magia que intriga, encanta e espanta
Uma família de bruxos de Curitiba põe em xeque o senso científico e afirma a existência de uma atmosfera alternativa povoada de criaturas desconhecidas. Verdadeiro ou não, é esse mundo de magia que move os feiticeiros, descendentes de um planeta distante, na busca pelos sentidos da evolução humana
Veganismo: consumo restrito ganha adeptos em respeito aos animais
Pesquisa estima que 40% das mulheres do mundo são agredidas e mortas por parceiros.
Por um fio: relato de mulheres que recorreram ao aborto no brasil
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17 5
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33 5 Atores do lixo
13 Talento litorâneo
Conheça a história das pessoas responsáveis pela reciclagem do lixo e a trajetória que ele percorre desde que sai da sua casa.
As peculiaridades e as recordações da história pessoal e da trajetória artística do pintor paranaense Theodoro De Bona.
9 Consumo restrito
17 Bullying
Por respeito aos animais, indivíduos adotam o estilo de vida vegano: sem produtos de origem animais.
Como a internet tem influenciado a prática de discriminar e humilhar outras pessoas.
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Temas e reportagens de profundidade
23 Espaço equidistante Em tempos modernos bruxaria e sensibilidade ainda podem transformar espaços: a família curitibana Mussi desafia a ciência e leva um estilo de vida bastante peculiar.
Na segunda e última edição do ano de 2014, páginas tão intensas e complexas quanto o próprio ano: o lixo nosso de cada dia, veganismo, vidas e talentos dedicados a trabalhos incríveis, e diversas formas de violência (bullying, aborto, violência contra a mulher). As reportagens produzidas no último semestre do ano trazem uma leitura efervescente, recheada de informações e novas perspectivas.
29 Violência contra mulheres Relatos de diversas mulheres provam como o machismo ainda as agride e deixa marcas profundas em pleno século XXI.
Ainda seguindo a premissa de propiciar aos estudantes várias práticas condizentes com o mercado de trabalho, a Entrelinha prima pela reportagem de profundidade, criando um leque de temas diversos e relevantes.
33 Liberdade de expressão ou abuso? Atuação da publicidade brasileira direcionada ao público infantil é tema de discussões e gera conflitos entre defensores da infância e publicitários.
Na reportagem de capa, um tema que, em um primeiro instante, pode parecer avesso aos olhos: bruxaria em pleno século XXI. Uma família de bruxos curitibanos desafia os moldes sociais.
37 O mundo dos daltônicos A vida de quem precisa conviver com a mutação genética e as consequências de não enxergar as cores como a maioria das pessoas.
A vida de outros personagens de relevâcia também estão retratadas em nossas páginas: Theodoro de Bona, o pintor paranaense, tem sua vida relatada por parentes e amigos; enquanto as conquistas de Nelson Mandela são narradas por uma perspectiva mais esportiva e histórica.
41 Horror sem procura Gênero altamente aderido pelas produções cinematográficas de baixo custo, em especial americanas, ainda não tem um reconhecimento expressivo no Brasil.
Temas pesados também foram abordados: relatos de mulheres que precisaram recorrer ao aborto clandestino para interromper gestações indesejadas, e outras tantas, que sofrem as mais diferentes formas de violência na mão de seus parceiros, parentes ou amigos. A violência do cyberbullying também deixou seus rastros por nossas páginas,
45 Aborto clandestino O drama de mulheres que procuraram ajuda ilícita para interromper a gravidez indesejada. Relatos de quem viveu na pele os perigos e receios da clandestinidade brasileira.
Universos inexplorados abriram suas portas para nossa reportagem: veganismo, daltonismo, bruxaria; fatos e histórias desconhecidos do grande público esperando para serem devorados pelos leitores. Então aproveitem e boa leitura a todos!
53 O líder da unificação A busca de Nelson Mandela pelo fim do apartheid na África do Sul, por meio do esporte e da união entre brancos e negros na torcida.
EXPEDIENTE
Coordenação de Projeto Gráfico Gabrielle Hartmann Grimm Edição de texto Alessandra Becker e Bruna Karas Diagramação Ana Justi Projeto Gráfico Isado Nicastro
Reitor José Pio Martins Coordenadora do Curso de Jornalismo Maria Zaclis Veiga Ferreira Professora Orientadora Ana Paula Mira
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cidadania
por trรกs
DO LIXO
Entenda o que acontece com o lixo que sai da sua casa e conheรงa a realidade dos profissionais que fazem do lixo sua renda mensal Por Jaqueline Baumel
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isso que pensa o psicólogo Raphael Lascio, coordenador do curso de Psicologia da Universidade Positivo. Ele explica que esses profissionais são tratados como invisíveis pela sociedade. “São raras as pessoas que notam, cumprimentam e dão valor a esses profissionais. Se não fossem eles, nós viveríamos cercados de lixos e suas consequências”. E foi esse sentimento, de invisibilidade, que senti em Margarete quando perguntei se sofria algum tipo de preconceito: “Ixe, é o que mais tem! Mas a gente releva!”, respondeu. Sentimento não apenas de invisibilidade, mas de conformismo também. Como se ser visto pela sociedade desta maneira fosse a sina de sua profissão. A tese de doutorado “Moisés e Nilce: retratos biográficos de dois garis. Um estudo de psicologia social a partir de observação participante e entrevistas”, feita pelo psicólogo Fernando Braga da Costa, da Universidade de São Paulo (USP), em 2008, uma sequência da sua dissertação de mestrado defendida em 2002, reforça a invisibilidade dos profissionais que vivem do lixo em nossa sociedade capitalista. Durante dez anos, um ou dois dias por semana, o psicólogo desempenhou o ofício de gari no campus da USP da capital paulista. Por meio da vivência como gari e também da convivência com outros profissionais da mesma área, como Nilce e Moisés, que aparecem como entrevistados em sua tese, Costa testemunhou um antagonismo de classes. “Na sociedade de classes, deslocar-se para o lado dos oprimidos é o que possibilita enxergar o mundo de um lugar diferente do meu, um lugar o mais próximo possível do ponto a partir do qual a vida se abre para o meu interlocutor”. Entre as tarefas de um gari, praticadas pelo psicólogo, estão varrer ruas, cortar mato, retirar o barro das guias. “São atividades cronicamente reservadas a uma classe de homens proletarizados; homens que se tornam historicamente condenados ao rebaixamento social e político”. E é praticando essas atividades que os garis se tornam invisíveis aos olhos da sociedade. Quando vestido com seu uniforme de gari, nem mesmo seus amigos o olhavam. “A invisibilidade pública, desaparecimento de um homem no meio de outros homens, é expressão pontiaguda de dois fenômenos psicossociais que assumem caráter crônico nas sociedades capitalistas: humilhação social e retificação”. Na tese, o psicólogo relata, entre outros, um momento presenciado durante sua experiência. Durante um dos dias de serviço, Nilce, uma das entrevistadas, se nega a limpar o Restaurante dos Professores da universidade pra evitar humilhações, frequentemente enfrentada por ela e seus colegas de profissão. “Eles humilham a gente, então é melhor evitar contato. Pra gente não ficar deprimido”, disse ela. Dá pra supor que o sentimento de invisibilidade vivenciado por estes profissionais deve ser prejudicial. Fernando defende em sua tese que essa situação prejudica a comunicação entre os humanos. “Estabelece-se entre os sujeitos um tipo de conversa que não é conversa, mas regime daquilo que, em geral, consagra o que é primordial numa economia capitalista: troca de mercadorias ou serviços”. Para o psicólogo Raphael, essa sensação de inferioridade desses profissionais pode resultar em baixa estima, depressão, menos valia e angústia. “Sensação de inferioridade é a pior sensação que existe”, comenta.
Era uma quinta-feira à tarde quando me encontrei com Margarete Correia, de 49 anos. Com um sorriso no rosto, ela me recebeu em sua associação, uma das quatro responsáveis pela reciclagem do lixo da cidade de Campo Largo, região metropolitana de Curitiba. A cidade não é grande, mas seus cerca de 200 mil habitantes produzem aproximadamente 25 mil quilos de lixo comum por dia, o que equivale a um pouco mais de 9 toneladas por ano. Em relação ao lixo reciclável, o valor produzido por dia chega a mais de oito mil quilos. Todos os dias, Margarete acorda cedo, às 6h30, dá uma limpada rápida na casa, e ruma em direção a sua missão diária: dar um destino a uma parcela do lixo reciclável da cidade. Naquela quinta-feira, ela me contou as dificuldades enfrentadas na profissão e sobre a felicidade que sente em ser uma coletora. “Eu gosto muito de trabalhar aqui. Sempre gostei. Mas é difícil. É sujo, mas é bom!”. Um dos motivos que a levaram a trabalhar com o lixo foi a falta de opção. Depois que a associação de reciclagem de lixo, onde trabalhou por quatro anos, fechou, ela teve que achar alguma outra forma de sobreviver. “Como a gente tá numa idade que não dá pra trabalhar, quase ninguém pega, né, daí eu resolvi montar uma [associação] pra mim”, disse. Ela não quis contar quanto consegue lucrar por mês, mas garantiu que não é muito, já que o quilo dos materiais custa muito barato. O quilo do papelão, por exemplo, custa R$0,39. Mas o valor é suficiente para pagar outros quatro funcionários e mais o aluguel do local. Correa conta com o apoio da prefeitura da cidade, que fornece capacitações para os coletores e encaminha os caminhões de coleta seletiva. Margarete faz parte dos 800 mil catadores brasileiros, profissionalmente não muito valorizados no país. Segundo o banco de dados da Catho, a média salarial nacional de um coletor de lixo é de R$ R$ 929,23, sendo o mínimo R$ 725,00 e o máximo R$ 1,200,00. “São desvalorizados e o tratamento por alguns é o mesmo do lixo. Precisamos dar valor a toda atividade e trabalho. Todo mundo é importante e precisa ser valorizado. Nem o salário deles é o merecido, mas, quando eles param, quem faz o trabalho deles? Alguém se voluntaria?”. É
“SÃO RARAS AS PESSOAS QUE NOTAM, CUMPRIMENTAM E DÃO VALOR A ESSES PROFISSIONAIS.” RAPHAEL LASCIO, PSICÓLOGO
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cidadania PARA ONDE VAI O LIXO O lixo coletado por esses “invisíveis” da sociedade, tanto o das ruas quanto o lixo comum das nossas casas, é destinado a um lugar específico para evitar problemas à saúde pública e também ao meio ambiente: os aterros sanitários. Antes da Política Nacional dos Resíduos Sólidos, criada em 2010 pelo decreto nº 7.404/10, o lixo podia ser depositado em lixões, onde o chorume, substância tóxica gerada com a decomposição da matéria orgânica do lixo, tem contato direto com o solo, o que contamina lençóis freáticos, por exemplo. A partir do dia 02 de agosto de 2014, o lixão foi proibido em todo o território nacional, o que obriga as prefeituras das cidades a terem um plano de gerenciamento para a disposição adequada dos resíduos. Neste plano, deve conter informações como diagnóstico da situação do lixo e metas para redução e reciclagem. Campo Largo, por exemplo, criou o plano em 2007 e faz parte dos 14% dos municípios brasileiros que oferecem o serviço de coleta seletiva, segundo a pesquisa Ciclosoft de 2012, estudo realizado pela associação Compromisso Empresarial para Com a proibição dos lixões, a prefeitura de Campo Largo criou um sistema de acondicionamento de resíduaos recicláveis > Foto: Jaqueline Baumel Reciclagem (Cempre). A prefeitura criou o sistema de acondicionamento de resíduos recicláveis “Reciclão”, por meio do Para diminuir esse grande volume de lixo existem pessoas qual um saco de lixo personalizado é cedido aos moradores como o Cesar Santos, morador de Guarujá, São Paulo. Desde os sete anos de idade, ele faz arte com material reciclável e, há três e, quando o caminhão da coleta seletiva leva o saco cheio de anos, decidiu se profissionalizar. Ele criou a marca “Recicl’Arte” material reciclável, um saco vazio é deixado para o morador. O caminhão da coleta passa em dias e horários específicos e uma página no Facebook para divulgar seu trabalho. Mas em todos os bairros da cidade e é acompanhado pela prefeiCesar sonha alto e quer, futuramente, criar uma loja online. Com material reciclável encontrado nas ruas, empresas, tura via satélite. “A gente consegue acompanhar o local e o ou dos próprios vizinhos, ele constrói carrinhos de brinquedo, horário em que o caminhão passa”, explica o coordenador do departamento de Lixo Urbano da secretaria municipal de Meio carretas, navios e até mesmo a “carruagem da Cinderela”. “Meu Ambiente da cidade, Lecir Tadeu Lopes dos Santos. objetivo é mostrar que com criatividade é possível transformar o descarte em arte e, assim, preservar os recursos naturais Mas, mesmo com a disposição dos sacos, muitos campo-larguenses não reciclam o lixo ou o fazem de maneira ina também melhorar a qualidade de vida”. Ele conta que, no correta. “Mais da metade do caminhão vai pro lixo”, contou a começo, fazia este tipo de arte para brincar. “Hoje faço para os coletora Margarete. A bióloga da secretaria de Meio Ambiente outros brincarem, por exemplo, tenho diversos brinquedos e do município explica os problemas ocasionados por este fato: enfeites doados para creches aqui do Guarujá”. “Isso afeta os coletores, que têm dificuldade durante a coleta. Cesar faz, em média, duas exposições por mês com duraNas associações, o trabalho de segregação é manual e a má ção de cinco a dez dias cada em empresas, escolas, prefeituras, centros comunitários, shoppings, ou qualquer lugar que tenha separação domiciliar gera condições insalubres, mau cheiro, diminui o potencial de reciclagem de certos materiais que interesse em conhecer sua arte. No dia 21 de agosto deste ano, vêm contaminados”. ele recebeu Prêmio Cultural Guarujá, um reconhecimento pelo Em contrapartida, muito material que poderia ser reciclado seu trabalho. “Além das obras feitas com descarte, incentivo vai para o lixo. Como a cidade não tem aterro sanitário próprio, o consumo consciente e o destino correto de cada matéria o lixo comum é encaminhado para um transbordo, um ponto das residências e empresas”, conta o artista, que acredita estar da cidade onde os caminhões descarregam o lixo para ser fazendo um grande benefício para o meio ambiente. encaminhado a um aterro particular no município de Fazenda “Eu não apenas recolho o material descartado, mas faço Rio Grande. Eu fui até esse ponto, juntamente com Lecir. É de uso dele, diminuindo o impacto ambiental. Mesmo que de forma pequena, mas com isso crio multiplicadores dessa espantar a quantidade de lixo, como garrafa e papelão, que ação e, quem sabe, até futuros artistas”. Com o lema “nada se poderia ser reciclado. É provável que esta não seja apenas a realidade de Campo Largo. Segundo a CEMPRE, o Brasil recicla desperdiça, logo não existe lixo”, Cesar prega que é possível apenas 2% do lixo urbano. reciclar 96% do lixo comum. 7
saúde
respeito AOS ANIMAIS
Defendendo a ideia de que o ser humano não deve explorar os animais, o veganismo busca o fim do uso de produtos de origem animal e conquista cada vez mais adeptos Por Amanda Bertoli
“A consciência de que não podemos exigir que nos tratem com respeito, se, ao mesmo tempo, pisamos em animais que sentem dor, temem e têm pavor da morte, como nós o temos”: essa é a primeira frase dita por Sônia Felipe quando questionada quais são as razões éticas por trás do meio de vida vegano. Sônia ajudou a fundar a Sociedade Vegana no Brasil em março de 2010, é doutora em Teoria Política e Filosofia Moral e autora de diversos livros, entre eles, “Galactolatria, mau de leite”, que tem como objetivo expor dados e informações sobre o sistema de extração do leite, a realidade da vida das vacas das quais ele é obtido, além dos malefícios que o produto pode causar à saúde humana. O veganismo, muitas vezes incompreendido devido à falta de informação, artigos científicos e pesquisas, é um modo de vida que tenta eliminar toda e qualquer forma de exploração animal dos produtos consumidos. O vegano não controla somente a sua alimentação, mas o vestuário, trabalho, entretenimento e comércio. Nenhum dos produtos utilizados pode ter origem animal. “Veganos não se divertem onde animais são usados como espetáculos ou força de tração. Veganos não se vestem com pele, couro, lã e seda, tiradas dos animais. Veganos não se embelezam com produtos compostos com ingredientes de origem animal ou testados nos olhos, estômago e pele de animais”, explica Sônia. Diferente do vegetarianismo, termo utilizado por pessoas que podem, ou não, ingerir produtos de origem animal, como peixe, leite, ovos, mel, entre outros, o veganismo é formado por vegetarianos estritos, ou seja, que não utilizam os produtos citados anteriormente. Cidadãos que, diferentemente dos vegetarianos, não aboliram somente de seus pratos, mas de todos os
setores de consumo tudo o que é produzido a partir de animais, com suas secreções ou partes tiradas deles, como lã, marfim, seda e laticínios. “A defesa dos animais feita por veganos também tem um caráter mais radical, e com isso não quero dizer fanático, quero dizer coerente com o princípio da igualdade na consideração dos direitos à vida, à liberdade e à autonomia para buscar o bem próprio a seu próprio modo, sem ter que se submeter ao manejo de sua vida pelos humanos”, conta Sônia Felipe. HISTÓRIA O termo “veganismo” foi criado em Londres em 1944, por Donald Watson e outras seis pessoas que fundaram a primeira sociedade vegana do mundo, justamente para diferenciar o vegetarianismo estrito do vegetarianismo mais “liberal”. O movimento vegano, sofreu oposição dos vegetarianos, mas teve o seu primeiro encontro realizado em novembro de 1944, em Londres.
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DIFICULDADES PARA ENCONTRAR PRODUTOS “A DEFESA DOS ANIMAIS FEITA POR VEGANOS É COERENTE COM O PRINCÍPIO DE IGUALDADE DOS DIREITOS À VIDA.”
“Por mais que o número de restaurantes e lanchonetes que servem opções veganas tenha aumentado nos últimos anos, ainda é muito difícil achar um lugar realmente confiável para comprar alimentos que não possuem origem animal”, desabafa a estudante curitibana Carla Ribeiro.“Os restaurantes e lanchonetes não oferecem opções veganas, mesmo existindo milhares de receitas de bolo e tudo o mais na internet, os empresários simplesmente nos ignoram e sua cozinha está repleta de restos de animais para o preparo de refeições, e eles não querem saber que podem nos alimentar de forma bem menos dispendiosa e ainda mais saborosa”, diz Sônia Felipe. A dificuldade de encontrar restaurante e lojas que vendam produtos especiais,muitas vezes é tão grande, que para ajudar os veganos na hora de escolher onde comer ou comprar alimentos, roupas e cosméticos que ainda são tão escassos nos mercados tradicionais, sites, blogs e até mesmo grupos no facebook tentam criar “Guias Veganos” para as principais cidades brasileiras. Em Curitiba, pode-se encontrar o blog “Veg Curitiba – Sendo Vegano na Capital Ecológica” e o grupo “VEGETARIANOS e VEGANOS CURITIBA” que listaram, e até mesmo criaram um mapa usando ferramentas online para ajudar na localização de estabelecimentos que atendem as exigências desses consumidores. “Os grupos no facebook, a internet em geral, são o meio mais rápido e fácil para encontrar ajuda e respostas para as nossas dúvidas. Desde o começo, foi na rede que recebi apoio e muita informação”, conta Carla Ribeiro, vegana há 8 meses. Também pensando na dificuldade de encontrar produtos, a Sociedade Vegetariana Brasileira (SVB) criou o “Selo Vegano” em 2013, com objetivo de auxiliar os consumidores brasileiros no momento de evitar carnes, laticínios, ovos e outros produtos animais. O selo que dá garantia de que o item de consumo é vegano avalia os produtos por meio de uma comissão de colaboradores da SBV, com auxílio de parceiros e outras organizações, além de um escritório de advocacia e um engenheiro de alimentos. Atualmente, há mais de 40 produtos certificados e 85 em fase de avaliação. Porém, devido à limitação da capacidade da SVB em acessar todos os fabricantes e comerciantes de produtos ditos veganos, existem opções que ainda não foram classificadas ou não receberam o selo no mercado. Com todas essas limitações, a maneira mais fácil e confiável de se alimentar seguindo a ética vegana é preparando as próprias refeições. “Vegana previnida leva de casa sua comida. Garantia de que não há ali nada mesmo que derive dos animais”, conclui Sônia Felipe.
