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CADEIRA 38 – JOSÉ NERES

Na juventude, desfiou inúmeros e variados trabalhos, que ele não recusava nenhum, de cobrador da Sociedade de Defesa dos Filhos dos Lázaros e Defesa contra a Lepra, aos quinze anos, a funcionário da Alfândega, quando começou a estudar para o rigoroso concurso de bancário do Banco do Brasil, no qual foi o primeiro colocado, na que seria a sua profissão definitiva. Longos anos de prestigioso trabalho, até a aposentadoria. Aposentado, enfim, realizou seu grande sonho, dedicar-se apenas a escrever e pesquisar sobre o Maranhão, com grande paixão, como tudo o que realizava.

Procurou cercar-se de historiadores e poetas, como Jerônimo Viveiros, Mário Meireles, Odylo Costa, filho, e de artistas acadêmicos e populares, bebia da fonte erudita com os acadêmicos e da água límpida do folclore com os artistas da cultura popular. Possuidor de talento multifacetado, interessado em todas as manifestações de arte, foi fundador do Teatro Experimental do Maranhão (TEMA) e trabalhou como ator nas peças A ratoeira, Gimba, presidente dos valentes, O processo de Jesus, A revolução dos beatos e Por causa de Inês. Fez algumas participações em filmes e televisão locais, a exemplo de A faca e o rio, Uirá, um índio à procura de Deus e Carlota Joaquina, princesa do Brasil.

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Carlos de Lima foi um grande folião, como ele mesmo revela ”Brinquei carnaval durante quarenta e cinco anos, dos quinze aos sessenta”. Foi um dos fundadores do bloco Coringas, um dos mais famosos blocos tradicionais do carnaval do Maranhão. Nessa época, anos 30 e 40 do século passado, havia uma competição acirrada entre os blocos nascentes, que hoje são os chamados blocos tradicionais, principalmente entre o Coringas e o Vira-Latas. Havia torcidas ferrenhas. Acresce que a competição era lírica, travava-se através de músicas, nada de insultos ou agressões físicas, uma delícia de guerra poética, a usar como armas versos e canções.

O Vira-Latas tinha um hino:

Saímos para mostrar a nossa bandeira, Há muitos anos que nós temos união. Salve a mocidade Vira-Lata, como não? Quem fala de nós tem paixão. Carlos de Lima, em resposta, faz a letra e a musica do hino do Coringas: Coringas é o dono do baralho, Essa é a verdade que eu sei, E a Dama, a Dama que é muito boa deixa o Rei que tem coroa pelo Coringa que é rei. Coringa agora que é folião dá carta e joga de mão.

Esta música, junto com outras de sua lavra e de outros compositores de blocos, estão reunidas no CD Carnaval dos Bons Tempos, patrocinado pela Secretaria de Cultura do Estado do governo Roseana Sarney.

Por ocasião de sua posse, em fevereiro de 2008, na Cadeira nº 7 da Academia Maranhense de Letras, Carlos de Lima disse, no seu discurso de empossando, fazendo chiste com a sua idade avançada, bem ao seu modo descontraído de falar, que não estava ocupando a vaga deixada por seu antecessor, já que ele mesmo era uma vaga. Tinha, à época da posse, oitenta e oito anos e faleceu aos noventa e um, em plena produtividade literária.

Viveu mais três anos. Nunca um curto tempo foi tão grato às lides acadêmicas. Mestre da convivência, cordial e bem-humorado, constantemente presente e com disposição jovial para sugerir e colaborar com os trabalhos. Sobressaiu-se na ocupação da cadeira patroneada por Celso Magalhães, que ele, em momento algum, postulou. Só aceitou assumir a candidatura, após forte bombardeio dos argumentos de seus futuros pares. Bastava-lhe o ofício anônimo e diuturno de escrever. Autor de numerosos livros, dezoito ao todo, e

Carlos de Lima foi perfeito nas duas vertentes buscadas na vivência acadêmica: a convivência cordial e a qualidade da produção intelectual. Nestes três anos, lançou o segundo e terceiro volumes da trilogia sobre historiografia maranhense: História do Maranhão, a monarquia, 2008 – sobre esta obra nos acrescenta Maria de Lourdes Lauande Lacroix, “Sem se acorrentar aos ditames de Chronos, no entanto, ele por vezes passeia na linha do tempo, num ir e vir a épocas mais distantes ou bem recentes, sempre no afã de melhor aclarar e demonstrar as relações de causa e efeito, fornecendo-nos uma visão muito peculiar dos acontecimentos históricos”, e a História do Maranhão, a República, 2010. Publicou a novela Memórias de um garoto de programa e a biografia de Dr. Djalma Marques, 2008. Produtivo e incansável, movido por uma curiosidade quase juvenil, investigava usos e costumes de um Maranhão pitoresco, de onde saíam crônicas saborosas, algumas publicadas na coluna Bisbilhotices, aos domingos, em O Estado do Maranhão, e muitas outras ainda inéditas.

