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REVISTA

ENTRELINHA Do som das guitarras ao grito das torcidas A histรณria do Palรกcio de Cristal

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Expediente

Editorial

Reitor José Pio Martins Pró-reitor Administrativo Arno Antonio Gnoatto Pró-reitor Acadêmico Carlos Longo Diretor da Escola de Comunicação e Negócios Rogério Mainardes Coordenadora do curso de Jornalismo Maria Zaclis Veiga Ferreira Coordenação do projeto gráfico Camila Abrão, Gabrielly Domingues, Smicelato e Patrícia Sankari

Nicole

Editores Camila Abrão, Gabrielly Domingues, Smicelato e Patrícia Sankari

Nicole

Revisão Ana Paula Mira Equipe de reportagem Ana Paula Severino, Catherine Baggio, Cleberton Mendes, Douglas Partica, Eduardo Vernizi, Fernanda Anacleto de Ramiro, Francisco Mateus, Georgia Prestes, Giovana Godoi, Hannah Cliton, Karina Becker Di Domenico, Murilo Prestes, Paulinne Rhinow Giffhorn e Sarah Menezes ENTRELINHA é a revista-laboratório do curso de jornalismo da Universidade Positivo e integra a Rede Teia de Jornalismo. Contatos jornalismo@up.edu.br | (41) 3317-2530 www.facebook.com/RedeTeia

Mosaico A primeira Entrelinha de 2016 é uma grande mistura de textos, desde temas diversos até narrativas diferenciadas. Resultado da compilação de matérias produzidas na disciplina de Narrativas Criativas, esta edição contempla abordagens de temas sensíveis à vida em sociedade, como múltiplas formas de amor, tipos diferentes de família - mas sempre transbordando amor - bem como perfis inusitados como de uma senhora muito simpática que fugiu da segunda guerra mesmo sem saber muito bem o que isso significava. Também você vai ler textos sobre projetos sociais, e ainda sobre o cineasta brasileiro que chegou a Cannes por muito menos reais do que podemos imaginar. Por fim, a matéria que ilustra a capa desta edição: uma visão bem humorada e também crítica sobre o palácio de cristal, ginásio que há muitos anos foi palco de grandes shows de rock e de bandas que marcaram a história da música brasileira, como Mutantes e Secos e Molhados. A ilustração da capa mostra esse grande mosaico da matéria principal, mas também a capacidade dos alunos de terceiro ano de pensarem em temas, propostas e abordagens diferentes das convencionais. Perfis, matérias, relatos: tudo e mais um pouco você encontra nas próximas páginas. Esperamos que o prazer em ler a entrelinha deste semestre seja tão grande quanto nós tivemos em produzi-la. Boa leitura!

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WANDERLUST BRASILEIRO Ana Paula Severino

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o peixe morre pela boca georgia prestes

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underground curitibano fernanda anacleto de ramiro

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oportunidade na ponta dos pés karina becker di domenico

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eu vos declaro família Catherine baggio

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em um relacionamento sério consigo mesmo Eduardo vernizi

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um espírito livre Sarah menezes

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a MENINA DE RAVENSBURG PAULINNE RHINOW GIFFHORN

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cannes a R$500 de distância cleberton mendes

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O VÉU QUE EXPRESSA E NÃO ESCONDE HANNAH CLITON

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sobre amores e árvores giovana godoi

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RELATO DE UM TRABALHADOR DOUGLAS PARTICA

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a chave do palácio de cristal francisco mateus

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O reduto gay que surgiu do preconceito murilo prestes

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Foto: Cris Dombeck/arquivo pessoal

Ana Paula Severino

Wanderlust brasileiro Como é o desejo que move pessoas em busca de novas culturas. Costumava achar que só seria totalmente livre quando pudesse pegar uma mochila e sair sem rumo, deixando a estrada me levar para onde ela quisesse. Às vezes ainda acredito nisso, quando as pressões de ser adulta aparecem e dá vontade de voltar no tempo, quando tudo que eu queria ser era o Forrest Gump. A sua maratona filosófica pessoal consegue até me fazer criar vontade de caminhar no parque, bem de vez em quando.

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Quando pensamos na palavra “liberdade”, imaginar pássaros se torna inevitável. Que liberdade maior poderia ter um ser que voa para onde quer, quando quer? E, melhor ainda: de graça. Talvez os pássaros invejem a nossa rotina de pegar ônibus e enfrentar filas todos os dias, vai saber. “Wanderlust”. Palavra que os alemães usam para designar esse desejo incontrolável de viajar, explorar

o mundo e os horizontes. Mas não é sempre que isso dá certo. Na maioria dos casos, as pessoas simplesmente não têm dinheiro – eu – ou tempo para se perderem assim. Como diz Giovanna Lima (apud Leminski), a vida é hermética. Foi esse tesão migratório que trouxe Cabral para cá. Se não fosse essa vontade doida de desbravar os sete mares com seus barquinhos lusitanos, talvez agora eu não estaria aqui em


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frente a esse notebook escrevendo uma matéria de aproximadamente seis mil caracteres. Estaria, quiçá, nua, como uma deusa da natureza, aplaudindo o sol com minha família indígena e me alimentando com frutas, em vez de me lamentar por ter saído da “dieta” e ter comido um Big Mac ontem. Ecdemomania. Do dicionário: desejo considerado fora do normal de estar longe de casa; vontade patológica de perambular longe; obsessão por viagens; fugir de casa. Ora, quem nunca foi um pouco ecdemomaníaco, então? Cris Dombeck que o diga. Curitibana nata, usou bem seus 24 anos de vida para viajar pelo país. Já foi para Porto Alegre (RS), Pelotas (RS), Florianópolis (SC), Joinville (SC), Lapa (PR), Foz do Iguaçu (PR), São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ), Belo Horizonte (MG), Salvador (BA), Maceió (AL), Fortaleza (CE), entre muitas outras cidades brasileiras. No exterior, já passeou pela Argentina, Estados Unidos e Uruguai. “É difícil escolher um lugar favorito, porque, apesar de a nacionalidade ser a mesma e termos a língua em comum, todos os lugares que visitei são completamente diferentes, seja pela qualidade das pessoas, pelo sotaque, pela estrutura, pela comida ou pelos costumes no geral, de fato são muitos os Brasis”. Apesar de não conseguir escolher apenas um lugar preferido, Cris guarda na memória e leva consigo as características de cada canto. Sua comida e sotaque favoritos são os de Minas Gerais - queria não ser clichê e deixar de lembrar de pão de queijo, mas não consigo. Já as pessoas mais gentis vivem em Maceió. Foi lá que se sentiu mais bem acolhida.

“Eles têm uma expressão no rosto de leveza, alegria, algo que raramente encontro em pessoas de Curitiba”. Em Salvador, a paranaense diz ter encontrado o melhor rebolado e a melhor vida noturna. Não que eu queira falar mal da minha cidade nem nada – amo Curitiba e até gosto desse mau humor natural – mas, realmente, aqui ou você vai no cinema, ou para em alguma balada/barzinho barulhento, com cerveja cara e música enjoativa. As opções não são muitas. Os melhores lanches Cris encontrou na capital gaúcha. A culinária é algo muito importante a se pensar quando decidimos viajar. Muitas vezes, acabamos apenas nos alimentando de fastfood, essa é a triste verdade, pelo menos a minha. Mas devemos aproveitar o máximo para conhecer comidas diferentes das que somos habituados. Afinal, sair da zona de conforto é o ponto crucial aqui, não é? Se você é fã de música, gosta de ir a shows e NÃO mora em São Paulo, já deve ter sofrido muito por não ter conseguido ir na droga do Allianz Parque para o show do Coldplay ou no Estádio idiota do Morumbi para ver os Stones, por exemplo. - Nota da autora: desculpem o desabafo. Cris confirma que os melhores shows estão lá. São muitas as histórias que colecionamos quando viajamos. Algumas são engraçadas, outras nem tanto, mas mesmo as mais assustadoras acabam virando motivo de riso e de aprendizado depois de um certo tempo. “Na primeira vez que fui pra lá (Porto Alegre), fiz a burrada de olhar no Google Maps e sair do hotel sem celular para ir ao mercado que ficava

próximo, em outra rua. Eu me perdi e fiquei dando voltas e voltas de noite pela Cidade Baixa, até fui para outro bairro a pé, mas consegui retornar, depois de umas 3 horas andando, sem brincadeira. O bom é que conheci muita coisa, me localizei e depois disso, nas outras visitas, andei como se fosse moradora de lá”. Para Cris, a vontade de “ver algo” é o que precisamos ter na vida. E temos muito o que ver, em todo lugar. “Eu levo a minha vida com a ideia do famoso navegador Amyr Klink, que costuma se aventurar pelo mundo, e faço das suas palavras, as minhas: ‘um homem precisa viajar. Por sua conta, não por meio de histórias, imagens, livros ou TV. Precisa viajar por si, com seus olhos e pés, para entender o que é seu. Para um dia plantar as suas próprias árvores e dar-lhes valor. Conhecer o frio para desfrutar o calor. E o oposto. Sentir a distância e o desabrigo para estar bem sob o próprio teto. Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser. Que nos faz professores e doutores do que não vimos, quando deveríamos ser alunos, e simplesmente ir ver’”. Aves como os gansos-do-canadá viajam milhares de quilômetros – sem sair da linha de formação – para fugir das estações geladas e se alimentar. Uma andorinha-do-mar pode viajar 20 vezes ao redor do mundo todo, antes de morrer. A águia, com todo seu belo porte e impecável visão, voa sozinha. Não importa como nem por que você voa. O que realmente importa – e talvez o que mais importe nessa nossa finita vida – é voar. Como diz Saramago, a viagem não acaba nunca, só os viajantes acabam.

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Fernanda steiniav anacleto

Underground curitibano Tradição e estilo na noite da capital

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Foto: Pri Oliveira/Cwb Live


É sexta-feira, sábado, fim de semana. Dia de ir tomar umas cervejas, ir pra balada ou passear pelo centro da cidade. Várias tribos marcam encontro no Largo da Ordem e de lá partem para algum point onde a música boa se encontra com o público. Se fosse há alguns anos, a cena seria perfeitamente desenhada na imaginação dos apaixonados pela noite de Curitiba, mas o cenário underground anda um pouco defasado na capital paranaense. Salvo por alguns pequenos e grandes festivais que ainda garantem lugar cativo na agenda daqueles que procuram uma alternativa de entretenimento no cenário musical. Docca Soares, professor universitário de Comunicação Digital, começou a frequentar a noite curitibana aos 14 anos, no final da década de 80. Seu bar de coração é o Lino’s, consagrado do público rock‘n’ roll e ativo até hoje. “Naquela época havia pouca coisa a fazer, pra quem gostava de rock principalmente. A cena era muito menor do que é hoje, as pessoas se conheciam, era praticamente uma vila”, relata. “Lembro também que havia um radicalismo muito maior naquela época. Principalmente no que tange às brigas entre as tribos. Havia uma cobrança de conhecimento, você não poderia usar apenas a camiseta de uma banda, você tinha que saber o que estava usando, e havia uma circulação muito grande de zines. Existia uma busca por informação maior. O interesse em ter informação era maior do que eu percebo agora”. Para ele, o que mais mudou de lá pra cá foi justamente a questão das opções. Hoje existem mais bares dedicados ao rock e um espaço um pouco maior para as bandas autorais. Mas a ditadura das bandas covers

desequilibra a cena. “Nos bares dos grandes circuitos as bandas autorais só tocam mesmo depois que conquistaram o público e se tornaram razoavelmente grandes. Eles não dão chance pra quem está começando. Temos um público bitolado que espera que algo faça sucesso primeiro pra depois gostar, que não vai lá conhecer bandas novas, ele fica esperando que a informação caia no seu colo”, enfatiza. “Felizmente ainda existe um público, pequeno, mas que busca informação. Nós temos exemplos de bandas autorais que têm um público bem grande como o Motorocker, Confraria da Costa, Hillbilly Rawhide, Ovos Presley. São bandas que ajudam também a abrir esse caminho.” Docca, que também é vocalista da banda de horror punk, Radio Cadáver, surgida em 2007, acredita que o underground é um lugar de experimentação. “Qualquer banda que queira enveredar por um som mais underground sabe que não vai ganhar dinheiro. Então isso te dá uma liberdade maior de experimentar porque se você não tem vínculos comerciais então você pode ir pra qualquer caminho, não é obrigado a seguir as correntes do mercado”. Com o avanço da tecnologia, a internet acaba se tornando um canal pra que as novas bandas divulguem seus trabalhos, conheçam novos sons e troquem figurinhas entre elas. Grupos de discussão com bandas e admiradores de diversos estilos ainda são muito ativos, mesmo que a maioria dessas pessoas não se conheça pessoalmente. “Vejo a tecnologia como uma força impulsionadora, ela nos ajuda. Bandas como a minha e como tantas outras jamais terão espaço nas rádios. Salvo as rádios alternativas, mas acredito que o momento do mainstream para

bandas independentes vai levar muitos e muitos anos pra acontecer de novo”, conta. Ainda sobre a cena atual, por mais que algumas bandas toquem juntas, Docca destaca a falta de festivais alternativos e diversificados como o Abril Pro Rock que acontece todo ano em Recife, e também a formação de panelinhas. “A galera que é do psychobilly não vai a shows de metal. A galera que é do metal não vai a

Hoje existem mais bares dedicados ao rock e um espaço um pouco maior para as bandas autorais.

shows de psychobilly, não vai a shows das bandas indie e não vai a shows de bandas punks e assim por diante. Ainda está tudo muito fechado nos seus guetos. É lógico que está melhor do que era antes, mas não podemos dizer que existe uma real abertura. Em termos gerais, jamais teremos espaço na grande mídia. Momentos para bandas independentes são muito raros. A última vez que nós ouvimos falar disso foi na década de 90, com a explosão do grunge”, relembra.