SÔNIA FELIPE, VEGANA
Watson foi um pacifista, pioneiro da agricultura vegânica e militante dos direitos dos animais. Segundo a Vegan Society, organização que fundou, desde 1909 discutia-se dentro do movimento vegetariano a ética de consumir produtos derivados de leite. Na primeira edição da publicação Vegan News, do mesmo ano em que a Vegan Society foi fundada, Donald Watson explicou a sua motivação para criar a organização: “Podemos ver muito claramente que a nossa atual civilização é construída sobre a exploração dos animais, assim como as civilizações passadas foram construídas sobre a exploração dos escravos, e acreditamos que o destino espiritual do homem é tal que com o tempo ele vai ver com horror a ideia de que homens foram uma vez alimentados com produtos de corpos de animais”. Watson se tornou vegetariano aos 14 anos de idade, como promessa de Ano Novo, após ver um dos porcos da fazenda onde vivia ser abatido. Faleceu em 2005, com 95 anos. SOCIEDADE VEGANA BRASILEIRA No dia 14 de março de 2010, em São Paulo, foi fundada a Sociedade Vegana no Brasil de caráter pacifista e não violento, que tem como principais objetivos a divulgação dos direitos dos animais e o modo de vida vegano. Seus membros fundadores são Sônia T. Felipe, Leon Denis, Maurício Varallo, Silvana Andrade, Bruno Müller, Sérgio Greif e George Guimarães. “Entendemos que era tempo de marcar posição mostrando que a proposta abolicionista tem uma abrangência ética maior e mais profunda do que a reducionista. Era preciso distinguir o trabalho em defesa dos direitos dos animais, sem discriminar dia, hora ou espécie de animal, de outros trabalhos que afirmam proteger os animais, mas acabam por defender apenas alguns deles, esquecendo-se que todos os animais são igualmente dignos de consideração e respeito em seus interesses e direitos fundamentais.” conta Sônia T. Felipe. Em seu manifesto divulgado na internet, a Sociedade Vegana lista as restrições de consumo, assim como os interesses dos animais que devem ser respeitados. 10
saúde SAÚDE Quando a pessoa decide se tornar vegana, em geral, é levada principalmente pelas razões éticas e amor pelo meio ambiente e pelos animais. Entretanto, uma dieta que restringe o consumo de alimentos tradicionais e presentes na maioria das receitas, como leite e ovo, deve ser feita de forma racional e, principalmente, saudável. A orientação de um nutricionista é essencial, pois é necessário encontrar fontes alternativas para ferro, cálcio e vitamina B12, por exemplo. Se houver a substituição adequada da proteína animal, a dieta vegana não causa carência de nutrientes, e consequentemente os veganos são tão saudáveis quando os cidadãos que seguem uma alimentação comum. A Associação Americana de Nutrição possui uma posição amistosa em relação ao veganismo. “Dietas vegetarianas bem planejadas, incluindo dietas veganas, são saudáveis, nutricionalmente adequadas, e podem oferecer vantagens para a saúde na prevenção e tratamento de determinadas doenças”, publicação da associação, em seu jornal, em 2009. Entretanto, a Associação Brasileira de Nutrição (ASBRAN) divulgou o parecer do Conselho Regional de Nutricionistas da 3a região (CRN-3) que recomenda atenção. “Dieta vegetariana estrita (vegana) não apresenta fontes nutricionais de vitamina B12, que deve ser fornecida por meio de alimentos fortificados ou suplementos. Os elementos que exigem maior atenção na alimentação ovolactovegetariano são ferro, zinco e ômega-3. Na dieta vegetariana estrita deve haver atenção, além de vitamina B12, para cálcio e proteína”, diz a ASBRAN. MODA Além de não ingerir produtos de origem animal, os veganos também não utilizam qualquer roupa, acessório ou produto de beleza que tenham essa mesma origem. Cosméticos testados nos bichos também são vetados pelos adeptos da ideologia. Renata Cardoso, formada em Direito e vegana há mais de um ano, conta que sua rotina mudou desde que aderiu a esse meio de vida. “Agora sempre leio os rótulos e etiquetas dos produtos que eu compro, além de só comprar depois de checar se a empresa faz testes em animais ou não”, conta. No momento de escolher as suas roupas, Renata explica que nunca gostou de couro, porém teve que encontrar alternativas para lã, seda e camurça. “Compro principalmente peças de algodão e linho ecológico, calçados e botas feitos somente de material sintético, o preço não varia tanto quanto as pessoas pensam, estão na média por serem de qualidade”.
VEGANISMO NA MÍDIA MUNDIAL O veganismo começou a ser mais comentado nos últimos meses principalmente por ter se tornado popular entre celebridades, mesmo que de forma temporária. O chamado veganismo “meio-período”, ou seja, que na maioria das vezes dura uma semana ou um mês, é adotado principalmente como uma forma de “limpeza espiritual e física”, como definiram a cantora Beyoncé e o marido, o rapper Jay-Z, que aderiram à dieta vegana por 22 dias no começo desse ano. Campanhas criadas e divulgadas por celebridades, como a “Segunda Sem Carne”, que Paul McCartney lançou para estimular as pessoas a cortarem o consumo de carne por um dia da semana, também contribuem para a divulgação do veganismo e vegetarianismo. Segundo a Vegan Society, existem 150 mil veganos na Grã-Bretanha, ou seja, uma em cada 400 pessoas. De acordo com a mesma organização, houve um aumento de 40% do número de pessoas que aderiram ao veganismo “meio-período” nos primeiros dois meses de 2013 em comparação com o mesmo período de 2012. No Brasil, entretanto, não existem dados ou pesquisas que definam o número de veganos no país. “Estamos insistindo para que o IBGE inclua no próximo Censo a pergunta sobre se há na família alguém que segue a ‘dieta vegetariana’ ou a ‘dieta vegana’.” diz Sônia Felipe, fundadora da Sociedade Vegana Brasileira.
perfil
A VIDA ALÉM
das telas
Nascido em Morretes, no Paraná, o artista decendente de italianos, Theodoto De Bona iniciou sua atividade na pintura desde cedo; se vivo, completaria 110 anos em 2014 Por Andressa Turin
Uma página em branco. Uma tela em branco. Inspiração. Às vezes fico imaginando de onde os artistas tiram tantas ideias. Com certeza em algum momento já lhes faltou inspiração, e acredito que com o pintor Theodoro De Bona não tenha sido diferente. O artista nasceu em Morretes – município brasileiro situado na região litorânea do Paraná – dia 11 de junho de 1904. Este ano, se vivo, De Bona estaria completando 110 anos. Descendente de italianos, seus pais Antônio de Bona e Cesira Bertazzoni, nasceram na Itália, mas se conheceram e casaram somente quando ambos já moravam no Brasil. Seu Antônio tinha uma oficina de caldeireiros, na qual a família fabricava alambiques de cobre – um aparelho para destilar bebidas – para os engenhos de aguardente da região. Ainda menino, De Bona levantava cedo para ver o nascer do sol por detrás do pico do Marumbi, o qual mais tarde retrataria em suas telas. A casa onde morava com os pais, ficava na estrada do Anhaia e a única janela do velho casarão tinha como paisagem a Montanha do Marumbi, paisagem esta que acompanhou De Bona para o resto de sua vida. Quando tinha 7 anos se mudou para Curitiba e foi morar com o tio paterno Arcângelo para dar continuidade aos estudos. Foi na escola Bom Jesus, já na capital paranaense, que demonstrou interesse e talento para 13
a pintura. Ainda adolescente, aprendeu a pintar com a professora e artista curitibana Gina Bianchi. Nunca mais parou. Aos 13 anos, o menino ficou órfão, sua mãe faleceu em 1917 e logo no ano seguinte perdeu seu pai em um desastre de estrada de ferro. Ao entrar na casa de Gioconda De Bona Moraes, filha mais velha do artista, que mora no bairro Água Verde em Curitiba, achei que estava entrando em um museu. Não pelo fato de a casa ser velha ou por ter muita coisa antiga, mas pela impressionante quantidade de quadros expostos na parede da sala em que me recebeu. Os quadros, obviamente, foram pintados por seu pai, pelo menos a grande maioria deles. A sala de estar é o local onde fica exposta a maior parte, porém, na sala de jantar havia mais deles e no segundo andar mais alguns. Para minha surpresa Gioconda explica que ela e sua irmã, Iracema De Bona Foltran, não são as maiores detentoras das obras de arte As duas filhas de De Bona, Iracema de Bona Foltran (à esquerda) e Gioconda de Bona Moraes de De Bona. “O professor Ario de Argint, pro- (à direita), não são as maiores detentoras da obra do pai> Foto: Andressa Turin fessor da Federal do curso de administração, Assim como a maioria dos artistas, as filhas descrevem deve ter uns 200 quadros na casa dele. E tem também o o pai como uma pessoa sensível e bastante reservada. “Ele Fernando Schelem, esse gosta de arte, é meio fanático. A tinha muita sensibilidade, era uma pessoa que gostava minha casa perto da dele quase não tem quadros, na dele a muito de ajudar os outros. Com a gente ele sempre foi um parede desaparece. Eles são os grandes colecionadores da super pai, muito preocupado e carinhoso”, conta Gioconda. obra do meu pai”, finaliza a primogênita. Cuidadoso que só com as filhas, Gioconda acredita que o Pai de duas meninas, Theodoro De Bona era conhecido pai teria sofrido menos se tivesse vivido na época do celular. por sua tranquilidade e simplicidade. Contrariando a des“Se a gente saía e passava da hora de voltar para casa, nem cendência italiana, o artista não era uma pessoa explosiva, que fossem poucos minutos, ele já ficava desesperado, saía de fala alta, muito pelo contrário, sua fala era quase sempre atrás da gente andando na rua e não sossegava até que mansa. Apaixonado pelo meio artístico e bastante crítico, chegássemos em casa.” Iracema tem uma recordação mais uma das poucas coisas que o tiravam do sério era discutir antiga. Ela lembra que, quando eram crianças, De Bona arte, é claro. Quando alguém falava alguma besteira sobre as colocava para dormir cantando melodias de ninar em arte, aí ele se exaltava. “Ele ficava doido da vida quando disitaliano, frisa. Após tantos elogios pergunto se o pai dava cutiam de arte com ele, era muito crítico. Não gostava que broncas ou brigava com elas em algum momento, ao que as pessoas ficassem opinando enquanto pintava”, afirma a me respondem que essa era a função da mãe, Argentina filha caçula, Iracema. Turin, que era mais rígida e a italiana “de verdade” na família. Theodoro De Bona tinha algumas manias gastronômicas peculiares e que mais tarde seriam conferidas a ele como características quase que próprias. Se o jeito não era italiano, a mania de comer pão em todo e qualquer tipo de refeição – que até hoje é adotada pelos nascidos na Itália – era fre“ELE FICAVA DOIDO DA VIDA quente no seu dia a dia. Contudo, o artista ia além, até na QUANDO DISCUTIAM ARTE sobremesa o pão estava presente. Sempre muito magro, o COM ELE, ERA MUITO CRÍTICO pintor amava doces e quando não tinha algo adocicado ao NÃO GOSTAVA QUE AS PESSOAS seu alcance comia açúcar puro mesmo. “Colocava na mão OPINASSEM QUANDO PINTAVA.” assim – fazendo gestos de quem coloca um punhado de açúIRACEMA DE BONA, FILHA DO PINTOR car no meio da palma da mão – e comia”, recorda Gioconda. Outro fato incomum é de que, diferente da maioria dos artistas, De Bona não gostava de vender suas obras. A filha mais velha recorda-se de uma história engraçada envolvendo um dos colecionadores: “Vai pintar seu De Bona? Vou comprar esse quadro. E meu pai respondeu: Como vai 14
perfil comprar se nem sabe o que eu vou pintar? Se eu pintar um porcaria, vai comprar também?”, diverte-se. Iracema conta que, quando iam passar um tempo na casa da praia, o pai pintava algumas paisagens e as colocava para secar encostadas na parede, logo aparecia um dos colecionadores e o artista corria para esconder as pinturas. De Bona era assim simples, para ele arte não se comercializava. Em algumas ocasiões chegava a pagar médico e dentista com os quadros e quando as filhas reclamavam falando que desvalorizaria suas obras, ele retrucava falando que se tratava de presentes a amigos. Depois que aprendeu a melhorar as técnicas de pintura básica com Gina Bianchi e aconselhado por João Turin, seu amigo e também artista paranaense, De Bona procurou Alfredo Andersen, artista norueguês que montou um atelier em Curitiba, onde dava aulas de pintura artística. Em 1921, com 17 anos, De Bona ingressou na Escola Andersen. Tinha aulas duas vezes por semana de dia e de noite. No período noturno as aulas eram de desenho artístico de modelo vivo feitas geralmente em carvão, já no período matutino desenhavam cabeças e bustos masculinos em pin- Autorretrato feito por De Bona em 1945. Óleo sobre tela 50 x 40 cm. O quadro faz parte da coleção da família De turas a óleo. Em 1922, The- Bona> Foto: Andressa Turin odoro De Bona começava, então, a verdadeira carreira Logo que retornou ao Brasil, acabou conhecendo Arde pintor, que com o passar dos anos se mostraria cheia gentina Turin, com quem viria a se casar em 1944. O casal de imprevistos. se conheceu no atelier de João Turin, quando Argentina foi Em 1927, quando tinha 23 anos, conseguiu uma bolsa entregar seu convite de casamento. Na época ela era noiva de estudos - por intermédio de João Turin e Lage de Morde outro rapaz. Mas quis o destino que eles se conhecesretes - para estudar durante dois anos na Real Academia sem. Recém-casados, foram morar no Rio de Janeiro, onde de Belas Artes em Veneza, na Itália. Acabou ficando quase ficaram por 20 anos. Na cidade maravilhosa, a vida tam10 anos. Tempos difíceis, pois como ficou por conta não bém não foi fácil, pois nem o pintor nem a mulher tinham tinha como se manter. Certa vez teve que pedir um par de emprego. Como ele ainda não era conhecido, raramente sapatos emprestado a um amigo para ir a uma exposição. vendia alguma pintura, somente uma vez ou outra. Mas “Apesar das dificuldades, a arte nunca abandonou ele e ele mesmo passando por dificuldades, o pintor se sacrificou e nunca a abandonou”, diz Gioconda. conseguiu pagar os estudos das duas filhas em uma escola 15
“ELE FICAVA DOIDO DA VIDA QUANDO DISCUTIAM ARTE COM ELE, ERA MUITO CRÍTICO NÃO GOSTAVA QUE AS PESSOAS OPINASSEM QUANDO PINTAVA.” IRACEMA DE BONA, FILHA DO PINTOR
Apesar da paixão por arte e por transmitir esse amor a suas filhas no cotidiano, ele jamais incentivou-as a seguir esse caminho. Dizia que aquilo não era trabalho para elas, que elas iam se casar, ter filhos e cuidar da família. “Para ele o artista tinha que se dedicar somente à arte, não poderia fazer outra coisa. Era exclusivamente a arte”, explica Gioconda. Tanto é que ele seguiu esse caminho, e passou a vida inteira dedicado ao trabalho artístico. Somente quando retornou a Curitiba é que aceitou dar aulas na escola de Belas Artes, onde foi professor e diretor, mas mesmo assim continuava conectado com a pintura e a arte em geral. Magro e cabeludo. Nunca ficou careca, quando mais velho a vasta cabeleira ficou branca como a neve. “A arte é uma amante que não perdoa. Sendo assim, é necessário estar sempre ao lado dela e com ela”, costumava dizer. De fato cumpriu o que dizia. Viveu da arte e pela arte até o momento em que foi possível. Em 1990, o Paraná perdeu um de seus grandes pintores, De Bona morreu aos 86 anos em virtude de um derrame que o acometeu quatro anos antes. Ficou com sequelas, não podia mais andar e tinha tremor nas mãos. De certa forma, a pintura morreu nesse dia. Ele nunca mais pôde pôr as mãos em um pincel, mas deixou sua marca registrada e, apesar das dificuldades, tornou-se um artista importante e de referência. A verdade é que Theodoro De Bona pode se considerar uma pessoa duplamente sortuda, pois, apesar das dificuldades que enfrentou e dos sacrifícios que teve que fazer, conseguiu viver somente da arte, sustentando duas filhas e a esposa. Sua grandeza e talento foram reconhecidos pelos amantes da arte antes que viesse a falecer, podendo o artista transformar e tocar a vida de diversas pessoas fazendo o que mais amava, pincelando telas em branco até que se transformassem em belas obras de arte.
