REVISTA
ENTRELINHA Além do espelho
a força de um símbolo no tratamento do câncer de mama
Entrelinha | JORNALISMO UP
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EXPEDIENTE Reitor José Pio Martins Pró-reitor Administrativo Arno Antonio Gnoatto Pró-reitor Acadêmico Carlos Longo Diretor da Escola de Comunicação e Negócios Rogério Mainardes Coordenadora do curso de Jornalismo Maria Zaclis Veiga Ferreira Coordenação do projeto gráfico Camila Abrão, Gabrielly Domingues, Nicole Smicelato e Patrícia Sankari Edição Camila Abrão, Gabrielly Domingues, Nicole Smicelato e Patrícia Sankari Revisão Ana Paula Mira Equipe de reportagem Giovana Godoi, Ana Severino, Jorge de Sousa, Luiz Kozak, Leonardo Mion, Kamila Santos, Davi Carvalho, Taline Moreira e Sarah Menezes ENTRELINHA é a revista-laboratório do curso de jornalismo da Universidade Positivo e integra a Rede Teia de Jornalismo. Contatos jornalismo@up.edu.br | (41) 3317-2530 www.facebook.com/RedeTeia
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EDITORIAL Apesar de não ser temática, a Entrelinha deste semestre é bastante feminina. Não só por histórias de força e superação, mas também por histórias de luta. À medida que se discute mais sobre as mulheres, é natural que se queira falar mais sobre e para elas. Foi isso que nossos alunos fizeram. Falaram de quem sente a dor do câncer, da violência doméstica, da briga na educação. Precisamos não só falar disso como incentivar que se pesquise sobre esses temas. A revista semestral do curso de jornalismo da UP tem feito sua parte. Entrelinha deste semestre é bastante feminina. Não só por histórias de força e superação, mas também por histórias de luta. À medida que se discute mais sobre as mulheres, é natural que se queira falar mais sobre e para elas. Foi isso que nossos alunos fizeram. Falaram de quem sente a dor do câncer, da violência doméstica, da briga na educação. Precisamos não só falar disso como incentivar que se pesquise sobre esses temas. A revista semestral do curso de jornalismo da UP tem feito sua parte.
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CORAÇÃO DE MÃE SEMPRE CABE MAIS UM CROMOSSOMO GIOVANA GODOI DO VÉU BRANCO AO LENÇO ROSA ANA SEVERINO WE CAN DO IT JORGE DE SOUSA GERALDO E A PEQUENA CANDELARIA LUIZ KOZAK
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SÓ QUEM JÁ MORREU NA FOGUEIRA SABE O QUE É SER CARVÃO LEONARDO MION PRÓXIMA PARADA: ESTAÇÃO 29 DE ABRIL KAMILA SANTOS QUAL É A BOA? DAVI CARVALHO E TALINE MOREIRA
AGORA OU NUNCA. OU DEPOIS SARAH MENEZES
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GIOVANA GODOI
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Fotos: Vitor Perry de Sampaio.
Coração de mãe sempre cabe mais um cromossomo
Quando as pedras no caminho da superação não impedem a passagem. A maternidade é algo feito uma fortaleza, cheia de facetas. Cheia de imperfeições que contrapõem com a generalização bestial de ser impecável, absolutamente sólida e incondicional. É visceral e instintiva. Talvez se torne inevitável criar expectativas sobre o idealizado filho, desenvolver relações hierárquicas e assim por diante. Eis uma longa discussão. Somos dotados de uma força egoística impressionante, e, no entanto, quiçá quase todas as mães queiram ver seus filhos se tornarem seres-humanos mais realizados e maiores do que elas mesmas. Haja amor. Nove meses - quando o(a) pequeno(a) não vem às pressas um tempo antes, ou não prefere repousar mais um pouquinho no calor do líquido amniótico, ou, ainda, quando não vem já pronto(a) de um outro útero -, parecem ser longos demais em meio a sapatinhos vermelhos, pacotes infinitos de fraldas, temores e ansiedade. É bem plausível, ou melhor, bem cabível ao momento gestacional construir imaginações de um rostinho redondo, um cabelinho preto, um par de perninhas cheias de dobrinhas, um futuro incrível. E mais ainda, se autoquestionar sobre tudo isso. Era um fim de tarde de segundafeira quando o João Felipe veio ao mundo. Seu primeiro marco na Escala Apgar (um índice que, na hora do
nascimento, mede o reflexo sensorial e os funcionamentos de frequência cardíaca e da capacidade pulmonar e muscular da criança) foi dois, sendo nove ou dez o fluxo normal. Ele já chegou impactante, tirando o fôlego dos médicos a sua volta. Nesse instante, isso pareceu assustador. Vinte e um anos depois, segundo a Débora (sua mãe), pareceu muito mais assustador do que realmente foi até aqui. E, no fim das contas, até hoje as suas chegadas são impactantes: ele “chega chegando”; porém, cheio de vida, na prova real de que números técnicos e científicos às vezes não são assim tão determinantes. Se houvesse uma escala para isso, seu sorriso atingiria o dez facilmente. Acontece que o João tem um cromossomo vinte e um a mais. A Síndrome de Down é carregada de mitos e particularidades, assim como qualquer tabu. Isso logo ficou evidente para Débora, que, ao longo do tempo, foi aprendendo a entender seu filho e entender e se desentender com todos os preconceitos e tentativas de inclusão social que o rodeiam. Sua educação sempre foi uma peleja: parte dos professores nunca estiveram dispostos a sair do seu padrão de trabalho dentro da escola regular e tentar ensiná-lo de forma adaptada e compreensível. Sua liberdade sempre foi limitada: quando pequeno, ele era
o único que não podia sair para brincar na rua com as outras crianças. E então, pouco a pouco, arquitetou seu próprio mundo e dentro dele encontrou os seus amigos. Um cotidiano musical, de paixão por jogos de videogame, filmes da Disney, dança de salão e gastronomia. É difícil para Débora, agora que ele já é adulto perante a lei, soltá-lo no mundo. Os portadores da Síndrome de Down geralmente são pessoas inocentes e com interesses infantilizados, mas graças à inclusão social (que, num passinho de cada vez, anda fortalecendo), à terapia e o apoio familiar, agora é gradualmente usual vê-los construindo seus próprios caminhos, desenvolvendo idéias e trabalhando para se auto sustentar. Débora tem junto a lembrança daquela segunda-feira do nascimento do seu filho, a dualidade entre amor e luto. Ela pariu a vida do João com Síndrome de Down e a morte do idealizado João sem deficiência. Na época, não existiam exames para identificar síndromes ou quaisquer problemas com o feto durante a gravidez. A surpresa veio à tona quando ela já o tinha nos braços. “Eu sempre aceitei o João. Difícil mesmo foi aceitar a síndrome. Foi sofrido aceitar que ele não se desenvolveria no ritmo que eu conhecia e que sonhei pra ele. No início, eu mal sabia cuidá-lo, e se houvesse uma maneira qualquer de
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arrancar isso dele, eu não hesitaria. Hoje em dia, eu já não quereria mais. Meu filho construiu uma história e uma personalidade muito querida por todos. Ele, com todos os obstáculos que atravessamos juntos e muito carinho, me fez aprender a ser uma pessoa mais positiva e a amadurecer como mãe. A saber separar calmamente os papéis. Não sou professora, terapeuta, médica. Sou mãe. E quem me ensinou isso, nas exatas palavras, foi ele. Eu o amo tanto quanto amo meu filho mais velho, o Pedro, que tem seus cromossomos nos devidos lugares”, ela disse. Cuidar de alguém com Síndrome de Down exige muita atenção, muito tempo dedicado. O processo de aprendizado de um down é lento e dificultoso, a tendência a desenvolver doenças é maior, a imunidade é mais baixa, a sensação física de dor é reduzida, o que pode provocar arranhões, hematomas e queimaduras despercebidas nos que são sapecas feito o João. Além disso, é preciso paciência. A teimosia é um pecado e uma virtude da qual eles entendem muito bem. Mesmo com tudo isso, Débora jura que é mais fácil do que ela - e todos - imaginavam ou ainda imaginam. Quem tem veia de mãe forte conhece a cria de cabo a rabo. Desfruta da sua companhia. Faz laços amistosos. No passado, ela chorou muitas vezes com
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medo do que viria a enfrentar. Com medo pelo próprio João, lançado nesse mundo cão. Agora, num fim de tarde alaranjado, sentada diante de mim com uma tranquilidade contagiosa, ela me conta no que acredita: “um sorriso vale mais do que qualquer outra coisa”. Falar sobre a Síndrome de Down é algo delicado. O desdém do preconceito e a chatice do politicamente correto transitam os lados de uma linha tênue que por vezes escapa da bruta percepção. Chamar a Síndrome de Down de “Síndrome do Amor”, por exemplo, pode ser nada menos do que ridículo. As pessoas não devem ter medo de discutir isso, perguntar, ensinar, ou de considerar o fato de que os down’s sentem as mesmas coisas que qualquer ser-humano sente: saudade, tristeza, tesão, revolta, alegria, amor, desejo, orgulho, empatia,