Psychobilly é tradição O psychobilly, gênero que surgiu da mistura do punk rock dos anos 70 com o rockabilly dos anos 50, é um dos grandes destaques do cenário atual de Curitiba. Nascido da vontade de criar um carnaval alternativo para os amantes do bom e velho rock’n

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roll, o Psycho Carnival, que completou dezessete anos, é um festival que dura cinco dias e traz dezenas de bandas nacionais e internacionais para a cidade. Sempre no feriado de carnaval. Uma das bandas que mais possui destaque no cenário psychobilly, com fama internacional e que leva o nome de Curitiba aonde for, é o trio de garotas As Diabatz, formado em 2006. Claudia Marques, a baterista, de 28 anos, conta que começou a frequentar a cena underground bem cedo, aos 14 anos, por influência dos irmãos e do tio, vocalista da banda 2Bless. “O que eu percebo é que a cena mudou muito, pra melhor e pra pior. A tecnologia ajuda muito na divulgação de shows e material das bandas e isso também facilita na comunicação dentro da cena entre cidades e países”. Sobre um dos pontos negativos, ela desabafa: “Talvez sejam as pessoas. Algumas delas só estão ali por modismo e não acrescentam em nada para a cena crescer. Por conta disso alguns shows de bandas mais novas acabam ficando vazios porque a galera está mais interessada em ver banda famosinha. Apesar disso tudo, Curitiba tem muito a oferecer para quem vem de fora e o que chama a atenção é a quantidade de bandas boas da city”. Claudia também destaca o Lino’s Bar como um dos seus favoritos, a casa de shows 92 Graus e o Lado B Bar. “Um bar que fechou e para mim faz muita falta mesmo é o Lemmy’s Bar, que era na frente do Jokers. Todo final de semana a gente ia lá ver as bandas, ou tocar ou ajudar no palco”, relembra.

Com uma grande agenda de shows na Europa e nos EUA, As Diabatz ganha cada vez mais público, tanto por difundir o psychobilly, como pelo diferencial de ser uma banda só de garotas. “Com As Diabatz foi tudo bem despretensioso. Nós decidimos nos reunir para tocar psychobilly porque a gente gosta tanto que só ir em shows não era o suficiente, queríamos tocar também”, conta. Após um ano de ensaios, divulgação e gravação de uma demo, a banda fez o primeiro show no 92 Graus (não poderia ser diferente). “Quando vimos que a coisa começou a tomar grandes proporções ainda estávamos no nosso quarto show que foi já foi no Psychobilly Meeting na Espanha. Aí vimos a oportunidade de mergulhar fundo mesmo naquilo que a gente mais ama, que é fazer música”, finaliza.

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Catherine Baggio

Eu vos declaro família Os lares brasileiros se transformam: mais da metade das formações familiares não são mais tradicionais. Pai, mãe e filhos. De preferência um casal. Difícil saber desde quando é assim, mas por muito tempo foi essa a clássica composição familiar que reinou nos lares brasileiros. A questão é que hoje em dia esse modelo não é mais o predominante no Brasil. Hoje, com madrastas, padrastos, filhos de antigos casamentos ou casais do mesmo sexo e filhos adotivos, as possibilidades são infinitas. E ainda mais importante, as possibilidades são aceitas. Ou quase. Essas diferenças sempre existiram, mas vivendo em uma sociedade conservadora, elas nem sempre ganhavam seu espaço. O que talvez seja uma razão para que este cenário esteja mudando é o fato de que, teoricamente, vivemos hoje em uma sociedade mais moderna, que aceita as diversidades. O último Censo do IBGE, em

2010, comprovou que a família tradicional já não é mais maioria no Brasil, sendo responsável por 49,9% dos lares. O outro lado, que já soma 50,1%, enquadra os mais variados tipos de famílias, como casais sem filhos ou três gerações vivendo juntas, considerando ainda amigos que dividem o mesmo teto. O que pode parecer uma diferença pequena de pontos percentuais ganha grandes proporções pelo fato de que foram visitados 67,6 milhões de domicílios nos 5.565 municípios do país. O caso da Natalia Lucas, de 16 anos, é um exemplo das famílias “mosaico”, cada vez mais frequentes, que surgem quando casais formam novas famílias com filhos de antigos casamentos. A mãe, Morgana Lucas, casou-se de novo quando a Natalia e Nicole, sua outra filha, ainda eram crianças. A partir daí, os laços das

meninas com o padrasto, Williams Zanatta, foram se estreitando cada vez mais, à medida que passaram a considerá-lo como pai, uma vez que o biológico não se fez presente. Ela conta que algumas pessoas estranharam a situação no início, mas que aceitaram bem com o tempo. Entretanto, até hoje Terezinha, mãe de Wiliams, recusa-se a ver as meninas como netas. “Ela acha que eu e a minha irmã estamos erradas, já que não procuramos nosso pai, não ligamos para ele, nem vamos visitar. Mas como nós vamos fazer isso se no momento que ele precisava estar presente, sendo pai, ele não estava?”, indaga Natalia. Depois de encontros e desencontros, foi essa família diferente que uniu a irmã postiça de Natalia, Giovana, e Rogerio, tio da menina, que hoje têm um filho. Seria ele sobrinho da Natalia? Primo? Será que isso realmente importa? São todos parte de uma mesma família, independente do formato. Uma questão que tende a ser um pouco mais delicada, por conta das diferentes opiniões presentes na sociedade, é a das famílias homoafetivas. O Supremo Tribunal Federal reconhece desde 2011 a equivalência entre as uniões de homossexuais e heterossexuais para a formação de uma família, entretanto, em 2010, elas já eram 60 mil no país, segundo o IBGE, sendo que a maioria, 53,8%, era formada por mulheres. Segundo a coordenadora

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de indicadores sociais do IBGE, Ana Saboia, duas mulheres juntas geralmente sofrem menos preconceito e tem mais facilidade de reportar esta condição ao recenseador. No entanto, Daniel Casagrande e Luiz Maganhoto formam um casal que não teve medo de enfrentar o preconceito. Juntos há 16 anos, tomaram a decisão de aumentar a família no ano de 2012, através do caminho da adoção. Oito meses se passaram desde a entrega da documentação e realização do curso exigido até a habilitação do casal. Ao descrever a criança que eles imaginavam, Luiz e Daniel pediram uma menina de 1 a 5 anos, de qualquer raça, que pudesse ter problemas de saúde tratáveis. Esta última característica foi a que abriu o caminho deles até Antonella, uma menina de Cascavel, no Paraná, que na época tinha 1 ano e 4 meses. Ela nasceu com 6 meses e 600 gramas e foi abandonada pelos pais no hospital. Segundo Daniel e Luiz, a mãe tinha tuberculose e tomou medicamentos altamente abortivos durante a gravidez. “Por causa da prematuridade dela e do estímulo com os medicamentos ela desenvolveu ‘Cranioestenose’, que basicamente é o fechamento da moleira antes do tempo, então o cérebro dela tinha que crescer para algum lado e estava crescendo para cima”, conta Daniel. Por conta destes fatores, ninguém queria adotá-la na cidade. Eles contam que quando levaram os exames da menina à uma neuropediatra ela indagou: o que vocês tão esperando para ficar com ela? Farão a diferença na vida desta menina. Antonella foi então submetida a uma cirurgia cara e de alto risco que, felizmente, foi um sucesso e não

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deixou sequelas. Quando a menina estava com dois anos ela ganhou um irmão que veio pelo mesmo caminho que ela. Lorenzo é filho biológico de pessoas que perderam o rumo por conta das drogas. A mãe, que o teve com 17 anos, foi assassinada quando Lorenzo tinha 3 meses de vida. Além da falta de interesse no menino, o pai perdeu a guarda por conta do vício e falta de condições financeiras. Mas o destino mais uma vez sorriu para Daniel e Luiz, que depois de passarem por toda a burocracia necessária, tornaram-se oficialmente pais do Lorenzo. Hoje, eles contam que aprendem todos os dias com os

É imprescindível que as pessoas aprendam a lidar com as diferenças para que o preconceito possa diminuir dois filhos. “Eles têm acrescentado muito e nos fortaleceram em muitos aspectos. Agora a nossa vida é para eles”, declara Luiz. Sobre o preconceito, eles dizem que não costumam sofrer, mas que muitos amigos se afastaram durante o processo de adoção e que os olhares diferentes nas ruas pouco os afetam. Eles dizem que desde sempre contam para os filhos que eles vieram da barriga de uma mãe que os amou durante alguns meses, mas que não puderam ficar com eles e agora eles têm dois pais que cuidam deles. Histórias como essa e de outros modelos de famílias modernas têm sido frequentemente apresentados na mídia, seja em programas de ficção ou não. Ainda que seja de forma tão

superficial, com personagens caricatos, esta questão vem incomodando muitas pessoas e grupos mais conservadores, que afirmam que isso pode influenciar o comportamento e as decisões de crianças. No entanto, essas programações têm como objetivo a inserção social desses tipos de família no meio da dramaturgia demonstrando a maneira como a sociedade é atualmente. É imprescindível que as pessoas aprendam a lidar com as diferenças para que o preconceito possa diminuir, visto que em determinado momento a família dita “tradicional” pode ter uma nova composição. Embora o Brasil seja um estado laico, grande parcela de sua população segue os ensinamentos bíblicos. Por esta razão, o fato de que a Bíblia declara que a prática do homossexualidade não agrada a Deus e que “O que Deus uniu, o homem não separa”, sendo contra o divórcio, tem como consequência o preconceito de muitos religiosos contra as novas famílias. Contudo, espera-se que este cenário mude um pouco por conta de o Papa Francisco ter declarado respeito aos homossexuais diversas vezes. “A igreja deve ser uma casa aberta a todos, e não uma pequena capela focada em doutrina, ortodoxia e em uma agenda limitada de ensinamentos morais”, afirmou o pontífice. Se a regra antes era mulher casar com homem e ter um belo casal de filhos para todos serem felizes para sempre, hoje, felizmente, a regra é não ter regra. À medida que o tempo passe, espera-se que cada vez mais toda forma de amor seja considerada justa, seja válida, seja aceita. E que nenhum olhar torto na rua impeça isso.


Sarah Menezes

Um espírito livre Essa é a história de alguém que era feliz e não sabia. Era livre sem saber.

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Foi em um departamento de noivas que descobriu a liberdade. “Eu conheço alguém interessada em você”, a moça disse. “Mas ela precisa saber uma coisa.” “Se eu ‘tô namorando?” “Não, se você é gay.” “Eu sou. Gay.” Foi como tirar um peso das costas, como abrir os braços e respirar fundo. Foi liberdade, foi se encontrar. Davi nasceu em uma cidadezinha chamada Santo Antônio dos Lopes, no interior do Maranhão. Quatorze mil habitantes “com a cabeça muito fechada”, como diria o próprio Davi. Quatro horas de viagem o separavam do sonho de morar na capital. Em Santo Antônio era tudo pequeno demais, fechado demais. Pouco espaço, muito Davi. Você já deve estar se perguntando por que diabos o Davi é relevante, o que foi que ele fez ou descobriu. Provavelmente está questionando o motivo de uma pessoa comum render seis mil caracteres. O Davi não descobriu a cura para o câncer, ainda não ganhou um Nobel e nem escreveu um livro renomado. Ele se descobriu. Sozinho. A maioria de nós nasce prédisposto a ser normal. Em uma família comum, com um pai homem e uma mãe mulher. Um animal de estimação, talvez um ou dois irmãos. Amigos do condomínio, festas de quinze anos, vestibular e faculdade. Vida adulta, comprar uma samambaia, casar no cartório pra garantir a divisão dos bens. Cremes antirrugas, remédios pra pressão alta, rosas amarelas no caixão. As vidas comuns nos perseguem. São fáceis. Vidas que não fazem pensar,

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ou escolher. É como andar na 25 de Março em véspera de Natal: você não precisa se esforçar, porque a multidão te leva. As vidas comuns são assim. Os planos que a sociedade já fez se encarregam de nos levar. Todos, para o mesmo lugar. Davi poderia ser uma pessoa normal. Tinha mãe, pai, irmão, irmã e até uma avó religiosa. Tinha infância sem hora pra chegar em casa, tinha amigos de bairro e brincadeiras de rua. A sociedade das vidas comuns diria que Davi chegou cedo demais. 17 anos não é idade para ter filho, eles diriam. Mas foi aos 17 que a dona Marta teve Davi. E quando ele tinha 13, ela decidiu que não teria mais. Muito difícil. Muito trabalho. Davi precisava estudar. Davi? Muito encrenqueiro. Fica na rua até meia noite, só sabe brincar e mandar. Vá. Vá morar com os avós. “Eu sempre tive uma noção de que família fica com a gente, faz o que tiver que fazer pra ficar junto. Eu não tinha isso. Minha mãe desistiu fácil.” Pegou as malas e a vontade que tinha de viver, e foi viver com uma avó que mal conhecia, pouco queria conhecer. Carolina era o nome da cidade, mas a avó não era nenhuma mulher doce. Nem os dias que o esperavam. Brigavam por tudo e por todos. Faziam questão de discordar. Davi defendia a mãe, a avó defendia o pai. Davi defendia a si mesmo, a avó defendia o mundo pra o acusar. Foi no final do ano que o menino juntou tudo o que tinha e voltou pra casa, sem ninguém saber. Sentou ao lado da avó materna, e contou:

“Eu trouxe tudo. Pra lá eu não volto. Nunca.” “Mas você não contou pra ninguém?” “Não. Eles vão ver que eu trouxe tudo e não vão me mandar de volta. Eu trouxe tudo. Eu não deixei nada lá.” E não deixou. Muito menos voltou. Era infeliz. Os poucos anos que precisou estudar em escola pública foram suficientes para arrancar de uma criança a vontade de viver, e plantar plena angústia e medo de tudo e todos. Eu sabia que eu era diferente. Sabia que não era de lá. Mas parecia que todo lugar que eu entrava, todo mundo me olhava. Me julgava. Eu incomodava só por existir. Foi no meio de uma roda de cerca de dez adolescentes que Davi foi chutado. Arrastado. Ridicularizado. “Olha essa calça” “Olha essa mochila” “Olha ele” O que tem? É engraçado, sabe? A gente é normal, até o ponto de ser gay. Aí todo mundo esquece tudo o que a gente é. E a gente vira só: gay. O episódio foi o suficiente para que o menino entrasse aos berros na direção exigindo uma atitude da diretora da escola. A atitude foi simples. Singela. Honesta, é claro. Contar aos pais de Davi que o filho não tinha amigos porque era metido. Na nova escola, as coisas começaram tranquilas. Já sabia que poderia sofrer, então evitava contato. Da sala, ia para a direção – onde a


mãe trabalhava. Era seguro, não tinha ninguém. Aí mandaram uma carta pra prefeitura dizendo que eu era privilegiado porque era filho da diretora. Mandaram minha mãe me tirar de lá. Porque eu era metido, né? A volta para uma escola particular foi no mínimo, esperançosa. Viajava para outra cidade todos os dias para estudar em um lugar melhor – e mais seguro. Mas quando chegou o último ano do colégio, e o momento chegou. Minha mãe disse que eu ia morar em São Luiz. Era meu sonho. Imagine? A cidade grande, a liberdade. Eu achava que ia mudar tudo. É aquela história: não importa pra onde você for, seus problemas irão com você. Com Davi, não foi diferente. A solidão foi junto pra São Luiz. Morava com um primo de treze anos, com quem brigava o dia todo. Uma moça ajudava na limpeza da casa e com a cozinha. Não trabalhava, e era satisfeito ao saber que tinha o sustento da mãe e do avô. Gostava da ideia de independência, da liberdade de não ter ninguém por perto. Foi mais ou menos assim que descobriu o teatro. Lá que eu conheci meu primeiro beijo. Mas não tinha nada. Foi só a emoção do primeiro beijo. Com um menino. Aos poucos, a faculdade chegou. As responsabilidades de um estágio, de um curso de Direito. A família tinha esperanças: que ele ganhe dinheiro. O pai, com quem pouco falava, começou a se interessar pelo filho. Começaram a conversar, a se conhecer. Menos a parte do Davi de verdade. Essa ninguém podia saber. Acidentes são acidentes. A gente não planeja, ninguém nos prepara pra enfrentar um. Ou pra

sobreviver a um. Eu digo pras pessoas: não deixem de falar que amam os outros. Eu falei que amava meu pai no caixão. E isso não é nada, sabe? São olhos marejados que lembram do pai. Mas é um marejado forte. Consolado. Ninguém podia saber de muitas coisas. Inclusive de Carlos. Futuro publicitário, colecionador de filmes antigos. Sedutor. Primeiro amor. Não. Ninguém podia saber. Nem de amizade, nem de nada. Ninguém podia saber. Foi inocente, arrebatador. Parecia de verdade. Era como se fosse amor. Uma rima pobre pra uma atitude pobre. Carlos sumiu, repentinamente. Almocei na casa dele. Tinha taças de cristal. Eu tinha minhas coisas, mas o Carlos tinha tudo. Era um mundo diferente, sabe? Na família, ninguém desconfiava: nem do Carlos, muito menos do Davi. Mas a dor de primeiro amor é mais forte do que as outras. Era amor escondido, amor errado. Não era permitido. Pecado. Segredo. Sufocou. Mandou embora. Disse pra dona Marta que continuaria o curso de Direito em Curitiba. Chegou em Agosto de 2013. “O que você fez nesse semestre todo?” “Perdi minha virgindade.” Foi morar na casa de um tio. Das onze pessoas, Davi era a décima segunda. Na primeira oportunidade, foi morar com uma das primeiras

amigas que fez. Eu achava que Araucária era um bairro. Quando descobri que era uma cidade, fui mesmo assim. Era o que tinha. Curitiba trouxe a falsa liberdade que todo mundo precisa pra entender que sempre foi livre. Foi ao entrar em um shopping e se deparar com um casal homossexual que o menino percebeu que podia ser quem ele quisesse. No caso, quem ele realmente era. O final do ano trouxe o vestibular de Jornalismo. Mais um segredo, mais uma parte encoberta. Desde pequeno, era apaixonado por televisão. Fazer as pessoas rirem. Produzir coisas que fazem a diferença. Insatisfeito. Inquieto. Sempre teve vontade de mudar as coisas, as pessoas. O mundo. Sabia que um diploma de Direito não resolveria as coisas. Quer dizer, um advogado tem uma dose de poder. Um juiz, talvez. Um promotor, um oficial de justiça. Tudo muito pouco, pra quem sempre quis fazer mais. É engraçado. Não é todo mundo que nasce com a convicção de não pertencer. Por mais que Davi sonhe em ter dois filhos, um cachorro, um marido e uma geladeira vermelha, tem a plena certeza de que se for necessário, o sonho vai mudar. As coisas vão mudar. Ele levanta da cadeira e muda, uma por uma. Até transformar em algo bonito. Começou o curso sem ninguém saber. Dentro da Universidade, era quem queria ser. Era Davi. Não tinha medo, não senti angústia. Não hesitava. Mas a vida não nos prepara para acidentes. Para sobreviver a eles ou

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supera-los. Caique, o primo-irmão com quem morava em São Luiz, se foi. Repentinamente. Voltou às pressas para Santo Antônio. Voltou para a família, foi chorar com mais alguém. Chegou, esperou a paz. E soltou a bomba: não faço mais Direito. É Jornalismo. Eu acho que minha família não vai me deixar sozinho. É uma família que ama, sabe. É o que eu espero. Que não me deixem sozinho. Davi é movido por um sonho: ajudar os outros. Orientar. Estar perto de gente que tá sozinho enquanto se descobre, enquanto se conhece. Vivemos em uma sociedade que tornou necessária a existência de ONGS e políticas afirmativas para a parte da população cuja orientação sexual foge do esperado. Brancos e heterossexuais de classe média são o que eles querem. Vidas comuns. Eu não vou esperar mais um ano ou dois, sabe. Não quero mais me esconder. Por isso que no final do ano eu vou contar pra todo mundo lá de casa.

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Cannes a R$500 de distância Qual o roteiro do sucesso? Um clube de cinema do interior. Uma boa ideia. Muito trabalho. 500 reais. Seria mesmo possível? Para João Paulo Miranda, foi. Cleberton Mendes Entrelinha | JORNALISMO UP

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Foto: Machado / AFP.


O teatro de Cannes já está cheio de estrelas de Hollywood, a solenidade está prestes a começar. Com um bigode charmoso, gravata borboleta e seu smoking preto, o ator francês, Laurent Lafitte, dá início ao festival, é o anfitrião de abertura. Logo em seguida é apresentado o novo filme de Woody Allen, Café Society. Não está concorrendo, muitas palmas foram direcionadas ao grande diretor. Um romance bom. Continuando a cerimônia, já se preparam para começar as premiações, e primeiro prêmio da noite é de curta-metragem. Por ser logo após a abertura, todo mundo está observando, essa é uma das categorias com maior concorrência, mais de 5000 inscritos, sendo selecionados apenas dez. É a categoria em que o paulista João Paulo Miranda está concorrendo. É anunciado o vencedor, Timecode. Olho para o lado e vejo grandes cineastas e muitas palmas. O filme dirigido pelo brasileiro se chama Timecode, e sim “A garota que dançou com o diabo”. No ano de 1982, em uma cidade no interior de São Paulo, Porto Feliz, nascia João Paulo Miranda Maria. Desde pequeno se interessava por histórias das pessoas e registrava de alguma forma. Com o tempo seu interesse por cinema aflorou, se formou e virou professor em Piracicaba (SP). Alguns anos depois, em uma cidade cerca de 100 km de distância de onde cresceu, com a ideia de ensinar crianças, jovens e adultos, levando um pouco de sua experiência, e também começar suas produções, João Paulo iniciou um projeto. Inicialmente um clube de cinema, que mais tarde se transformou em um coletivo com apoio do Centro Rioclarense de Estudos Cinematográficos e do Ponto

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de Cultura Rio Claro Cidade Viva, fundando o coletivo Kino-Olho. Com uma câmera fotográfica, que sempre deixava na mochila, uma Nikon, Joao Paulo registrava cada pedaço de Rio Claro. Conforme caminhava rumo à escola, às vezes de bicicleta, sempre fotografava alguma coisa no caminho. Com 14 anos Joao Paulo já desenhava, e fazia suas próprias produções, como uma revista que distribuía na escola (com seu desenhos), e foi assim que o cineasta começou a criar suas histórias e mais tarde com aulas de roteiros foi se direcionando para área do cinema. Um clube de cinema, essa era a ideia. Levar algumas obras para reflexão das pessoas que frequentassem o grupo. As primeiras apresentações foram organizadas. João Maria fazia a curadoria dos filmes e discussões. Mas com o tempo as pessoas não respeitavam a sessão, usavam a sala para namorar. Algumas sessões eram canceladas, pois as pessoas deixavam a sala no meio do filme. O clube de cinema sempre foi uma vontade, e que precisa continuar de alguma forma. Foi então que ele teve a ideia de envolver as pessoas em exercícios práticos, para exercitar a teoria adquirida nos encontros do clube. Os voluntários começaram a gostar mais das produções, um engajamento maior. Nesse momento nasceu um grupo paralelo, com objetivo de produções práticas. Como tudo foi feito de forma voluntária, o coletivo Kino-Olho não tinha uma receita, sem orçamento, algumas dificuldades eram normais. Com apenas um celular, que era de seu pai, João Paulo e seus poucos alunos começavam a produzir seus filmes. Nas aulas, enquanto alguns atuavam, os outros gravavam. No início, não houve apoio da prefeitura, que

poderia ter ajudado com equipamentos e nas produções, que são oferecidas aos alunos gratuitamente. João Paulo Miranda Maria já dirigiu mais de duzentos curtas e quatro longas, criou a revista mensal, a Cinema Caipira. “Nós fazemos cinema caipira, falamos sobre o interior, lendas, contos, personalidades. A revista foi uma forma das pessoas que frequentam o grupo a exercer o pensamento e escrever”. Em 2009 a CNN fez uma promoção/ concurso do melhor cineasta com uma câmera de celular na mão. Os vídeos poderiam ter até cinco minutos. Com a experiência de já trabalhar com celular e várias pessoas procuraram o coletivo e o João Paulo, dizendo que eles tinham que participar. Como era uma especialidade do grupo - não por escolha - eles enviaram a produção. O roteiro foi elaborado e feito em uma noite no Centro Cultural de Rio Claro. Na hora não tinha iluminação, mas não foi um problema. A equipe usou luzes naturais que tinham ali para criar uma fotografia, com contraste e sombra. Criamos o filme e mandamos. Competimos com filmes de grandes diretores de Hollywood. Entre eles um filme com atuação do Leonardo Di Caprio. E essa foi a grande surpresa; em segundo lugar ficou um cineasta inglês e em terceiro um irlandês. O nosso filme ficou o mês de agosto inteiro passando lá, pois a premiação não era em dinheiro, e sim a repercussão mundial. Por aparecer em alguns comerciais de TV fechada, em um carro BMW, as pessoas achavam que eu estava escondendo o jogo, que tivesse ganhado alguma coisa, mas foi só a visibilidade mesmo. O curta “A Girl and a Gun”, com pouco mais de dois minutos se saiu muito bem. João Paulo Miranda


Foto: Divulgação.

inspirou-se na frase do cineasta francês Jean-Luc Godard: “Tudo que você precisa para um filme é uma garota e uma arma”. E o primeiro prêmio internacional foi conquistado, o Mobile Phone Movie Competition, promovido pelo programa “The Screening Room”, do CNN International. Depois disso o gabinete do Presidente Lula ligou pra prefeitura e houve uma homenagem. Nesse momento, a oportunidade apareceu. Joao Paulo Miranda explicou que já trabalhava com projetos de cunho social e cultural há um bom tempo, que era apaixonado. Com esse projeto, Kino-Olho, foi importante para mostrar que é possível, com um núcleo de cinema no interior, em Rio Claro. “E pra saber se era possível também, porque eu não sabia se era possível”. Voltando para a França, o

primeiro curta que levou João Paulo para Cannes foi Command Action, que, apesar de um título em inglês, é bem brasileiro. Conta a história de um menino em uma feira popular. A primeira cena tem um senhor em sua barraca de peixe, corta para boca de uma mulher velha e morena. Em seguida já mostra o menino encantado com um boneco. A maioria das pessoas presentes no filme não são atores, são trabalhadores e moradores locais. As pessoas querem algo diferente, não o mesmo que é feito em Hollywood. Um certo dia o telefone toca, João Paulo atende. Com uma voz grave e em inglês, é um agente de Hollywood, que já trabalhou com Spielberg, Tarantino e outras estrelas. O cineasta brasileiro faz filme mais artístico, autoral, local, diferente dos filmes de Hollywood, estranhou o contato. O homem pelo telefone falou que estava

cansado de ver pessoas tentando imitar produções de Spielberg e Tarantino. E buscava pessoas e ideias originais, com um olhar único. O homem queria conhecer os trabalhos e projetos do paulista do interior. Ele até perguntou se João Paulo tinha algum projeto novo, no momento o cineasta estava trabalhando com um longa, e não tinha nada novo. Poderia ter inventado, pedido um prazo. Mas no momento achou melhor agradecer, e deixar em aberto para um futuro. “Não adiantava se comprometer e não conseguir entregar um projeto bom”. Após Command Action, Paulo Miranda trabalhava em um longa. Mas como os longas-metragens são mais complexos, investimento maior e mais demorado, a ideia de um novo curta surgiu. Quando voltou do Festival de Cannes, junto de sua equipe, buscavam um projeto, tentando algum tipo de

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Foto: Duchêne/ FDC.

apoio, quando lembrou que tinha um roteiro guardado. Escrito na adolescência, quando João Paulo acabava de entrar no curso de cinema, a história foi transformada em roteiro, porém ficou engavetado por algum tempo. A moça que dançou com o diabo, que se transformou no curta com destaques em festivais nacionais, mostrou um amadurecimento do autor, ainda com sua marca de interior, dessa vez Paulo Miranda leva a 69ª edição do Festival de Cannes, uma história inspirada em uma lenda urbana de São Carlos. Uma jovem, com todas suas vontades e prazeres aflorando, questões amorosas e uma família religiosa, que acaba conhecendo e dançando com um forasteiro misterioso. É uma lenda contada pelos moradores de São Carlos. “Gosto de falar das coisas que vemos no dia a dia, sobre personagens rústicos com marcas de vivência”. O segundo ano consecutivo, dessa vez com um filme com investimento de 500 reais. A primeira vez em Cannes

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foi com dinheiro arrecadado em uma vaquinha. E como deu certo em Command Action, a equipe que não tinha muitas alternativas, precisava de um mínimo para não tirar muito do próprio bolso e começar a rodar “A menina que dançou com o diabo”. Todo filme precisa de um investimento inicial para ser gravado, e essa parte de arrecadação é a mais importante e mais difícil. Com a ideia, roteiro e todos preparados, faltava o dinheiro. E como o Ministério da Cultura vive o dilema se continua existindo ou não, e a Lei Rouanet em momento conturbado e de difícil acesso, por envolver grandes empresas. A tentativa de editais também não teve sucesso. Restou a alternativa de levantar o dinheiro na própria cidade. O curta anterior arrecadou 800 reais, e dessa vez não foi possível atingir os mesmos valores. Uma rifa foi a solução, com alguns dias para rodar e finalizar as gravações. Com o filme pronto e enviado, surgiram alguns problemas de

padronização. Aspectos técnicos das legendas. Outra cópia precisou ser enviada. Restou à equipe aguardar o resultado. Eles estavam entre os 10 selecionados, entre 5 mil curtas. Após o anúncio da seleção de Cannes, a equipe envolvida na produção deu início a uma campanha de financiamento coletivo realizado na internet, conseguindo arrecadar 10 mil reais. Mas a equipe não teve uma boa notícia. Não era possível todos viajarem, apenas um representante poderia ir a cerimônia. O sul da França seria contemplado pelo diretor. Com jornalistas e fotógrafos do mundo inteiro, o tapete vermelho se transforma em um mar de celebridades. A ansiedade fica cada vez maior, pois o curta já ficou entre os dez. Desde quarta-feira, Paulo Miranda está na França. “Muitos estão surpresos, querem saber mais sobre mim e o cinema que estou construindo no interior de São Paulo”. O estilo de João Paulo foi tachado de “cinema caipira” – e ele concorda com o rótulo. Pois fala sobre coisas que as pessoas costumam chamar de simples, de interior e caipira. Acelerando a história, voltando para o momento em que era anunciado Timecode como o campeão. Juanjo Giménez recebe o prêmio. Toda de branco, a cineasta Naomi Kawase, que é júri do festival, fez uma menção honrosa para o curta do paulista. Menção especial que não é realizada em todas as edições. Mas como os júris queriam premiar de alguma forma o trabalho realizado em “A menina que dançou com o diabo”, João Paulo Miranda Maria foi lembrado e se destacou no festival de Cannes, que aconteceu entre os dias 11 e 22 de maio de 2016.