particular de freiras. De Bona não permitia que a mulher trabalhasse por questões culturais da época. Antigamente era papel do marido ser o chefe da família e provedor do lar. E o artista acreditava que era ele quem tinha que arcar e assumir com as responsabilidades de sua família. A faceta pouco conhecida era a de escritor. Moravam em um lugar alto, no Rio de Janeiro, quando um passarinho caiu do ninho. O pintor colocou o bicho em uma caixinha e a mãe vinha alimentar o filhote colocando comida no bico do passarinho. A história transformou-se em conto sobre o amor materno, nunca publicado. Manchinha, era assim que o artista se referia ao seus quadros bem pequeninhos. Considerava-se um artista impressionista, tinha preferência por pintar paisagens e não se incomodava que as pessoas ficassem ao seu redor enquanto pincelava ao ar livre. Apesar disso, também fazia retratos, retratou suas filhas, sua mulher e até a si mesmo em algumas telas. Com um realismo incrível, ao observar os retratos do artista parece que enxergamos a pessoa a nossa frente. Sua maior inspiração era a própria natureza. As filhas recordam que o pai sempre comentava que as pessoas não apreciavam a beleza da natureza. As pessoas viajam para fazer compras. Onde já se viu ir para Foz do Iguaçu e ficar fazendo compras ao invés de olhar as maravilhosas Cataratas? – indignava-se. A religião também é algo presente em seus desenhos, por ser bastante religioso, De Bona pintou, ao longo de sua vida, 14 quadros da via sacra e acabou os dando para a igreja de Muitos quadros pintados por De Bona encontram-se nas coleções particulares de colecionadores de arte Morretes, sua cidade natal. curitibanos > Foto: Andressa Turin 16
comportamento
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QUANDO PASSA DA
hora de parar Se a era digital é marcada pelo enorme acesso às informações, o revés vem na forma de uma ferramenta capaz de causar um dos principais males da atualidade: o cyberbullying. Se o “tradicional” já é altamente prejudicial, na rede ele ganha força, sendo responsável pela exposição da vítima para o mundo todo Por Kawane Martynowicz Jochem era um adolescente gordinho. Obesidade, em qualquer lugar no planeta, é motivo para não se levar uma vida normal: Eele sofria provocações de diversos colegas da escola, da rua ou em qualquer lugar por que passava. Era sempre o último a ser escolhido nas aulas de educação física, mas isso era o mais tolerável dos males. As ofensas contra ele ficaram cada vez mais intensas, e Jochem teve suas roupas roubadas do vestiário enquanto tomava banho, apanhou e foi humilhado pelos colegas. Muitos apenas riam e contribuíam proferindo palavras maldosas. Três meninos, comandados por uma menina, eram os que partiam para a ação e tornavam a vida de Jochem um completo inferno. Até seu próprio professor não tomava nenhuma atitude, pelo contrário, ria junto e o menosprezava diante de todos. Em decorrência disso, ele passou a ter um comportamento depressivo e depreciativo. No entanto, dois colegas se aproximaram dele e tentaram ajudá-lo, mas a situação saiu do controle quando o garoto foi forçado por seus atormentadores, a tomar bebida alcoólica em uma festa. No dia seguinte, o diretor da escola disse que Jochem não havia voltado para casa. Sentindo-se culpados por não terem o apoiado, os dois colegas de classe resolveram procurá-lo, sem imaginar que talvez fosse tarde demais. O jovem, embriagado e fragilizado, se afogou em um lago, dias depois seu corpo foi encontrado por um amigo que tinha uma mãe jornalista e tornou a história pública, apontando os culpados e fazendo com que fossem punidos. A família de Jochem, altamente abalada, desconhecia o problema que o garoto enfrentava. Tímido e constrangido, não se abria com ninguém. A história não é real, mas a visão é a mais realista possível do bullying nas escolas; inúmeros casos semelhantes acontecem todo dia pelo mundo afora. Isso se trata de um spoiler do filme holandês “Spijt - Um Grito de Socorro”, de 2013. A ideia de adaptar a história de Jochem para o cinema, proveniente de um best-seller da autora holandesa Carry Slee, foi um sucesso entre os jovens. O filme levou milhares
de espectadores aos cinemas da Holanda e recebeu prêmios por toda a Europa, em premiações em que, geralmente, jovens entre 12 e 14 anos decidem os indicados e os vencedores. Em 2014, o júri jovem do “European Film Awards” o elegeu como o melhor filme do ano. Desse modo, é possível ver como o tema vem preocupando adultos, crianças e adolescentes. Foi assistindo a esse filme, no Supercine do dia 19 de julho, que refleti a respeito do tema. Depois de muito chorar, percebi que o bullying não acaba quando o filme termina, mas, sim, pode estar acontecendo simultaneamente ao lado da minha casa. “Muitas vezes, a vítima que não consegue reagir ao agressor é tida como fraca, como intolerante, e daí vem o problema. A criança ou adolescente está pedindo socorro, e ninguém é capaz de escutar o seu grito de socorro”, afirma a psicóloga Annelise Haritini Hilling. Este não é nem o primeiro e nem o último filme a abordar este tema. Cada vez mais o mercado cinematográfico constrói suas narrativas com base nele devido aos frequentes casos que chocaram a população nos últimos tempos. Desde 1976, com o filme de terror “Carrie, A Estranha”, o colegial, que até então só inspirava filmes de comédia e romance, mostrou o preconceito dentro do ambiente escolar de uma maneira nova, em uma época em que a palavra bullying sequer existia. Só que como a personagem era dotada de poderes sobrenaturais, ela conseguiu matar e se vingar de todos aqueles que a “zoavam”. Na vida real isso é quase impossível, por isso os casos mais não ficcionais passaram a adquirir espaço. A ORIGEM A palavra bullying é nova. Trata-se de um termo em inglês utilizado para designar a prática de atos agressivos entre estudantes. Traduzido ao pé da letra, seria algo como intimidação, ou seja, quem sofre com o bullying é aquele aluno perseguido, humilhado, intimidado. O bullying começou a ser pesquisado cerca de dez anos atrás, na Europa, 18
compor tamento pelo professor Dan Olweus e seus estudos realizados na Universidade de Bergan- Noruega (1978 a 1993), quando foi descoberto o que estava por trás de muitas tentativas de suicídio entre adolescentes. Sem receber a atenção da escola ou dos pais, que geralmente achavam as ofensas bobas demais para terem maiores consequências, o jovem recorria a uma medida desesperada. Porém, o governo norueguês atentou seu olhar para essa violência após o suicídio de três crianças, entre 10 e 14 anos, que provavelmente foi influenciado por atos de maus tratos dos colegas. A partir disso, a autoridade norueguesa, pressionada pela população, realizou a Campanha anti-bullying nas escolas, que diminuíram significativamente seus índices, viabilizando a melhora no desempenho acadêmico. Atualmente, todas as escolas do Reino Unido já implantaram políticas anti-bullying. “Bullying é um termo que caracteriza a violência intencional de maltratar um companheiro que não consegue se desvencilhar de tal atitude agressiva. Muitos comportamentos inerentes do relacionamento infanto-juvenil, muitas vezes, acabam caracterizados inadequadamente como bullying por falta de conhecimento deste universo, ou por interpretação apressada dos envolvidos”, explica Annelise. O bulicídio é a palavra atribuída à morte de uma pessoa (ou por suicídio ou por homicídio) devido ao bullying. O termo foi primeiramente utilizado em 2001, por Neil Marr e Tim Field, no livro “Bullycide: Death at Playtime”. BRASIL O primeiro estudo feito aqui no Brasil a respeito desse assunto foi o “Diga não ao bullying: Programa de Redução do Comportamento Agressivo entre Estudantes”, realizado pela Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e Adolescência (Abrapia). Segundo a instituição, entre os anos de 2000 e 2004, a Abrapia pesquisou e constatou que 40,5% dos alunos admitiram estar envolvidos com situações de bullying, revelando também que este fenômeno se faz presente com índices superiores aos dos países europeus. Nesta pesquisa foram ouvidos 5 800 alunos de instituições cariocas, duas particulares e nove públicas, de 5ª a 8ª série do antigo ensino fundamental. Desse total, 40,5% dos estudantes admitiram que estiveram diretamente envolvidos em atos de bullying, sendo que 16,9% se identificaram como alvos,
“MUITAS VEZES A VÍTIMA NÃO CONSEGUE REAGIR AO AGRESSOR, E É VISTA COMO FRACA.” ANNELISE HARITINI HILLING, PSICÓLOGA
12,7% como autores e 10,9% autores e alvos. Os outros 57,5% negaram ter participado de situações de bullying. A psicóloga diz que, quando falamos de bullying, sempre pensamos apenas no agredido, e esquecemo-nos do agressor. Portanto, temos sempre que analisá-lo sob diversos pontos de vista. Nos colégios particulares, são muito valorizados os bens materiais, como carro, tênis importado e roupas de marca. Nessas instituições, não possuir algum desses bens pode ser motivo para perseguições. Já nas escolas públicas, a principal razão é a própria violência vivenciada dia a dia pela comunidade. Os estudos da Abrapia revelam que não há grandes diferenças entre as escolas avaliadas e os dados internacionais. O inusitado foi o fato de que aqui os estudantes identificaram a sala de aula como o local de maior incidência desse tipo de violência, enquanto, em outros países, ele ocorre principalmente fora da sala de aula, na hora do intervalo. “Freud dizia que a civilização procura unir os seus membros pelo amor, fazendo com que estes se tornem um só por meio do fortalecimento dos vínculos e dos seus relacionamentos, formando um grupo. Ao fazer parte deste grupo, uma das primeiras exigências da civilização é a justiça, ou seja, a garantia de que todos terão tratamento igual, e o sendo de que todos serão amados da mesma forma. Esta é a raiz da consciência social. Quando este processo é afetado ou interrompido, o indivíduo vai se isolar e achar que não faz parte do grupo, bem como não é amado suficientemente para poder vincular-se e criar os laços emocionais necessários para se inserir no meio social”, analisa a psicóloga. Cinco anos depois, uma pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2009, revelou que quase um terço (30,8%) dos estudantes brasileiros teriam sofrido bullying, sendo a maioria das vítimas do sexo masculino. A maior proporção de ocorrências foi registrada em escolas privadas (35,9%), uma vez que nas públicas os casos atingiram 29,5% dos estudantes. Neste mesmo ano, outra pesquisa do IBGE apontou as cidades de Brasília e Belo Horizonte como as capitais brasileiras com maiores índices de assédio escolar, com aproximadamente 35,6% e 35,3% de alunos que declararam esse tipo de violência nos últimos 30 dias. Aqui em Curitiba, a partir de 2011, foi determinado que todas as escolas deveriam registrar os casos de bullying em um livro que identificaria os envolvidos, o tipo de agressão e as providências tomadas. No entanto, essa iniciativa anti bullying não foi a primeira estabelecida no país. No Rio de Janeiro, uma lei estadual sancionada em 23 de setembro de 2010 instituiu a obrigatoriedade de escolas públicas e particulares notificarem casos de bullying à polícia. Em caso de descumprimento, a multa pode ficar entre três e vinte salários mínimos para as instituições de ensino. CYBERBULLYING No geral, existem três tipos de bullying, classificados pelo autor Allan Beane em seu livro “Proteja seu filho do bullying: impeça que ele maltrate os colegas ou seja maltratado por eles”: o físico, explícito em tapas, empurrões, roubos e qualquer tipo de agressão física, ameaças e linguagem corporal
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intimidadoras; o verbal, presente nos contínuos apelidos e comentários ofensivos e humilhantes; e o bullying social e relacional, caracterizado pelo uso das relações para humilhar os outros, como destruir reputações, relacionamentos e excluir, rejeitar e isolar a vítima de um grupo. Contudo, com o avanço da internet, uma nova forma de praticar bullying surgiu, denominada cyberbullying. Se a era digital é marcada pelo enorme acesso às informações, conteúdos instantâneos e de busca fácil, o revés vem na forma de uma ferramenta capaz de causar um dos principais males da atualidade: o bullying virtual, ou cyberbullying. Se o “tradicional” já é altamente prejudicial, na rede ele ganha força, sendo responsável pela exposição da vítima para o mundo todo. O cyberbullying é um tipo de bullying praticado por meio da internet que busca humilhar e ridicularizar as vítimas perante a sociedade virtual. Através da internet, os insultos se multiplicam rapidamente e ainda contribuem para envenenar outras pessoas que conhecem a vítima. Os principais meios virtuais utilizados para espalhar difamações e calúnia são as redes sociais, e-mails, blogs e mensagens privadas. Além de discriminar as pessoas, os autores, muitas vezes, são anônimos, dificultando que sejam descobertos, mas ainda assim os responsáveis pela calúnia geralmente são identificados. No entanto, para Annelise, não há diferença, se tratando de efeitos no ser humano, entre o bullying normal e o virtual. “Quanto aos efeitos no ser humano, a única diferença está na subjetividade de cada um, e de como os ataques irão afetar a sua individualidade. A internet é um território novo, com dimensão imaterial, destituído de controle e de disciplina, o que acaba por gerar tal insegurança”. No Brasil, uma pesquisa feita em 2010 com 5.168 alunos de 25 escolas públicas e particulares apontou que as humilhações típicas do bullying são comuns em alunos de 5ª e 6ª séries. Entre os entrevistados, pelo menos 17% estavam envolvidos com o problema, seja intimidando alguém, ou sendo intimidado, ou os dois. De acordo com o estudo, a forma predominante foi a cibernética, tendo a maior parte das difamações em sites de relacionamento como o Orkut. Em fevereiro de 2012, pais de duas adolescentes de Ponta Grossa, aqui no Paraná, foram condenados pela Justiça após uma denúncia de cyberbullying cometido pelas filhas, a pagar R$ 15 mil de indenização por danos morais para a família da vítima. As colegas de sala da adolescente teriam conseguido a senha de uma página de relacionamentos na internet e manipularam a conta da garota, postando conteúdos pornográficos e alterando sua fotografia de perfil. Após postarem as mensagens, as autoras ainda cancelaram a senha da vítima, impedindo seu conhecimento a respeito da situação. A.I.B, cuja identidade não será revelada, afirma que no ensino fundamental, cerca de seis anos atrás, não ia com a cara de uma colega de sala, e por isso sentia um enorme prazer em destratá-la. A palavra bullying estava começando a ser implantada nas escolas, mas ela não se importava. “Hoje eu sinto vergonha do que fiz, e queria encontrar com essa menina pra
pedir perdão. Eu ainda odeio muitas pessoas, mas não ao ponto de xingar todo dia, trocar mensagens com as minhas amigas execrando-a nas suas costas, espalhar boatos pela escola inteira, tocar o terror mesmo. Lembro que nesse ano tivemos palestras e teatros de conscientização contra o bullying, mas eu nem me tocava que já tinha passado da hora de parar. Para mim, o que eu fazia era só uma diversão, que me fazia tão bem que chega a me assustar”, confessa. A psicóloga esboça o perfil de um agressor, dizendo que “para Freud (1921), toda relação emocional contém sentimentos de aversão e de hostilidade. A criança que é suscetível à prática do bullying demonstra isso nas suas atitudes de aversão ao outro, muitas vezes pelo desejo de preservar-se, exigindo que o outro se altere de acordo com a sua crítica. Essa autopreservação, muitas vezes, é feita de maneira agressiva, sem respeito ao outro. A tolerância ao outro persiste apenas enquanto existe a colaboração, fazendo com que estas atitudes sejam lucrativas do seu ponto de vista psíquico”. O cyberbullying pode ser considerado tão grave quanto o bullying praticado pessoalmente, podendo levar a vítima, em alguns casos, ao suicídio. No dia 02 de agosto de 2013, a adolescente Hannah Smith, de 14 anos, foi encontrada enforcada após ter se matado por conta de ofensas na internet através do site Ask.fm. Essa rede social é completamente nociva, pois as pessoas podem fazer perguntas e enviar mensagens sem precisar se identificar, como aconteceu com a garota. Os recados diziam para a garota se suicidar, como “go comit suicide but suced pls”, “go cut ur self n die” e “go die”. Assim como Hannah, eu mesma também recebia inúmeras mensagens de insulto nesse site - e milhares de pessoas sofrem com isso, como pude notar - mas o desativei, pois estavam, além de incomodando, me ferindo. Entretanto, as recepções são diferentes, assim como as reações. Uns matam. Outros se matam. Eu estava mais perto da primeira opção. 20
compor tamento “Não podemos estabelecer estágios para os sentimentos das pessoas. O que é necessário são pais, psicólogos, professores e todos os que estão envolvidos na rede de relacionamento do indivíduo, que estão monitorando o bullying, estarem atentos aos envolvidos e prestarem a ajuda que for necessária para aquele momento, para que não chegue ao ponto de a pessoa tomar tal atitude”, ressalta Annelise. Nos últimos meses, o que se intensificou como uma das mais evidentes demonstrações de cyberbullying foi a criação de páginas no Facebook para “zoar” grupos de pessoas, no geral os “famosinhos” da internet - celebridades instantâneas que se destacam rapidamente e causam a ira, inveja, antipatia e o chamado recalque de muitas pessoas, as quais decidem agir por trás do anonimato e denegrir suas imagens publicamente para satisfazer esses sentimentos obscuros. Muitas dessas páginas estão sendo denunciadas, de modo que ficam inativas, e a única opção para os administradores é excluí-las. Contudo, outras ainda estão aí, gerando posts diários com frases ofensivas e montagens sobre tudo relacionado ao cotidiano das vítimas, desde como se vestem até com quem saem. Giovane Bugala Pereira, 19 anos, mora no bairro curitibano Hauer. Muralha Lds no Facebook. “Ganhei esse apelido há cinco anos na escola, não porque sou grande, mas porque eu era o melhor goleiro. Lds porque não tinha nada pra colocar”. O adolescente ficou famoso de repente na internet, após tirar fotos com a calça abaixada, uma moda entre alguns jovens, principalmente depois que o cantor Justin Bieber começou a fazer isso em seus shows. No geral, os meninos que fazem são intitulados de “viados”, e as meninas de “vadias”. De imediato, ele foi parar em diversas páginas de “zoeira” da cidade, como “Diabos de CWB”, “Cosplay do Diabo” e “Modinhas de CWB” (uma delas foi desativada e nas outras nenhum administrador quis se pronunciar), além de outras, como do Rio de Janeiro. Dessa maneira, Muralha passou a ser alvo de provocações. Porém, ser famoso também tem um lado bom. Seus milhares de
seguidores, admiradores, e meninas apaixonadas são os motivos pelos quais ele não se abala. “O que eu mais gosto é do carinho que algumas pessoas têm comigo. Muitos me tratam bem. Eu acho legal que as meninas fazem páginas pra mim (“Muralhetes”, “Sou Apaixonada Pelo Muralha”, “Muralha, Seu Gostoso”, e por aí vai), mostra que elas têm um grande carinho por mim”. “Com o bullying a gente sofre. Mas eu levo na brincadeira. As pessoas falam mal de mim sem me conhecer. Falam que sou metido, desumilde, e na verdade nunca falou comigo. Às vezes uns me mandam print das pessoas que falam que eu sou metido e que me acho muito. Tipo, me chamam de modinha porque uso roupa de marca, só porque eu gosto de andar no estilo, de andar na moda. E também porque frequento o Palla (Shopping Palladium)”. Este foi o desabafo de Muralha, que decidiu apenas não ligar para o que os outros falam dele na internet e viver sua vida sem se importar. “Quanto mais eles zoam, mais nós ficamos conhecidos”. Seus pais e familiares não sabem sobre essa fama repentina e suas consequências, típico comportamento das pessoas que sofrem com isso, como o caso de Jochem, personagem citado no começo dessa reportagem. Até os menos fragilizados, como Muralha, preferem não contar. “Eles nem sabem dessas paradas. Se eles soubessem, iriam falar pra eu me cuidar e não sair mais de casa”. Sobre quem tira a própria vida por conta dos casos de bullying virtual, o jovem diz: “Acho burrice quem se suicida. É só ir na delegacia e colocar a pessoa atrás das grades!”. O garoto afirma que pessoalmente é difícil acontecer bullying com ele. Parou de estudar ainda no primeiro grau, sendo a escola um dos lugares de maior índice de ocorrência da prática. Acredita que as pessoas só têm coragem de pegar mais pesado e difamar os outros no anonimato. “Às vezes acontece de os amigos dos meus irmãos me zoarem porque tirei foto de calça abaixada, e na rua acontece às vezes. Com os meus amigos, só um que é bem zoado. Aonde ele vai, ele sofre. Ficam zoando ele ou querem bater nele. Teve um dia que ele apanhou de quinze piás. Eu já fui ameaçado de morte, já falaram que iam me pegar, mas nunca fizeram nada até hoje. Mas eu tenho um pouco de medo, de morrer principalmente”, revela. “Teve um dia que estava toda a galera no Palla, na maior berração. Daí os seguranças vieram atrás da gente, e começamos a correr, e eles também. Aí nós fomos expulsos e estávamos seguindo pro Total. Do nada chegou uma galera com pedaços de pau, correndo atrás da gente. Só deu neguinho correndo. Uns correram pro terminal, outros voltaram pro Palla. Eu com mais cinco quase morremos; estava vindo um ônibus que quase pegou a gente. Um deles apanhou de cinco dentro de uma farmácia. E fazer o quê? Vida de famosinho é assim mesmo”. TRAUMAS O bullying e o preconceito na infância, com o tempo, não são esquecidos, e podem afetar a
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saúde mental dessa pessoa na vida adulta, como enfatiza a psicóloga. “O bullying não é um fenômeno novo na nossa civilização. Se conversamos sobre o assunto com pessoas mais velhas que sofreram disso quando crianças e/ou adolescentes, veremos que eles trazem marcas. Muitas não levaram em consideração as suas consequências, outras conseguiram superar, mas, quando questionados, lembram-se destes momentos de angústia. O bullying faz com que as pessoas criem defesas que podem, sim, acompanhá-las para o resto de suas vidas”. Um blogueiro anônimo, ao contar suas experiências com o bullying, também citou o filme “Spijt - Um grito de Socorro”. “Chorei muito, pois vieram as lembranças da época em que estudei e passei por esse momento ruim, no qual sofri o bullying, mas ainda nem existia essa palavra. Quando tinha onze anos, morava em uma rua onde não tinha muitos amigos, apenas dois, e esses dois compreendiam o que eu passava. Eles presenciavam o que outros garotos faziam comigo. Nessa mesma rua, moravam outros garotos que viam através de ofensas e violência uma forma de diversão. Se eu me deixasse levar por tudo isso, eu seria hoje uma pessoa revoltada. Na época meus pais me levaram a psicólogos, mas eu não contava o que estava acontecendo, tinha medo demais dos garotos. Na escola, a mesma coisa. Eu sempre gostei de estudar, não muito, mas gostava, e gosto até hoje. Mas tinham aqueles garotos que sempre me apelidavam com nomes ruins e riam por conta da aparência física: “Nossa, você tem um cabeção”, “Caramba, como cabe um boné aí?”, “Seus pais não sentem pena de você por ter um filho tão feio e parecido com o diabo?”. Não é exagero, tem outras coisas que prefiro nem lembrar. Enfim, muitos podem achar que é drama, mas não é. E isso, irei levar comigo pro resto da vida, não tem jeito”, desabafa.
“As questões relacionais são sempre um dos grandes pontos que são tratados no setting terapêutico, portanto, as técnicas de tratamento não irão se diferenciar por ser um caso de bullying, mas sim, pela forma como o indivíduo está sendo afetado por ele. Tratar será estabelecer uma transferência entre psicólogo e paciente, bem como a conduta terapêutica de cada psicólogo”. Segundo ela, o psicólogo irá orientar o paciente neste processo de achar seu espaço e se reconhecer como parte integrante de um grupo a despeito de outro, o qual insiste em dizer que ele não se encaixa. “Cada pessoa chega de um jeito, e o tratamento será conduzido de acordo com a forma que cada um chega ao consultório”, finaliza.