culpa, raiva, ansiedade, etc, e, dessa forma, possuem a mesma possibilidade de ambição dentro do seu tempo e capacidade. João está terminando o terceiro ano do ensino médio. Entrando na famosa fase caótica da juventude em que é preciso ponderar o que enfim seremos, planejar a vida adulta, dar os primeiros passos independentes. Para um down, esse é um momento ainda mais delicado. Afinal, eles cresceram com um auxílio especial direcionado para as suas dificuldades de se relacionarem com o mundo e fazerem as coisas sozinhos. É hora de começar a se desprender do ninho. Apreciador de uma boa pizza em um jantar em família, João quer ser chef de cozinha. E é para isso que Débora discute com ele a oportunidade de realizar um curso profissionalizante. “O João não gosta de errar, e eu sei do que ele é capaz.”, ela argumenta. Às vezes ele ajuda Sérgio (seu pai) na cozinha, e adora conhecer
novos restaurantes. Os espaços de trabalho abertos para pessoas com necessidades especiais estão se alastrando aos poucos, aparecendo lentamente em grande parte das áreas. As oportunidades já não se limitam mais somente nos super-mercados, como estávamos acostumados a observar. É possível, então, que essas pessoas tenham opções, talentos específicos, vocações e materializem seus sonhos. O artigo 27 da ONU, sobre os direitos das pessoas com deficiência, estipula que todos têm o mesmo direito dentro do mercado de trabalho. Além disso, crianças deficientes estão participando cada vez mais da escola regular e isso abre a cabeça dos alunos em geral para lidar com a diferença. Débora bate nessa tecla, afinal, são essas crianças que vão empregar adultos especiais no futuro. O Brasil é um dos países que contam com uma legislação trabalhista que, de certa forma, favorece a essa inclusão. De certa forma, porque não é tarefa fácil e as pessoas geralmente não querem sair da zona de conforto no seu cotidiano comum. A inclusão ainda não é a que se sonha: é uma tendência duvidar da capacidade de alguém especial, assim como diminuir os seus resultados e desconsiderar o seu processo evolutivo dentro de uma empresa ou do ambiente de aprendizado, como no caso do João com alguns dos seus professores. Fora isso, é comum a exclusão dos colegas regulares. “O ensino médio é o período mais difícil. O começo da puberdade, na verdade. Quando as diferenças começam a saltar, os convites de aniversário simplesmente
“FOI SOFRIDO ACEITAR QUE ELE NÃO SE DESENVOLVERIA NO RITMO QUE EU CONHECIA E QUE SONHEI PRA ELE.” desaparecem, por exemplo”, explica Débora. A pessoa mais influente na autonomia do João é seu irmão mais velho, o Pedro. Sempre foi mais fácil para ele do que para os pais colocar limites nas atitudes do João, desde a infância. E agora, formado em psicologia, ele é uma grande referência. A relação dos dois se construiu um tanto complicada. Na infância, Pedro desejou dezenas de vezes ter Síndrome de Down no lugar do irmão. Isso porque Débora e Sérgio dedicaram atenção maior ao João desde o dia do seu nascimento, devido a sua condição especial. Hoje, depois de ter estudado cinco anos de psicologia e ter feito seis anos de terapia, as coisas fazem mais sentido e estão mais claras para Pedro. E o que ele faz pelo seu irmão é apoiá-lo nas empreitadas da vida com entusiasmo e simplicidade. É demonstrar para ele, diariamente, a importância de ser livre e autônomo, explicando que o trabalho remunerado, a base educacional e a responsabilidade são indispensáveis para isso. É difícil para qualquer um abdicar dos prazeres momentâneos em nome das obrigações. Para alguns mais, para outros menos. Adoramos ficar acordados assistindo filme até tarde, jogando conversa fora, enfim, fazendo atividades que geram prazer e ferem a disciplina. E então sentimos o peso dessas pequenas irresponsabilidades no outro dia,
ao acordar cedo. É assim que vamos nos policiando e nos reeducando, em vários aspectos, para que possamos nos sentir ajustados ao movimento que o mundo cobra. Compreender isso e colocar na prática é complexo para alguém com Síndrome de Down. “Eu tive que preparar o caminho dele. Instruí-lo como pude, sempre na tentativa de fazer com que ele aproveitasse o máximo da vida, que fosse feliz”, conta Débora. “Agora estamos todos trabalhando o seu amadurecimento. Em família. O Sérgio me ajuda muito.” Há uma série de livros que tratam desse assunto. “O Filho Eterno”, do Cristóvão Tezza, por exemplo, é um que ilustra bem essa relação. O soco no estômago do primeiro momento, as descobertas, as desventuras, os sorrisos e um amor que faz jus ao nome: especial. É especial ter um filho que te faz perceber o potencial da felicidade; que te revela entretons peculiares da esperteza através da irreverência; que te apresenta os melhores desenhos da Disney que você talvez nunca fosse parar para assistir se ele não existisse e que te diverte num espetáculo de dança chegando como uma estrela se exibindo para os papparazzis sobre o palco do teatro Guaíra. Esse é o João e o seu brilho expansivo. E o riso de Débora ensina que às vezes abraçar e apostar no caminho mais custoso pode valer a pena.
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ANA SEVERINO
do véu branco ao lenço rosa Da dor do diagnóstico à realização de um sonho, Ingrid Klass colabora para autoestima de mulheres com câncer.
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Foto: Arquivo pessoal.
Uma festa linda em um gramado enorme, com cadeiras brancas de plástico, fitas de seda e muitas flores ao redor. Ou também pode ser na praia, com um lindo vestido branco longuete, a brisa do mar nos cabelos. Até mesmo na igreja, pois o tradicional nunca morre quando se trata desse tema. Para muitas mulheres, o dia do casamento é um dos dias mais importantes de sua vida. Algumas planejam desde cedo, quando aprendem já nas brincadeiras de casinha, infelizmente, que é esse o destino das mulheres. Outras acabam pensando no assunto com o passar dos anos, quando encontram o par ideal e decidem que querem compartilhar a vida a dois. E outras, claro, nunca se interessam pelo assunto. A professora de educação infantil Ingrid Klass se encontra no primeiro grupo. Desde moça, pensava em se casar de véu e grinalda, como manda a tradição. Queria se sentir uma princesa com seu lindo vestido, se emocionar ao entrar na igreja e encontrar lá, em pé esperando-a, o homem com quem iria passar o resto da vida junto. Três anos atrás, Ingrid estava perto de realizar o seu sonho. Com 27 anos, o casamento marcado e uma vida inteira pela frente, a última coisa que você espera é receber a notícia de que tem um câncer. Ela descobriu ter um nódulo no seio aos 24 anos, mas se tranquilizou na época, pois ele era benigno e não tinha casos parecidos na família. E então alguns anos depois, a cinco meses de seu casamento, foi diagnosticada com câncer de mama. Ingrid viu seu mundo
desabar, mas nunca desistiu. Com todo o casamento já organizado, Ingrid decidiu casar apenas no civil, cancelou a cerimônia na igreja e com o dinheiro da festa investiu em um outro sonho, talvez o maior deles: ser mãe. Com o tratamento de quimioterapia e hormonioterapia, que leva de 5 a 10 anos, a qualidade dos óvulos fica prejudicada, o que pode fazer com que uma gravidez no futuro seja mais complicada. Sabendo disso, a professora congelou seus óvulos. Apesar de ter aberto mão da cerimônia religiosa, Ingrid fez questão de se deixar fotografar com seu vestido de noiva, com seu lindo lenço-véu. Após passar pelas partes mais difíceis de seu tratamento, idealizou junto com sua amiga Vanessa Rosa, o site Rosa Klass – Os Desafios do Câncer, e junto com ele seu projeto mais conhecido, o “Lenço Amigo”. Criado para ajudar mulheres que estão enfrentando a doença a terem mais autoestima e esperança, a campanha só no ano passado, em uma parceria com a Prefeitura de Curitiba, arrecadou mais de 8 mil lenços. A ideia da campanha veio quando Ingrid estava finalizando seu tratamento. “Eu queria fazer algo para as pacientes com câncer e não sabia bem o que, aí comecei a lembrar o quanto eu gostava de ganhar lenço, o quanto eles me motivavam e me traziam alegria, o quanto, a partir de um lenço e um acessório, eu ia animada para uma sessão de quimioterapia”. Segundo o Instituto Nacional do Câncer (Inca), o câncer de mama é o mais comum entre as mulheres do
