caminho para o uso do atual sistema digital.
O Coletivo de Som de Pernambuco tem um blog que apresenta textos sobre as funções de som direto, sound designer e pósprodução, contatos de profissionais de som de Pernambuco e uma tabela de pisos com os valores diários ou semanais de técnicos, operadores, microfonistas, sonoplastas e finalizadores. O endereço é https://somdefilmespernambuco. wordpress.com/
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A sinfonia marítima, ou caldeirada de frutos do mar, é um prato por excelência de uma cidade praiana como o Recife. Feita com os frutos do mar disponíveis, como lula, peixe, camarão, mexilhão e polvo são alguns dos ingredientes que a iguaria leva. Este também é o prato preferido do cineasta Gabriel Mascaro e a revista Fundamento Pernambuco traz uma versão dessa comida.
INGREDIENTES Porção para três pessoas 100g de aneis de lula 100g de polvo já cortado em pequenos pedaços 200g de filé de peixe – a carne precisa ser firme 100g de mexilhões sem concha 200g de camarão 100g de ostras 1 xícara de leite de coco 3 tomates cortados 3 cebolas cortadas 3 pimentões cortados 3 colheres de azeite de oliva 2 dentes de alho picados 1 folha de louro 1 limão 500ml de água quente pimenta do reino, sal e manjericão a gosto MODO DE PREPARAR
Após lavar os frutos do mar em bastante água, tempere o polvo e a lula com pimenta do reino e limão. Reserve por quinze minutos. Em outro recipiente, tempere o peixe, os mexilhões, o camarão e as ostras da mesma forma e deixe descansar pelo mesmo tempo. Em uma panela, refogue o azeite e o alho. Em seguida, acrescente o tomate, a cebola e o pimentão. Na sequência, adicione a água fervente, tempere com sal e adicione as lulas, as ostras, o polvo e o peixe. Cozinhe por dez minutos. Depois, adicione os mexilhões e o camarão. Cozinhe tudo junto por mais cinco minutos. Depois de ponto, coloque em um recipiente, de preferência, de barro. Sirva com arroz branco e pirão de peixe.
................. Alessandra Leão
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................. Paulo Bruscky
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Gabriel Mascaro
REVISTA
Eduardo Ferreira
FUNDAMENTO
Uma revista que trata de temas relacionados à arte, moda e cultura de Pernambuco, tendo o olhar de alguns de seus artistas como fio condutor. Cada uma das seis edições da revista impressas e virtuais - tem um homenageado da área cultural, refletindo sobre sua carreira, legado, influências em sua produção ou interações com outros artistas. Entre as seções, estão entrevistas, reportagens, ensaios de moda e referências sensoriais, como indicações de som, imagem e elementos gastronômicos que fazem parte do universo de cada artista enfocado.
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................. Isa do Amparo
................. Kleber Lourenço
EXPEDIENTE: Idealização: Cássio Bomfim Conselho Editorial: Isabelle Barros, Cássio Bomfim, Chia Beloto Coordenação: Rui Mendonça Edição: Rui Mendonça e Chia Beloto Assistente de Produção: Bia Rodrigues Reportagem: Isabelle Barros e Mariana Neponuceno Revisão: Isabelle Barros Assessoria de Imprensa: Isabelle Barros Capa, Diagramação e Desenho Gráfico: Chia Beloto e Zé Diniz Realização: Cabra Fulô Incentivo: Fundarpe/Funcultura
INCENTIVO