ESPECIALISTA De acordo com Annelise, a primeira coisa que precisa ser feita é identificar se realmente está havendo um caso de bullying. “Muitas vezes uma criança ou adolescente pode chegar ao consultório com uma queixa de estar sofrendo bullying, porém, essa situação pode ser apenas o gatilho para o tratamento de questões anteriores da vida deste indivíduo”, destaca. 22
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Bruxos de alma e coração, os Mussi compartilham de ideais de quem vive para transformar o mundo e são donos de uma mente poderosamente sensível e engenhosa Por João Lemos
bruxaria: UNIVERSO PARALELO 23
Das areias quentes de territórios esquecidos do Oriente Médio, há milhares de anos, germinaram gerações de uma família cujos remanescentes habitam hoje um dos pontos mais movimentados de Curitiba, nas proximidades da Praça Osório: os Mussi, bruxos de alma e coração. Desafiando os mandamentos da ciência e as regras estabelecidas co¬m o cajado da religião, mãe, filha, irmãos, netos, primos e sobrinhos, praticantes da bruxaria – vertente pagã, que, para uns, sugere o culto a vários deuses e a forças da natureza, e, para outros, a adoração ao satã e a realização de rituais macabros – garantem representar uma classe de seres com poderes sobrenaturais que pervertem teorias historicamente defendidas e comprovadas pela razão humana. Telepatia, premonição, feitiçaria, comunicação espiritual, levitação, materialização de objetos e decodificação de mensagens cifradas são algumas das habilidades que, de acordo com Nazira Mussi, matriarca da família e proprietária da loja virtual Luacan Armazém da Bruxa, podem ser desenvolvidas por indivíduos com modificações genéticas determinadas. Ela revela que todo bruxo carrega uma espécie de “dispositivo” no cérebro, formado por características adquiridas hereditariamente, que viabilizam o exercício de manobras extraordinárias e (talvez) inexplicáveis. Essas particularidades, segundo Nazira e sua filha, Marina Mussi Ferlin, credenciam os bruxos a acessar um mundo imaterial, completamente distinto do conhecido, onde magias acontecem. “Vou usar como exemplo o filme Harry Potter – fico impressionada com a fidelidade com que o universo dos bruxos é retratado”, conta Marina. Segundo ela e sua mãe, muitas abordagens do cinema, televisão e literatura que são vendidas como ficção absurdamente fantasiosa constituem, na verdade, uma representação exata do que acontece dentro de uma atmosfera alternativa e misteriosa, segredada pelos limites da mente humana. Os habitantes dessa “quarta dimensão” seriam seres com características físicas especiais – e possivelmente assustadoras –, registradas, por exemplo, em livros de história que tratam dos “delírios” do Antigo Egito, no qual se veneravam deuses antropozoomórficos, e em mitologias imortalizadas para certificar o avanço da inteligência humana, que teria, enfim, conquistado a sabedoria científica e se desapegado do misticismo infundado de tempos atrás. Entidades bobas e chifrudas, que correm alegremente por florestas densas, e demônios peludos, como o lobisomem, e sugadores de sangue, como o vampiro, convivem nesse mundo visitado somente pelos bruxos, que se mantêm em comunicação
por vias astrais. “Na realidade como a maioria a conhece, os demônios estão soltos na forma humana, mas somente nós, bruxos, conseguimos identificá-los”, comenta Nazira. A discussão sobre dimensões paralelas é interessante, mas, como não há como acessá-las, ela passa a ser mais especulação do que investigação científica”, considera Salvador Nogueira, sócio fundador da Associação Aeroespacial Brasileira e autor do blog Mensageiro Sideral, da Folha de São Paulo. Para ele, que é agnóstico e não acredita em bruxaria, é possível que exista um ambiente imperceptível para o ser humano, mas que em nada se assemelha ao que descrevem os bruxos. “Estamos falando de coisas que, ou são tão similares às formas de vida comuns que nem reconhecemos a diferença, ou são criaturas microscópicas que somos incapazes de identificar. Nada a ver com bruxaria, duendes, gnomos etc.”. Além disso, Nogueira atenta para o fato de que não é só porque a ciência despertou para a aceitação da hipótese que ela seja realmente verdadeira: “a ciência tem procurado sinais de dimensões além das três convencionais, que seriam tão pequenas que nem as perceberíamos”, afirma,
Nazira Mussi > Foto: João Lemos
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capa “mas, até agora, nenhum experimento as encontrou – podem muito bem não existir”. No entanto, há um segmento da física denominado mecânica quântica que aponta para uma conclusão mais otimista. No documentário Curiosidade: há um universo paralelo?, da Discovery, fala-se das ousadas suposições da teoria quântica a respeito do potencial de incontáveis versões de um mesmo corpo viverem realidades colaterais. O que até para os céticos pode ganhar contornos inesperados, para as bruxas da Praça Osório, contudo, é tão simples quanto uma mistura de ingredientes que origina uma poção mágica: “A mecânica quântica explica fisicamente o que nós esclarecemos espiritualmente”. Inclusive as alterações cerebrais que autorizam as práticas sobrenaturais, na concepção de Nazira, poderiam ser, em partes, comprovadas por experimentos em laboratórios, por meio da exploração de recursos de ressonância magnética. Do mesmo modo, o fenômeno de prever fatos da vida por meio da leitura de cartas – serviço comumente prestado por bruxos, inclusive pela própria Nazira –, embora não esteja totalmente claro e não possa ser respondido de forma satisfatória, está calcado em saberes da psicologia, segundo Julio Cesar Eloy, prestador de serviços espirituais há 30 anos e autor do livro As poderosas orações do tarólogo Julio Cesar. De acordo com ele, o tarô, dividido em tarologia (estudo do tarô) e taromancia (parte divinatória na qual se leem cartas para os consulentes), é um instrumento arquetípico de busca interior, por meio do qual as respostas já trazidas pelo consulente são extraídas de seu inconsciente e traduzidas em forma de imagens e palavras objetivas, que o auxiliam na tomada de decisões na vida. “Portanto, tarô não é adivinhação e já foi estudado por Jung e Freud como ferramenta de psicanálise. Hoje, é muito utilizado também por profissionais da psicologia em sessões de busca pessoal por respostas”, completa. Verdade surpreendente ou produto de imaginações admiravelmente férteis, fato é que a bruxaria jamais encontrou na sociedade o reconhecimento amplo de uma manifestação cultural autêntica a ponto de ser levada a sério. Para os que não a repudiam com discursos conservadores, associando-a à prática do mal, por meio de macumbas, por exemplo, a bruxaria nada mais é do que um simples diagnóstico de loucura sem valor folclórico nem, tampouco, científico. Prova disso foi a reação de parlamentares durante o Pequeno Expediente da Assembleia Legislativa de Goiás realizado no dia 26 de agosto, no qual posicionaram-se veementemente contra a distribuição, na Rede Pública de Ensino, pelo Ministério da Educação (MEC), de materiais didáticos referentes ao folclore que envolve a bruxaria. Esse é um dos motivos para que a maioria dos bruxos mantenha anonimato. No caso da família Mussi, a revelação veio só em 2008, quando abriram a loja física de Luacan Armazém da Bruxa – que, embora inesperadamente tenha recebido aceitação de cidadãos 25
comuns, desencadeou uma guerra silenciosa no mundo “real”, mas obstinada no território inalcançável dos bruxos: clãs de feitiçaria curitibanos passaram a perseguir os proprietários da loja, acreditando que uma grande traição havia sido cometida. À medida que a rivalidade aumentava, os ataques, cuja arma era a magia, passaram a ser menos sutis. “Em algumas ocasiões, clãs de Paranaguá, com a ajuda de bruxos de Curitiba, vieram à loja nos observar, e ficavam à espreita na rua nos vigiando”, relembra Nazira. Para se defender no conflito, a família não encontrou outra alternativa senão recuar – fecharam a loja física e mudaram de endereço. Hoje, estão em período de recolhimento, ou seja, raramente recebem visitas e saem de casa somente quando necessário, em geral para comprar pão ou ir ao supermercado. “Não tínhamos a intenção de desbancar ninguém; o objetivo era apenas facilitar a comercialização de artigos entre os bruxos, como essências, loções e pentagramas”, explica Marina. Entretanto, em uma cidade povoada de bruxos, como é Curitiba, na opinião dos Mussi, a novidade não foi bem aceita. Até mesmo membros de outros grupos sociais sentiram-se incomodados – há cerca de cinco anos, judeus enviaram à família cartas que a amaldiçoava, ofendidos com a bandeira do Líbano erguida na loja em luto pelo conflito que vitimou incontáveis palestinos. Entre os protestantes, a bruxaria também não é vista com bons olhos. Fernando Martins, pastor e bacharel em teologia, por exemplo, confia, sim, na existência de um mundo espiritual, mas dividido em polos especiais, conforme inscrito na Bíblia Sagrada: o Reino da Luz, governado por Deus, de um lado; e o Império das Trevas, sob a regência de Lúcifer, anjo desviado, de outro. Os bruxos seriam hóspedes do diabo, praticantes do mal e propagadores de energias negativas, dominados por entidades de força descomunal.
“É verdade que algumas pessoas que se envolvem com isso [a bruxaria] são boas e sinceras, mas, em sua ignorância, não sabem que estão mexendo com o lado negro do mundo espiritual, que, a princípio, pode lhes trazer benefícios e encantamento, mas acaba se mostrando mau”, reflete. Mas, embora evangélicos mais radicais demonstrem intolerância velada a categorias de profissionais que se utilizam de elementos transcendentais no trabalho diário, na opinião do tarólogo Eloy, Martins admite a existência de pessoas com poderes determinados, entre os quais o da percepção do mundo espiritual, que, na linguagem dos bruxos, trata-se da premonição. “Os cristãos podem receber de Deus os chamados dons da revelação, que lhes dão a capacidade de enxergar coisas a respeito do passado e do futuro da vida de outras pessoas e curá-las de enfermidades”, afirma. Segundo o pastor, no entanto, cartomantes e tarólogos, legítimos praticantes da bruxaria, não foram abençoados com dons divinos, mas desventurados com forças malignas provenientes de Lúcifer, que os mantêm como instrumento de demonização. Por isso, ao contrário dos “verdadeiros profetas”, eles não trabalham com certezas, mas com probabilidades: “Se você acompanhar o histórico dos bruxos que se apresentam na televisão em época de Copa do Mundo, por exemplo, perceberá que, de cinco ‘adivinhações’, eles acertam apenas três ou quatro. Ou seja, são falsos profetas, que usam poderes do Império das Trevas e não do Reino de Deus”. Para ele, a simples troca de dinheiro por serviços espirituais – presente até mesmo na religião cristã, dentro de uma lógica da qual ele também discorda – já denuncia o caráter diabólico das profissões, que exigiriam pactos com o satã para que desejos do consulente, como a conquista da pessoa amada, sejam atendidos. “Mas o diabo sempre pede algo em troca: se ele te dá uma Ferrari aqui, te coloca um câncer ali”, sentencia. Além disso, o pastor vê nos praticantes da bruxaria, ao contrário dos seguidores da Bíblia, indivíduos autodestrutivos, uma vez que seriam mais vulneráveis aos aviltamentos da vida, a exemplo da drogadição. De acordo com Marina, esse cenário extremamente catastrófico do universo dos bruxos pode, de fato, fazer sentido. Afinal, assim como na realidade da gente comum existem pessoas “boas” e “más”, nos recônditos da magia também conviveriam os dois extremos de seres, que se munem de um mesmo elemento para alcançar metas distintas. O conceito de magia negra, portanto, aludido por Martins, simboliza para Marina apenas uma invenção histórica. “O que aconteceu foi que, nos anos 50, um homem chamado Gerald Brosseau Gardner uniu elementos das culturas druidas e celtas e de rituais da maçonaria para fundar a religião Wicca, uma vertente da bruxaria. E, nesse processo”, completa, “denominou cores (negra, branca e vermelha) a uma magia que é única”.
fascinante e surpreendente: a família de feiticeiros mantém laços estreitos com Jesus Cristo. Embora provenientes de uma linhagem pagã – a bisavó paterna de Nazira, beduína dos desertos do Oriente Médio, não seguia o cristianismo e se utilizava de poderes da bruxaria para curar membros da tribo nômade –, os Mussi tornaram-se cristãos após um processo transformador que acabou na conversão religiosa de uma geração da família. Hoje, para a surpresa do pastor, os bruxos da Praça Osório exercem a magia sem deixar de seguir a fé cristã. Antes mesmo de a família Mussi estabelecer confluência entre atitudes pagãs, expressas na bruxaria, e ensinamentos cristãos, houve um período duradouro da história, denominado Idade Média (do século V ao XV), em que se experimentou um processo de sincretismo doutrinário, como defende o historiador Clóvis Mendes Gruner, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “À medida que o cristianismo avança como religião institucional e oficial, há tanto o aumento da perseguição às culturas pagãs como um processo de hibridismo, com os paganismos incorporando elementos do cristianismo, mas, também, com a religião cristã incorporando e ‘cristianizando’ elementos pagãos”, contextualiza. A título de exemplo, Clóvis cita a Páscoa, data comemorativa de origem pagã que foi transformada pela religião em festa cristã. Apesar disso, a história registra inúmeras formas de preconceito praticadas pelo cristianismo contra a manifestação pagã. O próprio termo “pagão”, do latim “paganus”, que significa “camponês”, “rústico”, no sentido de “pouco civilizado”, segundo o historiador, serviu para designar tanto as religiões distintas, ainda que monoteístas (judaísmo e islamismo, por exemplo), como as crenças politeístas, oriundas das comunidades do campo fortemente assentadas na cultura popular. Ao combate à bruxaria, em especial, o cristianismo
“O TARÔ NUNCA ERRA, MAS É PRECISO SABER INTERPRETÁ-LO.” MARINA MUSSI
CRUEL PARADOXO Mas, a despeito do posicionamento pretensamente inquestionável do pastor Martins, Nazira faz uma revelação 26
capa empenhou esforço ainda maior, por meio da compilação de trabalhos como o livro Malleus Maleficarum (O Martelo das Bruxas), escrito no século XV, em cabal fase de caça às bruxas, quando principalmente mulheres – “fontes de todo o mal” – passaram a ser perseguidas pela igreja católica, suspeitas de subverterem as ordens do papa. Hoje, em pleno século XXI, as inquietações de uma época obscura – em que a busca por conhecimentos era reprimida e o poder clerical imposto com toda a violência de queimadores de gente – parecem ter se acalmado. Para o padre Genivaldo Ximendes da Silva, pároco da Igreja Catedral Nossa Senhora da Luz dos Pinhais, situada na Praça Tiradentes, em Curitiba, está claro que a igreja nem sempre soube controlar seus impulsos “morais”, tendo cometido erros gravíssimos desde a oficialização, no ano 319, pelo imperador Constantino. Segundo ele, no medievo, a ins-
tituição passou a sentir-se detentora da verdade e da cultura, invertendo o propósito inicial de contrariar as ideias equivocadas do Estado. “A igreja hoje reconhece seus erros”, reflete o religioso. Para Nazira, não apenas curandeiros de vilarejos humildes na Europa teriam sido queimados vivos ao encarar a atmosfera inquisidora da Idade Média como também o seriam Leonardo da Vinci, Van Gogh, Walt Disney, Grace Kelly, Winston Churchill e Adolf Hitler, personalidades separadas pela cronologia da história, mas unidas pelo poder da magia. Segundo ela, é verdade que nem todos tinham conhecimento das qualidades que os tornavam diferentes e especiais, mas, outros, não apenas o tinham como exploravam o sobrenatural para exercer a maldade e mover multidões a favor de interesses escusos, a exemplo dos estadistas Hitler e Churchill. Entre as características que determinam a inclinação para a prática da magia destacadas por Nazira e Marina estão: cérebro em expansão, fator que sugere a facilidade para acreditar em hipóteses e a abertura a novos conhecimentos; compreensão de 360º, que implica autoconhecimento suficiente a ponto de abandonar o egoísmo e dispor-se a identificar as necessidades do próximo; polidactilia (presença de um sexto dedo nas mãos, mais especificamente); rutilismo (ocorrência de cabelos ruivos); e manchas fora do comum na pele. Logicamente, nem toda pessoa com algumas dessas características pode sair por aí achando que é o Harry Potter. Mas já dá para se ter uma ideia... MISTÉRIOS DE UMA VIDA POUCO EVOLUÍDA Habitantes decadentes de um planeta distante chamado Capela fixaram bases na Terra há 40 mil anos, no continente já extinto de Atlântida, dando início à civilização humana. Os atlantes sobreviventes do território submergido dez mil anos atrás migraram para o Egito e lá fundaram, às margens do Nilo, uma sociedade que soube perpetuar os conhecimentos advindos do mundo alienígena, sustentados em práticas da magia que permitem a conexão com os deuses. Essa lenda, que se popularizou e, até mesmo, ganhou as cores de super-heróis da Marvel Comics (Namor) e DC Comics (Aquaman), é a teoria defendida pelos bruxos Mussi para explicar a origem da vida no planeta Terra. É devido a esse enredo que, na cartomancia, os videntes leem cartas que imitam as lâminas deixadas pelos atlantes à civilização egípcia, com mensagens astrais que revelam os rumos da vida do ser humano. “O tarô nunca erra, mas é preciso saber interpretá-lo”, pondera Marina. Segundo Eloy, a origem do tarô é obscura, portanto, não se sabe ao certo quando o homem atentou para as possibilidades de comunicação com o divino, mas há indícios de sua existência já na Europa do século XIV. Para Salvador Nogueira, no entanto, acreditar no que a tradição mítica transmite
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é manter-se à margem dos conhecimentos que brotam de investigações científicas sérias. “Está claro para a ciência que a vida terrestre conhecida evoluiu de um ancestral comum que viveu cerca de quatro bilhões de anos atrás; um organismo simples, como uma bactéria. Atlântida, por sua vez, é uma lenda. Essa história de Capela não tem pé, nem cabeça. Eu não levaria nada disso a sério ao discutir cientificamente a origem da vida”. O pastor Martins também desconfia da proposição defendida pelas bruxas, primeiramente pela ausência de bases científicas. Conforme ele ensina, na teologia, existem duas correntes de estudo sobre a origem da vida, que, embora contraditórias em certos aspectos, convivem em harmonia entre os protestantes: a darwinista, para a qual o processo evolutivo foi desencadeado pelo Big Bang, explosão incitada pela força de Deus; e a criacionista, que considera literalmente o que está registrado nos dois primeiros capítulos de Gênesis, da Bíblia Sagrada – Adão e Eva, pupilos do Jardim de Éden, teriam originado o homem após cometerem o pecado da carne. “Não acreditamos em vida extraterrena; nem a Nasa acredita”, diz o pastor, que se considera teólogo darwinista. Essa afirmação indica que cientista e pastor de fato divergem nas discussões sobre o aparecimento da vida na Terra, embora, inicialmente, mostrem-se unidos no combate à hipótese da família Mussi. No li- Foto: João Lemos vro Extraterrestres – onde eles estão e como a ciência tenta encontrá-los, recém-lançado pela editora Abril, Nogueira constrói fortes contextualizações para defender uma possibilidade polêmica e questionável sobre a vida no universo: a Terra não seria o único planeta do cosmos capaz de abrigar seres vivos. Ao contrário, outros quatro bilhões de mundos espalhados pelas profundezas do espaço teriam as mesmas condições. Ao sugerir que o início da vida na Terra talvez tenha partido de micróbios vindos de carona em cometas interestelares, o Mensageiro Sideral talvez pareça um tanto insensato aos olhos de ignorantes da ciência assim como as bruxas de Capela mostram-se aos seus. Transvariados, loucos, psicóticos, desajuizados, irresponsáveis, entendedores das regras do universo ou, simplesmente, donos de uma mente poderosamente sensível e engenhosa, o fato é que os bruxos talvez não sejam, em primeira instância, tão diferentes de qualquer outro cidadão. Os da Praça Osório, por exemplo, escutam as músicas do momento, leem livros e assistem a filmes como todo “trouxa” (aquele que não possui dons mágicos, na saga Harry Potter) – talvez com preferências bem específicas, é verdade – e carregam tatuagens como qualquer indivíduo
de mente livre e desimpedida (Nazira tem seu nome em aramaio registrado nas mãos, porque “palavras têm poder, que emanamos para os astros”, e, tanto ela quanto Marina guardam um punhal na região inferior dos braços, que lhes serve de defesa contra perturbações). E, embora varram as madrugadas em claro para serem melhores receptores de códigos espirituais, médiuns que são, e pratiquem rituais nos quais utilizam objetos já desacreditados, como a varinha mágica, os Mussi compartilham de ideais não de gente comum, mas de quem vive para transformar o mundo. Desde as primeiras gerações da família, eles travam, com a ajuda de bruxos de todo o planeta, uma luta incessante na busca por uma Terra melhor, que se pareça mais com a Capela das convicções de Marina: “Eles [os habitantes de Capela] são infinitas vezes mais evoluídos que nós – atingiram o nível da imaterialidade tempos e tempos atrás”. Para Nazira, se ainda estamos aqui, é porque a caminhada da evolução ainda não acabou, e o que se espera da humanidade é que brigue para, um dia, atingir o equilíbrio da natureza. 28
violência
MACHISMO QUE
oprime Por Tayná de Campos Soares
A definição de violência contra a mulher não é exata, pode ser uma agressão física ou verbal, um comportamento; mesmo assim os números assustam: 35% de todas as mulheres do planeta já sofreram alguma forma de violência
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Não há números exatos de quantas mulheres são violentadas por dia. A violência contra a mulher pode se assumir de diversas maneiras. Desde uma agressão física, sexual, até uma agressão verbal. Uma pesquisa realizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) diz que mais de 35% das mulheres do mundo já sofreram algum tipo de violência. A pesquisa ainda revelou que cerca de 40% das mulheres do mundo são agredidas e mortas pelos seus parceiros. Segundo uma das organizadoras da Marcha das Vadias, Marjory Macedo Pilhsad, existem sete tipos de violência que a mulher pode sofrer. “A violência física é qualquer agressão que se dê sobre o corpo da mulher. Ou seja, empurrões, socos, queimaduras, entre outras coisas. Existe também a violência sexual, quando a mulher é obrigada a praticar atos sexuais que não deseja”, explica. Ainda segundo Marjory, existe a violência psicológica e moral, que é quando interfere na autoestima da mulher, através de difamação, palavras ofensivas, proibições etc. A violência patrimonial se refere ao patrimônio, ou seja, é quando alguém impede ou dificulta o acesso da vítima à autonomia. Também existe a violência doméstica, conjugal e a violência institucional. “A violência institucional se enquadra em qualquer ato constrangedor praticado por agentes de órgãos públicos que, em vez de proteger a mulher, coage”, comenta Marjory. A pesquisa feita pela OMS divulgou também que a maior parte da violência sexual acontece por parceiros íntimos. Cerca de 38% das mulheres do mundo inteiro já foram submetidas a algum tipo de violência sexual pelos parceiros. Estima-se que 10% das mulheres já foram abusadas sexualmente por pessoas desconhecidas. Ana (nome fictício) foi abusada sexualmente pelo pai em 2010, quando tinha apenas 15 anos. Ana era virgem e conta que sempre sofreu abusos do pai, como passar a mão pelo corpo da menina e coagi-la. “Eu não consegui contar pra ninguém, mas todas as vezes que olhava para o meu pai, eu sentia medo e nojo. Eu jamais imaginei que ele fosse passar dos limites comigo, fui estuprada pelo meu próprio pai”. Hoje Ana está com 19 anos, e somente neste ano teve coragem de contar para sua mãe o que estava acontecendo em casa. “Fui estuprada por dois anos. Depois meus pais se separaram e ele foi embora”. Após contar para sua mãe o que passou, as duas foram até a delegacia denunciar o pai. Ele está preso há dois meses. A psicóloga explica que mulheres que foram abusadas sexualmente correm um risco maior a ter problemas de saúde. “O fato é que isso não mexe apenas com o corpo da pessoa que foi abusada, mas mexe com o psicológico dela. Quem sofre ou sofreu esse tipo de violência tem mais chance de dar à luz a bebês com peso baixo. Outro problema é quando a mulher engravida. Se ela não for ao psicólogo, ou fizer algum tipo de tratamento, ela corre o