Brasil e do mundo, sendo responsável por cerca de 25% dos novos casos a cada ano. Mesmo assim, quatro em cada dez brasileiras não fazem o exame de mamografia anualmente. A doença costuma acometer mulheres a partir dos 40 anos, entretanto, alguns casos raros ocorrem com pessoas mais novas. Uma das pacientes do Hospital Angelina Caron, Maria Leonor, recebeu o Lenço Amigo. Maria descobriu o câncer de mama em 2012, tendo seu tratamento terminado este ano. Quando recebeu o lenço, ficou muito feliz com a iniciativa de Ingrid e de todos que doaram. “Com o lenço a gente se sente um pouco mais para cima. A perda de cabelo faz a gente se sentir menos bonita, mas as ideias de como amarrar o lenço e fazer coisas diferentes com ele, as cores deles, isso tudo faz com que a gente volte a querer se arrumar um pouco mais, porque, querendo ou não, o cabelo faz toda a diferença na nossa beleza”, conta. A positividade é um dos fatores principais que ajudam as mulheres a superarem a doença. Ingrid conta que, como para todo paciente que descobre o câncer, passou por um processo de angústia, tristeza e até mesmo perda da fé. “A primeira impressão que eu tive é ‘eu vou morrer’, porque, normalmente, você tem um diagnóstico de câncer e as pessoas por si só já te enterram”, desabafa. “Mas quando eu comecei a perceber e pensar nas crianças que enfrentam essa doença com um sorriso no rosto, eu pensei que comigo não poderia ser diferente, então foi dessa maneira que
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eu encarei”. Ingrid sofreu muito preconceito quando estava doente: algumas vezes recebia olhares de nojo em locais públicos, como shoppings e ônibus. “As pessoas achavam que eu ia passar câncer para elas”, comenta. Para ela, um dos piores momentos foi o da perda do cabelo. Por ser extremamente vaidosa, custou a se acostumar com sua imagem no espelho. Hoje, três anos depois, voltou a dar aulas e está completamente feliz, sempre nutrindo seu sonho de ser mãe. Para Ingrid, seu câncer foi uma prova para mostrar toda sua força. Outubro Rosa O movimento Outubro Rosa surgiu em 1990, em Nova Iorque. Tendo como símbolo um laço rosa, busca alertar sobre os riscos do câncer de mama, o segundo tipo de câncer mais recorrente no mundo, perdendo apenas para o de pele. Durante os 31 dias do mês, ações são realizadas em todo o país, visando conscientizar a população sobre a importância da prevenção da doença, que quando diagnosticada e tratada precocemente, tem 95% dos casos com chance de cura. É muito importante disseminar informações sobre a importância da prevenção e detecção precoce do câncer, para isso é preciso envolver o poder público, voluntários, entidades afins, profissionais de saúde, instituições de ensino e a população em geral. Segundo o mastologista e professor da Universidade Positivo Ciro Urban, o exame deve ser realizado anualmente em todas as mulheres a partir dos
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De acordo com o Inca, esse ano 57.960 novos casos de câncer de mama são esperados no Brasil. 40 anos. “É fundamental que nós tenhamos o diagnóstico precoce desta doença, realizada através do rastreamento mamográfico”. Apesar dos avanços tecnológicos, o câncer ainda continua com altos índices de mortalidade, e boa parte disso é por causa do diagnóstico tardio. De acordo com o Inca, esse ano 57.960 novos casos de câncer de mama são esperados no Brasil. A idade é um dos mais importantes fatores de risco - cerca de quatro em cada cinco casos ocorrem após os 50 anos. Outros fatores que aumentam o risco da doença são os ambientais e comportamentais, bem como fatores da história reprodutiva, hormonal, genéticos e hereditários. Ano passado na capital paranaense, vários tubos de ônibus, como os da Praça Santos Andrade e da Praça Carlos Gomes, foram completamente pintados de rosa. A Prefeitura também
ficou iluminada à noite pela cor e até algumas linhas de ônibus levavam o laço rosa em seus espelhos. Esse ano, com o tema "Câncer de mama: vamos falar sobre isso?", novamente alguns dos cartões postais da cidade, como a Arena da Baixada, o Shopping Curitiba, o Jardim Botânico, a Praça do Japão, a Casa da Mulher Brasileira, entre outros locais, receberam iluminação rosa. A Sanepar, além de iluminar os reservatórios com lâmpadas cor de rosa em diversas cidades do estado, enviou a conta de água para as casas dos usuários com a rosa, variando de seu tradicional azul. Além da cor diferente, a conta traz a frase: “Outubro rosa: previna-se contra o câncer de mama”. O objetivo de todas essas ações é lembrar a população sobre a importância da prevenção do câncer de mama.
JORGE DE SOUSA
We Can
DO IT
Aumento do número de mulheres empreendedoras está auxiliando na quebra de paradigmas sociais. 11 Entrelinha | JORNALISMO UP
Foto: Ana Paula Hudzinski.
“Já tive problemas em conseguir crédito por acharem que meu negócio não ia para frente por eu ser mulher”. “Em algumas reuniões as pessoas não falavam comigo, apenas com o meu sócio, porque ele é homem”. “Tecnologia não é lugar para mulher”. As frases acima parecem pertencer a uma realidade distante, quando o preconceito à mulher no mercado de trabalho era feito de forma evidente. Mas ele ainda existe. Mesmo com um estudo da Global Entreperneuship Monitor (GEM), que mostrou que em 2014, a porcentagem de empreendedoras femininas superava o sexo oposto (51% a 49%). Por isso, tão importante quanto abrir espaços, fomentar o empoderamento para vencer essas adversidades. “Infelizmente nossa sociedade traz uma cultura patriarcal, onde a mulher tem uma função quase que exclusiva para o lar. Quando ela sai desse meio e busca abrir seu próprio negócio ou até mesmo se especializar como gestora, acaba encontrando algumas barreiras, principalmente o preconceito”, afirmou Lênia Luz Nogueira (48), proprietária da Empreendorismo Rosa, uma empresa curitibana que presta consultoria para mulheres que procuram conhecer o mundo do franchising desde 2012. E a presença da mulher nesse setor já é uma tendência. Segundo a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Christine Lagarde, se os países latino-americanos tivessem índices de participação feminina no mercado como o de nações escandinavas (Suécia, Dinamarca e outros), seria possível um aumento de até 10%
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“EU SENTIA QUE PRECISAVA FAZER SEMPRE A MAIS QUE OS MEUS COLEGAS HOMENS PARA CONSEGUIR TER DESTAQUE” no Produto Interno Bruto Anual (PIB) dessas localidades, sendo assim um caminho promissor para reduzir a desigualdade social. A empresária Tânia Vicenzi é um exemplo desse conceito. Ela iniciou sua carreira como empreendedora vendendo joias e bijuterias de porta em porta e atualmente possui uma das dez maiores lojas do setor em Curitiba, a joalheria Viccenza. “Eu ia para o Paraguai buscar esses produtos a um custo baixo e fazia o comércio no boca-boca. Obviamente tinha um sonho de chegar onde estou hoje, mas para isso tive que superar muita porta fechada na cara, muito preconceito, mas meu conselho é não deixar os nãos que você leva impedirem você de chegar longe”. Muitas dessas mulheres compõem o núcleo dos MEI’s (Micro Empreendedor Individual), que são aquelas empresas com faturamento de até R$ 60 mil anual. E com o atual cenário de crise econômica nacional está haven-
do um aumento no número de novos empreendimentos. Segundo levantamento da consultoria Unitfour a comparação entre os meses de janeiro de 2016 e 2015, mostra que houve acréscimo de 16% na abertura de novos negócios. “Muitas das mulheres que chegam aqui tem ideias cruas sobre o empreendedorismo. Por isso mais do que colocar essa obrigação de empreender, tento passar a todas a importância de se auto-avaliar e identificar seu perfil. Seja como empreendedora ou como gestora dentro de uma empresa. Com o cenário difícil que é abrir um negócio, ainda mais no Brasil, é minha tarefa fazer com que quem saia daqui saiba exatamente para onde quer ir”, disse Lênia que antes de colocar a Empreendedorismo Rosa como empresa, já abrira um blog para discutir com outras mulheres as nuances desse setor. “Tudo começou em 2011, quando eu participei do programa 10.000 Women na FGV (Fundação Getúlio Vargas). Foi
lá que eu decidi sair da área de fonoaudiologia e entrar nesse mundo do franchising. Junto de outras 34 mulheres que estavam comigo nessa turma, criei um blog para inicialmente trocar experiências sobre o mercado e com o passar dos meses vi que ele tinha potencial para ser uma empresa e transformei o portal em um espaço físico”, contou a empresária.