Giovana Godoi

Sobre amores e árvores Entre idas e vindas, o relacionamento aberto como forma de amar. Dos duros troncos do amor, que germinem folhas de liberdade, a explorar os ventos, cair pelas esquinas e trocar de cores, encantar Clarices, preencher cadernos. O amor é leve quando é livre, quando volta a cada partida. Não existe fórmula, ainda que haja química, qualquer coisa de abstrata, que não se explica. Não deviam existir margens delimitando necessidades sociais quanto ao amor; cada qual ama do jeito que gosta. Seja folha a rodopiar ou raíz cravada em terra. Isso não pertence ao juízo final, tampouco às padronizações construídas tão duramente sob valores deturpados. Se não fossem essas padronizações, não seria tão aterradora a constância da homofobia, do complexo de inferioridade,

do crescimento monstruoso da venda de antidepressivos na indústria farmacêutica. Ou talvez esse trecho não precisasse ser tão fatalista. O preconceito é um processo amplo, implacável e silencioso (às vezes nem tanto). Venho escutando recentemente, por exemplo, que amores livres são simplesmente vulneráveis, ilusões juvenis, falta de coragem ou coisa de gente promíscua. Segundo essas pessoas, não é possível ter um relacionamento sólido se não é fechado, heterossexual, a dois, enfim, dentro dos limites tradicionais. A Sasso e o Alann namoram há quatro anos. Entre aventuras e desventuras, idas e retornos e diálogos construtivos, eles descobriram que o relacionamento aberto era o seu melhor caminho entrelaçado. A confiança e a complacência que eles construíram dentro dessa liberdade é de uma força

edificante, acreditando que a palavra “traição” significa algo muito mais sério do que parece. Ela disse assim: “Muitas pessoas nos julgam muito, e apesar de estarmos juntos há quatro anos, desqualificam o nosso relacionamento, como se uma relação aberta não pudesse ser séria e estável. Costumam achar que o que temos é um passe-livre para a putaria solta. Não é para isso que temos um relacionamento aberto. Acho que isso entra no aprendizado. Nós escolhemos isso para que nada interferisse no nosso amor. O desejo e a idealização sexual com relação a outras pessoas existe e nós não queremos ser hipócritas quanto a isso. Eu realmente amo meu namorado e quero passar a minha vida com ele, sem culpa, peso na consciência ou o sentimento de que estou me obrigando a algo. O relacionamento aberto nos proporciona isso. Posso viver ao lado do homem que amo sem ter que me sentir mal por olhar para outras pessoas e poder experimentar o que quer que eu deseje e nos faça feliz.” Mas e o ciúme? Essa coisa furiosa que nos invade derrubando as estruturas de qualquer muralha segura que levamos tanto tempo para erguer? Será possível que pessoas que se amam não sintam nem um pouquinho desse desalinho? Eu, particularmente, nunca acreditei nisso, porque faz parte dos laços estreitos, do ato de se importar. Sim, o ciúme existe dentro

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Foto: Arquivo pessoal.

“A Sasso e o Alann namoram há quatro anos. Entre aventuras e desventuras, idas e retornos e diálogos construtivos, eles descobriram que o relacionamento aberto era o seu melhor caminho entrelaçado. “

do relacionamento aberto também, e esse é o grande desafio, mas, pelo lado positivo, é uma fera domada, uma cólera em tratamento, uma angústia trabalhada - e absolutamente acessível para o outro. Não é feio sentir ciúmes ou pensar exclusivamente numa única pessoa, perdendo o interesse pelas demais. Casais que não querem, não conseguem ou não precisam lidar com essa liberdade em si encontram a sua própria liberdade compartilhada, o que é tão admirável quanto aqueles

que optam por deixar em aberto outras possibilidades. Aliás, esse texto não dialoga com o “certo” e o “errado”; é uma apologia às diversas maneiras de amar e uma estimulação do respeito para com a particularidade específica das relações. Amor livre não é necessariamente sociedade líquida. Assim como amor a dois não é necessariamente hipócrita ou manipulador. Amor à distância não é impossível. Amor a três não é loucura. Ou é (assim como qualquer amor).

Mas se faz bem, não vale a pena? Sofia mora em Uberlândia (MG), e Julia mora na Hungria. Elas estão juntas há dois anos, e namoram a distância há quase um. Durante esse período, a melhor maneira que elas encontraram de continuar juntas foi o relacionamento aberto. A Sofia me contou um pouquinho sobre elas: “Quando a Julia morava no Brasil, nós tínhamos um combinado de tentar evitar ficar com outras pessoas, principalmente por minha

“Sofia mora em Uberlândia (MG), e Julia mora na Hungria. Elas estão juntas há dois anos, e namoram a distância há quase um.”

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causa, porque me fazia sofrer, mas não consideraríamos traição se acontecesse, porque conversaríamos sobre isso. Eu penso que é natural a gente se interessar por outras pessoas, acontece, e não quer dizer que o amor pela sua namorada é menor. É só que é impossível passar anos a fio sem olhar pro lado. E aí acho que essas regras pré-concebidas de que é proibido se interessar por outras pessoas só fariam com que tivéssemos que mentir uma pra outra. Isso também não significa que todo mundo tem que ter relacionamento aberto. Eu realmente acho que a juventude vive um momento em que o bonito e o bom é não se apegar, não se importar, e isso acaba confundindo com uma imensa superficialidade nas relações. (…) Namorar à distância é muito difícil. Acho que só vale a pena se você enxergar na outra pessoa o amor da sua vida, que é o meu caso.

Porque o relacionamento virtual não preenche uma série de ausências que ficam por não ter uma namorada do lado, compartilhando a vida cotidiana. E uma coisa que fomos percebendo é que a Julia e a Sofia do Whatsapp principalmente, são diferentes das pessoas que existem fisicamente. No geral, todo mundo cria um perfil que ganha vida no mundo virtual. E a Julia e a Sofia do Whatsapp têm mais dificuldade de se entender que a Julia e a Sofia de verdade. Apesar disso, fomos criando jeitos. Aprendemos aos poucos como não deixar a distância nos esmagar. Mas, sinceramente, não vejo a hora de poder olhar meus olhinhos de girassol, ali, a 15 cm dos meus.” Então amar é muito menos regras, formas, gêneros ou rótulos e muito mais olhos de girassol, primaveras e saudades. De tantas diversidades e madeiras, no fim das contas o amor

é um só, insone e antigo, cheio de histórias, cheio de retalhos e uma agulha sempre pronta. Desavisado, o amor é onipresente e talvez um dos seus propósitos seja surpreender através das estranhas maneiras que chega. Não estamos prontos para fechar os olhos e o coração para o amor: nunca estaremos. É mesmo exigido coragem para embarcar nessas estradas complexas, ainda que, dependendo do ângulo, possam se mostrar tão simples. Somos assim: reféns desse sentimento, que ensina e alimenta. E não sejamos ditadores que diminuem outros amores que não os nossos; do outro lado nada conhecemos. Conheçamos nossos próprios universos, cada gesto, cada toque, cada olhar. Vagarosamente.

Linhas Tortas Das linhas tortas do acaso vi nascer tantas preciosidades Coisas que jamais imaginaríamos, que demos de ombros Sentimentos que brotam como plantinhas mágicas entre a dureza do concreto, delicados mas donos de uma força incomensurável. Das linhas tortas do acaso vi nascer você em mim E vou gostando de te conhecer devagarzinho; descobrir as diversas maneiras meio tímidas que você encontrou de provar o teu amor, descobrir teus sonhos, teu corpo, tuas manias. Vou gostando de estar à margem do meu carinho te encontrando em músicas, fotografias, num bordar torpe da tua imagem no meu coração. E quando meus dedos se perdem pelos teus cabelos negros é como se eu me visse perdida nesses acasos imprevisíveis. Adoro me perder, adoro me achar, com essa tranquilidade de quem fuma um cigarro na sacada Com essa serenidade da tua fala pausada, da tua respiração guiando meu sono, soprando ternura. Das linhas descompassadas do amor te entendi como o continente do meu mar, não o verso que faltava, mas aquele que se lançou lindamente.

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A chave do Pรกlacio de Cristal

Francisco Mateus

22 Foto: Camila Abrรฃo.


Das cinzas fez-se o Cristal passar pelas portas do Palácio de o grupo de maior sucesso no Brasil. O glamour e o status estavam sempre presentes nos famosos bailes no grande salão do Círculo Militar. Não à toa, já que ali se encontravam os mais importantes militares do estado. Era entre aquelas paredes, onde celebridades como Cauby Peixoto e Elza Soares pisaram, que a classe média curitibana se encontrava. Mas naquele sábado, 25 de abril de 1970, o ambiente até então de festividade, foi de repente interrompido e inundado pelos sons dos telefones que gritavam com urgência pelos militares do local. “O Teatro Guaira está pegando fogo!”. Começou uma correria dentro do clube, com os militares deixando o local e se dirigindo ao prédio em chamas. Chegando à Praça Santos Andrade, já não havia muito mais o que fazer, a não ser engolir a tristeza por algo que nunca sequer havia chegado a abrir as portas, deixando todos os curitibanos carentes de um espaço para eventos culturais. Porém, em 1973, um ano antes da reinauguração do Teatro Guaíra, é inaugurado o ginásio de esportes Brigadeiro Arthur Carlos Peralta, que recebeu este nome em homenagem a um dos presidentes do Círculo Militar nos anos 60, que devido à sua estrutura cheia de vidros, ficou popularmente conhecido por Palácio de Cristal, lugar que carrega em sua história o início do mercado de shows em Curitiba.

Abre essa porta, deixe a Chave entrar O sossego e a ordem do Círculo Militar foram violados pela efervescente manada de jovens cabeludos que se estapeavam para

Cristal. Naquela noite de julho de 1973, Curitiba estava prestes a abrir os portões para duas décadas de grandes shows, e os responsáveis por tal acontecimento faziam parte de uma banda cujo nome não poderia ser menos sugestivo para a ocasião: A Chave. O grupo curitibano formado por Carlos Augusto Gaertner (produtor e baixista), Orlando Azevedo (baterista), Paulo Teixeira (guitarrista) e Ivo Rodrigues (vocalista), que de 1969 até 1979, topou com os principais nomes do rock nacional, foi quem virou de ponta cabeça o recém-inaugurado ginásio de esportes Brigadeiro Arthur Carlos Peralta, popularmente conhecido por Palácio de Cristal devido à sua estrutura cheia de vidros. A banda já era conhecida pela realização de shows em vários espaços da cidade, sendo ela a precursora dos concertos ao ar livre em praças, e também dos shows de rock em teatro. Porém, em 1973, a grande novidade em termos de espaço para realização de shows, era o Palácio de Cristal. E não deu outra, A Chave com seu rock eletrificado por equipamentos de última geração, desbundou todas as mais de quatro mil pessoas sentadas nas arquibancadas, que ao fim da noite, sairam do ginásio sem imaginar que o melhor ainda estava por vir.

X Horas de Rock A fila para entrar no Círculo Militar dobrava o quarteirão. Do lado de fora, fumaça e energia no ar daquela gente reunida para assistir ao Ginásio Brigadeiro Arthur Carlos Peralta explodir. Ninguém previa, porém, que a explosão seria tão forte. Depois daquela noite de 21 de dezembro de 1973, o Secos & Molhados se tornaria

A proposta para o show que recebeu o nome de “X Horas de Rock”, se sucedeu em São Paulo, em uma das muitas passagens d’A Chave pela cidade, que, na ocasião, foi assistir ao Secos & Molhados se apresentar. O conjunto já era sucesso na capital paulista com as músicas “O Vira”, “Fala” e “Amor”, que compunham seu primeiro LP, mas para Carlos Augusto e cia, que se impressionaram com a teatralidade latino-portuguesa do conjunto de Ney Matogrosso, toda aquela atitude era novidade. Nos bastidores, após o fim do concerto, A Chave se encontrou com o baterista do Secos & Molhados da época, Marcelo Frias, de quem era amiga desde o tempo em que o músico integrava a banda argentina Beat Boys, famosa por ter se apresentado com Caetano Veloso em 1967 no Festival da Record defendendo Alegria, Alegria. Orlando e Carlos falaram para Marcelo sobre a ideia de levar o Secos & Molhados para tocar em Curitiba, em um ginásio esportivo que havia sido inaugurado naquele mesmo ano. A proposta foi logo apresentada para Ney Matogrosso e João Ricardo, que toparam fazer o show e ainda dividir igualmente o cachê, 50% para os paulistanos e 50% para os curitibanos, deixando de fora o produtor do Secos & Molhados, Moracy do Val. Não deu outra. Nos dias 21 e 22 de dezembro, o Secos & Molhados fez seu primeiro show fora de São Paulo, no Palácio de Cristal em Curitiba, aglomerando cinco mil pessoas na arquibancada do ginásio de esportes. A produção da apresentação ficou em cargo d’A Chave, que acompanhou toda a montagem dos equipamentos e a passagem de som. A acústica não era das melhores devido aos vidros e os metais que revestem o ginásio, mas

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com o amontoado de gente ao redor de palco, o som abafava e dava uma significante melhorada. Ao fim dos dois shows, fez-se o balanço da arrecadação monetária: aproximadamente Cr$135.750,00, com cada banda faturando perto de Cr$ 67.875,00. Depois destes shows, o Secos & Molhados começou a excursionar pelo país, não demorando muito a virar a maior sensação musical em 1974, com show no Maracanãzinho sendo exibido no Fantástico.