risco de perder o bebê. Além disso, é muito comum que a mulher viva uma depressão profunda”, explica. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou no início do ano que um milhão de mulheres são agredidas a cada ano no Brasil. Dessas mulheres, 85% não denunciam. “As pessoas acham que eu não denunciei porque ele era meu namorado e eu gostava dele. Isso é ridículo, eu não denunciei por medo, e acredite, ser violentada causa em você a pior sensação do mundo”, explica Helena (nome fictício), abusada três vezes pelo seu ex-namorado. Dos 40 anos de Claudia (nome fictício), 10 foram de agressão familiar. Aos 12 anos de idade Claudia foi obrigada pela mãe a se prostituir, ela foi abusada sexualmente pelo irmão, e sofreu agressão física e verbal pela mãe. “Eu era muito nova, tinha apenas 12 anos, quando completei 18 eu fugi de casa, mas tive que continuar me prostituindo para conseguir me manter. Morei por um ano numa casa de prostituição, onde também fui violentada e obrigada a usar drogas”, conta. Após conseguir sair da casa de prostituição, Claudia continuou na rua e se tornou dependente das drogas. Aos 20 anos ela foi para uma casa de reabilitação, onde passou dois anos. “Fiquei internada e quando saí fui abrigada na casa de uma das enfermeiras que trabalhava na casa onde fiquei internada. Aos 22 anos eu comecei a reconstruir toda a minha vida”, comenta. Hoje Claudia é formada em enfermagem e trabalha na mesma casa onde ficou internada por dois anos. É casada, tem três filhos, mas o medo, o trauma são coisas que não vão sair da cabeça dela nunca. “Tudo foi forte, marcante. Tenho medo de sair na rua, jamais saio sozinha. Quando conheci meu marido, demorei muito tempo para entender que ele era uma boa pessoa e que não me faria mal algum. Eu nunca mais vi minha família, espero que eles estejam bem, mas que não façam isso com mais ninguém”, conta. Uma pesquisa divulgada pela Organização das Nações Unidas (ONU)mostrou que 7 a cada 10 mulheres já foram ou ainda serão violentadas de alguma maneira em algum momento da vida. “É um dado extremamente assustador, a mulher precisa tomar cuidado em qualquer situação”, comenta o historiador Pablo Hadfs. Para a integrante do grupo Marcha das Vadias, Isabelle Marina Santos, por vezes a mulher se culpa por ter sofrido a violência, mas a culpa nunca é da vítima. “Podemos usar a roupa que quisermos, na hora que quisermos. A culpa nunca é da vítima, se fosse assim, caso as vítimas não existissem, não existiria o agressor. É preciso ensinar as mulheres que elas não têm culpa e que, mesmo com medo, o correto é denunciar”, explica. A violência mais comum que a mulher sofre é a do dia a dia. Ao passar pela rua sozinha, a mulher está muito mais vulnerável a ouvir coisas desagradáveis, do que se passar na rua acompanhada. A solução, então, seria nunca andar sozinha? Errado! Segundo o estudante de história, Fernan30
violência
“É PRATICAMENTE IMPOSSÍVEL ACABAR COM O MACHISMO. MAS PODEMOS MUDAR ALGUMAS PESSOAS E, AOS POUCOS, EMPODERAR AS MULHERES.” BRUNA CAPELLETO, FEMINISTA
do Souza, nós vivemos numa sociedade machista, onde os homens se acham no direito de mexer com uma mulher que sequer conhecem. “É muito nítido, nós vivemos numa sociedade machista. Mas a mulher não pode ouvir e ficar calada, é preciso reagir. É difícil processar uma pessoa que te ofendeu na rua, porque você não a conhece, então não tem como encontrá-la. O certo, ainda que perigoso, é responder ao homem que a ofendeu”, comenta. Jussara Cardoso é feminista, foi vítima e ainda é da violência nas ruas. “Perdi as contas de quantas vezes foram e de quantos homens já se sentiram no direito de fazer isto comigo. Lembro-me da primeira vez que tive medo de ouvir estas coisas na rua. Tinha 13 anos, estava indo pra escola, passava por uma cooperativa de sementes, os caras estavam em cima de um caminhão, eram cerca de uns oito caras. Estava de uniforme e ouvi as palavras/frases “Gostosa”, “Ei, psiu, vai pra escola não, vem ficar comigo”, “Esta ai já dá pra foder”. Nossa, queria morrer, queria me enfiar embaixo da terra, queria sumir. Tive tanto medo, mas tanto medo que quando cheguei na escola me tranquei no banheiro e só chorava. Não consegui contar pra ninguém, me sentia suja, imunda mesmo por ter ouvido tudo aquilo”, revela. Jussara é de uma cidade pequena, onde todos se conhecem. Os pais dela tinham um comércio onde esses homens iam frequentemente, com suas esposas e filhos. “Eles iam lá e conversavam na maior naturalidade do mundo. Sempre ficava acuada quando eles apareciam por lá. Fugia mesmo. Era horrível. Virou quase que rotina ouvir essas coisas daqueles caras e de outros. Acredito que isso seja rotina na vida das mulheres, ouvir essas coisas no dia a dia. Se os caras soubessem o medo que sentimos, às vezes penso que eles parariam de fazer isso. Mas aí lembro que vivo em uma sociedade machista, e pra essa sociedade sobreviver sendo machista, os homens precisam a todo custo amedrontar mulheres para se sentirem superiores a elas”, conta. Segundo a psicóloga Maria Fernanda Klopack, quando isso acontece, a mulher precisa encontrar forças para superar. Nem sempre responder ao homem é bom, pois ele pode sentir raiva e violentar a mulher. “É difícil lidar com esse tipo de situação. Por um lado, a mulher quer gritar, xingar e fazer com que aquele homem pare de ofendê-la. Por outro lado, ela sente medo de responder, pois pode se machucar ainda mais. Quando isso acontece, é preciso que a mulher encontre forças em alguma coisa. Um amigo, um site, um livro, alguém para conversar. Muitas dessas mulheres encontram força no feminismo”, explica. Jussara encontrou sua força no feminismo. Por meio do movimento, hoje ela não sente tanto medo, e consegue responder à altura os homens que tentam coagi-la. “Graças ao feminismo hoje eu consigo responder, falo mal, mando à m****, questiono a atitude dos caras perguntando se eles sabem o que é respeitar a mulher. Hoje consigo reagir. Mas não é uma tarefa fácil, não. É muito difícil nós, mulheres, sermos empoderadas o suficiente pra gritar contra essas violências que homens insistem em dizer que não é”, comenta a feminista. O cientista político, Luiz Cezar Hoberval, explica que a razão para essas violências é o machismo. “O machismo é
um círculo vicioso. É impossível acabar com isso, podemos amenizar. Já vi casos de homens que eram machistas e que aos poucos foram entendendo como a mulher sofre, e melhoraram, mas esses casos são raros. O homem acha que ao chamar uma mulher de ‘gostosa’ ele está elogiando, e na verdade, de elogio isso não tem nada”, explica. João (nome fictício) tem 40 anos. Se casou aos 23 anos e se separou da mulher aos 30. Para Mariana (nome fictício), os últimos dois anos de casada foram terríveis. “O João era militar, machista, achava que eu tinha que fazer tudo na casa. Trabalhar fora, limpar a casa, cuidar dos filhos e ainda estar sempre pronta para ele. O início de tudo foi numa noite em que eu estava muito cansada, ele queria sexo, eu não. Fui estuprada e violentada fisicamente”, revela. Após sofrer por dois anos, Mariana denunciou o ex-marido que foi preso. João ficou preso por um ano e três meses. “Foi o pior ano da minha vida. Eu sei que estava errado, mas não conseguia me conter. Me arrependo muito de tudo o que fiz para ela. Se pudesse voltar no tempo, jamais a machucaria novamente”, conta. A advogada especialista em direito da mulher, Aline Abreu, explica que muitos homens que são denunciados e vão presos mostram arrependimento, mas que nem sempre esse arrependimento é sincero. “Já defendi muitos casos como o da Mariana e do João. Quando o homem é denunciado e preso, e depois diz se arrepender, é porque, na maioria das vezes, ele pensa em voltar com a esposa. O problema é que muitas vezes a mulher volta a se relacionar com o homem e aí os problemas também voltam”, explica. Em uma pesquisa, a Fundação das Nações Unidas para a infância (Unicef ) revelou que mais de 100 milhões de meninas poderão ser obrigadas a se casar durante a próxima década. Os casamentos forçados acontecem no mundo todo, mas são mais comuns nas regiões do Sul da África e na África Subsaariana. Jousefat Lima nasceu no Brasil, mas aos 18 anos foi morar em Portugal. Seus pais arranjaram um marido para ela, que também morava em Portugal. “Foi terrível, ir morar em outro país, com pessoas desconhecidas e o pior, me casar com uma pessoa que eu nunca tinha visto na vida. Eu tinha 18 anos, ele tinha 40. Era muito amigo do meu pai, tinha uma empresa, era rico e queria uma mulher jovem”, conta a brasileira. Hoje, Jousefat tem 35 anos, seu marido faleceu. “Voltei a morar no Brasil assim que ele morreu. Foram anos de sofrimento, pois nós tínhamos uma diferença de idade muito grande. Eu fui violentada várias vezes, fui forçada a ter relações sexuais com ele e isso fez com que eu sentisse nojo dele e agradecesse pela morte dele”, desabafa. “É praticamente impossível acabar com o machismo. Mas podemos mudar algumas pessoas e, aos poucos, empoderar as mulheres. Eu acredito que, aos poucos, as mulheres vão criar mais força, mais coragem, e vão bater de frente com esses homens. Mesmo que fisicamente nós sejamos mais fracas (na maioria das vezes), nós somos fortes em outros aspectos”, ressalta a feminista e integrante do grupo Marcha das Vadias, Bruna Capelleto. 32
consumo
ELAS
influenciam? Propagandas voltadas ao público infantil continuam sendo alvo de polêmicas, após a aprovação da resolução do Conanda que proíbe a abusividade do direcionamente de publicidade a crianças
Por Andressa Turin
Lembro que quando era criança (sim, já faz algum tempo), nos intervalos dos desenhos, ficava encantada com as propagandas de barbies, bonecas, sandálias de plástico de apresentadoras infantis, salgadinhos que vinham com brindes, entre tantas outras. Como não lembrar a clássica propaganda do “compre batom”? Ou então do leite Parmalat, no qual as crianças estavam vestidas de bichinhos de pelúcia? Hoje propagandas desse tipo, destinadas ao público infantil, estão proibidas. A Resolução nº 163, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), publicada em 16 de março deste ano, fala sobre a abusividade do direcionamento de publicidade e comunicação mercadológica à criança e ao adolescente. De acordo com o artigo 2º da Resolução, “considera-se abusiva a prática do direcionamento de publicidade à criança com intenção de persuadi-la para o consumo de qualquer produto ou serviço”. É vedada a utilização de “linguagem especial, efeitos especiais, excesso de cores, trilhas sonoras de músicas infantis, representação de criança, celebridades com apelo ao público infantil, personagens ou apresentadores infantis, desenho animado ou animação, bonecos e a promoção com distribuição de prêmios ou brindes colecionáveis”. Vanessa Anacleto, produtora de conteúdo e integrante do Coletivo Infância Livre do Consumismo – entidade que nasceu nas redes sociais – acredita que as propagandas destinadas ao público infantil não têm nenhum ponto positivo. Para ela, as crianças não estão preparadas para essa forma de comunicação, pois ainda não têm capacidade de interpretar o conteúdo da propaganda. “Eventual argumento de que poderá se tratar de campanha educativa com utilização da marca, apenas mascara a publicidade infantil”, afirma Vanessa. 33
Já para André Tezza, publicitário e professor na área, é possível encontrar alguns pontos positivos nas propagandas para crianças. A publicidade é uma forma de patrocinar a cultura e não somente uma forma de viabilizar a existência de marcas e empresas. O publicitário explica que os produtos de Maurício de Souza – que é uma referência mundial em conteúdo destinado a crianças – só existem com o patrocínio da publicidade. Além disso, ele afirma que a publicidade, assim como a mídia como um todo, é uma extensão do mundo. “Uma educação realmente preocupada com as crianças não deveria anular o mundo, ou simplesmente proibir o mundo, mas saber explicá-lo, construir uma ponte de diálogo, de crítica e compreensão”, diz. POLÊMICA O assunto por si só já gera muita discussão e questões polêmicas. Como é o caso envolvendo o cartunista Maurício de Souza. Cerca de um mês após a publicação da Resolução do Conanda, o criador da Turma da Mônica publicou em uma rede social uma imagem de uma menina segurando um cartaz com os dizeres: “Eu tenho direito de assistir publicidade infantil. A televisão não é só para os adultos. Alguém sabe quais produtos infantis lançaram esses dias?”. Após ser criticado por internautas, o cartunista decidiu apagar a imagem de sua rede social e compartilhou outra mensagem sobre o assunto. Na nova mensagem Maurício explica que agiu por impulso e que sua empresa faz sim publicidade de produtos que levam a marca de seus personagens. Contudo, “sempre de maneira responsável e criteriosa, porque nossa preocupação constante é o respeito à criança”, afirma. Outra polêmica é de que as entidades do setor de comunicação afirmam que vetar a publicidade voltada para as crianças ameaça a liberdade de expressão. A Associação dos Profissionais de Propaganda (APP) divulgou um manifesto demonstrando apoio ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) – que tem como finalidade impedir a veiculação de propagandas enganosas ou abusivas e defender a liberdade de expressão comercial. No texto, a Associação afirma que, de acordo com a Constituição Federal (CF), somente o Congresso Nacional tem poder para legislar sobre a atividade publicitária. “Vamos continuar zelosos de nossa responsabilidade de produzir uma propaganda ética e de qualidade e combativos contra qualquer tentativa de asfixiar a liberdade de expressão em nosso país, preservando a construção da nossa sociedade
“A BALANÇA, NESSE CASO, CERTAMENTE, PENDERÁ PARA O LADO DA PRIORIDADE À INFÂNCIA” VANESSA ANACLETO, COLETIVO INFÂNCIA LIVRE DE CONSUMO
informada, livre e democrática”, afirma o manifesto publicado pela entidade. Para Vanessa Anacleto, proibir essas propagandas não fere a liberdade de expressão, pois a publicidade não se encaixa no rol do artigo 5º da Constituição, que diz respeito à liberdade de expressão. A produtora de conteúdo acredita que, a publicidade não é atividade artística e nem significa expressar seu livre pensamento. “Fazer publicidade significa tentar persuadir pessoas a adotar hábitos de consumo estabelecidos pelo anunciante”, afirma. Além disso, Vanessa explica que o princípio absoluto da infância, previsto no artigo 227 da Contituição Federal – que prevê os direitos da criança e do adolescente – deve prevalecer sobre um suposto direito de empresas a realizar anúncios dirigidos a menores de 12 anos. “A balança nesse caso, certamente, penderá para o lado da prioridade à infância”, finaliza. CONSUMO X INFÂNCIA O documentário brasileiro “Criança, a alma do negócio” faz uma reflexão e uma crítica a respeito da propaganda dirigida ao público infantil. São realizados vários testes com algumas crianças, e em um deles, elas devem responder qual o nome da fruta ou verdura que aparece na foto. Em contrapartida, em outro teste aparecem fotos de diversas marcas e elas devem adivinhar de qual marca se trata. O resultado é impressionante. No primeiro teste a maioria das crianças não sabe dizer o nome de algumas frutas básicas como a manga. Já no segundo teste, o qual diz respeito as marcas, elas passam com louvor, acertando a maioria das perguntas. A principal crítica do documentário é de que a infância está ficando cada vez mais curta. E a publicidade pode ser uma das causas, ou seja, as crianças não querem mais saber de brincar, e sim de comprar. Uma pesquisa realizada em 2013 pelo Pyxis Consumo, do Ibope Inteligência, revela que o mercado de brinquedos no Brasil faturou cerca de R$ 6,6 bilhões no ano anterior, sendo que a região Sudeste é a que teve o maior percentual de consumo de brinquedos, 53,3%, seguida da região Sul que teve aproximadamente 17%. Ainda, de acordo com a pesquisa, o estado com o maior mercado nessa área foi São Paulo. O Paraná apareceu em quinto lugar no ranking. Pensando na legislação brasileira, a criança é considerada incapaz, pois ainda não tem as mesmas capacidades cognitivas dos adultos, podendo ser facilmente influenciada. Assim, ela não tem poder de compra e não poderia ser vista como consumidora. Contudo, André Tezza explica que existem algumas perspectivas que devem ser analisadas sobre essa questão. Para a tradição marxista nós nos tornamos consumidores em virtude de um conjunto de instrumentos ideológicos (como a publicidade e a mídia em geral), ou seja, não somos consumidores quando nascemos. Porém, para antropologia do consumo, nós somos consumidores, porque essa é uma das condições essenciais da natureza humana. “Segundo essa tradição tratar a criança como consumidora seria simplesmente tratá-la como alguém que pertence à condição humana”, defende o publicitário. 34
consumo PROPAGANDA E OBESIDADE A obesidade infantil é outro problema que parece estar diretamente relacionado às propagandas destinadas às crianças. Um estudo realizado em 2006 pelo National Bureau Economic Research indica que, caso os anúncios televisivos de rede de fast food fossem banidos nos Estados Unidos, o número de crianças obesas na faixa de 3 a 11 anos seria reduzido em 10%. O número de adolescentes com sobrepeso, entre 12 e 18 anos, também cairia 12%. Para Tezza, as propagandas de alimentos não têm influência e nem estimulam a obesidade infantil. “Se concordasse com isso, também teria de concordar que as crianças são violentas porque jogam videogame e, portanto, devemos proibir o videogame”. O publicitário afirma ainda, que a única forma eficaz de controlar a obesidade infantil é alterar as relações entre pais e filhos. Já Vanessa Anacleto afirma que essas propagandas estimulam, sim, a obesidade em crianças. Ela exemplifica que antes da exibição de um filme no cinema, aparece uma rede de lanches fast food convidando os espectadores a uma refeição logo que acabar o filme. Ou seja, mesmo que o pai não tenha a intenção inicial de dar o lanche para o filho, o apelo começa na tela. “Para convencer os pais a fazer a parada no restaurante, a rede usa os personagens do filme que as crianças assistirão em minutos como brindes do lanche infantil”, diz. Pensando em situações como essa, em 2012, entrou em vigor em Florianópolis a lei nº 8.985 que proíbe redes de fast food de comercializarem produtos que acompanhem brindes voltados ao público infantil. A capital catarinense é a primeira cidade do país a contar com a proibição. LEGISLAÇÃO PUBLICITÁRIA GLOBAL A Associação Brasileira de Anunciantes (Aba) realizou um estudo, coordenado pelo jornalista Rafael Sampaio, comparando a legislação e autorregulamentação da publicidade infantil no mundo. Segundo a pesquisa, os países que têm os mais rigorosos controles são Reino Unido, Suécia e Espanha. Na Suécia estão proibidos os comerciais em televisão aberta para crianças menores de 12 anos. Na Espanha existe um Código específico para a publicidade infantil de alimentos. E no Reino Unido é proibida a propaganda de alimentos com alto teor de gordura e açúcar durante a programação de televisão para menores de 16 anos. A província de Quebec, no Canadá, é o único local que adotou a proibição de qualquer propaganda destinada a menores de 13 anos, em qualquer mídia. Ainda de acordo com o estudo, o Brasil está entre um dos países que impõe mais limitações e controles em relação à propaganda voltada para crianças. O país conta com um sistema misto de controle, que combina legislação, autorregulamentação e códigos setoriais de conduta, colocando-o no mesmo nível do Reino Unido. NOVO PROJETO Quando entidades e Organizações não Governamentais – contrárias à publicidade para crianças 35
– acreditavam ter dado um passo importante nessa questão, eis que surge um novo empecilho. Está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Decreto Legislativo 1460/14 que tem por objetivo revogar a resolução do Conanda. O autor da proposta é o deputado Milton Monti. A justificativa para o projeto é de que a competência para legislar sobre a propaganda comercial é do Congresso Nacional. Além disso, a resolução fere a liberdade de expressão, prevista na Constituição Federal. A proposta está sendo analisada pelas Comissões de Seguridade Social e Família; e de Constituição e Justiça e de Cidadania. Depois será votada pelo Plenário. Ou seja, a batalha daqueles que lutam pelo fim dessas propagandas e daqueles que acreditam que elas devem continuar a serem veiculadas ainda está longe de ter um ponto final.
saúde
UMA VIDA EM
outras cores
Para grande parte da população brasileira, o daltonismo ainda é uma doença que causa estranheza e não é totalmente compreendida
Por Adalberto Juliatto
Era 1990 e Rogério Rocha, então com 25 anos, estava prestes a realizar o grande sonho se sua vida: ser piloto da aeronáutica. Tudo se encaminhava nos conformes com os testes de conhecimento realizados, testes práticos muito bem sucedidos e uma aptidão perfeita para o cargo. Porém, existia um pequeno problema e pouco conhecido na época que resultava na exclusão imediata dos testes: Rogério possuía daltonismo. “Claramente sabia que tinha alguma coisa diferente na minha visão, mas achava que era um simples problema com cores e não uma doença genética que impossibilitava minha entrada em determinados trabalhos”. Foi assim que ele precisou correr atrás de outras oportunidades na vida. Sem poder viver o emprego desejado, Rogério hoje
tem 49 anos e junto de seus irmãos comanda uma loja de materiais para construção que herdou de seu pai. Mas o que seria daltonismo? Segundo Edson Oliveira, oftalmologista formado há mais de 30 anos pela ULBRA-RS, o daltonismo é uma doença que inibe o portador de diferenciar cores primárias e suas “misturas” devido à ausência de cones na retina do olho. Cones são células ligadas ao reconhecimento de colorações, e com a falta ou diminuição de pigmento no local a pessoa acaba por ter sua percepção de cores alterada. Outro ponto importante é que o daltonismo é uma doença genética, ou seja, é algo que se passa de pai para filho. Já o nome da doença vem de seu descobridor John Dalton. E é ai que entra Rogério Rocha e sua família: Antônio Rocha, Sérgio Rocha, Marcos Machado, Rafael Machado e Gabriel Machado. Além de serem todos familiares, todos são daltônicos. Rogério é pai de Marcos, Rafael e Gabriel, e irmão mais velho de Antônio e Sérgio. Cada um de uma geração diferente e com histórias relacionadas com o daltonismo.