Barreiras na tecnologia
Franciele Gabardo criou em 2013 a Voopyn, uma startup que busca talentos no setor de jogos digitais e os prepara para a entrada no mercado de trabalho. Em 2016 a empresa foi finalista da Elevators Pitch, concurso do jornal Gazeta do Povo e está em crescimento em seu setor. Mas segundo Franciele o caminho para chegar até esse estágio contou com muitos percalços. “A primeira coisa que eu percebo quando me veem no meu dia a dia é algo como, o que ela está fazendo aqui? Obviamente no início isso me incomodava mais, não a ponto de me fazer querer desistir, mas eu sentia que precisava fazer sempre a mais que os meus colegas homens para conseguir ter destaque. Isso acaba fazendo com que outras mulheres se desencorajem no caminho”, salientou a empresária, que tem planos de ampliar os serviços da Voopyn em escala nacional para os próximos anos. Segundo Lênia Nogueira os mercados em que mais existe concentração de homens são os mais áridos para as mulheres. “É grande a quantidade de jovens da área de tecnologia que reclamam do preconceito sofrido nessa área. A engenharia e o setor de con-
tábeis são outros setores que também possuem esses problemas. Por isso é importante acima de tudo a mulher saber de sua capacidade. Acreditar nela mesmo, se empoderar, pois o preconceito ainda existe e a melhor maneira de combate-lo é com a união e o esforço coletivo”. E algumas iniciativas do setor tecnológico mostram avanços na abertura de espaços de trabalho para as mulheres. A empresa Telefónica (multinacional do setor de comunicações) por meio da campanha #womenage – A Era das Mulheres, evento em comemoração ao Dia Mundial do Empreendedorismo Feminino, comemorado em 19 de novembro, abriu uma feira de recrutamento exclusiva para esse público. No total, 20 empresas tiveram estandes na mostra, nos quais já eram feitos entrevistas de emprego no local. “Acho que a tendência é melhorar essa situação. Cada vez mais entra gente nova, com ideias novas, sem esse preconceito. Espero muito que um dia o profissional, seja ele homem ou mulher, tenha as mesmas chances que seus concorrentes”, desejou Franciele.
Importância de empoderar
Com todo esse cenário, estar no mercado não é o bastante. É necessário uma auto-afirmação para as mulheres para que elas possam conseguir quebrar essas barreiras. “Eu tenho uma frase que é feito é melhor que perfeito. As mulheres precisam entender que não são perfeitas, que possuem deficiências como qualquer pessoa. Por isso o empode-
ramento é todo dia e começa consigo mesma, olhando no espelho e admirando os pontos positivos de si mesma”, aconselhou Lênia que observa que a abertura de espaços para debates entre as mulheres é fundamental para o crescimento do empoderamento feminino. “Nossas reuniões são abertas aos homens, que atualmente correspondem a 30% do nosso público. Mas nosso foco, obviamente, é em possibilitar que as mulheres possam se reunir e trocar experiências. Essa foi a ideia que criou o blog lá atrás e que mantém o nosso trabalho hoje. Porque os homens têm diversos grupo sociais exclusivos para eles, mas as mulheres ainda encontram dificuldade em fazer o mesmo”, comentou a empresária. E cada vez mais a sociedade encontra diversos exemplos de representatividade feminina. Seja na política, com personalidades como Dilma Rousseff (ex-presidente do Brasil) e Angela Merkel (primeira-ministra da Alemanha), passando por produções televisivas que mostram mulheres sendo líderes em suas rotinas, exemplo de Cersei e Daenerys em Game of Thrones e da série Orange is the New Black. Até mesmo as animações têm ganhado novos contornos com a aparição de Rin Williams como a primeira mulher a vestir a armadura do “Homem de Ferro”, além de Moana, protagonista do filme homônimo produzido pela Disney, no qual ela será uma das primeira “princesas” da produtora a não ter um par romântico na trama, tendo apenas o foco em sua narrativa.
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Geraldo
e a pequena Candelaria
No meio da modernidade do centro, um cantinho cheio de passado. LUIZ KOZAK 14
“Sejam bem-vindos ao Antiquário Candelaria”. É assim, com essa recepção calorosa, que Geraldo Bubniak, dono do estabelecimento de antiguidades, recebe cada novo cliente que entra em sua pequena loja no Largo da Ordem, no bairro São Francisco, região central de Curitiba. “Aqui você vai encontrar de tudo. Louças, pinturas, ferros de passar roupa... De peças bonitas e bem cuidadas a peças com muita história boa para contar”, afirma categoricamente, enquanto nos convida a entrar. “O espaço é pequeno, cuidado para não esbarrar em alguma peça valiosíssima que eu tive o maior esforço para garimpar”, diz seu Geraldo enquanto ri de sua própria piada. A loja realmente é muito pequena. Em seus pouco mais de dez metros quadrados, o estabelecimento de Seu Geraldo é escuro, obviamente apertado, mas tão receptivo e aconchegante quanto é pequeno. Tudo milimetricamente organizado, mesmo que um item em cima do outro. “É a bagunça mais organizada que você vai conhecer”. Um dos mais fiéis clientes da Candelaria, o empresário Milton Vieira, conta mais sobre como conheceu Geraldo e sua loja. “Todo sábado de manhã eu faço minhas caminhadas matinais e há uns três anos eu passei pela Candelaria e vi uma bicicleta antiga, exatamente igual à que eu tinha na minha infância, uma Monark vermelha. Voltei trintas anos no tempo quando a encontrei. O Geraldo me atendeu com essa simpatia que lhe é característica e fechamos o negócio. Dei um violão antigo que estava encostado lá em
casa e mais uma quantia em dinheiro. Desde então nós dois somos bons amigos e sempre que posso dou uma nova olhada nas peças da loja”. Infância Desde de muito cedo, mais precisamente aos oito anos, na cidade de Santo Antônio da Platina, no interior do Paraná, enquanto ainda era um “gurí travesso, mas sempre muito atento ao que acontecia seu redor”, Seu Geraldo é apaixonado por antiguidades e pelas histórias delas acompanhadas. “Lembro de cuidar de um carrinho de ferro que meu pai deu a mim e a meu irmão na noite de Natal. Era uma peça lindíssima, do começo do século, de confecção rara e fabricação inglesa. É a primeira lembrança que tenho de cuidar de algo realmente antigo”. Infelizmente, Seu Geraldo não sabe qual foi o paradeiro do brinquedo, que guarda apenas em sua excelente memória. “Minha mãe deve ter jogado no lixo, ou se perdeu na mudança, quando saímos da minha cidade natal para morar no belo estado de Santa Catarina. É uma pena, mas a vida é feita desses achados e perdidos, não é?”. Como o pai viajava muito, graças ao seu emprego de vendedor, Geraldo conheceu grande parte da extensão do território brasileiro. “Ele nunca parava em casa, era um homem muito ocupado, mas sempre bem arrumado. Nunca o vi com a gravata torta ou com o sapato sem estar lustrado. Papai sempre trazia algo de suas viagens, seja um boneco de pano feito por uma costureira de Belém do Pará ou uma bolsa feita de palha de Manaus para minha mãe. Viajei várias vezes
com ele e assim herdei essa paixão por descobrir culturas diferentes, por acumular objetos e histórias”, conta com lágrimas nos olhos. “Meu pai me ensinou tudo que eu sei hoje. Era um homem fantástico”.
Paixão de pai para filhos
Durante toda a sua vida, os três filhos de Geraldo sempre acompanharam de perto a paixão do pai. “Foi lindo quando, em uma de nossas viagens, ele encontrou um disco de vinil antigo, extremamente raro, um compacto, com uma marchinha de carnaval da década de quarenta. Os olhos dele brilhavam, ele ficou extremamente satisfeito. Meu pai é um romântico”, relembra a filha mais velha, Diana. Marcelo, segundo filho de Geraldo, ao contrário da irmã, não vê o hobby do pai como algo tão romântico. “Eu morria de ciúme dessas coisas quando era mais novo. Ele dava muita atenção para as velharias. Aquela escultura de leão ali (apontando para uma das peças favoritas do pai, encostada em um canto da sala da família), não gosto até hoje. Eu ficava muito bravo, mas é claro, coisa de criança. Depois que eu cresci, percebi como essas coisas eram importantes para o meu pai”, completa. Andrea, a mais nova dos três, tem a mesma visão romântica do pai. “Eu cresci rodeada de antiguidades. Cheguei à minha adolescência sabendo diferenciar um disco de vinil de um disco de ferro, que não se encontra mais hoje em dia. Ganhei, no meu aniversário de quinze anos, uma máquina fotográfica Polaroid 009, que guardo comigo até hoje. Vejo o trabalho do meu pai como
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um guardião do passado, guardando todas essas preciosidades”.