Da sua vasta produção literária, destacamos ainda Bumba-meu-boi do Maranhão, 1969; Festa do Divino Espírito Santo de Alcântara, 1972; Morte e vida da cidade de Alcântara, 1997; Caminhos de São Luís, 2002; Lendas do Maranhão, 2006, Historia do Maranhão, a colônia, 2006. Carlos de Lima deixou cinco livros prontos, sendo um deles o denominado Arquivo morto, que contém as suas memórias. Pediu que a família não o publicasse. Mas temos sobre elas grande curiosidade.

Falar de Carlos de Lima, dileto amigo, com tantos talentos de pesquisador, historiador, cronista, folclorista, ficcionista, e, além do mais, grande figura humana, não é tarefa difícil. Difícil, senão impossível, é dissociar a imagem de Carlos da de sua outra metade Zelinda Lima, igualmente folclorista, pesquisadora, artesã e uma das maiores conhecedoras da cultura popular maranhense. Seria como falar de Dante Alighieri sem falar de Beatriz ou de Petrarca passando ao largo de Madona Laura. Na comparação, a vantagem é pró-Zelinda: elas foram musas de seus poetas ao longo das suas vidas, mas ficaram no patamar do sonho, da idealização, do amor platônico, enquanto Carlos e Zelinda provaram o seu amor na mais difícil das provas, a convivência cotidiana. Eles usufruíram setenta e um anos de relacionamento, somados sessenta e quatro de casados e sete de namoro, e deram à vida seis filhos.

Disse Zelinda, por ocasião da morte do esposo: “Era um marido maravilhoso [...] tivemos uma família perfeita.” De outro lado, o próprio Carlos é quem diz, no seu depoimento na obra Memória de velhos, vol. VI (2006): “Em todas as minhas iniciativas, se tive algum sucesso, devo-o inteiramente à minha mulher, visto que foi ela quem me incentivou a fazer concurso para o Banco, a fazer teatro, a estudar cultura popular. Devo-lhe tudo e mais alguma coisa.”

O casal compartilhava o gosto pelas mesmas coisas. Tinham paixão pelas artes e pela cultura popular. Mais uma vez, no mesmo depoimento, Carlos reitera que foi Zelinda que o introduziu naquele mundo. Curiosos, saíam os dois pelas ruas com gravador e máquina fotográfica, investigando e registrando com paixão cada pedaço de São Luís e suas festas, e continua ele “Aí, comecei a transcrever para o papel as observações que fazia e assim acentuou-se o meu gosto pela cultura popular [...] Passei a acompanhar tudo. Procurei estudar e atrevi-me, então, a tecer minhas próprias considerações.”

E deve ter sido desse modo, em momentos assim somados ao contato com artistas populares, pintores, escultores, compositores, artesãos – a própria Zelinda é artesã, que Carlos de Lima concebeu e escreveu Os caminhos de São Luís – ruas logradouros e prédios históricos, livro saboroso, em cujo prefácio o autor declara; “Muitos terão passado nestas ruas considerando-as vias de tráfego apenas, sem nunca atentar para o que há além daquilo que ordinariamente percebemos. Nosso propósito é tentar resgatar o mistério dessas pedras, o guardado por trás destas fachadas, aderido aos muros, casa, fastos e pessoas, tudo o que faz encantadora e apaixonante São Luís do Maranhão e que Odylo chamava a alma da cidade.”

E toda a sua vasta obra vai ao encontro desse propósito, a preocupação constante com o que há por detrás dos fatos, buscando o humano, a alma das coisas, sem deixar de lado os comentários espirituosos que tornam leve e saborosa a leitura do que poderiam ser maçantes cartapácios históricos

Carlos de Lima era um homem avesso a ação desprovida de sentido. Com uma curiosidade nata, tentava sempre desvendar o que estava por trás dos fatos: a etimologia das palavras, a intencionalidade dos atos e a lógica dos acontecimentos. A superficialidade não era para ele uma escolha. Sempre mergulhava fundo em qualquer tema que abordava e, com o mesmo entusiasmo do menino nascido e criado no Caminho Grande, atual Canto da Fabril, passava horas revirando dicionários, enciclopédias e livros em busca do sentido das coisas e da vida.

O interesse pelo folclore os levou a viajar para municípios do Maranhão em busca da documentação e descoberta de manifestações folclóricas; assim foram ao município de Rosário, para assistir a Dança do Lelê, e a São Simão, documentar o Pela-Porco, dentre muitos outras incursões nesse sentido.

Seu bom humor manifestava-se até mesmo em assunto que é tabu para pessoas mais idosas, a morte. Quando dos seus 90 anos, a academia Maranhense de Letras rendeu-lhe uma homenagem. Parabenizado pelos confrades que lhe auguravam cem anos de vida, ele respondia, “Psiu, não vamos limitar o Criador.” E quando lhe desejavam saúde e paz, ele respondia: “Saúde, eu aceito. A paz, não. Vou ter muita paz depois de morto.”