Círculo vicioso Em 1974, Os Mutantes seguiam ligados à tomada progressiva, tendo como único membro da formação original o guitarrista Sérgio Dias. Arnaldo Baptista se encontrava em uma profunda depressão lisérgica que resultou em seu trabalho mais cultuado, “Loki”. Já Rita Lee, depois de uma frustrada tentativa de seguir carreira ao lado de Lucia Turnbull com as Cilibrinas do Éden, decidiu voltar com tudo aos palcos com a banda Tutti-frutti. Carlos Augusto já era amigo dos Mutantes desde 1969, dos tempos em que o rock’n roll ainda era visto com maus olhos pelos puritanos da MPB. Com Rita Lee lançando seu primeiro

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disco solo, “Atrás Da Cidade Tem Um Porto”, o produtor logo tratou de trazer a amiga para quatro shows em Curitiba, dois no Clube Curitibano, e dois no Palácio de Cristal. A fumaça de gelo seco que cobria o palco já anunciava o incêndio musical que seria aquela noite. Das caixas de som, surgem os primeiros acordes de guitarra, em seguida, Rita Lee, com um visual à lá Bowie, cantarola os versos iniciais de “Não quero mais nada”. Então, inicia-se um verdadeiro espetáculo de rock. Sérgio Carlini, com longos solos de guitarra, envolve as mais de quatro mil pessoas ali presentes, e Rita polemiza ao dar um selinho em Lucia Turnbull ao fim do cover de Splish-Splash. O repertório do concerto, que durou mais de uma hora, mesclava músicas do disco “Atrás da Cidade...” com covers, e músicas nunca gravadas. Apesar dos problemas acusticos, o show tinha uma estrutura altamente profissional. Ao fim da apresentação, aqueles que quisessem levar para casa uma lembrança daquela noite, poderiam passar na tenda armada na arquibancada pela produtora Mônica Lisboa para comprar pôsters e vinis, mas nem daria tempo de sentir saudade, já que não demoraria muito para Rita Lee voltar a Curitiba e fazer outra apresentação naquele mesmo

lugar.

Shake, Rat tle and Roll O ano de 1974 terminou com a reinauguração do Teatro Guaíra, depois de quatro longos anos de espera. Novos ares sopravam para aquele ano de 1975 que estava prestes a se iniciar. Em 12 de abril de 1975, pela primeira vez em Curitiba, Caetano Veloso subiu acompanhado de seu violão ao palco no Palácio de Cristal. Show cheio de reverberação, mas que resultou, para a felicidade do empresário Guilherme Araújo, em um faturamento de mais de Cr$100 mil. Enquanto que o Palácio de Cristal era frequentemente lotado por jovens que iam ao ginásio para assistir aos shows de rock, o Teatro Guaíra fechava suas portas para eventos “barulhentos”. A decisão de não mais se realizar shows de rock no local veio depois que o Bill Haley e a A Chave fizeram um show em outubro de 1975, reunindo centenas de jovens raivosos no teatro, que, apesar de não terem gerado nenhum problema, preocuparam os organizadores. “Não apenas nos aspectos materiais, mas, sobretudo em riscos humanos”, disse o superintendente Mauricio Távora na época.


Mas isso não desanimou a turma do rock’n roll, que ainda tinha o Palácio de Cristal como altar para veneração da música. Naquele mesmo ano, Rita Lee voltou a cidade com a turnê de seu disco de maior sucesso com o Tutti-Frutti, “Fruto Proibido”.

Show underground Nos dias 12 e 13 de junho de 1976, pela primeira vez no sul, O Made in Brazil ao lado d’A Chave, mostrou para a garotada que lotou o Palácio de Cristal, como é que se faz rock’n roll, resultando em zombidos nos ouvidos devido aos 4000 Watts de potência sonora. A Chave abriu a noite soltando “Macacos Cósmicos”, fazendo todo mundo dançar, para então, depois de tocar um set-list robusto, o Made in Brazil subir ao palco e fazer o seu rock de São Paulo, tocando músicas de seu mais recente trabalho na época, “Jack, Estripador”. Foi por uma denúncia de drogas que os investigadores da Divisão de Entorpecentes da DEIC de São Paulo bateram à porta da casa de Rita Lee em 24 de agosto de 1976. Grávida de três meses, a cantora foi presa em flagrante depois de os policiais terem supostamente encontrado pequenas quantias de maconha em

sua residência. Durante a prisão, Rita recebeu a visita de Elis Regina, que acompanhada de seu filho pequeno, fez um escândalo por causa da detenção da amiga. No dia 2 de setembro, Rita foi condenada a um ano de prisão domiciliar, e ainda a pagar uma multa de 50 salários mínimos. Mas nem a condeção fez com que Rita Lee deixasse de fazer shows. Em outubro de 1976, chamada pelos integrantes d’A Chave, o show Entrada e Bandeiras, que levava o nome do mais recente disco da cantora com o Tutti-Frutti, levou 10 mil pessoas à loucura em dois dias de apresentações no Palácio de Cristal. Foram os curitibanos d’A Chave os responsáveis por aquecer a plateia antes de Rita Lee subir ao palco vestida de presidiária com sua barriga de grávida, fazendo daquela apresentação uma grande gozação musical no meio de tanta turbulência. Nem por isso deixou de ser um concerto emblemático, já que no setlist da cantora estavam as clássicas “Coisas da Vida”, “Esse tal de Roque Enrow” e “Corista de Rock”, além dos covers “Brown Sugar” e “Drift Away”, que foi cantada em tom sofrido.

Dali em diante

Em 1977 aconteceu no Palácio de Cristal o lançamento do compacto d’A Chave, único registro gravado da banda, com “Buraco No Coração”/ “Me Provoque Pra Ver”, músicas feitas em parceria com Paulo Leminski e que contou com a participação do músico Manito. Ainda em 77, aconteceu “O Maior Show de Rock do Ano”, show que contou com a presença d’A Chave, Made in Brazil, Joelho de Porco e Blindagem. Porém, junto com a chegada dos anos 80, veio o fim da grande década do rock’n roll. Os Mutantes de Sérgio Dias se separaram em 78, bem como Rita Lee e Tutti-Frutti, e o Terço. Já em maio de 1979, foi a vez da Chave se desfazer, com o vocalista Ivo Rodrigues indo para o Blindagem. A porta para os shows no Palácio de Cristal manteve-se aberta por mais alguns anos, recebendo a nova leva de bandas que surgiam com o fim da ditadura militar. Mas com a abertura de novos espaços para realização de shows, como a Pedreira Paulo Leminski e a Ópera de Árame, onde havia uma estrutura especial para concertos, o Palácio de Cristal acabou se silenciando. Entre as grandes placas de vidro, agora apenas o barulho das competições esportivas soa por lá.

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25 Foto: Camila Abrão.


GEORGIA PRESTES

O peixe morre pela boca Pare e pense: os alimentos que você consome podem estar te matando.

26 Foto: Camila Abrão.


As pessoas estão morrendo pelo veneno que ingerem. O número de doenças e sua proliferação cada vez mais constante, nunca esteve tão avançado. A correria do diaa-dia nos faz querer ser práticos e econômicos. Econômicos no tempo, mas principalmente econômicos nos pratos. Nas prateleiras dos supermercados encontramos uma variedade infinita de comidas prontas, comidas que são embaladas meses, e até ano antes de chegar em nossas mãos. Embaladas junto a uma enxurrada de conservantes, corantes, acidulantes e agrotóxicos, com total deficiência em nutrientes. O alto índice de produtos industrializados e sua potencialidade no mercado, evidencia que grande parte da população não está preocupada em nutrir-se. Seu Antônio Fonseca não se enquadra neste perfil. Ele acredita que somos feito da nossa alimentação, e que só estaremos livre de doenças e complicações, se tivermos uma consciência alimentar, e assim consequentemente um equilíbrio do organismo. Ele planta alface, milho, tomate, banana, batata. Planta de tudo, e toda sua plantação é cultivada sem o uso de defensivos agrícolas, e adubos artificiais, o que configura uma cultura orgânica. Fonseca integra uma pequena rede de produtores locais, que são comprometidos com a qualidade dos alimentos que cultivam. Esses fornecedores reúnem-se em feiras nas terças no bairro Portão, Seminário e Cristo Rei das 7h às 12h, e nas quartasfeiras na Praça do Expedicionário e ao lado da Prefeitura Municipal das 7h às 11h. Todos são certificados, e reconhecidos por um plantio sem agrotóxicos, adubos químicos ou hormônios de crescimento, além de

um sistema que preserva a terra e os demais recursos naturais. Os feirantes alegam que ainda há grande resistência da população devido ao preço e a pouca durabilidade dos produtos. Muitos consideram inviável monetariamente, mas Fonseca explica o valor alto por mais de uma razão. Além da certificação burocrática que os produtores precisam passar para comercializar estes produtos, é necessária um cuidado especial da terra, havendo um período de conversão da área e barreira para não orgânicos. Requerem também uma maior mão de obra, por serem compostados manualmente com compostos orgânicos, e também contam com uma escala de produção reduzida. Porque orgânicos tem um tempo de produção maior do que o convencional, por não utilizarem adubos que intensificam o crescimento, sendo uma produtividade relativamente menor. Charlie do Karmo é proprietário do Vila Viela – empório de produtos orgânicos, e grande parte dos produtos que comercializa são oriundos da horta do Seu Antônio. Criou a sua quitanda há 4 anos, visando a dificuldade de encontrar produtos frescos e sem veneno, que tenham sabor de verdade. Com isso, Charlie começou a ser um estudioso da alimentação natural, veste a camisa dos orgânicos principalmente pela falta de sabor nas frutas e verduras vendidas no supermercado, e também pelo prejuízo dos produtos que são produzidos e comercializadas no sistema convencional, causados na saúde devido ao uso de adubos sintéticos, agrotóxicos, sementes transgênicas e promotores de crescimento. Charlie valoriza o verdadeiro e único sabor da maçã, contando que o sabor da fruta por exemplo fica mais acentuado

em um cultivo orgânico, justamente pela quantidade de água ser menor. “Quando as vezes você achar tua frutinha preferida sem gosto algum, é porque ela tá cheia de água. E pobre de polpa, pobre de sabor e nutriente”. Charlie ainda encara a área orgânica como um campo de difícil aceitação, principalmente pela falta de conhecimento do que realmente é um produto deste gênero. A riqueza de nutrientes encontrados em produtos cultivados sob a responsabilidade com o meio ambiente, preservando a fauna e a flora, transformaram a vida de Luís Henrique Sagaz. Luís teve câncer, e considera a alimentação como aliada fundamental para a cura, uma vez que produtos industrializados e produtos contaminados com agrotóxicos possuem potenciais promotores e aceleradores do câncer. Em seu tratamento, Luís contou com o auxílio da nutricionista Fernanda Fontanela, que incentiva seus pacientes ao consumo de produtos orgânicos e naturais, porque visa na alimentação a causa e a cura para todas as mazelas do corpo físico. Em seus estudos recentes, observou que vários compostos chamados de bioativos, encontrados em alimentos vegetais como hortaliças, legumes, verduras, frutas, cereais integrais e sementes têm efeito que atua contra a maioria dos tipos de câncer. Sendo que um paciente em tratamento tendo uma alimentação mais rica nestes compostos, presentes nos pigmentos que dão cor aos vegetais, diminui consideravelmente seu risco de recidiva. Fernanda defende o consumo de vitamina C (laranja, limão, acerola, goiaba), vitamina E (abacate, gérmen de trigo, óleos vegetais) e Selênio (oleaginosas como castanhas, avelãs

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e amêndoas), assim como consumo intenso de minerais para que o corpo responda de forma coerente, e reflita com o organismo equilibrado as suas defesas em dia, com mais disposição e menos gripes e infecções. Ou seja, com menos toxinas ingeridas, o tronco humano desenvolve-se mais justamente por estar disposto de mais saúde. Uma alimentação ruim desencadeia problemas digestivos, doenças neurológicas e degenerativas, inflamações e câncer. O que também se explica pela dificuldade que o organismo encontra devido a sobrecarga de toxinas, como corantes, conservantes, e aromatizantes artificiais. O setor orgânico precisa de atenção pela qualidade de vida que pode proporcionar a milhares de pessoas, protegendo as futuras gerações da contaminação química, e pelo grande potencial que tem de reequilibrar a biodiversidade, preservando os recursos naturais, e protegendo a vida animal e vegetal do planeta. Propiciando a preservação da água potável, por não utilizar agrotóxicos que infiltram nos lençóis d’agua e poluem rios e lagos, e assim criar um ecossistema e uma sociedade saudáveis e conscientes.

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KARINA BECKER DI DOMENICO

Oportunidade na ponta dos pés Projetando um futuro pela dança Entrelinha | JORNALISMO UP

29 Foto: Sergio Vanalli.


Pés que estão trilhando um novo caminho se reúnem uma vez por semana para praticar a arte da dança. É por meio do balé que meninas, muitas vezes vindas de realidades complicadas, tentam mudar seu futuro investindo na transformação do presente. Entre músicas, saltos, passos de dança, sorrisos, olhares determinados e uma dose da magia da infância, as meninas que tem entre seis e 12 anos aprendem e se divertem, compartilham problemas e soluções participando do projeto Novos Sonhos. O projeto foi implantado recentemente na escola de dança e teatro D.O.M (Deus que Opera Milagres). A ideia é a reprodução de um programa que já existe em São Paulo, na Cracolândia que atende crianças em situação de vulnerabilidade social ofertando várias atividades. Aqui em Curitiba, a princípio, o balé é a única forma de amparar a comunidade carente e assiste apenas meninas do bairro Parolin. Essa ação é a realização de um sonho antigo das irmãs Silvana Piragine e Carla Morais, diretoras da escola. O primeiro passo foi dado com a adoção do projeto Novos Sonhos, que atualmente atende 52 meninas divididas em quatro turmas, duas pela manhã e duas na parte da tarde, em dias alternados. Antes de começar a praticar o tão sonhado balé, as pequenas tomam café. É um momento de muito alvoroço, pois são várias mãozinhas se movimentando em cima da mesa na tentativa de alcançar um delicioso pão, biscoitos recheados e um copo de leite com Nescau. Uma das meninas passa por baixo da mesa, deixando bem claro que, apesar de ser uma bailarina delicada, preserva a liberdade da infância. É a serelepe

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Melissa Caroline, sempre a primeira a falar, criança dedicada e espontânea, olhos atentos e ouvidos alerta, características que trazem bons resultados na hora de praticar a dança que transforma realidades. Depois desse momento de confraternização elas vão para uma sala junto com três voluntárias que

apesar de ser uma bailarina delicada, preserva a liberdade da infância.