A loja
Apesar da paixão por antiguidades, Geraldo Bubniak começou a trabalhar vendendo peças antigas apenas há cinco anos, quando decidiu comprar a Candelaria. “Eu tenho setenta anos, e até meus sessenta e dois eu trabalhei como engenheiro químico, trabalhando até na Petrobrás. Era um trabalho honroso, pagou o estudo dos meus filhos e me colocou numa posição bem tranquila na velhice, mas nunca me realizou profissionalmente”. E apesar da aposentadoria tranquila, Seu Geraldo sentia que faltava algo. “Eu sempre me senti como alguém que buscasse uma grande realização na vida, uma atividade que me fizesse querer acordar de manhã. Fiquei um tempo vivendo a vida monótona de aposentado, acordando tarde e
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cuidando do jardim lá de casa. Era muito tedioso”. Então, Geraldo, após três anos “cuidando do jardim e fazendo pães”, decidiu que era hora de abrir seu próprio negócio e sair do marasmo que a aposentadoria lhe impôs. Durante conversa com sua filha caçula, Andrea, Seu Geraldo decide abrir investir no hobby de colecionador de antiguidades. “Meu pai sempre foi apaixonado por essas coisas. A casa dele é cheia de esculturas, discos antigos, máquinas de fotografia que não funcionam mais. Abrir uma loja assim fazia muito sentido para ele e para toda a família”, confessou Andrea. Após rápida procura na internet, os dois acharam o local dos sonhos de Seu Geraldo. O Antiquário Candelaria, fundado em 1989 por um casal de portugueses, estava à venda. “O lugar era tão pequeno, mas tão vivo, com tantas peças lindas. Eu me apaixonei
quase que instantaneamente pela minha pequena Candelaria”, diz o orgulhoso atual dono. “Sem o apoio dos meus filhos e da minha esposa, eu jamais teria criado coragem de abrir meu próprio negócio depois dos sessenta. Eles são realmente a base de tudo”. A fundadora da Candelaria, Yolanda Jimenez, conta os motivos da venda do estabelecimento e porque não se arrepende de ter passado o antiquário para o amigo Geraldo. “Eu e meu marido Hector fundamos a Candelaria em 1989, após a aposentadoria dele, pois nós dois queríamos ter um comércio, algo que fosse só nosso. Vendíamos e comprávamos de tudo. O Hector tinha um grande conhecimento de objetos antigos, então foi muito bom trabalhar junto de meu marido nesses anos todos, enquanto eu cuidava apenas das finanças da loja. Durante vinte e dois anos nós abríamos de segunda
Fotos: Gabrielly Domingues.
à sábado, fazendo chuva ou sol, não importava”, relembra Dona Yolanda. “Meu marido foi diagnosticado com câncer de pulmão em 2009, e lutou bravamente até os últimos dias de sua vida. Abandonou a Candelaria uns três meses antes de morrer. Era a paixão da vida dele, depois de mim, é claro”, relembra. “Sem o Hector não fazia mais sentido continuar com a loja, aí eu coloquei o lugar à venda. Foi assim que conheci o Geraldo. Ele tem a mesma paixão pela loja que o meu marido, então foi muito mais fácil me desfazer assim de uma parte tão importante da minha vida”. “A Yolanda é uma mulher forte, extremamente dedicada. Foi realmente uma pena eu não ter conhecido o seu marido. Acho que teríamos muito em comum, muito o que conversar”, afirma Seu Geraldo. “O trabalho dos dois foi muito bem feito, pois até hoje aparecem clientes perguntando dela e do Hector. Me sinto privilegiado por herdar assim um negócio familiar tão bem sucedido”.
Raridades
O Antiquário Candelaria possui atualmente mais de duas mil e quinhentas peças, dos mais diversos tamanhos, preços e épocas. Ao entrarmos no local, Seu Geraldo já nos apresenta um de seus itens para “a juventude”. Vocês são jovens, tem no máximo 20, 25 anos, lembram disso aqui? Ele nos mostra uma coleção de cartões telefônicos, a coleção completa de cartões “Pokemon”. “Acertei, né? São da sua época mesmo. Escolhe um, pode levar pra casa”. Entre máquinas Polaroid, louças dos
anos 50 e lustres enormes, encontramos um capacete usado pelos americanos durante a 2ª Guerra Mundial. “Ele tem dois compartimentos, o que faz com o que capacete seja mais pesado do que ele realmente precisaria ser. Mesmo assim, o equipamento não protegia o soldado de levar um tiro”, atesta Geraldo. Quando perguntado sobre o preço do capacete, Seu Geraldo é categórico: R$ 450,00, uma pechincha! Remexendo um pouco mais na pilha de antiguidades, Seu Geraldo nos mostra a peça mais antiga de toda a sua coleção, um gramofone do século XIX. “Ele foi fabricado na Inglaterra, datado mais ou menos entre 1880 e 1890. É uma peça pesadíssima, que infelizmente não funciona mais. O gramafone foi inventado por um alemão, Emil Berliner, para concorrer com o fonógrafo de Thomas Edison. Nele só tocam discos de ferro, raríssimos”. O preço? Seu Geraldo não se desfaz da peça por menos de R$ 2.900,00. “O valor histórico é inestimável”, afirma ele. Durante nosso tour pela Candelaria, Seu Geraldo nos mostra que seu conhecimento não é restrito apenas à música. “Aqui nós temos o primeiro modelo de uma máquina Polaroid. Ela tem mais de cem anos, mas infelizmente não funciona mais”. Nosso guia também ressalta, por mais de uma vez, que a tecnologia de que podemos desfrutar hoje nada mais é que um aprimoramento do que já foi criado anteriormente. “Essa máquina foi o primeiro ‘selfie’, vocês acreditam? Lembrem-se: as criações de hoje não seriam nada sem os equipamentos do passado. Tudo é cópia do que
já foi feito”, nos ensina o dono da Candelaria. Ao nos mostrar dois quadros em especial, ele se emociona. “Esses dois aqui são quadros de tapeçaria. São alemães, e mostram a atividade de monges alemães, assim como o Martinho Lutero, aquele da Reforma Protestante. São peças lindíssimas e tem quase cem anos. Estavam numa fazenda no interior de São Paulo, parece que abandonados em algum galpão cheio de poeira. Cada uma custa R$ 2.300,00, mas se você quiser levar, faço as duas por R$ 4.000,00”, negocia enquanto cai na risada. Assim como suas mercadorias, uma de suas práticas de venda também nos remete ao passado. “A prática do escambo vem da pré-história e consiste na troca de mercadorias que possam ser úteis ao outro”, explica. “É assim aqui na Candelaria também. Não se perde oportunidade, não se perde negócio só porque você não terá o dinheiro ali na sua mão imediatamente. Toda forma de negócio é realizável”. Enquanto nos dava entrevista, Seu Geraldo negociou moedas antigas, trocando-as por um robô de brinquedo, da marca Estrela, que ele acredita ser da década de 1980. O Antiquário Candelaria funciona na esquina da Rua Treze de Maio com a rua Mateus Leme, número 85, bairro São Francisco, de segunda à sexta, das 09h às 17h, e nos sábados das 10h às 14h, no telefone (41) 32236672. Tratar com Geraldo Bubniak, um apaixonado pelo passado.
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LEONARDO MION
SÓ QUEM JÁ MORREU NA FOGUEIRA SABE O QUE É SER CARVÃO
A violência doméstica impacta a vida de milhares de famílias, a cicatriz que mais dói é a que não se vê.
Foto: Ana Paula Hudzinski.