PRIMEIROS INDÍCIOS
“Lembro como se fosse hoje o dia em que pintei um leão de verde na quarta série e todos caçoaram de mim”, recorda Antônio, hoje com 45 anos e afirmando saber que os felinos são beges. Ali foi o dia que o ainda menino percebeu que algo estranho acontecia com ele; contou para sua mãe que imediatamente reverteu o acontecido e fez tudo parecer normal. Já para Sérgio a situação foi um pouco mais constrangedora. “Tinha uns 11 anos, estava sozinho em casa e resolvi ir ao mercado. Peguei a primeira camiseta na lavanderia, vesti e fui. Quando cheguei, todos olhavam estranho e riam da minha cara. Estava com um tipo vestido rosa da minha prima, mas até hoje acredito que aquilo era uma camiseta e azul”, explica-se agora com 39 anos, e que na ocasião foi mais um a ser acobertado pelos pais. “Acredito que naquele tempo as pessoas tinham medo de que se tratasse de alguma deficiência e não gostariam de comprovar. Mas após descobrir com o acontecido 37
na aeronáutica e a descoberta do que era mesmo, tudo mudou”, afirma Rogério. No entanto, os problemas não parariam por aí. Rogério ainda teria três filhos homens e não imaginava que todos nasceriam daltônicos. Marcos, 19 anos, relata a primeira vivência. “O que aconteceu comigo foi bem parecido com o tio Antônio, só que em escala maior. Eu simplesmente lá pela terceira série desenhei uma vaca de azul. A vaca é branca, ainda não sei como é que consegui fazer isso.” Já Rafael e Gabriel foram prevenidos de qualquer erro com estampas e adesivos que nomeavam as cores dos lápis, mas nada que poupasse das complicações. “As outras crianças achavam que eu era burro ou algo do tipo por ter anotadas as cores dos lápis e tenho certeza que o Gabriel, 11, deve conviver com situações assim”, enfatiza Rafael de 16 anos.
A DESCOBERTA
Para ter certeza do que se trata e se o caso era mesmo de daltonismo, todos precisaram passar por certos testes essenciais de comprovação. O doutor Edson ensinou que existem três procedimentos comuns aos daltônicos que são: O teste de Ishihara - uma sequência de papéis pintados em várias cores e com um número ou letra pintado no meio com outras cores que qualquer um consegue ver facilmente com exceção dos daltônicos. É o teste mais popular e conhecido, pois é eficiente e suficiente para descobrir os menores níveis. Anomaloscópio de Nagel - um aparelho parecido com o utilizado para medição de grau ocular, onde a pessoa coloca os olhos e enxerga duas imagens. Uma é normalmente amarela por inteiro e a outra com tons de vermelho e verde, o paciente então deve tentar deixar igualadas as cores com um botão de regulagem. Com base na dedução do paciente e no que é realmente visto pelo médico, podem-se definir a existência e grau de daltonismo. Ainda existe mais uma avaliação que contém duas variáveis, chamadas de Teste Farnsworth e lãs de Holmgreen. O primeiro é com bolinhas de vários tons e o paciente deve organizá-las por cor, o segundo segue a mesma linha só que com fios de lã que devem ser separados por cor também. “No nosso tempo isso nem existia, ou não sabíamos, fomos descobrir da doença apenas com a reprovação do Rogério. A confirmação do daltonismo veio então só quando adultos por estes mesmos testes. Já com o conhecimento foi muito mais fácil definir a situação dos nossos sobrinhos”, declaram os irmãos Sérgio e Antônio. DALTONISMO EM GERAL A informação já existia antigamente, mas não era acessível para todos, é o que pensa o professor de biologia, Luis
Carlos Amorim. “O caso citado é muito comum, naquele tempo poucos imaginavam a existência de uma perturbação visual e em qualquer evidência preferiam achar que era um engano. Agora você vai lá, procura na internet e pronto.” “Sobre o daltonismo é importante ressaltar que a dificuldade do portador é principalmente o reconhecimento das cores verde e vermelho. O problema se encontra no cromossomo X e aí está a razão de mais homens contraírem, pois só contam com um cromossomo X enquanto as mulheres têm dois.” Luis afirma que o gene daltônico está em aproximadamente 12% da população mundial, não necessariamente ativo, na escala 11% são homens e apenas 1% representa as mulheres. Esposa de Rogério e mãe dos três garotos, Mariana Machado explica que a situação é complicada quando novos, mas depois se acostumam. “Como mãe, meu trabalho é tentar fazer com que eles passem o menor número de problemas com isso. As anotações no lápis são mal vistas, mas necessárias para que eles façam corretamente de acordo com o que pensam. Sempre estou atrás de novas informações e vejo que existem outros tipos de daltonismo ainda piores”. E é verdade. Segundo o biólogo e professor Luis Carlos há três tipos de daltônicos: monocromático, dicromático e tricomático. No monocromático que é raro, a pessoa apenas enxerga preto, branco e escalas de cinza. O dicromático tem problemas em definir cores exatas, pois não existem alguns cones na retina. É dividido principalmente em Protanopia (não vê vermelho) e Tritanopia (não vê azul e amarelo). E o tricromático é o mais encontrado, no qual ocorre confusão entre cores como vermelho, verde, amarelo e azul. PROBLEMAS Um dos maiores problemas na vida de um daltônico é o pensamento alheio sobre eles. Marcos cursa biologia na faculdade com o foco de tentar mudar a visão geral sobre o daltonismo. “Se você não contar que é (daltônico), as pessoas não descobrem sozinhas. Quando pequenos, temos dificuldades maiores que acabam por nos dedurar. Crescidos, sabemos nos virar e não dar pinta. Entretanto, ao contar a alguém que é daltônico, está criada a problemática, começam a te tratar como se sofresse de alguma doença gravíssima, quase uma cegueira. Em sequência vem o trabalho de ter que explicar o que é e quais são nossas dificuldades e aí começa a fase do questionamento. Que cor é minha roupa? O que você enxerga aqui? Isso é verde ou marrom? Muito complicado e mostra com clareza 38
saúde a tamanha ignorância da população quando se trata de daltonismo”, desabafa o rapaz. Se no convívio existem certos aborrecimentos, quando se trata de dirigir é outra dificuldade. Sérgio, que vive com um grau mais elevado de daltonismo, já se viu em grandes complicações na hora de dirigir. “No começo eu não tinha idéia no semáforo de qual luz era qual, mesmo sabendo que se tratava de vermelho, amarelo e verde. Olhava e nada simbolizava o que tinha em mente, fui ensinado e decorei. Então resolvi tirar minha carteira e pra isso era obrigatório reconhecer as tais três cores, cheguei lá e me dei mal. Fui reprovado e só depois de dias me concederam a carteira após saber do meu problema. Porém, toda vez que preciso renová-la tenho que encarar essa situação novamente.” O teste de Ishihara é bem comum nas provas para tirar a carteira também. Antônio, um dos donos da loja de construção, conta que acabou sendo restringido para algumas opções interessantes de carreira. “Não pude trabalhar guiando nenhum tipo de transporte, nem no setor gráfico ou algo que dependesse de desenhos. Acabei aqui na loja no setor de tintas e não tenho noção nenhuma das cores, é tudo decorado e com ajuda de alguns recursos tecnológicos”. A mãe Mariana revelou que os quatro homens da casa não podiam sair comprar roupas sem ela e só pra se vestir era um sufoco. “Ninguém acredita quando eu conto que os homens daqui não conseguiam se vestir corretamente, nenhum deles tinha noção de algo e qualquer peça era parecida. Hoje em dia melhorou bastante e eles até arriscam umas combinações. Mas antigamente tudo era nas minhas costas, teve um tempo que comprava roupas só da mesma cor pra não ter problema. É difícil de entender como que cores tão distintas confundem eles e só vendo tal confusão que faziam pra acreditar”. EXISTE SOLUÇÃO? É complicado, mas ainda não existe algum tipo de tratamento que possa fazer os daltônicos enxergarem normalmente. Quem define é o doutor Edson: “O daltonismo até hoje é algo difícil de entender, os próprios especialistas não conseguem explicar com propriedade o assunto. São situações que fogem do comum imposto pela sociedade: como que pode alguém estar vendo a mesma coisa que você só que de outro jeito, outra cor? Muitos acreditam que exista algo ligado ao cérebro e não apenas na retina, algo no subconsciente. O que é certo é que uma pessoa adaptada e acostumada ao daltonismo não encontra problema algum em tocar a vida normalmente, talvez por isso que quase não clamam por soluções”. O professor de biologia Luis cita importantes revoluções na tecnologia que tem ajudado os daltônicos. “Tratamento pra curar não existe mesmo, agora o que temos pelo menos lá nos Estados Unidos são inovações científicas e tecnológicas que ajudam. Exemplo na ciência que conseguiram ajustar o modo de visão em animais com experiências. Já existem por lá também projetos de óculos e lentes que podem reverter o daltonismo por meio da tecnologia que consegue recriar as cores e fazer o usuário enxergar corretamente. Esperar para ver.” 39
“AÍ COMEÇA A FASE DO QUESTIONAMENTO. ‘QUE COR É MINHA ROUPA?’ ‘ O QUE VOCÊ ENXERGA AQUI?’ ‘ISSO É VERDE OU MARROM?’” MARCOS MACHADO, DALTÔNICO
O que já é realidade são os aplicativos que reconhecem cores para o celular. Nos smartphones você filma o objeto e consegue descobrir a cor. O aplicativo mais conhecido se chama ColorADD e é criação do designer português Miguel Neiva, que além de criar o programa também inventou um sistema de código para as cores que poderá ser usado em roupas e demais itens que os daltônicos encontram problema para definir.
DALTONISMO PELOS DALTÔNICOS Agora, o que será que os próprios daltônicos sabem sobre o daltonismo e que ninguém mais tem conhecimento? ROGÉRIO “Eu enxergo melhor à noite do que os outros”. ANTÔNIO “O daltonismo exercita muito mais o cérebro, porque para ver igual aos outros temos que memorizar tudo e usar enquanto fazemos outras coisas”. SÉRGIO “Enquanto as pessoas não veem um objeto camuflado, pra mim ele salta à vista”. MARCOS “Van Gogh era daltônico e conseguia pintar quadros incríveis, uma prova de que não temos nada de inferior”. RAFAEL “Quem disse que quem está enxergando certo são vocês, e não nós?”. GABRIEL “É uma mutação e eu sou um X-Men!”.
cultura
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O TERROR
inexplorado Por que o gênero de horror, principalmente o de baixo orçamento, ainda não recebe apoio no Brasil Por Marina Geronazzo Altamente lucrativo, o gênero de horror nasceu muitos anos atrás. O florescer das narrativas assustadoras data o século XIX, um período de riquíssima produção. As histórias ficaram a cargo de grandes nomes da literatura, como Mary Shelley, Edgar Allan Poe e BramStocker. Esses escritores decidiram inovar da noite para o dia, e não faziam a menor ideia do impacto que teriam na produção cultural dos anos posteriores aos seus. O gênero de horror cresceu de forma despretensiosa, nunca buscou agradar a todos. Mas, felizmente, alcançou um número grande de adoradores, e hoje está presente em diversos ramos. A televisão e o cinema definitivamente foram os meios que melhor souberam utilizar o “susto” para lucrar. Só nos Estados Unidos, as adaptações de livros como “Drácula” e “Frankenstein” foram altamente bem recebidas e procuradas pelo público que lotava as salas de cinema em busca de entretenimento. Em meio a cortes, cenas cobertas de sangue, membros mutilados e espíritos, os filmes de horror conquistaram cada vez mais pessoas, todas com o mesmo intuito: se assustar. Os jovens passaram a ser o público-alvo desses roteiros, dando abertura a novos diretores, que se arriscavam com produções de baixo orçamento – ou trash, como também são conhecidas – onde realizavam histórias pouco procuradas pelas grandes produtoras do cinema hollywoodiano. Pode-se dizer que, se não fosse aquele riquíssimo ano do século XIX, não teríamos hoje as obras fenomenais de Alfred Hitchcock, George Romero, Vincent Price e John Carpenter. RELATO PESSOAL A admiração pelos filmes de baixo orçamento começou há pouco tempo, mas não foi um empecilho na hora de buscar mais sobre o assunto. Acredito que o meu primeiro contato com gênero trash tenha sido em 2012, me encontrei com o grupo de amigos do colégio, para mais uma daquelas maratonas de filmes. Para a minha surpresa trouxeram um clássico do cinema americano dos anos 80. Lembro-me do receio em assistir ao filme, mas deixei o preconceito de lado e concordei com a escolha.
O longa-metragem “Sexta-feira 13” havia acabado de começar, e sem muito esforço me cativou em um piscar de olhos. Quando me dei conta, já havia assistido a todos os 11 filmes da série e ansiava por mais. Desde então busquei por obras como “Halloween”, “Pânico” e outras como a “A Morte do Demônio”. Definitivamente tenho apreço muito grande pelos filmes “trash”. Não sei bem ao certo o que me cativou nesse gênero. Talvez tenham sido as atuações forçadas que me levavam a rir constantemente, ou os efeitos visivelmente feitos em casa. Mas descobri que alguma coisa em sentir medo me fazia e ainda faz bem. Acredito que ele quebra a rotina, te leva a um cenário distinto e abre a porta a novas sensações, mas o importante é como cada um desses filmes deixa uma marca em sua vida, seja no bom ou no mau sentido. Como já dizia o norte-americano Nöel Carroll, na obra “A Filosofia do Horror ou Paradoxos do Coração”, “as emoções do público devem espelhar a dos personagens humanos em certos aspectos”. MAS E O BRASIL? É notável a importância da produção brasileira nesse ramo. Daqui surgiram personagens como “Zé do Caixão” do grande José Mojica. Um dos precursores da temática no país, ainda foi um dos primeiros a estabelecer uma tradição na forma de produção, pois trouxe à tona assuntos extremamente polêmicos para a época, como a nudez e a macumba. O começo da década de 60 foi muito importante para o gênero no Brasil. Mojica começou então a impulsionar a produção amadora. Seus filmes conseguiram quebrar o padrão do que era produzido no país, sendo reconhecidos mundialmente até hoje. O gênero que já vinha ganhando força nos Estados Unidos ainda estava dando os seus primeiros passos por aqui. CENÁRIO EM CRESCIMENTO A afirmativa de que há um crescimento do gênero terror é compartilhada por vários adoradores desses filmes. Rodolfo Stanki, jornalista e idealizador do blog “Espanto” ,já escreveu 42
cultura uma dissertação durante seu trabalho de conclusão de curso na qual analisava as representações sociais do gênero e sua recepção pelo público. Enquanto trabalhava no jornal “Gazeta do Povo”, criou um espaço – por vontade própria – com intuito de debater filmes e notícias ligadas ao gênero. Durante um bate papo por telefone, Rodolfo comentou a perceptível diferença de produção entre as diferentes regiões do mundo. Em sua opinião, o cenário digital modificou completamente a área e abriu as portas para o crescimento da produção local, mas ainda sofre com preconceitos devido à falta de recursos financeiros. “Atualmente, a produção é muito forte e articulada, mas se mantém fora do cinema comercial. Tem muito filme que não chega ao cinema”, comenta. Há poucos dias recebi uma resposta por e-mail de um rapaz residente de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Devido a alguns imprevistos, nossa conversa não se estendeu muito. Na primeira vez que entrei em contanto com Lucas Sá, soube que havia sido assaltado recentemente e, portanto, nossa conversa teria que continuar com a ajuda da internet. Lucas atualmente está cursando o último semestre de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) e produz filmes de baixo orçamento do gênero de horror. A paixão veio desde cedo; com 15 anos já havia realizado seu primeiro filme, e desde então não hesitou em continuar produzindo. “Todos meus filmes são feitos de forma independente e com baixo orçamento. A equipe, até o momento, é formada por minha família e amigos de fora e dentro da faculdade. Nunca fiz nenhum projeto com dinheiro de editais, mas em 2015 começo a produção do meu primeiro longa-metra gem, gravado no Maranhão, chamado “Convite para Enterro”, com o qual pretendo usufruir desses recursos,” comenta. Suas inspirações vêm a partir de situações rotineiras e conversas infor mais com amigos ou conhecidos. “Meus filmes geralmente giram em torno da paranoia urbana e exaltam a violência gráfica buscando alguma beleza em situações horrendas”. Amante dos “Giallos”*italianos e os RevengeMoviesaustralianos e norte-americanos, Lucas cita como seus principais ídolos do cinema, Dario Argento, Brian De Palma e Michael Haneke. Apesar de ainda estar engatinhando no ramo, o 43
“O QUE VALE É CONTINUAR INSISTINDO E PRODUZINDO PARA RESOLVER ESSAS QUESTÕES.” PAULO BISCAIA, DIRETOR
jovem diretor afirma que a produção não está centralizada somente no polo de São Paulo e Rio de Janeiro. Para a surpresa de muitos, ela tem se expandido em locais do Nordeste e Sudeste, ganhando destaque especial em estados como Recife, Paraíba, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. *São livros de capa amarela (em italiano giallo = amarelo), que contam histórias de suspense e investigação policial. Foi um gênero literário muito popular na Itália a partir de 1929, ano de lançamento do primeiro giallo. Um dos primeiros filmes desse estilo foi La Ragazza Che SapevaTroppo (1963), de Lucio Fulci. AS BARREIRAS DE UM SONHO Felizmente, é sabível que as tecnologias facilitaram, e muito, a criação e adaptação de roteiros. Recentemente, tive ainda a oportunidade de conversar com o diretor paranaense Paulo Biscaia, pertencente a um seleto grupo de produtores brasileiros que não relutou em se aventurar no meio. Hoje, Biscaia é considerado um dos grandes nomes do cinema de baixo orçamento e recebeu diversos prêmios por suas obras. “Vivi em uma época onde tudo era muito mais distante, a produção era mais difícil. Hoje, o cinema se democratizou, principalmente os elementos áudio visuais. Todo mundo tem uma câmera de alta definição do bolso, é tudo uma questão de sorte, de saber usar os equipamentos a seu favor. O cinema nunca vai ser fácil para ninguém. O que vale é continuar insistindo e produzindo para resolver essas questões,” explica. Quando lhe perguntei sobre a recepção de seus filmes pelo público, Biscaia deu uma risada e num tom de brincadeira disse: “De fato meus filmes sofrem o ápice de todo o preconceito, se pudéssemos compará-los a outros alvos de críticas, eles facilmente seriam tachados como uma mulher gorda, negra e lésbica”. Passei a imaginar então que eram poucas as pessoas de Curitiba que buscavam por suas produções. Optei por realizar uma pequena pesquisa para comprovar a hipótese. De boca em boca perguntei a alguns amigos se conheciam os filmes mais famosos de Biscaia, como “Morgue Story: sangue baiacu
e quadrinhos” e “Nevermore: três pesadelos e um delírio de Edgar Allan Poe”. Apenas uma pessoa já havia assistido a seus filmes, fato que não os torna menos relevantes. Resolvi então questioná-lo sobre a reação do público estrangeiro. Durante uma busca prévia pelo histórico do diretor, descobri que havia recebido vários prêmios no exterior, como “Melhor filme de horror pela Swansea BayFilmFestival”, “Melhor filme de horror Heart ofEnglandFestival” e “Melhor filme de horror Illinois InternationalFilmFestival”. De repente, um breve momento de silêncio; senti que o havia deixado reticente, mas não entendi o motivo. Cheguei a imaginar que a ligação havia caído, mas poucos segundos após isso, recebi a esperada resposta. “No exterior os meus filmes não sofrem nenhum tipo de preconceito. Aqui no Brasil as pessoas ainda julgam os filmes por serem de baixo orçamento, de terror e feitos em Curitiba.” Acredito que tenha tocado em um ponto fraco quando comentei sobre sua forma de produção. Mas para a minha surpresa, Biscaia ainda estava aberto a mais perguntas. O gênero está em um momento muito propício ao crescimento. De acordo com o diretor, não existe nada sendo feito. “A criação nesse ambiente de produção é gigantesca, não há nada acontecendo”. Acho que o comentário do diretor serve como incentivo para quem vem se questionando se deve entrar no ramo ou não. CURITIBA: A CAPITAL DO HORROR A crescente procura dos curitibanos por eventos como a ZombieWalk e as mostras de filmes de horror – Madrugada
Sangrenta – tem impulsionado positivamente a produção na capital. Não é à toa que, no último mês, em comemoração ao dia das bruxas, a produtora Moro Filmes trouxe o norte-americano, mestre dos filmes de baixo orçamento, Roger Corman à cidade. Aos 88 anos de idade, o diretor contou durante uma coletiva de imprensa as peculiaridades de sua carreira e como conseguiu colocar em prática roteiros com a escassez de recursos financeiros. Comentando a influência da indústria comercial no cinema, Corman explicitou três fatores que considera essenciais na hora de identificar novos talentos na área: criatividade, inteligência e vontade de trabalhar. De acordo com o cineasta, esses requisitos são essenciais na hora de alcançar o sucesso desejado, independente do retorno financeiro. Corman afirmou ainda que os problemas encontrados devem ser resolvidos ao longo da produção, para que não haja maiores preocupações durante o processo de gravação. Tal frase me fez lembrar uma pequena citação de Stephen King, que havia lido em uma biografia não autorizada. “Disciplina e trabalho constante são as pedras de amolar sobre as quais a faca cega do talento é trabalhada até ficar afiada o suficiente.” O trecho retirado do livro “A Dança Macabra” exemplifica muito bem o que vem bloqueando o caminho da produção local. Após tantas conversas, cheguei à conclusão de que, com um bom equipamento tecnológico, comprometimento e criatividade, o mercado tem, sim, condições de lançar novas produções de qualidade, dignas de bons sustos.