fazem o papel de aconselhamento por meio de um trabalho discipulado, com base na bíblia. Esse lugar é bem simples, porém aconchegante. São quatro paredes brancas e janelas bem grandes, assim a luz do dia pode entrar sem pedir licença. É nesse lugar que as pequenas bailarinas cantam e se divertem. À voz e violão de Thaise Budal, o ensinamento sobre Deus é transmitido de forma simples. Após a desconcentração, chega a hora de conversar. O grupo de 12 meninas se divide em dois, sentam no chão mesmo e fazem um círculo. Todas contam alguma coisa e aquelas que se sentem acanhadas, e ficam mudas com medo de dizer alguma coisa ou apenas falam que nada aconteceu são instigadas a expressar alguma reação. Nem que sejam fatos simples do dia a dia, como por exemplo, uma tarefa da escola. É assim que conversam sobre a semana de cada uma, compartilham

dificuldades, sonhos, alegrias, tristezas e tudo o que acharem necessário. As músicas interpretadas, assim como o que é falado durante essa parte do projeto, apesar de tratarem de Deus, procuram na medida do possível, não se apoiar em nenhuma religião específica. Para Thaise, o trabalho voluntário vai muito além do canto e do aconselhamento, porque muitas vezes conhecem histórias espantosas e ela sente que o que elas mais precisam é sentir-se amadas. Logo, é isso que procuram fazer, amá-las. As voluntárias são muito atenciosas, fazem alertas, muitas vezes citam situações pessoais para exemplificar alguma ideia que desejam passar para as crianças. Em um dos grupos, elas falavam sobre “namoradinhos”, afirmando que quando elas gostam de um menino, geralmente ele nem está a fim delas e também acontece o inverso. Uma das bailarinas deixa escapar um “é sempre assim”, como se fosse uma especialista no assunto. A conselheira do grupo disse que elas não precisavam se preocupar com isso, afinal de contas, têm apenas 12 anos de idade, ou menos, e não é a hora de pensar nisso. Precisam viver muita coisa ainda, aproveitar os momentos que lhe são dados, e afirma que tem 19 anos de idade, mas não tem namorado e reforça que isso não é prioridade. A conversa é interrompida por outra mulher que faz trabalho voluntário acompanhando o dia das meninas na escola. Ela chega se apoia na porta da sala e diz que já está na hora de as bailarinas mirins começarem a dançar. Elas finalizam as discussões e saem apressadas, falantes e ansiosas descem rápido e cuidadosamente a escada marrom que dá acesso à outra sala onde acontecem os exercícios de


Foto: Julia Bianchini e Letícia Neco.

balé. A professora Alessandra Bahr já as espera sorrindo para iniciar a aula. A sala é ampla, fato que possibilita a acomodação de 12 meninas já posicionadas confortavelmente para praticar a dança performática. Espelhos, barras e rádio são a base para os próximos momentos. A combinação de movimentos das pernas, braços e expressões compõe o cenário de intensa alegria. Todas sentadas no chão seguem a ordem da professora, a tarefa é fazer uma borboleta. O primeiro exercício começa a ser feito, as pernas precisam ficar flexionadas e a sola dos pés devem se unir de modo a parecer as asas de uma borboleta. Feito isso é hora de mexer as pernas

imitando o encantador movimento das asas do inseto. Exercícios feitos em dupla ou individualmente são realizados com muito esforço e se alguma coisa estiver sendo feita de maneira errônea, tem que fazer de novo. Nesse ambiente o que fala mais alto é o companheirismo e a dedicação. Além de se ajudarem, elas riem e aprendem. A professora Alessandra chama atenção dos movimentos que precisam ser melhorados e elogia aquilo que está correto, isso provoca um certo êxtase e a vontade de fazer os exercícios com perfeição aumenta na busca de ganhar novos elogios. Alessandra se emociona ao falar

o quanto gosta de ser a professora que atende uma das turmas do projeto social. Com os olhos encharcados por lágrimas diz ter recebido um presente quando a Silvana fez o convite para ela estar participando do projeto, e completa com um sorriso de satisfação “Tem mais turmas à tarde que as outras professoras atendem, eu já queria roubar essas turmas para mim”, demonstrando que o que faz ainda é pouco perto daquilo que gostaria de fazer. Segundo a professora, as meninas dão retorno muito rápido, têm sede de aprender e parecem esponjas, pois absorvem tudo o que é ensinado.

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No meio de tanta felicidade, há uma bailarina que chama atenção por ser bastante quieta. Ela não conversa, demonstra estar sempre acanhada, com medo de alguma coisa, tímida, e não reage como as outras à todas as atividades desenvolvidas. Na maioria das vezes fica de cabeça baixa e com olhar um pouco perdido em constante observação. Enquanto suas amigas fazem os exercícios saltitantes e sorridentes, ela caminha normalmente, séria, como se não tivesse vontade de fazer determinadas tarefas. O motivo para estar assim até poderia ser outro, talvez algo menos delicado, que pudesse ser superado sem muito esforço. Mas infelizmente, ela é uma das vítimas que sofreram abuso. A mãe a matriculou na aula balé para voltar a se desenvolver, e de fato, isso está acontecendo, aos

poucos ela está reagindo de forma satisfatória. O processo é um pouco demorado, inclusive ela não faz alguns exercícios, até algo simples como um salto, talvez porque não se sinta tão à vontade a ponto de realizálo. Mas com a professora e uma das voluntárias segurando a sua mão ela dá um pulinho. É assim que a escola D.O.M está buscando mudar o futuro de alguns anjos que não têm muitas oportunidades e vivem em situações de vulnerabilidade. O projeto tem se sustentado com a renda da própria escola, mas também conta com a ajuda de voluntários. Tanto na parte profissional como na parte financeira. Desde o combustível utilizado no transporte (também cedido) que busca e traz as meninas para a D.O.M, até as roupas que as confiantes bailarinas compartilham nas aulas.

Existem algumas formas que a comunidade pode estar ajudando no projeto. Uma delas é o apadrinhamento. Você pode adotar uma bailarina doando R$ 80 por mês e ainda tem a possibilidade de receber cartas e acompanhar sua bailarina adotiva durante as aulas. Além disso, outra forma de colaborar com o projeto é estar fazendo uma doação espontânea e ainda pode ser com ajuda profissional. Por exemplo, a escola conta com uma dentista que realiza trabalho voluntário atendendo as meninas para cuidar da saúde bucal de cada uma. Para fazer a doação, seja financeiramente ou profissionalmente basta entrar em contato com a Escola D.O.M, pelo site http://www. domescola.com.br/ ou pelo telefone (41) 3076- 0107.

Fotos: Sergio Vanalli.

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EDUARDO VERNIZI

Em um relacionamento sério

CONSIGO MESMO

Entrelinha | JORNALISMO UP Sobre amor, homossexualidade e aceitação

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Foto: Nicole Smicelato.


“Nós nos conhecemos pela internet”, essa frase tem se tornado muito recorrente na hora em que casais contam suas histórias, já que a tecnologia de hoje tem aproximado pessoas com gostos comuns, que talvez nunca se encontrassem fora do universo virtual. Não foi diferente para Alexandre e Gabriel. Os dois se conheceram por meio de um amigo em comum de uma plataforma digital, um jogo online para ser mais exato, começaram a conversar e decidiram se encontrar. Se encontraram, se beijaram, se amaram. Decidiram então ficar juntos, em menos de uma semana já estavam namorando, com alianças nos dedos, saindo juntos, jogando juntos. E foi assim, simples assim, comum, normal, nada de especial apenas amor, um simples amor como de qualquer outro casal. Entre uma curtida e uma “stalkeada” no instagram, Luiz e John resolveram trocar de rede social e foram para o facebook conversar. Papo vai, papo vem e a distância entre as telas começou a incomodar, resolveram então dali uma semana se encontrar, e assim foi feito. Sete dias se passaram e o que antes só era visto pelo quadrado da foto de perfil, se tornou real, mas naquele primeiro dia só conversaram ainda mais. Foram além das perguntas de gostos e preferências e resolveram se conhecer além da superficialidade, gostaram. Se gostaram. Foi mais do que uma curtida de foto, foi uma curtida de personalidade. A tarde passou, já era hora de ir para casa, mas antes um beijo, só um, coisa rápida, mas suficiente. Voltaram para aquela antiga rede social e marcaram um novo encontro e desde então se juntaram como um casal, e desde então se encontram todos os dias.

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Se conhecer na faculdade é outro clichê romântico de diversos casais reais e ficcionais, porém, acontece com uma grande frequência, já que a faculdade é um lugar novo, com pessoas novas e que, provavelmente, terão os mesmos interesses que você, então fica fácil encontrar sua cara metade. Foi o que aconteceu com Giovanna e Andrie. Elas resolveram fazer um trabalho de faculdade em um grupo no qual ficassem juntas, ambas com segundas intenções, e sem mais nem menos, Andrie convidou Giovanna para fazer o trabalho em sua casa, Giovanna aceitou. Ficaram, e de um lance casual um relacionamento foi crescendo, os sentimentos aflorando e quando se deram por conta já estavam namorando sério, e muito sério. Alexandre se “descobriu” gay aos dezesseis anos. Esta descoberta surgiu quando ele, conversando com algumas amigas, chegou a esse raciocínio “será que eu sou gay mesmo?”. Foi então que rolou a oportunidade de uma experiência, “foi estranha, mas gostei”. De primeiro momento se identificou como bissexual, mas depois percebeu que não era assim, e de vez se assumiu gay. Gabriel sempre teve certas dúvidas sobre sua sexualidade, sempre se sentiu “diferente”, porém aos doze anos percebeu quem realmente era, aos dezesseis começou a namorar e a se reconhecer cada vez mais. O namoro não durou muito, nem a incerteza, três anos depois conheceu Alexandre e se assumiu, para ele mesmo, para a família, para o mundo, assumiu que

também sabia amar. O período de descoberta e aceitação pessoal não é fácil, ainda mais quando existe o medo da rejeição por parte da família e da sociedade. Luiz afirma que sempre se sentiu “diferente” dos meninos de sua escola e vizinhança, mas confessa que só entendeu de fato o que sentia quando, aos treze anos, beijou um garoto pela primeira vez. “Foi uma confusão, ao mesmo tempo que tava querendo aquilo, eu tinha meus pais e a sociedade, foi bem difícil”. Mas como muitas coisas da vida, o tempo difícil passou e hoje, já com aceitação total da família, Luiz não se importa com a opinião alheia. John também sempre sentiu que tinha algo de diferente, desde pequeno, mas aos treze anos, John começou a se entender, aos quatorze a se aceitar e só hoje, aos dezoito, a se assumir. A situação não foi tão boa quanto a de Luiz, seus pais não aceitaram a forma de amar do filho e o expulsaram de casa. Apesar da dor que isso tenha causado, John se mostra feliz, por ter deixado aflorar o sentimento que ele repreendeu por anos, se mostra feliz por poder ser, finalmente, o que sempre foi. Giovanna quando tinha mais ou menos treze anos percebeu que não gostava muito de meninos, percebeu que tinha alguma coisa a mais, porém se auto declarou bissexual, ainda achando que havia uma chance com os meninos. Aos dezessete anos percebeu que não, não gostava de meninos, achava-os muito irritantes, e se assumiu homossexual. Andrie

“foi estranho, mas gostei”


Foto: Nicole Smicelato.

também se declarou bissexual em primeiro momento, saiu do armário pela metade, quando tinha quatorze anos ficou pela primeira vez com uma menina. Coincidentemente, ou não, quando foi fazer um trabalho na casa desta amiga as duas ficaram e Andrie se percebeu, se assumiu e respondeu “sim, sou gay”. Compreender a homossexualidade pode ser difícil para algumas pessoas. Perguntas como “por que alguém é homossexual?”, ou “como alguém virou homossexual, será que nasceu assim ou ficou assim ao longo do tempo?”, acabam sendo recorrentes para muitas pessoas. Para a psicóloga Valeria Beatriz Araújo questões sobre homossexualidade, ou sobre essa descoberta, não possuem

uma resposta universal. Para Valeria Beatriz, não é possível identificar um fator genérico para as razões pelas quais uma pessoa se percebe homossexual e nem para definir em qual idade essa percepção ocorre. Para ela, esses fatores são definidos por experiências particulares de cada indivíduo, fatores que possam ter tocado o indivíduo gerando essa percepção da homossexualidade, que se difere do que seria a sexualidade por fatores biológicos. De caso para caso, de pessoa para pessoa, de indivíduo único para indivíduo único, a sua sexualidade é de cada um, exclusiva e particular. Além da questão de compreender, existe uma outra questão ainda mais importante,

aceitar a homossexualidade de outros indivíduos. A professora e socióloga, Eliane Basilio de Oliveira, garante que, apesar de nos encontrarmos em uma sociedade dita moderna, casais homossexuais ainda enfrentam muita dificuldade e preconceito, no trabalho, nos espaços públicos e até mesmo na família. A professora agrega isso ao fato de vivermos em uma sociedade heteronormativa; ou seja, desde o começo da educação e formação do indivíduo, a heterossexualidade é norma, tida como correta e natural. Apesar de a sociedade ainda ser retrógrada em relação a isso, Eliane ressalta a importância das graduais conquistas que vêm acontecendo em prol da população LGBT. Para a socióloga, o direito

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conquistado pelos homossexuais em 2011, de ter reconhecimento legal de sua união estável, é de extrema importância, pois garante o acesso aos direitos sociais que antes eram negados a este grupo, como o direito à adoção, e ainda colocou a temática da homossexualidade em evidência na sociedade e na mídia. Quanto ao futuro, Eliane acredita que a mudança tem que vir da base, da formação e da educação dos indivíduos como cidadãos, para que não seja necessário existir lutas na área da saúde, da religião e da política, bastante frequentes nos dias atuais, como a defendida “cura gay”, homossexualismo como doença. Sobre Curitiba ser uma cidade livre de preconceitos, Alexandre afirma, categoricamente, que não, Curitiba não é livre de preconceitos, porém ressalta que existem lugares, e segundo ele não são poucos, que aceitam com mais facilmente um casal homossexual. Para ele existem lugares em que ele sabe que será maltratado, e que, sabendo disso, decide poupar a si mesmo e a seu parceiro de tal constrangimento, e resolve ir para algum lugar mais acolhedor. Ele conclui: “Você não precisa ficar recluso, dá para ter uma vida normal”. Gabriel começa dizendo: “Lógico que preconceito vai ter em todo lugar, mas eu acho que Curitiba é uma cidade muito boa para se viver”. Por ser um pouco desligado nunca notou muitos olhares, além disso ele e Alexandre não têm o costume de andar muito abraçados ou de mãos dadas, outro fator que, para ele, contribui para “não chamarem muita atenção”. Comparando com a cidade do interior em que morava, Luiz garante que Curitiba é uma cidade que aceita