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O perfil a seguir foi construído a partir de uma entrevista de algumas horas com um amigo de infância. Por motivos de privacidade, ele preferiu não se identificar, mas admitiu que fosse escrito, pois achou que sua história pode trazer uma reflexão útil. Foi uma escolha do repórter usar somente a visão da criança. Minha mãe tinha saído, era aniversário de uma de suas irmãs. Meu pai fez uma janta simples e depois ficamos vendo TV. Perto da meia-noite ele estava consertando alguma coisa na sua oficina no fundo de casa, enquanto eu balançava na nossa rede de pano e ouvíamos o jogo do Coritiba. Ao fim do jogo ele desliga o rádio, apaga as luzes, me senta no seu colo e fala: “Deixa eu te perguntar uma coisa.” ... “Você tem medo de mim?” Eu engoli em seco e disse que não. Mas eu tinha. Naquela noite, minha mãe chegou e meu pai cumpriu sua rotina: assim que ela entrava em casa e virava as costas ele corria para o carro dela, um Escort 1997, e checava a quilometragem. Ele sabia exatamente a quantos quilômetros ficava a casa de cada um dos meus oito tios e tias. Depois, ele ia pra dentro e, enquanto ela contava como foi a festa, ele preenchia como um escrivão todo um relatório na sua cabeça, para ver se o tempo das coisas e conversas que ela contou somavam o tempo que ela ficou fora. Meu pai era uma pessoa ruim. Custa entender como um homem no seu nível de misoginia consegue viver em sociedade, e sempre que tentei refletir ele me
fugiu, assim como fugiu de diversas fases de sua vida. Pode ter sido algo de infância, ou um sentimento que minha mãe despertava nele que se transformava em violência, talvez eu nunca saiba. Meu pai nasceu em Colombo, no dia 21 de dezembro de 1957. Filho de uma empregada doméstica e um pintor de construção. Frustrado com a morte dos dois primeiros filhos, gêmeos, meu avô culpou minha vó até o fim dos seus dias. Meu pai foi o mais velho. Deixo para a imaginação de quem estiver lendo que seu nome completo consistia no nome do médico que o pariu, um personagem bíblico importante para minha avó , e o sobrenome de meu avô, porque minha avó analfabeta perdeu seu sobrenome quando se casou e nunca tinha aprendido a escrever o seu. Depois dele vieram seis irmãs, não posso dizer que lembro o nome de todas as minhas tias, mas lembro que nunca gostaram de mim, talvez pelo fato de todas apanharem dos maridos, e minha mãe e eu não. Meu avô, o Seu Ary, não parecia gostar de suas filhas. Desde pequeno convivi com meus pais debatendo se meu pai deveria interferir ou não na relação do vô com as prostitutas do bairro. A relação dele com os netos era cômica para não dizer triste, convivia bem com os meninos, mas as meninas, filhas das mulheres em que batia, eram suas princesas. Nunca gostou de minha mãe, uma mulher que não aceitava ser mandada, que sempre trabalhou fora e não dava satisfações. Um absurdo. Minha vó, Dona Nena, sempre acuada, encolhida, como todas as suas
filhas nunca aprendeu a ler nem escrever direito. Tratava todos os netos como se fosse a sua última visita. Via em minha mãe uma esperança e um espelho da mudança que queria. Sempre teve vergonha de sua casa humilde na favela da entrada de Colombo, mas nem por isso, quando íamos visitá-la, deixava de colocar as toalhas novas que tinha feito na mesa, sempre nos recebia com a casa arrumada e perguntava o que eu queria comer – algo raro para um menino que tinha 18 primos. Sempre me questionei por que meu pai era tão diferente do resto da família, um dia resolvi perguntar. Ele me contou que, quando tinha 12 anos, apanhava muito na escola por defender suas irmãs dos meninos que só queriam “se engraçar”. Depois de diversas suspensões, um professor pediu para ser seu tutor e o manter na linha. Meu pai me contou que a cobrança foi tanta que, quando chegou ao ponto de fugir da escola para evitar o professor, ele fez questão de perguntar o porquê da implicância. Acontece que a minha vó era empregada do professor, e quando ele descobriu, prometeu para si mesmo que ia compensar o esforço dela e fazer meu pai estudar. Ele foi o único que terminou a escola. Aos 18 anos, um jovem bonito e atlético, trabalhava como operário e jogador de futebol quando conheceu a primeira mulher. Fugiu de casa para casar, abandonando as irmãs e a mãe. Desse casamento, vieram seus primeiros dois filhos, um menino e uma menina. Meu irmão, Junior, via meu pai como um herói, Andressa, minha irmã,
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como quase um semiDeus. Quando a mais velha tinha 5 anos, ele resolveu que não era aquela a vida que queria, os conflitos em casa eram muitos para pouco retorno emocional. Então ele se foi. Abandonou meus irmãos em uma casa de um cômodo só e com uma mãe que saía na segunda e voltava na sexta. No fundo acho que meus irmãos não gostavam de mim também. Concursou-se policial civil e progrediu em uma carreira como investigador de polícia. Não seria uma profissão que eu recomendaria se o conhecesse na época. Meu pai sempre foi extremamente volúvel, arranjava brigas no meio em que estivesse e podia mudar do céu ao inferno em questão de quinze minutos. Uma pessoa extremamente geniosa com uma instabilidade incrível, seu humor flutuava como uma pena em um furacão. E foi disso que ele fez as nossas vidas. No começo, quem conhecesse percebia uma pessoa extremamente vaidosa, mas em profundidade o real era uma pessoa sem nenhum sinal de autoestima ou amor próprio, preocupada o tempo todo com o que as pessoas diziam e obcecada por saber exatamente o que todos estavam pensando, mesmo sem mostrar interesse. Em 1993, um amigo pede ajuda com uma colega de outro setor que precisava de assistência para uma amiga que havia comprado um carro roubado. Aí ele conheceu minha mãe. Morena, ruiva, loira, depende do mês, muito alta, totalmente desprendida de rotina, fã das bandas de rock mais populares nos bares menos populares da cidade, caçula de oito irmãos. Minha mãe sempre foi um cir-
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co. Se tinha vontade ela me colocava no carro e iríamos passar um fim de semana em uma praia de que nunca havíamos ouvido falar, e se estivesse chovendo poderíamos ficar horas ouvindo rádio, ela me contando histórias de livros ou filmes que nem ela se lembrava como eram mais. Por motivos pelos quais nem ela consegue dizer, ele a convenceu de que a culpa do abandono dos filhos não era dele. Por diversas vezes quando eu era criança, testemunhei minha mãe tentar levar meus irmãos para nossa casa, alfabetizá-los, educá-los. Não houve efeito. O personagem de meu pai é emblemático por isso. Por 15 anos, minha mãe feminista, independente, diminuiu seu brilho lentamente, e foi sufocada por um rotina violenta e instável. A rotina era sempre a mesma: todos os dias meu pai chegava em casa, entrava e deixava a chave na porta, depois seguia pelo corredor da sala até chegar na lareira, que dividia um balcão em dois pelo meio. Ele seguia até o balcão do lado esquerdo e esvaziava os bolsos metodicamente, primeiro a carteira e distintivo, depois a chave do carro e por último o revólver, que ficava no ponto mais alto para eu não alcançar. Depois seguia até a cozinha onde nos cumprimentava, ia para a sala, tirava os sapatos e ligava a tv. Isso era um dia bom. Conforme fui crescendo, percebi um aumento na frequência do que eu e minha mãe secretamente chamávamos de dias ruins. Quando às 23h ainda não havia sinal, era hora de fingir estar dormindo: duas quadras antes de embicar no portão já ouvía-
mos a música alta do seu carro, meu pai abria a porta e não fazia questão de trancar, caminhava fora de ritmo e tropeçando em diversas coisas pelo caminho. Sem esvaziar os bolsos ele ia direto para o quarto e discursava em alto e bom tom sobre seja lá o que fosse que minha mãe tinha feito para deixá-lo com ciúmes. O cheiro de álcool era perceptível no nível do chão no colchão em que eu dormia. Levou tempo para minha mãe me convencer do tamanho do perigo que corríamos, eu valorizava mais ter uma família simbólica do que o bem-estar em casa, coisa de criança. Seu argumento para me convencer foi me fazer pensar “você tem medo do seu pai?”, e eu tinha, tanto que quando ele descobriu e me perguntou eu congelei. Ao longo dos anos minha mãe e eu fugimos diversas vezes para a casa de parentes por conta de pratos quebrados, humilhações públicas ou só porque ele mesmo nos expulsou. Inexplicavelmente sua capacidade de manipulação era tão grande que em todas as vezes minha mãe e seus psicólogos eram convencidos de que tudo seria melhor. Até não ser mais. Quando eu tinha 13 anos, minha mãe, em um ato de coragem, aproveitou um dia ruim em que eu tinha ido dormir fora. Empacotou tudo que pôde, fotos, brinquedos, roupas, colocou no porta-malas do carro e foi embora. Vi meu pai cinco vezes depois daquilo, em cada uma parecia mais desgastado e revoltado. Nunca mais vimos nada que deixamos na casa. Hoje casado de volta, adotou os filhos da mulher e mora a uma quadra de onde o deixamos. Meu pai me dis-
se a vida toda que seu maior esforço era de não ser igual ao meu avô, mas parece que não foi possível. Ele nunca saiu de Colombo. Hoje se debate muito o que gera a misoginia e o ódio desproporcional de alguns homens por mulheres. É fato
que isso vem de um formato de sociedade antiquado e que, tanto para homens ou mulheres, se tornou um senso comum a ser quebrado. Mas meu pai era mais complexo que isso. Não parece haver uma explicação razoável de por que pessoas como meu pai são
o que são. Há vezes em que converso com minha mãe e concluímos que ele teria características clássicas de misoginia, por vezes só achamos que era só um ser humano muito ruim.