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testemunho
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Clandestinas: MULHERES BRASILEIRAS
QUE BUSCARAM O ABORTO Por Tayná de Campos Soares Por Tayna de Campos Soares Colaboração Larissa Mayra e João Lemos Aos 18 anos, a carioca Clara* engravidou e descobriu então que não queria ser mãe, que não era a hora e que ninguém poderia obriga-la a isso. Decidiu que a melhor opção para o momento era o aborto clandestino. Ligou para o namorado que morava em outra cidade e encontraram uma clínica de aborto no Rio de Janeiro. A clínica escolhida era de pai e filho, ambos médicos. Deitada numa maca improvisada, Clara urrava de dor. Apesar de ter recebido a injeção intravenosa, a mesma só começou a fazer efeito no fim do procedimento, e já era tarde. Durante todo o processo, Clara era segurada por outras pessoas para que não se mexesse, mesmo estando com dor. “Por fora, a clínica parecia uma grande casa colonial. Por dentro era toda branca e fria. Na sala de baixo tinham dois sofás de couro e uma secretária que ficava atrás de uma mesa”, conta. Ainda segundo Clara, no andar de cima da clínica era onde os médicos faziam os procedimentos. Tudo também era branco e frio. Havia algumas macas e um trocador. Apenas isso. “Logo que acabou o procedimento comigo, eles trouxeram a próxima imediatamente. Ela olhou para mim, e eu, encolhida, sussurrei: foi horrível. Ela ficou assustada”, relembra. Segundo a Organização Mundial da Saúde, (OMS), no Brasil, mais de um milhão de mulheres se submetem ao aborto clandestino todos os anos. Dessas, 250 mil são internadas por complicações por ano. Ainda segundo a OMS, a cada dois dias, uma brasileira morre em decorrência do aborto ilegal. Ana* não teve a mesma sorte que outras mulheres. Engravidou aos 16 anos, o namorado sumiu e num ato de desespero recorreu ao aborto. Comprou o remédio com uma prostituta, tomou e o mesmo não funcionou. “Então a Ana veio e me contou que havia tentado abortar, e eu não acreditei que ela tinha tentado fazer isso. Imediatamente a proibi de fazer novamente e na mesma hora liguei para um consultório e marquei médico para vermos a saúde do bebê”, conta a mãe de Ana. No mesmo dia de ir ao médico, Ana teve uma parada cardiorrespiratória. Faleceu. “O que os médicos me explicaram é que ela ingeriu uma quantidade
muito maior do que a necessária para o aborto e, além disso, o remédio era falso”, lamenta a mãe. A primeira gravidez de Alice* foi aos 19 anos. Ao descobrir que estava grávida, Alice tinha a certeza de que não poderia/queria ter aquela criança. Conversou com o namorado e juntos juntaram seis mil reais para interromper a gravidez. O aborto foi numa clínica e o processo não durou mais que uma hora. O combinado era que Alice iria até o shopping da sua cidade, Porto Alegre, e lá encontraria um motorista que a levaria até o local da cirurgia. “Cheguei ao shopping e de lá fomos até a clínica que ficava num prédio bem discreto numa rua movimentada da cidade”, conta. Aquele foi o segundo contato que Alice teve com o médico. O primeiro foi antes do aborto, na qual os dois combinaram todos os detalhes da interrupção da gravidez. Ao contrário de Clara, Alice não sentiu dores. “O médico me fez algumas perguntas para que eu não ficasse com medo, e aí me explicou que aplicaria a anestesia em mim. Poucos minutos depois eu dormi e só acordei após o procedimento”, explica. A segunda gravidez de Alice foi aos 20 anos, dessa vez decidiu abortar sem contar para ninguém. Juntou dinheiro, comprou o remédio e abortou. “O primeiro aborto eu decidi fazer porque eu estava numa relação extraoficial, ou seja, ele era comprometido. Além disso, eu não me sentia preparada para ser mãe, não queria parar a minha vida naquele momento. O segundo aborto eu fiz porque ainda não quero ser mãe e acho que tenho o direito de escolher qual será o melhor momento para isso acontecer”, comenta. No Brasil, o aborto é proibido pela legislação brasileira, contudo, é autorizado em três hipóteses: quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, quando é comprovado que o feto é anencéfalo ou então se a gravidez for resultado de um estupro. “No segundo caso, deve haver o consentimento da gestante. Caso a mulher seja menor de idade, quem responde é o seu representante legal”, explica o advogado, Leonardo Dutra. 46
testemunho A pena para quem interrompe uma gravidez ilegalmente varia entre 1 e 3 anos. Se a mulher realiza o aborto sem o seu consentimento, a pena para quem participa do esquema é de 3 a 10 anos. Mas se a grávida consentiu ao realizar o aborto, então a pena para quem ajuda nisso é de 1 a 4 anos. “A pena aumenta em um terço se a mulher tiver sérias consequências físicas. Caso ela venha a óbito, a pena é duplicada”, ressalta Leonardo. Ao chegar no banheiro e realizar o teste de gravidez de farmácia e ver que deu positivo, Francine* não sabia o que estava sentindo. O namorado ficou empolgado com a ideia de ter um filho e ela decidiu que manteria a gravidez. Criou coragem e contou à mãe sobre o que havia acontecido e então viu-se obrigada a realizar um aborto. “Meus pais fizeram uma mesa redonda para discutir a minha vida. Eles não estavam se importando comigo, mas sim com o que o resto da família e os vizinhos iriam pensar”, lamenta. Francine e a mãe foram até o médico para pedir indicação de remédio abortivo. “Eu apelei para a médica, chorei de soluçar para que ela não indicasse uma clínica ou um remédio. Pedi que minha mãe não fizesse aquilo comigo, mas ela disse que, quando engravidou de mim, ela teria abortado se tivesse dinheiro”, conta. Francine foi obrigada a tomar o Cytotec. Por provocar contrações uterinas, o remédio é usado por muitas mulheres que tentam o aborto. Entre os principais efeitos colaterais do medicamento estão febre, náusea, vômito e diarreia. Os dados da Organização Mundial da Saúde mostram que mais de uma em cada cinco mulheres entre 18 e 39 anos de idade já recorreu a um aborto na vida. Mesmo que o código penal brasileiro preveja punição para mulheres que cometem o aborto, milhares realizam esse procedimento. Das mulheres que abortam, por ano, em média 250 mil precisam fazer a curetagem. Segundo um estudo realizado pelo Instituto do Coração (InCor), no período de 1995 a 2007, a curetagem foi a cirurgia mais realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Durante esse tempo, 3,1 milhões de mulheres precisaram fazer o procedimento. Em 2013, o SUS registrou que 205.855 mulheres foram internadas em decorrência do aborto, sendo 154.391 por interrupção induzida. “Tudo o que eu não queria era ir para o hospital. Mas eu não parava de sangrar e estava morrendo de dor”, relata Fernanda*, que abortou pela primeira vez aos 15 anos. Sozinha, Fernanda ligou para o hospital e pediu uma ambulância, disse que estava perdendo o bebê e não contou sobre o aborto. Mas através dos exames, os médicos identificaram o motivo da perda do bebê. “Fui tratada como um monstro, uma assassina. Imediatamente a médica saiu da sala e se negou a fazer a curetagem em mim. Fiquei esperando horas até o médico do próximo plantão chegar e realizar a curetagem”, lamenta. Após a cirurgia, Fernanda foi levada para um quarto e chegando lá uma assistente social a esperava. Com um tom de quem recrimina, a assistente dizia: “Você é uma assassina. Pessoas como você merecem estar presas”. A jovem foi liberada do hospital no outro dia, após a mãe – que morava 47
“EU QUIS ME MATAR. ESTÁVAMOS PERTO DE UM VIADUTO E TENTEI ME JOGAR LÁ DE CIMA.” JOANA*, 18 ANOS
em outra cidade – ir buscá-la. Após o episódio, Fernanda entrou em depressão profunda e durante dois anos fez acompanhamento com psicólogo e psiquiatra. O caso de Tuanny* é um pouco diferente do da maioria das mulheres. Aos 17 anos descobriu que estava grávida, e junto com o namorado decidiu que o ideal era recorrer ao aborto. Após tentativas com vários chás e remédios abortivos, Tuanny não conseguiu. “Eu desisti de interromper a gravidez e comecei a me sentir mal por ter causado tantas coisas ruins para o meu bebê”, explica. Hoje Tuanny tem uma menina, que nasceu sem nenhuma sequela, apesar dos remédios que a jovem usou. Mas, o mesmo não aconteceu com Renata*, que fez as mesmas coisas que Tuanny. Ela desistiu de abortar apenas no quinto mês de gravidez e isso prejudicou o bebê. A criança nasceu sem o braço direito e com síndrome de down. No Brasil, um dos casos que ganhou grande destaque foi a morte de Jandira Magdalena dos Santos Cruz. Jandira morava no Rio de Janeiro, seu corpo foi encontrado mutilado e carbonizado dentro de um carro, na zona oeste do Rio. A jovem, que tinha 27 anos, estava desaparecida havia semanas. Antes de desaparecer, Jandira conversou por mensagem com a mãe e avisou que faria um aborto. A jovem estava com 12 semanas de gestação e já era mãe de duas meninas. “Acho extremamente problemática a maneira com que a mídia destacou esse caso. Vejam, se a Jandira estivesse viva e fosse pega na clínica, ela teria sido algemada e presa. Não acho que é desse jeito que as coisas devem acontecer. Se o aborto fosse legalizado, se nós não criminalizássemos o aborto, essas mulheres teriam um tratamento especializado, humano e correto e não morreriam em macas”, explica a advogada de Direitos Humanos, Maria Clara Picler. Aos 18 anos, Joana* conseguiu seu primeiro emprego. Para quem passou a adolescência sem muito dinheiro, aquilo representava um ato de liberdade: já dava para aproveitar mais a juventude. Joana sempre gostou de sair. Não tinha saco para ficar em casa e adorava uma festa. Aos 18 anos, no entanto, descobriu que estava grávida. Acompanhada de dois amigos, a jovem foi a um labo-
ratório para fazer um exame de sangue. Ficou sentada na recepção por duas horas esperando o resultado: POSITIVO. “Eu quis me matar. Estávamos perto de um viaduto e tentei me jogar lá de cima, mas meu amigo me segurou. Eu não queria aquele filho, eu não queria ser mãe. Tudo aconteceu com uma pessoa que eu não amava, eu nem gostava dele!”, contou. Diante do desespero de Joana, seu amigo ofereceu ajuda e falou sobre o aborto. Ele conhecia um enfermeiro que poderia conseguir um remédio abortivo. Ela aceitou. O remédio era o Misoprostol, indicado para o tratamento de úlceras e conhecido popularmente como Cytotec. Joana tomou duas doses do remédio, mas não houve efeito. Decidiu, então, procurar uma clínica de aborto: sua amiga conhecia um profissional específico no centro da cidade. “O consultório do médico ficava dentro de um prédio no centro de Curitiba. Na porta, uma pessoa apareceu em uma pequena janelinha e perguntou o que eu queria. Você não pode falar nada sobre aborto, se não eles nem abrem. Eu disse que tinha uma consulta marcada. O médico foi bem seco, mal olhou pra mim. Ele pediu uma ecografia e já marcou o procedimento cirúrgico”, comenta. Ela se lembra de que o aborto foi marcado para as 10h de um sábado. O procedimento custaria mil reais. Mesmo sem saber como juntar esse dinheiro, Joana queria prosseguir. Mas, antes mesmo de a manhã de sábado chegar, sua amiga revelou para a família de Joana toda a situação. “Eu lembro que levei uma surra da minha mãe e fiquei com muita raiva. Eu odiava aquela criança, dava soco na minha barriga e chamava minha filha de demônio. Fiquei muito brava por não deixarem eu resolver as coisas da forma como eu tinha decidido”. Joana aprendeu a amar a filha, hoje com 11 anos, “acho que a mulher deve ter direito de escolha – é o seu corpo, a sua vida”, diz ela. Em 2013, apesar de usar DIU, dispositivo intrauterino utilizado como método contraceptivo, a menstruação de Joana atrasou por 15 dias e o exame de farmácia novamente acusou: positivo. “Pesquisei na internet tudo o que dizem que é abortivo, fiz um chá com canela, vinho e outras coisas e tomei. Dessa vez, resolveu. Tive uma hemorragia bem forte, mas deu certo”, relembra. Hoje com 29 anos Joana afirma: “não me arrependo. Se eu me cuido com métodos contraceptivos e mesmo assim
engravido, é porque eu não quero ter filhos. Então, é um direito da mulher decidir o seu destino. Um filho tem que ser planejado”. O aborto é permitido em 56 países do mundo. A legalidade varia de acordo com o tempo de gestação. Na maioria dos casos, o aborto é permitido até o terceiro mês de gestação. Desde 1965, Cuba descriminalizou o aborto; lá, uma mulher pode interromper a gravidez se estiver até a décima semana de gestação. O Uruguai legalizou essa prática recentemente. Foi em outubro de 2012 que foi criada uma lei que permite que a mulher aborte até a décima segunda semana de gravidez. No Brasil, o Conselho Federal de Medicina (CFM) defende a legalização até a décima segunda semana de gestação. Em declaração, o presidente do CFM, Roberto Luiz d’Avila disse que “até na
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testemunho décima segunda semana de gestação o risco para a gestante é menor e o sistema nervoso do feto não está formado”. A candidata à presidência na última eleição, Luciana Genro (PSOL), defende abertamente a descriminalização da prática. “O aborto é uma questão de saúde pública. O fato de o aborto não ser legalizado não impede que a mulher interrompa uma gravidez e isso causa morte para milhares delas, causa sequelas. Pelo número de mulheres que abortam, no Brasil, o aborto deve ser tratado como uma questão de saúde pública. Devemos cuidar das nossas mulheres”, defende. Ao contrário de Luciana Genro, o médico ginecologista, Fernando de Abreu, diz que a vida humana inicia-se na concepção e que é necessário que as pessoas preocupem-se mais e fiquem atentas ao fato de que, no aborto, são duas vidas, a da mãe e a do bebê. “Em primeiro lugar coloco a questão dos riscos que um aborto pode trazer para a vida da mulher. Em segundo lugar, coloco minha opinião pessoal, é uma vida. Não se pode matar uma pessoa, é crime”, argumenta. Antônia* é uma das milhares de mulheres que já realizaram o aborto. A gaúcha descobriu estar grávida aos 23 anos. Ganhou forças, sem saber de onde, e contou para os pais e o namorado. “Foi muito difícil. Eu tomei o Cytotec por duas vezes. Não funcionou, o remédio era falso. Então eu recorri para uma clínica, e também não deu certo”, comenta. A pessoa que tentou fazer o aborto de Antônia disse a ela que o feto estava “preso” em uma volta no útero e por isso não era possível realizar o procedimento. Então Antônia recorreu a uma segunda clínica e, dessa vez, conseguiu fazer o aborto. Após a cirurgia, Antônia foi para o hospital. Lá, fez a curetagem. “Sofri demais, em termos emocionais, porque sofri violência psicológica dos médicos. Em termos físicos devido à quantidade de vezes que tentei abortar, às dores, aos sangramentos... Sofri insegurança, sofri na faculdade pois perdi um mês de aula...Foi horrível, mas não me arrependo”, comenta. Natália Valarelli realizou o aborto em clínica clandestina, quando estava com três meses de gestação. O namorado a acompanhou na primeira consulta com o médico, mas após isso passou a chantageá-la por e-mail, mandando fotos do crescimento do feto e falando de conceitos religiosos. “Eu contei sobre o aborto para minha mãe, meu irmão e meu namorado. Quando me dei conta, praticamente a cidade toda já sabia. Eu fui muito julgada por isso”, conta. Fabiane* também precisou recorrer ao aborto. A jovem suspeitou que estava grávida e contou ao namorado. Após isso, foram até a farmácia, compraram dois testes de gravidez e ambos deram positivos. Para confirmar, Fabiane fez o teste de sangue, e aí veio a certeza. “Eu vi o resultado e rasguei o papel. Meu namorado fez de tudo para me acalmar e nem me perguntou se eu queria ter um filho, ele me conhecia, sabia da minha militância e logo me perguntou se eu sabia como abortaríamos”, revela. Em um prazo de dez dias, Fabiane e o namorado tiveram que arrumar R$400,00 para tomar três Cytotecs. Em uma semana, Fabiane perdeu 5 quilos. São vários os relatos de mulheres que recorrem ao aborto no Brasil e é pela segurança de cada uma delas que as feministas brasileiras lutam pela legalização e descriminalização do aborto. “Lutamos para que as mulheres tenham o direito de 49
escolher o momento em que querem ser mães, e se quiserem. Lutamos para não vermos mais mulheres morrendo e caindo no esquecimento, como de fato acontece”, explica a feminista, Bibiane Klaris. Na tentativa de mudar a realidade dessas mulheres e descriminalizar o aborto, a roteirista carioca Renata Corrêa foi atrás de histórias de mulheres que realizaram o aborto clandestino e contou suas histórias através de um documentário. “Encontrar as mulheres foi fácil. Uma em cada cinco mulheres em idade fértil no Brasil já realizaram o aborto. Foi só olhar para o meu círculo de amizades, colegas de trabalho, família etc.”, conta. O documentário “Clandestinas” traz relatos de várias mulheres, desde as de classe média alta, até as mais pobres. “Eu já sabia que mulheres morriam em abortos clandestinos. Isso é um dado da realidade, mas eu não conhecia casos de desfechos ruins perto de mim”, explica. Renata conta que a experiência foi chocante. A roteirista procurou ir além do “confortável” da classe média e foi atrás de mulheres pobres, que carregam culpa e medo dentro de si. “Apesar de muitas mulheres de classe média passarem por abusos e violência física, emocional e sexual nos seus processos de abortamento, a situação na periferia é mais dramática. Essas mulheres não têm dinheiro para ir até uma clínica de verdade e por isso são submetidas a situações ainda mais perigosas e inseguras, como abortamento com métodos caseiros ou em clínicas insalubres”, ressalta. Segundo a OMS, cerca de 10 mulheres são internadas por hora. “Essas mulheres estão morrendo de forma muito cruel e violenta e ninguém fala nada sobre isso. São histórias de horror”, comenta Renata. Foi por causa dos dados que Renata decidiu que estava na hora de falar sobre o assunto. Segundo a roteirista, o aborto é questão de saúde pública, algo que não deve ser criminalizado, pois isso joga as mulheres para a marginalidade sem a assistência adequada. “É um assunto que precisa ser trazido para a luz. Devemos falar sobre o aborto na academia, nas famílias, nas ruas. Sem preconceito. A sociedade precisa falar sobre isso, ou o estigma do medo e do silêncio vão permitir que mais mulheres morram. Essas mortes são invisíveis, precisamos fazer com que sejam visibilizadas”. * Nomes fictícios.