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muito bem os casais homossexuais, fala que pela quantidade de pessoas é possível passar tranquilamente sem chamar atenção, já no interior o povo fala, conhecendo ou não. Luiz ressalta que ele nunca sofreu nenhum tipo de agressão, física ou verbal, e atribui muito isso ao fato de não ter tanto contato físico com John fora de casa, simplesmente por não verem a necessidade, porém assume que olhares e risadinhas sempre vão existir. John defende que depende muito de onde você vai, garante que existem até lugares onde pessoas

“foi uma confusão, ao mesmo tempo que tava querendo aquilo, eu tinha meus pais e a sociedade, foi bem difícil”

comentam quão bonito eles ficam juntos, mas que em outros lugares é, infelizmente, necessário que eles monitorem cada movimento, evitando assim situações desagradáveis. John admite que existem muitos olhares, alguns de reprovação, outros de ódio, de medo, de nojo; é possível perceber, é possível sentir, é possível se magoar. John não é tão otimista com a cidade. “Tem lugares e lugares”. Foi com essa frase que Giovanna definiu como enxerga Curitiba, e é assim que muitas

situações que fogem do “tradicional” são tratadas. Segundo ela, baseada nos lugares que frequenta, Curitiba é uma cidade aceitável, apesar de ainda existirem caras carrancudas na cidade sorriso, mas para Giovanna é muito mais fácil ignorar os olhares e os comentários negativos. “Eu também não tô nem ai pro que falem, entra por um ouvido e sai pelo outro”. Andrie também vê como uma questão de que “depende de lugar para lugar”, garante que se sente bem nos lugares que frequenta, sua faculdade também lhe proporciona situações de boa convivência, mas os comentários negativos existem, porém acredita que seja um pouco mais fácil lidar devido à sexualização que acontece quando se trata de um casal de lésbicas. “Tem essa questão de ver duas mulheres juntas como algo sexy, então eu acho que por eu ser mulher é mais fácil (a aceitação)”. O preconceito ainda existe, com menos força talvez, ou apenas camuflado, sutil, discreto e o pior de tudo, sorrateiro. Mas, dentro das opções, o que seria pior? Ele em sua forma bruta, com agressões, ou ele velado por olhares discretos e comentários baixos? Talvez a melhor opção fosse uma aqui não citada: seria melhor se esse preconceito não existisse, de nenhuma forma. Que a intolerância e a ignorância fossem substituídas pela complacência e pela bondade, e que a felicidade alheia não incomodasse ninguém. Mas infelizmente essa ideia ainda está longe de ser realidade, nos resta apenas torcer para que no futuro prevaleçam o respeito a diversidade acima de toda e qualquer forma de preconceito.


A menina de Ravensburg

Uma infância que combinou bombas com brinquedos para, mais tarde, encontrar refúgio no Brasil. PAULINNE RHINOW GIFFHORN Entrelinha | JORNALISMO UP

37 Foto: Patrícia Sankari.


O som sibilante das bombas embalou durante muito tempo a infância de Rosemarie Ketschkesch. Em meio às suas brincadeiras, nem sempre correr era sinônimo de se divertir. Às vezes era preciso correr para se proteger, para escapar do mal que estava presente em sua cidade e também em todo o mundo. A Segunda Guerra Mundial iniciou-se alguns anos antes de Rosemarie nascer, fazendo com que ela chegasse ao mundo, em 1942, em um cenário de total caos. Ela e sua família se refugiaram na cidade de Ravensburg, deixando para trás suas casas e todos seus bens. Antes dos maiores problemas com a guerra começarem, o pai de Rosemarie trabalhava em uma transportadora de carvão mineral e sua mãe o ajudava em todas as tarefas. Mesmo com a guerra, os estilhaços e as bombas, a menina encontrava formas de se divertir. Durante um ataque à cidade, Rosemarie encontrou uma caneca do príncipe da cidade dentro de seu carrinho de bonecas – objeto que ela guarda com carinho até hoje. A vida durante e após o período de guerra era muito árdua, pois em pouco tempo tudo que as famílias construíram ao longo dos anos, fora perdido. Rosemarie, no entanto, recorda que a vida era muito organizada: “Nós viviamos em alojamentos, alguns quartos abrigavam duas ou até três famílias. A Cruz Vermelha nunca desprezou essas famílias e quase sempre enviavam alimentos para auxiliar-nos”. Nos pacotes enviados pela organização, Rosemarie conta que vinham alguns tipos de comida em pó, como ovos e leite e alguns alimentos que já chegavam embolorados, como pães e batatas. A solução era colocar

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“Embora fosse um navio de guerra, nós tínhamos todo o conforto que era preciso, bom alojamento e boa comida. Ao chegarmos no Brasil já não foi bem assim”

tudo na brasa, para que não sentissem o gosto ranso da comida vencida. Aos sete anos, em 1949, Rosemarie, seu pai e sua mãe – grávida de seu irmão -, iniciaram a trajetória em busca de um futuro melhor. Na época, todos acreditavam que “fazer a América” seria a solução para os problemas que agravavam cada vez mais a realidade na Europa. Sua família perdera tudo e só de ter a possibilidade de começar tudo novamente, deixando as lembranças sombrias para trás, já fazia com que tudo parecesse estar melhor. A viagem para o Brasil durou cerca de 14 dias e 14 noites e foi promovida pela ONU. Dentro do navio General Stuart II, os ventos sopravam a favor dos tripulantes. “Embora fosse um navio de guerra, nós tínhamos todo o conforto que era preciso, bom alojamento e boa comida. Ao chegarmos no Brasil já não foi bem assim”, recorda. A primeira parada de Rosemarie e sua família foi no Rio de Janeiro, na Ilha das Flores, onde todos os imigrantes presentes no navio foram simplesmente despejados para que encontrassem alguma tarefa ou local que os acolhesse. Após algum tempo, um fazendeiro de muito dinheiro alojou a família de Rosemarie em sua propriedade em Goiânia. Nessa

fazenda, o pai de Rose auxiliava empregados da propriedade a fazerem os trabalhos da serraria do local. Um ano após terem chegado ao país, a mãe de Rosemarie passou a se preocupar com a educação dos filhos. Na fazenda na qual estavam morando, não existiam oportunidades de estudo e para não tornar as crianças também dependentes apenas dos trabalhos da fazenda, ela resolveu mudar de cidade. Foi assim que a menina de Ravensburg chegou à Curitiba. A viagem de trem de Goiás para a capital paranaense durou três dias e na ocasião todos chegaram a dormir na praça da Estação da Luz, em São Paulo, antes de se estabelecerem na nova cidade. A pior parte da adaptação ao país foi a língua. Como desde sempre falaram a língua germânica, acostumar-se com o português era uma tarefa muito difícil e os pais de Rosemarie não chegaram a aprender corretamente a língua. Rosemarie ainda carrega consigo um sotaque forte e muitas vezes se comunica com o filho em alemão. Hoje, Rosemarie afirma ser brasileira. Ela mudou sua nacionalidade e construiu uma família aqui. Ela não faria nada para voltar à Alemanha. “Eu amo o Brasil, amo o povo brasileiro. Minha verdadeira razão de viver está aqui”, declara.


Hannah Cliton

O véu que expressa e não esconde encrustrada no centro de curitiba, a mesquita Imam Ali Ibn Abi Tálib, mais que um belo monumento , é uma manifestação de fé

Entrelinha | JORNALISMO UP

39 Foto: Camila Abrão.


Quem passeia pelo centro histórico de Curitiba, na região do Largo da Ordem, pode não saber, mas a alguns metros encontra-se um dos poucos templos religiosos do mundo onde sunitas e xiitas rezam lado a lado. Mais especificamente na rua Kellers, número 383, a construção de azulejos azuis abriga a Mesquita de Curitiba, batizada de Imam Ali Ibn Abi Tálib em homenagem ao primo e genro do profeta Maomé que também é considerado seu sucessor pela corrente xiita. Aos domingos, das 10h30min às 13h30min, ao mesmo tempo em que a feira do Largo da Ordem acontece rua abaixo, a mesquita de Curitiba está aberta para receber visitantes. Muitos não passam dos portões de ferro, admirando de longe as duas torres, chamadas minaretes, que apontam para o céu. Outros ficam pelas escadas, tirando fotos ou apenas conversando com os frequentadores. Poucos são os que se arriscam a deixar os sapatos na porta e entrar no local forrado de tapetes persas, em que uma música árabe faz com que o visitante esqueça que aquele lugar de paz fica instalado em um bairro tão movimentado. As mulheres, além de deixar os sapatos, também precisam cobrir os cabelos com um véu, que pode ser emprestado na porta da mesquita. Para as não iniciadas, alguns têm elásticos ou capuzes para facilitar, e sempre há um muçulmano, ou muçulmana, disposto a ajudar. De acordo com as leis islâmicas, a mulher não é obrigada a usar o véu, mas recomenda-se que seja usado em lugares sagrados, como a mesquita, ou na presença de homens que não sejam da família. As muçulmanas geralmente usam o véu mais curto, que cobre os cabelos e é preso na lateral do rosto, mas os que são emprestados na entrada da

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mesquita cobrem da cabeça aos pés e são presos sob o queixo. Em uma manhã de um domingo nublado no início do inverno, uma gentil muçulmana de óculos e véu azul-marinho me entregou um longo pedaço de tecido branco com pequenas flores azuis. Olhei para o elástico preso na metade do comprimento e não soube o que fazer, mas ela me ajudou a prendê-lo sob o queixo. Depois de dona Neide Castaman me ajudar a esconder os cabelos sob o véu, fiquei sem saber como agir com todo aquele tecido me cobrindo da cabeça aos pés. Na visão ocidental, o véu pode parecer uma forma de oprimir a mulher, mas no islamismo o objetivo é protegê-la contra o assédio masculino. Gamal Oumairi, diretor religioso da Sociedade Beneficente Muçulmana,

“O islamismo começou a me dar um norte, uma orientação, um objetivo de vida.” diz que a religião islâmica recomenda, mas não obriga, que a mulher use uma vestimenta que cubra o cabelo e o corpo. “O véu tem a função e a utilidade de proteger a mulher, principalmente contra o assédio masculino. A religião recomenda o uso da vestimenta islâmica para que o respeito e a dignidade da mulher sejam assegurados e para que ela não atraia o homem pela sua aparência


física, e sim que o homem conheça o seu interior e os verdadeiros valores que ela tem como ser humano”, explica. Para Neide Castaman, 50 anos, o uso do véu foi uma transição natural durante o processo de reversão. Ela é de família católica e estuda o Islã há um ano, mas ainda não completou a chamada reversão, que é a efetivação da conversão para o islamismo. Neide conta que apesar de não usar o véu no dia a dia, apenas na mesquita, não se sentiu incomodada ou desconfortável. “Eu me sinto muito confortável, me sinto protegida, parece algo natural e que não incomoda”, opina. Ela conta ainda que só não o usa no dia a dia porque dificultaria seu trabalho, como compradora no almoxarifado de uma escola. “Eles têm esse respeito muito grande pela mulher, então todas essas regras fazem ver a importância que eles dão aos ensinamentos que têm no Alcorão”, completa. A questão é polêmica e mais complexa do que parece à primeira vista, mas a diferença é evidente: as visitantes da mesquita, obrigadas a usar o véu, muitas vezes pela primeira vez na vida, ficam visivelmente incomodadas e sem saber como agir sob o tecido. Já as muçulmanas são o oposto, plenamente confortáveis e seguras, com os seus véus coloridos e em harmonia com o resto da roupa.

Islamismo como filosofia de vida

para sua vida terrena. “O islamismo começou a me dar um norte, uma orientação, um objetivo de vida. Daí eu me senti seguro para começar a me aprofundar, estudar e, principalmente, praticar, porque religião é prática religiosa”, conta ele que, como diretor religioso da Sociedade Beneficente Muçulmana, vai à mesquita todos os dias. Para ela, que frequenta o grupo de estudos religiosos e procura ajudar na mesquita sempre que pode, o sentimento foi de reencontro. “É como se você estivesse se encontrando com as suas raízes”, explica. Reversão é como é chamada a conversão para o islamismo, processo que não tem um tempo definido e varia de acordo com cada pessoa. O termo é usado porque, segundo os muçulmanos, o Islã é o instinto natural das pessoas, que podem acabar se afastando e, depois, retornando ao islamismo. Por não ter completado seu processo de reversão, Neide ainda se considera uma aprendiz, mas conta que está recebendo todo o auxílio da comunidade da mesquita, assim como a compreensão da família e colegas de trabalho. “Eles te dão todo o tempo e o amparo que você precisa, eles não te cobram e querem que você faça uma reversão consciente, e com a certeza de que você está fazendo a coisa certa”, conta. O processo de reversão se completa depois de uma entrevista com o sheik que decidirá se a pessoa está preparada para se tornar muçulmana. Antes, porém, é preciso estudar e se certificar da sua escolha.

Neide veio de família católica e decidiu ser muçulmana aos 50 anos, Histórico pois sentia que faltava algo em sua vida. Gamal nasceu em uma família A Mesquita de Curitiba foi muçulmana, mas decidiu aprofundar fundada em 1972 pelos membros da os estudos islâmicos pelo mesmo Sociedade Beneficente Muçulmana motivo, em busca de um sentido do Paraná, que não tinham um local

Entrelinha | JORNALISMO UP Foto: Camila Abrão.

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Foto: Gabrielly Domingues.

apropriado para realizar os cultos. A obra demorou cerca de dois anos para ficar pronta, e só aconteceu graças às doações da comunidade muçulmana. A arquitetura segue o modelo das mesquitas tradicionais, com cúpula e dois minaretes do lado de fora, o que chama a atenção de turistas e visitantes, que geralmente param para olhar. Esses imigrantes, em sua maioria libaneses, recebiam suporte e instrução, mas a sociedade também tinha a função de ajudar pessoas e entidades sociais, o que se mantém até hoje. “A nossa sociedade arrecada mantimentos, roupas e doações e destinamos a essas entidades. Para nós, é importante esse trabalho de tentar auxiliar o Brasil que nos acolheu tão bem. Você acaba retribuindo em

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forma de benefícios sociais”, conta Gamal Oumairi, diretor religioso da sociedade, que atualmente também tem como um de seus objetivos divulgar o Islã e combater o preconceito contra os muçulmanos, chamado de islamofobia. Oumairi conta que, nesse sentido, o trabalho dos muçulmanos é bastante árduo para desmistificar as ideias preconcebidas. Porém, o lado positivo é que há uma curiosidade de conhecer mais sobre a religião, o que faz com que muitas pessoas visitem a mesquita, cerca de 30.000 por ano, segundo o diretor. “A gente recebe pessoas de várias religiões e todas vêm com o maior respeito e agradecem muito a oportunidade de visitar, de fotografar, de interagir com a gente. E isso nos gratifica muito, porque a gente mostra

que é uma religião que está aberta ao diálogo, e não uma religião extremista ou fundamentalista”, completa. O mito do Islã como religião extremista está muito ligado à divulgação das ações do autointitulado Estado Islâmico, organização terrorista que não é reconhecida por nenhuma corrente teológica islâmica. As práticas do grupo se dizem baseadas no Alcorão, mas de uma forma deturpada e que vai contra as principais leis islâmicas. Os muçulmanos não o reconhecem e nem mesmo sentem-se representados por ele, já que o islamismo é uma religião que tem como base a paz, a união e a tolerância. Para Neide Castaman, “o erro é todo mundo julgar a gente por uma coisa só, e julgar a gente pela pior parte, que é uma minoria, mas que faz mais barulho”.