UMA PESSOA EXTREMAMENTE GENIOSA COM UMA INSTABILIDADE INCRÍVEL, SEU HUMOR FLUTUAVA COMO UMA PENA EM UM FURACÃO. E FOI DISSO QUE ELE FEZ AS NOSSAS VIDAS. Entrelinha | JORNALISMO UP
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KAMILA SANTOS
Fotos: Kamila Santos.
PRÓXIMA PARADA: ESTAÇÃO 29 DE ABRIL
A visão de professores que só queriam seus direitos e viveram a batalha do centro cívico. Nove horas da manhã de uma segunda-feira. Como de costume, algumas dezenas de pessoas desembarcam do ônibus da estação Centro Cívico, região administrativa da cidade de Curitiba. Apressadas, elas saem do “tubo”
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com destino a seus empregos ou compromissos, talvez sem se darem conta de que aquele ponto de ônibus, se falasse, poderia contar histórias de terror que assustariam qualquer ser-humano com um mínimo de consciência.
Geralmente cenário de festividades e comemorações, a Praça Nossa Senhora de Salette foi o palco de um espetáculo grotesco, difícil de apagar da memória. Essa narrativa se passa no dia 29 de
abril de 2015, porém como explica Fabiano Stoiev, professor de História da rede estadual de ensino do Paraná, os fatos aqui escritos foram apenas uma resposta a outros ocorridos bem antes. “O 29 de abril não aconteceu por acaso. Ele foi uma reação do governo ao que aconteceu no dia 12 de fevereiro”. No dia 10 fevereiro daquele ano, centenas de servidores estaduais ocuparam o plenário da Assembleia Legislativa em protesto a um pacote econômico proposto pelo governo com a intenção de cortar gastos públicos. “Desde a madrugada de quarta [dia 10], ao menos 800 servidores das áreas de educação e saúde dormem em barracas no chão da Assembleia”, noticiaria a Folha de S. Paulo no dia 12. Naquele mesmo dia 12, milhares de manifestantes invadiriam o pátio da ALEP, em protesto ao pacote. Segundo a Polícia Militar, mais de 8 mil pessoas participaram das mobilizações naquele dia. Durante esse ato, os manifestantes já foram alvo de balas de borracha e bombas de efeito moral. Já ficava claro ali que o diálogo não seria a ferramenta principal nas discussões entre governo e categoria. Pelo menos naquele momento, o protesto funcionou: a proposta do pacote foi retirada de pauta pelos deputados. Ela voltaria ao plenário em abril, desencadeando uma nova paralisação dos servidores. Em protesto, professores de diversas partes do estado decidiram montar acampamento em frente ao Palácio Iguaçu. Com carros de som, os servidores tentavam impedir a votação do pacote. Como recorda Fabiano, na madrugada do dia 27 de abril, logo no início das manifes-
tações, a PM agiu de forma truculenta e tomou o carro de som, além de usarem da força para tentar retirar os manifestantes da praça. No dia 28, ao tentarem se aproximar da Assembleia Legislativa com um novo caminhão de som, os servidores foram novamente agredidos: “no dia 28 já tivemos um primeiro conflito, que envolveu uso de bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha. No dia 29, a cena se desenrola definitivamente”. A votação do pacote estava prevista para as duas e meia da tarde do dia 29 de abril. Como forma de impedir que os servidores invadissem o plenário da Assembleia novamente, o governo mobiliza tropas de todo o estado para formarem um cerco em torno do prédio. Quando chegou à Praça Nossa Senhora de Salette naquela manhã, a professora Angela Machado já pôde perceber o clima de hostilidade presente no local. O caminhão de som do sindicatos dos professores estava na frente da prefeitura. Angela estava acompanhada de colegas professoras, entre elas sua irmã, de quem se perderia no meio da confusão. Segundo informações recebidas pelos servidores, cerca de 300 pessoas poderiam entrar na Assembleia para acompanhar a votação, e a professora esperava conseguir entrar na sessão. Chegando lá, porém, os manifestantes foram avisados de que a votação seria feita de portas fechadas. “Nesse momento a gente achou mesmo que deveria tentar ocupar a Assembleia novamente, para tentar impedir que essa medida fosse votada. Foi aí que começou toda a animosidade do dia”.
Naquela mesma praça, o professor Douglas Rezende também tentava acompanhar a votação realizada na Assembleia Legislativa. “A gente sabia que não dava para barrar a votação, por causa do efetivo policial que guardava a assembleia. A gente via os helicópteros, policiais com cães e cassetetes. Assim que a votação teve início, eles começam a jogar bombas, praticamente ao mesmo tempo”. Nesse momento, Fabiano e outros colegas estavam próximos ao portão do Tribunal de Justiça, vizinho da Assembleia. Ele via os policiais erguendo os cassetetes e batendo nos manifestantes mais próximos à barreira, já deixando muitas pessoas feridas logo no início da ação. Com o uso das bombas de gás lacrimogêneo, permanecer na linha de frente se torna ainda pior. O enfrentamento é intenso, o avanço dos manifestantes em direção ao prédio do ALEP é lento. Ao serem atingidos, eles recuam. Tentam avançar novamente, recebem outra quantidade grande de balas de borracha e bombas de gás. A contenção contra os manifestantes consistia em duas barreiras: a primeira era as grades de ferro, a segunda o cordão policial. Na tentativa de entrar na Assembleia, os servidores derrubam a grade e tentam forçar a entrada. Angela ultrapassa a grade e consegue passar por um grupo de policiais, que visivelmente estavam atacando primeiramente os homens. Já próximo do portão da Assembleia, a professora é contida por um outro grupo de policiais. Arrastada pelos braços, ela é levada para a parte de trás do Palácio Iguaçu. No caminho, Angela ouve dos
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policiais que “aquilo era melhor para ela”, que ela “deveria para com aquilo, que não adiantaria nada”. “Eles me mantiveram lá por um tempo. Quando percebi uma oportunidade, saí. Tive que dar a volta no quarteirão, pois não conseguia mais voltar para a ALEP”. Próxima da prefeitura, Angela se junta aos colegas que tentam avançar em direção à Assembleia. Do outro lado da praça, o caminhão de água da tropa de choque também é utilizado contra os servidores. Os manifestantes se viam cercados: de um lado o cordão policial, utilizando gás de pimenta; do outro, o caminhão lançando jatos d’água. Nesse momento, Douglas tenta diminuir os efeitos do gás cobrindo o nariz e boca com um pano embebido em vinagre. A quantidade de gás, porém, era tão grande que a técnica não surtiu efeito. Sem conseguir respirar, o professor cai no meio da rua. Colegas o arrastaram para longe dali. Os ataques vinham de todos os lados. Angela conta que no prédio do Tribunal de Justiça, um grupo grande de policiais da tropa de choque atiravam balas de borracha nos manifestantes. Tendo avançado um pouco, a professora percebe que a melhor alternativa para evitar as balas é se abrigar no tubo de ônibus. O local até parece uma boa alternativa, mas só até os policiais entenderem a estratégia dos manifestantes. Encurralados, os manifestantes são alvo de um grande número de bombas de gás lacrimogêneo lançadas bem na entrada do ponto. Com pouca experiência em conflitos desse tipo, Angela tinha na bolsa apenas um pequeno frasco com vina-
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gre, obviamente insuficiente para evitar os efeitos do gás. Um estudante, que também buscara abrigo no tubo de ônibus, ajuda a professora embebendo a canga de praia que ela usava para cobrir o rosto com vinagre. Nesse momento, a linha formada pela tropa de choque que estava formada a alguns metros dali avança. Ultrapassam o ponto de ônibus. Nesse momento, policiais invadem o tubo. Rendem primeiramente o garoto que ajudou Angela, o pegando pelo pescoço e jogando no chão. Ela pede aos policiais que não machuquem o menino, dizendo que ele era seu aluno. “Na verdade ele não era meu aluno, mas aquilo era o mínimo que eu poderia fazer para ser solidária à ele que estava me ajudando o tempo todo”. Ela é novamente agarrada e arrastada pelos policiais para fora do tubo do ônibus. “Esse para mim foi o momento mais tenso do dia. A primeira vez que eu fui levada pelos policiais para trás do Palácio eu não senti medo. No momento em que os policiais do choque me pegaram eu senti uma insegurança muito grande do que seria feito de mim. Pensei que poderia ser presa, e em como explicaria isso para os meus filhos”. Ela foi levada até o outro lado da praça, ao gritos de que ficasse quieta. Assim que passaram pela linha da tropa de choque, Angela foi solta pelos policiais, que a mandaram correr. Ela correu por alguns metros, mas percebendo que a maioria dos manifestantes estavam sentados na rua, protestando de forma pacífica, mas mesmo assim sendo atacados, decidiu se ajoelhar em