“ESSAS MULHERES ESTÃO MORRENDO DE FORMA CRUEL E VIOLENTA E NINGUÉM FALA NADA SOBRE ISSO.” RENATA CORRÊA, ROTEIRISTA
“PRECISANDO DE AJUDA?” “Olá. Sou de Curitiba e, infelizmente, descobri que estou grávida. Consegui o e-mail de vocês em uma indicação na internet... Será que vocês poderiam me ajudar?” Segundos depois, recebi uma resposta automática que solicitava alguns dados (nome, idade, e-mail, telefone para contato, bairro, cidade e estado) e fazia algumas perguntas (mora com?, quem sabe da gestação?, como descobriu a gravidez?, tempo de gestação em semanas?, já passou pela experiência do aborto?, na gestação atual, usou algum procedimento para abortar?). Todas as minhas respostas foram uma invenção. Queria passar pela experiência de entrar em uma clínica de aborto e talvez sentir um pouco na pele aquilo a que muitas mulheres se submetem. A personagem criada para desvendar os meandros de uma clínica de aborto clandestino em Curitiba foi Anabela. No dia 25 de outubro, recebo uma resposta cordial: “Olá, posso ajudá-la, sim. Você já fez o beta HCG? E de quanto tempo está? Abraços”. Não tive tempo de responder. Antes mesmo de visualizar o e-mail na caixa de entrada, meu celular recebia uma ligação de um número desconhecido. - Você ainda está precisando de ajuda? - diz uma voz feminina no outro lado da linha. Por alguns segundos, não soube o que dizer. Ajuda pra que mesmo? O dia estava ensolarado e eu já estava atrasada para a aula. Lembro, então, a mensagem que havia recebido no dia anterior: “ola ainda precisa de ajuda? (sic)”. Não respondi a mensagem. Pensava em responder naquela manhã, porém a mulher foi mais rápida. - Ana*, você ainda precisa de ajuda? - Sim. – disse com insegurança - Mas no que você precisa? - Eu conversei com o meu namorado e decidimos que não temos condições de criar uma criança nessa fase da vida. Estamos procurando uma clínica de aborto. - Com quantas semanas você está? - Eu... eu acho que seis semanas... É, seis semanas, porque fiz o beta e parece que já estou com seis semanas... - E quando foi sua última menstruação? - Eu acho que em setembro. É... Fim de agosto, começo de setembro. - Ok! Nesta semana entro em contato com você novamente para marcar uma consulta com o médico. Ele vai te explicar como funciona o procedimento, tirar suas dúvidas e, se você quiser dar continuidade, marcamos o procedimento. - Tá bom, eu posso levar o meu namorado junto na consulta?
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testemunho - É só uma conversa. Se ele quiser, pode acompanhar o resto do procedimento. Depois de uma semana, a mulher ligou novamente. Era para avisar que o médico que me atenderia havia ficado doente. Com a voz doce e gentil de sempre, pediu para eu esperar mais alguns dias. - Você já tomou algum remédio abortivo? - Não. - Não tome! Tem muita mulher sofrendo hemorragia e parando no hospital por causa da pílula abortiva. Você já fez uma ecografia? - Não. - Eu acho bom você fazer para saber certinho com quantas semanas está. - Beleza, eu vou providenciar. Ao fim das ligações, após meus agradecimentos pela “ajuda”, ela dizia que em breve entraria novamente em contato para repassar mais informações. Assim, pude me preparar para a ligação seguinte: disse que tinha feito a ecografia e que já estava com nove semanas. - Nossa, nove semanas? - Sim. - É, com nove semanas o bebê já está quase formado. Você viu o bebê? - Eu tentei não olhar muito, é meio ruim, né? - Pois é. Vou tentar marcar o seu atendimento... A gente conversa. Meu objetivo havia sido atingido. Entre a oitava e a décima semana de gestação, o embrião torna-se um feto, e os principais órgãos do bebê são formados justamente nessa fase. É por isso que dizem que a décima semana de gestação é o tempo limite para procedimentos abortivos. Ultrapassá-lo pode causar danos irremediáveis à saúde da mulher. No dia 18 de novembro, tivemos a conversa mais longa e percebi que a mulher queria me falar algo novo. - Ana, estou percebendo algo diferente em você. Pelas nossas conversas, percebi que você é bem sensível e não sei se o processo de aborto é o mais indicado para o seu caso. O aborto é uma experiência muito forte, que atinge o emocional e o físico da mulher e é necessário saber dos riscos para não se arrepender depois. Eu converso com muitas meninas, sabe? E em você eu notei algo diferente. Em todas as ligações, tentei ao máximo demonstrar certa frieza e acreditei que realmente funcionaria. - Olha, eu pensei e achei melhor te encaminhar para um outro médico, que não faz aborto, mas que sabe muito bem sobre esse assunto e vai te explicar como é o procedimento. Assim, você terá mais tempo para pensar e se você decidir abortar, eu marco a consulta com o outro médico. - Ok, pode ser! É uma situação bem complicada mesmo, eu ainda não contei para ninguém. Vou pensar no que você me disse.
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- Se você quiser, posso te encaminhar para outra equipe, que ajuda a esconder a gravidez da família. Eles atendem em São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba. As mulheres conseguem esconder até o sétimo mês, depois disso vão para um local longe da família, passam por acompanhamento psicológico e obstétrico. - Mas como funciona? O que acontece com a criança após o nascimento? – Fiquei espantada ao saber de mais um procedimento em que a mulher é colocada em situação de risco. - Se você não quiser a criança, eles a encaminham para a adoção. Mas, assim... É tudo legal. - Ah, entendi. - Mas então tá bom, eu vou marcar com o médico e te retorno para passar o local e o horário. Depois de uns 15 minutos, ela me ligou novamente e disse que o médico que ia me atender trabalhava em um posto de saúde de um bairro de Curitiba. Pedi para que me enviasse o endereço por mensagem. A consulta foi marcada para o dia 20 de novembro, às 16h30. - Quando você chegar lá, é só dizer que tem uma consulta marcada com o médico. Não fale nada sobre aborto. Se te perguntarem alguma coisa, só diga que você tem uma consulta marcada com ele. Não diga nada sobre aborto. - Ok, obrigada! - Qualquer coisa, pode me ligar! - Tranquilo. Após três semanas conversando com a mulher, consegui marcar uma consulta. Se Anabela realmente existisse, sua gestação já teria completado 11 semanas. Quanto mais o tempo passa, maior o risco. Mesmo com minha vontade de seguir em frente e, assim, descobrir coisas ainda mais questionáveis, decidi parar. Eu estava usando outro nome e, apesar de sentir certa segurança com as orientações da mulher, não quis me arriscar e ir sozinha a uma consulta em uma região de Curitiba para mim desconhecida. No dia da suposta consulta médica, deixei meu celular no silencioso. Ela me ligou nove vezes. 16h14 – “você esta a caminho? Qualquer coisa entre em contato comigo. Bjs” 18h03 – “Oi, gostaria de explicar certinho como funciona a nossa ajuda, inclusive passar o nosso site para você pesquisar sobre nós. Acho que vai se sentir mais segura. Bjs” Pela manhã do dia seguinte, mais duas ligações. Eu bloqueei o contato dela. 6h35 – “Oi ana, me de um retorno, só preciso saber se está tudo bem.” Após a série de ligações da funcionária da clínica de aborto clandestina, todas sem resposta, os contatos foram encerrados.
perfil
NELSON MANDELA E ESPORTE:
unificação
Por Igor Castro
Nelson Mandela foi um dos maiores líderes mundiais, reconhecido pela sua trajetória de luta em busca da liberdade e da igualdade perante negros e brancos sul-africanos. E foi com o esporte que ele conseguiu mudar o cenário hostil e desumano que o seu povo estava vivendo, devido a uma lei de segregação racial chamada Apartheid. A inclusão do esporte na vida de Mandela aconteceu muito cedo, e foi com o boxe na época em que havia iniciado o curso de graduação de direito. Após longos 27 anos passados em uma prisão, Mandela chegou ao poder presidencial da África do Sul tendo que lidar com um país dividido e com sérios problemas de relação e convívio entre brancos e negros. Para termos uma ideia, os esportes também tinham essa divisão racial. O futebol era amplamente dominado pelos negros, muito influenciados pelo sucesso dos jogadores da seleção brasileira, mas principalmente por Pelé. Diferentemente do rugby, dominado pelos atletas brancos que, por meio dos ingleses, conheceram o esporte e passaram a ter uma hegemonia muito grande a ponto de não permitirem negros nas equipes e na seleção dos Springboks, a seleção sul-africana de rugby. Ao perceber todos esses fatos, Nelson Mandela acreditou que o rugby seria a grande saída para mudar a situação na qual o país estava. Ao assumir a presidência da África do Sul, Mandela teve uma decisão muito polêmica, de levar a Copa do Mundo de Rugby de 1995 para o seu país. Porém, o que poderia ser uma solução acabou se tornando um grande obstáculo por parte de brancos e negros sul-africanos. Mas o então presidente foi determinante e mesmo assim trouxe a Copa 53
do Mundo de Rugby para a nação africana. Vale lembrar que os Springboks estavam suspensos da Copa do Mundo desde 1977. Na oportunidade, a África do Sul estava excluída do rugby internacional, após reclamações realizadas por Nova Zelândia, França, Irlanda, Inglaterra por causa do regime do Apartheid. Contudo, Mandela frisava sempre sobre a importância do esporte para unir o país. “O esporte tem o poder de mudar o mundo. Tem o poder de inspirar, tem o poder de unir as pessoas de um jeito que poucas coisas conseguem”, dizia. Essa fala foi de tamanha importância que se refletiu nas arquibancadas, apesar do clima tenso. Aliás, os negros não torciam pelo Springboks por sofrerem preconceito dentro dos estádios. Para que tudo desse certo, Nelson Mandela usou de seu poder para mudar os rumos da África do Sul, e a primeira medida tomada por ele foi a de chamar para um encontro o então capitão dos Springboks, François Pienaar. Em uma reunião a portas fechadas na sede do governo, ele pediu que a seleção de rugby liderada pelo então capitão tivesse uma união em busca do título inédito da Copa do Mundo de Rugby, pois só assim o país teria paz e as diferenças seriam deixadas de lado. Além disso, Mandela pediu também que houvesse a possibilidade de Chester Willians – o único jogador negro de rugby – participar da equipe que iria compor a seleção e que de preferência ele fosse titular para mostrar a todos os sul-africanos que todos poderiam jogar, independente da sua cor. No dia 25 de maio de 1995, começou a Copa do Mundo de Rugby, com o jogo entre África do Sul e a temida seleção da Austrália. A partida foi realizada na Cidade do Cabo com 51 mil torcedores ajudando a seleção da casa a conquistar a inédita vitória por 27 a 18. Mesmo assim, Mandela corria riscos com um possível insucesso de sua seleção o qual apostou todas as suas fichas para que a população se unisse, deixando as diferenças de lado. Os jogos foram acontecendo e os Springboks iam conquistando suas vitórias e o povo, sendo que brancos e negros estavam em uma sintonia tão grande na torcida pela sua seleção de rugby que o preconceito e a discriminação desapareciam no momento em que os jogadores disputavam a partida. Ao todo foram três vitórias apenas na primeira fase. As quartas de finais chegaram. A mobilização da torcida sul-africana era ainda mais intensa. E a África do Sul tinha como adversária nessa fase da competição a Samoa Ocidental. O time, liderado de certa forma por Mandela, não tomou conhecimento do oponente e conquistou a vitória por 42 a 12. A estratégia do presidente da nação africana estava dando certo, unindo o povo através de um fato tão simples, porém não pensado antes por outro líder de um país. Até chegar à final, os Springboks venceram a difícil seleção da França por um placar apertado de 19 a 15. Do outro lado da chave semifinal, estavam duas seleções favoritas a ganhar o título daquela Copa, Inglaterra e Nova Zelândia. O dia da grande final chegou. E Mandela estava presente no estádio Ellis Park, na cidade de Johanesburgo. Foi concedida a ele a honra de entrar ao campo de jogo e fazer um
longo discurso ao seu povo. E através das palavras de William E Henley, Mandela relatou. “Do fundo desta noite que persiste A me envolver em breu – eterno e espesso, A qualquer deus – se algum acaso existe, Por mi’alma insubjugável agradeço. Nas garras do destino e seus estragos, Sob os golpes que o acaso atira e acerta, Nunca me lamentei – e ainda trago Minha cabeça – embora em sangue – ereta. Além deste oceano de lamúria, Somente o Horror das trevas se divisa; Porém o tempo, a consumir-se em fúria, Não me amedronta, nem me martiriza. Por ser estreita a senda – eu não declino, Nem por pesada a mão que o mundo espalma; Eu sou dono e senhor de meu destino; Eu sou o comandante de minha alma” Após o emocionante discurso, o presidente sul-africano saiu do campo aplaudido, além disso, Mandela também falou palavras de superação e dedicação aos jogadores da seleção e saiu acenando para o povo, com a certeza de que tudo que ele havia sonhado estava se tornando realidade, o Apartheid chegava ao seu fim. Porém, ainda havia um último jogo para ser disputado. O adversário dos Springboks era os All Blacks, ou simplesmente Nova Zelândia, campeã da edição anterior da Copa do Mundo de Rugby. O jogo em si foi muito intenso, os Springboks não conseguiam manter o mesmo ritmo de jogo que haviam tido nas últimas partidas, e começaram perdendo por 3x0 o confronto. No entanto, a seleção sul-africana tinha uma ajuda a mais, a da torcida que estava incentivando com toda a sua força os jogadores em busca da virada. Tudo bem que a desconfiança ainda imperava entre os torcedores, porém, isso mudou quando Chester Willians, o atleta negro que Mandela havia pedido para ser um dos jogadores titulares dos Springboks, foi chamado pelo técnico do time para entrar em campo e substituir um dos seus companheiros. O ato foi determinante para o Apartheid ser extinto na África do Sul. Mas, dentro de campo a seleção ainda estava atrás do placar. Após um bom tempo de jogo, os Springboks conseguiram empatar a partida em 9x9, o confronto passou a ficar ainda mais emocionante, e foi para a prorrogação. Com isso, a expectativa da torcida em ver a sua seleção campeã era ainda maior. E não só os sul-africanos que estavam presentes no estádio sofriam com a situação daquele jogo, muitos saíram às ruas e começaram a assistir nos bares e em outros lugares onde tivesse uma única televisão ligada na partida. Na prorrogação os Springboks saíram novamente atrás do placar, ao tomar um field gol de penalidade que alterou o marcador para 12 a 9. Faltavam poucos minutos para o encerramento da partida e a agonia imperava nos corações dos torcedores sul-africanos. Mas, nos últimos instantes do primeiro tempo da prorrogação, outro milagre aconteceu. Os Springboks conseguiram empatar a partida com Joel Stransky, e o jogo 54
perfil se encaminhou para o próximo período empatado em 12 a 12. Com o decorrer da segunda etapa extra, Joel Stransky foi mais uma vez decisivo no confronto. Em um belo chute de field gol, os Springboks viraram o jogo para 15 a 12 e era só questão de administrar o restante da partida e jogar com o coração para segurar o resultado favorável. Stransky disse que esse foi o chute mais importante da sua vida. “Recebi a bola com precisão, e a chutei com muita suavidade. Ela estava mantendo a linha. Estava girando, mas sem se desviar nem um pouco. Nem olhei para ver se ela passaria por cima. Eu sabia, desde o momento em que saiu da ponta da minha bota, que não ia errar. E fiquei absolutamente extasiado!”. Depois dessa pontuação, a torcida sul-africana estava enlouquecida, porém o tempo de partida, em torno de seis minutos seriam os mais longos da vida de toda a nação. Era questão de tempo, e a seleção do país liderado por Mandela se tornaria campeã pela primeira vez da Copa do Mundo de Rugby. E o confronto acabou com os Springboks vencendo os All Blacks por 15 a 12, e se consagrando campeões mundiais. Os torcedores foram ao delírio que até mesmo o capitão da seleção, François Pienaar declarou que a torcida foi a grande diferença para que seu time ganhasse o título. “Não tivemos 62 mil torcedores nos apoiando. Tivemos 43 milhões de sul-africanos.” A multidão aplaudiu freneticamente. Depois de tanta comemoração, Mandela entrou ao campo mais uma vez e desta vez para realizar a coisa mais importante até então vista na África do Sul, a entrega da taça da Copa do Mundo de Rugby aos Springboks. Na entrega do troféu Mandela falou uma breve frase a Pienaar, “François, muito obrigado pelo que você fez por nosso país”. Então Pienaar responde de forma agradecida ao presidente Madiba, “Não, senhor Presidente. Eu que agradeço pelo que o senhor fez por nosso país”. As ruas da África do Sul estavam tomadas pelos sul-africanos, tanto negros como brancos comemoravam o título da sua seleção sem nenhuma discriminação e preconceito. O país que a pouco tempo estava dividido passou a estar unido pelo esporte, que segundo Mandela, “tem o poder de unir os povos de uma forma como poucas outras coisas conseguem. Ele fala aos jovens em uma linguagem que eles entendem. O esporte pode criar esperança onde antes havia apenas desespero”. Após o grande sucesso da Copa do Mundo de Rugby na África do Sul, Mandela já tinha cumprido seu dever, a união total de seu povo que passou a ter um único sentimento: somos iguais, independente da cor que cada um venha a ter. Além disso, o rugby se tornou definitivamente o esporte preferido dos sul-africanos, e a disparidade entre negros e brancos dentro dessa modalidade vem caindo de forma sistemática. Muitos times dos campeonatos de rugby da África do Sul tem uma gama de bons jogadores tanto negros como brancos, e muitos ainda 55
servem a seleção dos Springboks, que depois de 1995, é considerada uma das seleções mais fortes e sempre que possível entram na Copa do Mundo de Rugby como favoritos. Não é por acaso que a seleção sul-africana conquistou mais um título em 2007, um terceiro lugar em 1999 e dois quintos lugares em 2003 e 2011. A África do Sul se tornou um país forte em todos os sentidos. E no esporte não foi diferente. Em 1996, o país recebeu pela primeira vez a Copa Africana de Nações. Novamente os sul-africanos se mobilizaram e o resultado foi surpreendente. Com uma campanha de duas vitórias na primeira fase os Bafanas Bafanas avançaram para a etapa eliminatória e venceram as seleções de Argélia, Grana e Tunísia, e foram pela primeira vez campeões da competição do continente africano. E como foi dito no dia de sua posse em 1994, Mandela resumiu bem o sentimento que nele existia e que pôs tudo em prática através da prática esportiva. “Nosso grande medo não é o de que sejamos incapazes. Nosso maior medo é que sejamos poderosos além da medida. É nossa luz, não nossa escuridão, que mais nos amedronta. Nos perguntamos: Quem sou eu para ser brilhante, atraente, talentoso e incrível? Na verdade, quem é você para não ser tudo isso?... Bancar o pequeno não ajuda o mundo. Não há nada de brilhante em encolher-se para que as outras pessoas não se sintam inseguras em torno de você. E à medida que deixamos nossa própria luz brilhar, inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo”. Portanto, se a África do Sul é hoje o que é Mandela foi o homem responsável por tudo isso, uniu o seu povo através do que há de melhor, o esporte.