Foto: Philip Scheibl.

Relato de um trabalhador Alguém que está presente na sua vida todos os dias e você nem repara. Douglas Partica Entrelinha | JORNALISMO UP

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Olá, eu me chamo Francisco Almeida dos Santos. Não que isso seja do seu interesse, mas acho necessário começar pelo menos com o meu nome. Você provavelmente me conhece, só não dá muita importância para a minha história. Eu sou aquele que acorda às três horas da manhã, correndo o risco de ser assaltado – ou pior – só para te levar para casa; sou aquele que você dá bom dia - mas não um bom dia sincero - só por educação, isso quando me cumprimenta; sou aquele que você culpa e usa como desculpas pelo seu atraso em algum compromisso, quando na verdade a culpa é toda sua por não ter acordado na hora que o despertador tocou ou por ter feito qualquer outra coisa que provocasse esse atraso; sou sempre aquele que leva a culpa quando acontece algum acidente; sou aquele (insira aqui um palavrão de sua escolha) que poderia ter esperado mais cinco minutos, mas ‘preferiu’ sair e ver você correndo em vão; sou aquele que ninguém conhece, todos odeiam e que sofre preconceito todos os dias por causa da generalização das atitudes de meus colegas. Sem mais delongas, já é hora de me apresentar. Muito prazer, eu sou Francisco, mas você pode me chamar de “o motorista do ônibus”. Tenho 57 anos de idade e, mais ou menos, uns 25 de profissão. Nessas duas décadas e meia, já ocupei as duas funções dentro de um transporte público. Fui cobrador durante três anos, mas desde então meu lugar tem sido atrás do volante. Já passei por diversas linhas, em todas as regiões da capital, e conheço cada rua dessa cidade como a palma da minha mão. Durante todos esses anos, já presenciei diversos episódios, tanto engraçados quanto assustadores, e até costumo dizer que tenho mais histórias do que

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fios de cabelos brancos – dos poucos que me restam - na cabeça. Você pode pensar que meu trabalho é fácil, mas hoje vou te mostrar que a realidade é bem diferente dessa que você idealiza. Atualmente o medo domina grande parte dos meus colegas de trabalho, e eu não fujo à regra. Principalmente para aqueles que, assim como eu, trabalham na região central da cidade. Só nesse ano, mais precisamente nos primeiros cinco meses de 2016, vários colegas de trabalho, entre eles alguns que considero quase da família, viveram momentos de pânico enquanto exerciam seu trabalho. No período de janeiro até maio, 58 ocorrências foram registradas na Guarda Municipal por assalto ao transporte público, apenas no bairro Centro. Em toda a capital, cerca de 420 vezes meus colegas e grande parte dos passageiros, que todos os dias pegam uma das 250 linhas de ônibus que circulam pela cidade, tiveram seu dinheiro ou seus pertences roubados. Mas o que podemos fazer? Assumimos esse risco por um bem maior: sustentar nossas casas e filhos. Talvez você não saiba o que é acordar todos os dias com o pensamento de que a qualquer momento, enquanto você trabalha, alguém pode apontar uma arma para a sua cabeça, em alguns casos até mais de uma vez por dia, simplesmente

porque você foi o escolhido da vez. Já presenciei vários casos, e em todos senti a sensação de impotência. Pessoas que muitas vezes por descuido, ou simplesmente por não imaginarem a possibilidade de isso acontecer, perdendo aparelhos eletrônicos, alguns trocados na carteira e muitas vezes todo o salário do mês, que seria destinado a pagar as contas de casa, para alguém que preferiu seguir uma vida de crimes ou que simplesmente não teve alternativa a não ser esta, seja por falta de educação ou por falta de oportunidades. Nem todos têm a sorte de nascer ‘com a vida feita’, ou de que a famosa ‘meritocracia’, existente apenas no pensamento dos nossos patrões, nos alcance. A maioria dos meus colegas – e me incluo nessa parcela – não teve a oportunidade de escolher um emprego melhor. Não trabalhamos por opção, mas sim por necessidade. Atualmente, a média do salário de um motorista de ônibus gira em torno de dois mil reais, e o de um cobrador – seja de terminais, estações tubo ou mesmo do transporte coletivo – por volta de mil e duzentos reais mensais. Valor que certamente não corresponde aos riscos que corremos no dia a dia e que também não é o suficiente para quem precisa pôr comida na mesa e administrar as despesas de casa. Quando lutamos por nossos

A maioria dos meus colegas – e me incluo nessa parcela – não teve a oportunidade de escolher um emprego melhor. Não trabalhamos por opção, mas sim por necessidade.


direitos somos taxados de vagabundos. Quando lutamos por nossos direitos viramos tema nas rodas de conversa, mas não do modo que deveria ser, mas sim como os preguiçosos que não querem trabalhar e atrapalham os outros com greves ‘sem sentido’, feitas apenas para ‘atrapalhar o trabalhado de chegar ao seu trabalho’. Quando lutamos por nossos direitos, ninguém vê ou se importa. O que as pessoas não vêm é que também somos trabalhadores e não estamos ali por ser um hobbie. Não protestamos apenas por nossos salários, mas sim por condições mais humanas de trabalho. Protestamos pelo fim da dupla função que muitos de nós somos obrigados a exercer nos finais de semana, gerando mais riscos à nossas vidas. Acredite, não é fácil ser motorista e cobrador ao mesmo tempo. Protestamos pela péssima estrutura e pela falta de segurança nas estações tubo. Protestamos pelo mesmo motivo que você protestaria: por prezarmos as nossas vidas. Assim como vocês, somos pessoas que comem, dormem e trabalham por um futuro melhor para nós e para nossos filhos. Não quero que você leve nada para o pessoal e muito menos que generalize alguma coisa que eu disse, pois o objetivo nunca foi esse. O ponto central desse relato é apenas mostrar que estamos todos ‘no mesmo barco’. A nossa busca é por reconhecimento. Entenda uma coisa: a passagem não aumentou para aumentar o nosso salário, não somos nós os culpados pelas superlotações e assim como qualquer outro trabalhador, temos um horário a cumprir. Espero que essas palavras possam pelo menos fazer com que você pare e pense – e até repense – nos conceitos pré-estabelecidos sobre a nossa classe.

Entrelinha | JORNALISMO UP

45 Foto: André Slosavski.


Murilo Prestes

O REDUTO GAY QUE SURGIU DO PRECONCEITO Localizada em São Paulo, a rua Frei Caneca se tornou um simbolo na luta pelos direitos dos homossexuais.

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Foto: Pietro Izzo.


A Rua Frei Caneca, está localizada no coração de São Paulo, o lugar conhecido como Centro Financeiro da maior metrópole da América do Sul. São Paulo também é considerado o maior centro financeiro, coorporativo e mercantil das américas, sendo a cidade mais habitada do Hemisfério Sul. Apesar de tamanha grandiosidade, infelizmente assim como em qualquer outra grande cidade, o preconceito se esconde na face de centenas de milhares de pessoas que sorrateiramente e depressa passam pelas avenidas, ruas, becos e vielas da cidade. O nome da via é em homenagem a Joaquim da Silva Rebelo, o Frei Joaquim do Amor Divino, ou simplesmente Frei Caneca, que também era orador, político, poeta e jornalista. Seu asfalto está instalado no distrito da Consolação, no bairro Cerqueira César. Seus vizinhos são o Baixo Augusta, Bexiga, Jardins e Jardim Europa. O percurso da Frei Caneca se inicia na mais paulista das avenidas, a Paulista. Fazendo quase o mesmo percurso da famosa Rua Augusta, sua vizinha de quadra, a Frei Caneca termina na região do Parque Augusta, próximo do Minhocão, no Anhangabaú. Depois de conhecer mais da localização e sobre quem foi Frei Caneca, é hora de entender por que a via é conhecida como “Reduto Gay de São Paulo”. Toda essa fama começou em 2003, quando um segurança do Shopping Frei Caneca foi acusado de homofobia. O guarda que deveria proteger os clientes agrediu um casal de gays que estava se beijando no interior do centro comercial. O shopping afirmou em nota que não houve nenhuma atitude homofóbica. Contra tal posição, a comunidade LGBTT se organizou em protesto.

João Xavier de 25 anos e Rodrigo Rocha de 21 foram os jovens recriminados por demonstrarem amor. Depois de alguns dias da repressão aos gay, em três de agosto daquele ano, duas mil pessoas se organizaram na praça de alimentação do Frei Caneca e promoveram um “beijaço gay” como forma de protesto contra a atitude do segurança, e a posição do shopping center. Esse foi um e marco importante para tornar a região famosa por ser o reduto gay. O protesto chamou bastante atenção. Alguns dias depois o shopping center preparou uma decoração especial com beijos pelas paredes, bandeiras do arco-íris e etc. De acordo com a administração do shopping na época, foi uma forma de abraçar o público LBGTT. Foi a partir de 2004 que o cenário conhecido por “Reduto Gay” veio ganhando cada vez mais espaço. A cada mês que passava, a rua ia ganhando bares, casas noturnas, saunas, cinemas e comércios dos mais variados voltados ao público gay. Além disso, o Shopping Frei Caneca foi adotado pela comunidade gay, ficando conhecido como “Shopping das Gay”.

O cenário de crescimento e ascensão da comunidade LGBTT não parou por aí, inclusive tomou conta da região. Um boom imobiliários explodiu na Frei Caneca, e enormes construções verticais tomam os céus da capital a cada dia, aquecendo o mercado imobiliário da região. E sim, o mercado imobiliário da Frei Caneca também foi pensado para as lésbicas, gays, travestis, transexuais e transgêneros. Além disso, vários hotéis instalados na região também são pensados para esse público. Sua vizinha de quadra, a Rua Augusta, também teve enorme ascensão com os mesmos passos da Frei Caneca. Foi depois dos anos 2000 que a rua começou a ser tomada de bares, boates e pessoas da comunidade LGBTT. Ambas as vias trazem um famoso slogan: “Diferentes” que procuram os seus iguais. Os jovens que ocupam essas quadras às vezes acabam sendo marginalizados ou tento uma imagem negativa, conta Leandro Andrade, de 22 anos e frequentador assíduo da região da Frei Caneca. O rapaz conta também que o lugar é maravilhoso e abraça as pessoas. “Tem muita gente

“Diferentes” que procuram os seus iguais.

Entrelinha | JORNALISMO UP

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que não gosta de balada, vem pra Frei. Até mesmo os pirralhinhos, menores de idade, quando não conseguem entrar na balada, ficam se pegando na Frei Caneca... aqui a gente sente maior liberdade”. Apesar de o público gay ter construído seu espaço na região, ainda assim há muito o que conquistar, como diz o Fernando Moreira, Diretor e Primeiro Secretário da Associação da Parada do Orgulho LGBT de São Paulo. A história da rua se constrói com diversas facetas, e uma delas é sim a do preconceito. Desde o beijaço, é preciso todo dia a gente lutar para conseguir um espaço. Ainda hoje muitos gays sofrem preconceito na região, a redondeza não é a mais segura, assim como em qualquer lugar de São Paulo. E apesar da gente ter mais conforto, digamos assim, a região ainda assim se mostra preconceituosa. Os vizinhos olham torto, tem comerciantes mais tradicionais que não gostam do que chama de invasão do público gay. Mas a gente tem que sempre dar a volta por cima. Infelizmente é possível constatar o que Fernando conta, com dados da Secretaria de Direitos Humanos, coletados por denúncias do Disque 100. Em média acontecem doze agressões a gays por mês na Rua Frei Caneca, é um número assustador na região que é conhecida por abrigar os homossexuais. Mas sabemos que os dados da SDH mostram uma realidade ainda pior, já que no Brasil, um gay é morto a cada 27 horas por conta de homofobia, que ainda não é considerada crime no país, deixando assim muitos casos sem a devida justiça. Hoje a estrutura da rua é completa. A Frei Caneca abriga pontos importantes de São Paulo, como a

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Paróquia do Divino Espírito Santo, uma igreja centenária na capital. O Hotel Della Volpe que ficou famoso porque foi cenário do assassinato do governador do Acre, Edmundo Pinto, em 1992. Esse solo também abriga o prédio onde funcionava a antiga Maternidade de São Paulo, onde nasceram grandes personalidades brasileiras e a maior parte da elite paulistana. A rua também divide espaço com prédios antigos e atuais construções imponentes, com características modernistas, seguindo

Gay”, a Frei Caneca também receberia uma iluminação colorida, com as cores da bandeira LGBTT, teria seus passeios ampliados e o espaço seria acolhedor; seguindo o mesmo padrão das ruas enquadradas no PL 59 de São Paulo, que engloba as ruas temáticas da cidade, como a Avanhandava, que é um Bullevard Italiano. A escolha para transformar o nome pode trazer uma transformação social para o local. Para o Presidente da Associação GLS Cassarão Brasil, Douglas Drumond, a Frei Caneca é um

No Brasil, um gay é morto a cada 27 horas por conta de homofobia, que ainda não é considerada crime no país, deixando assim muitos casos sem a devida justiça os traços da região da Avenida Paulista e do Jardins, onde moram os mais endinheirados da capital. Está em trâmite na Câmara Municipal de São Paulo, um projeto que pretende mudar o nome da Frei Caneca para Rua Gay. O projeto está em parceria com um grupo do Instituto de Arquitetos do Brasil, que além de mudar o nome da rua, pretendem transformar a Frei Caneca, trazendo mais sustentabilidade, melhor urbanização e transporte público, por exemplo. Além de se chamar “Rua

reduto gay, e o projeto visa oficializar tal fato, e é claro modificar a cara da região. O presidente conta também que há total apoio da maior parte dos comerciantes e moradores da região, quem em majoritariamente apoiam a causa. O Shopping Frei Caneca, que foi o principal responsável pela transformação do local, é claro, apoia a mudança também. Hoje o centro comercial é tradicionalmente o ponto de encontro da comunidade LGBTT no centro da maior cidade do país.


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