Parodiando outro Carlos, o Drummond, eu diria: Vai, Carlos, ser bom e cordial no céu.

Ceres Costa Fernandes A equipe da administração do cemitério mais antigo da cidade estava satisfeita; tinha dado um trabalhão, mas todas as tumbas inadimplentes e mal cuidadas haviam sido identificadas e catalogadas, agora era só colar o aviso em cada uma para que os responsáveis viessem resolver as pendências. O Aviso dizia: “Solicitamos o comparecimento, urgente, à Administração para tratar de assunto de seu interesse.” Isso mesmo, curto e fino. A idéia de bolar o aviso e prendê-lo aos túmulos fora de Dorinha, uma morena magrinha e calma, idéia considerada eficiente e até mesmo genial: é que o dia seguinte seria o Dia de Finados, assim os responsáveis pelos túmulos abandonados seriam avisados todos de uma só vez, poupando-se o gasto com correspondências - muitas vezes, nem o endereço da família havia mais. . Rodriguito ainda quis duvidar da eficácia da ação, Se os túmulos estão abandonados todo esse tempo, por acaso virá algum parente para a visita no Dia de Finados? Foi olhado por todos, com desconfiança – sujeito mais derrotista - e murchou. Os túmulos escolhidos para os avisos - nem sempre os mais pobres, que para estes sempre havia uma mãozinha de cal, uma varridinha, um cravinho de defunto espetado, denunciando a lembrança amorosa -, estavam de fazer dó, sujos quebrados, pichados, totalmente despojados do que, algum dia, tiveram por adorno, cruzes, letras, jarros, placas. Restaram em alguns um retrato tristonho sem nome aqui, um pedaço de anjo acolá, uma grade torta, coisas que os ladrões não quiseram ou não puderam levar... O fato é que, na ensolarada manhã do dia dos mortos, estava tudo organizado. O Aviso haveria de surtir algum efeito, pensou a operosa equipe. Passou o feriado, passaram o sábado e o domingo também. Segunda, à tardinha, na sala da Administração, estão Rodriguito, Sheila e Dorinha, esta, de cabeça baixa, escreve enquanto come uma bolachinha folhada da padaria São Luís, da Rua do Passeio. Súbito, Rodriguito emite algo entre um grunhido e um gritinho abafado. Dorinha levanta a cabeça e vê uma verdadeira procissão de pessoas estranhas, magras, com olheiras fundas, de roupas amarfanhadas, algumas sem sapatos, lenços amarrados sob o queixo, e, o mais estranho, todas tinham um vago tom sépia, na pele e nas roupas, assim como em certas fotografias do século passado. Dorinha, agora, tem à sua frente, de pé, um rapaz alto e magro, de cabelos despenteados e barba por fazer, trajando um paletó grande e folgado, parecendo ter pertencido a outra pessoa, camisa com gravata, calção addidas, sapatos de verniz, “ Chamo-me Carlos Fonseca da Silva, recebi o Aviso e vim saber o que querem de mim. A bolachinha que a senhorita está comendo é, por acaso a chamada sete capas, da Rua do Passeio? Posso pegar uma? Sou doido por essa bolacha, quando estudava engenharia em São Paulo, a minha mãe nunca deixou de me mandar, por portador e até pelo correio. Sabe como se manda ela pelo correio? Dentro de caixa plástica, pra não quebrar. Ah, ela também mandava a bolachinha da padaria Santa Maria da Rua dos Afogados. Essa é mais difícil de quebrar, pode ir dentro de uma sacola ou bolsa. Deu uma fome! Sabe, a viagem foi longa, quase não deu pra vir.” A estas palavras, as pessoas que enchiam a sala começam a falar quase ao mesmo tempo sobre os transtornos das respectivas viagens e as dificuldades de liberação dos diversos planos de origem. Sheila e Rodriguito abandonaram a sala, assim que tiveram pernas para isso. Dorinha, plantada na cadeira, muda, estende, com gestos de robô, uma bolacha folhada para Carlos, que come e suspira: “Ah, a minha mãe, enquanto ela viveu meu túmulo sempre foi muito bem cuidado, gostaria que a senhora o tivesse visto!” Dorinha quer desmaiar, mas reage à idéia de ficar só e desmaiada em uma sala cheia de defuntos, amigáveis, amantes de bolachinhas ou não. Então, usando bravamente suas últimas forças, levanta-se e diz, a voz saindo fininha, Os senhores estão dispensados, a Administração cometeu um engano, desculpem os transtornos da viagem. Mandaremos reformar os túmulos dos senhores, podem ir em paz.” Um murmúrio enche a sala e os vultos começam a sair. Dorinha dá o saco com as bolachinhas sete capas para Carlos Fonseca da Silva, que se despede. Sozinha, ainda tremendo, ela relê o Aviso, em cima da mesa a redação fora da Sheila -, e pensa, custava ter colocado: Senhor responsável, solicitamos etc?

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