frente à tropa. Pediu para que parassem de atirar bombas de gás nos manifestantes, que não representavam nenhum tipo de perigo ou violência. Os policiais param com as ataques. O conflito só seria efetivamente encerrado três horas depois de seu início. Segundo dados divulgados pelo jornal Gazeta do Povo, a ação, que ficou conhecida como “Batalha do Centro Cívico”, custou “948 mil reais aos cofres públicos considerando gastos com munição e diárias dos policiais. Foram empregados 2.516 policiais e consumidas 2.323 balas de borracha, 1.413 bombas de gás ou de efeito moral”. Mais de 230 pessoas ficaram feridas. “Eram cenas de um hospital de guerra”. Fabiano assim define o ambiente na prefeitura de Curitiba durante e após o ocorrido. A sede do poder municipal foi transformada em hospital improvisado, oferecendo os primeiros-socorros aos feridos. “A visão era terrível. Vi muitos colegas feridos e sangrando. Naquele momento ouvi conversas sobre pessoas hospitalizadas e até mesmo mortas. Fiquei sabendo que uma colega teve uma parada cardiorrespiratória por conta do efeito das bombas, foi muito chocante.” Sentada do lado de fora da prefeitura, Angela começa a refletir sobre a situação pela qual passou: “Nesse
“ERAM CENAS DE UM HOSPITAL DE GUERRA”
momento comecei a pensar sobre o porquê estávamos passando por aquilo em pleno ano de 2015. Eu achava que aquilo era cena de uma ditadura, e como eu achava que vivia em um estado democrático, nunca imaginei que aquilo aconteceria comigo”. E no que resultou toda a luta dos professores? O projeto do pacote financeiro foi aprovado naquela mesma tarde por 31 votos a 20. A greve dos professores foi encerrada no dia 9 de junho de 2015, decidida em assembleia que contou com a presença de aproximadamente 10 mil servidores. Esgotadas as vias de diálogo com o governo, os servidores decidiram pelo encerramento da paralisação que durou 46 dias. Um ano depois, a ação movida na tentativa de condenar os comandantes da operação foi arquivado pela Justiça Militar em março de 2016. Teriam as manifestações, então, não servido de nada? “A partir do dia 29 a situação muda. Você tem mais clareza do seu papel como professor. A experiência é muito marcante, então você acaba transferindo isso de alguma forma para a sala de aula. Isso obriga a cada um de nós tentarmos ser melhores professores e profissionais a partir daquele dia”, conta Fabiano. Segundo o professor, o 29 de abril mudou a forma como os professores entendem a luta pela educação e seu papel na defesa dos direitos dos servidores públicos. “Se o ganho não é imediato, se não conseguimos impedir a votação do pacote, de qualquer maneira mantemos a educação como a pauta importante para todos nós, e o dia 29 simboliza o tamanho dessa importância”.
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DAVI CARVALHO TALINE MOREIRA
Qual é a boa? Da marginalização à cura: os benefícios do uso medicinal da cannabis. Ela não é apenas uma plantinha florescida através de um clima quente indiano; nem muito menos se resume à cor verde e às diferentes substâncias em sua composição (mais de 400). Ela é bem maior que seus possíveis cinco metros de altura e bem mais rica que proteínas e carboidratos extraídos de suas sementes. Ela interfere no comportamento, nos sistemas psico, neurológico e genético do indivíduo. Ela é multi, ela se transforma, é personalidade recorrente nos noticiários e informes de saúde. Ela é cannabis, marijuana, charas, congo, hashish, xibaba, half, marola, beck, baseado, chibata; erva do diabo, maligna, do norte ou simplesmente erva. De preço baixo, de acesso fácil, de interferência corporal, mas proibida aqui no Brasil. Pode ser comida,
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mascada, fumada ou aspirada. Ela divide a opinião pública e é alvo de discussões no Congresso Nacional, nas ONGs, na faculdade, nos fóruns de saúde e na mesa do jantar. Maconha, a planta ilícita, de efeitos controversos e de consequências viciantes. Mas é devido seus efeitos físicos no organismo, que o debate em cima da maconha ganha proporções de guerra civil. Afinal: legaliza ou não? Vicia ou não? Atrapalha ou não? Mata ou não? Os olhos avermelhados anunciam: consumi maconha! Para alguns os efeitos são relaxantes, tranquilizantes, descontraídos e de sentidos aguçados, isto é, efeitos totalmente positivos. Outros veem as consequências na perda de memória e coordenação motora, confusão mental, retardamento e problemas de saúde
(recorrentes no coração, pulmões e cérebro) como pontos negativos do consumo da erva. O porquê do não à erva? Para adeptos de movimentos contra o uso e legalização da maconha no Brasil, o motim das teorias parte do princípio de não apenas estar se falando ou discutindo a maconha enquanto cannabis – a planta -, mas sim da afirmação do consumo deliberado de uma droga cujas consequências interferem diretamente na saúde da população. Por ser um processo de condução mais elaborada e em acordo com órgãos públicos e políticos, alguns estudiosos como Rafael Lácio, psicólogo e coordenador do movimento “Tô Limpo”, em Curitiba,
diz que “grandes exemplos do consumo permitido da erva, como a Holanda e o Uruguai estão repensando a liberação. A Holanda está revertendo o processo de legalização de uso de droga, não só da maconha, de vários tipos de droga, porque ela chegou à conclusão que não está dando certo o processo. Um país que sempre foi o mais avançado no sentido de legalização, hoje está revertendo tudo por rediscutir que essa é uma atitude errada. O Uruguai passou a perceber que não se tem nenhuma informação técnica associada, por exemplo, a que benefício o consumo de maconha trouxe ao ser humano”. Para o movimento, o que os lugares onde a droga é liberada traz a favor, é que eles são canais diretos de compra e uso de forma desmedida e em grande escala. E só. Do mais, os efeitos são completamente negativos, mas disfarçados de benefícios. A justificativa está em comparar com o consumo do cigarro que, no Brasil, tem respaldo da legislação. Para o psicólogo, mais do que pensar a respeito é preciso pensar que a maconha faz mal à saúde. “Se fala tanto do cigarro, se combate tanto o cigarro, mas a maconha querem liberar. É uma contradição. A gente que estuda a questão das drogas na população brasileira, sabe fazer um parâmetro diante dos malefícios que a maconha traz. O que acontece é que muita gente defende, mas não sabe que questões de cognição e de todo o processo cerebral obtidos pela absorção da droga ao longo do tempo representam grandes dificuldades no corpo humano e diminuem o seu tempo de vida”.
A realidade é que a cannabis é uma faca de dois gumes. Além de aliviar o estresse físico e mental, as percepções e noções de realidade do indivíduo vai se perdendo, causando a dependência psicológica, que é o grau mais sério. Dessa forma ele está suscetível à perda de memória e criatividade, confusão mental potencializada e, por consequência grave, aumento da ansiedade. Alguns médicos advertem que transtornos psicóticos podem acelerar e piorar os diagnósticos de esquizofrenia e outras doenças psiquiátricas mais graves. Dos menores males estão os problemas respiratórios, o velho conhecido de mais de seis milhões de fumantes no mundo, segundo a Organização Mundial da Saúde. Claro que os maiores danos recorrentes estão reservados para problemas cardíacos, cânceres, hipertensão, infertilidade, obstrução de vias respiratórias, queda na produção de hormônios naturais como a testosterona e a progesterona. Mas e a polêmica da legalização como tratamento medicinal? Os movimentos contra a maconha são mais flexíveis em relação ao uso medicinal. Claro, com uma ressalva: o que precisa ser liberado não é a maconha, mas o tratamento a partir de uma determinada substância extraída da planta cannabis. Não é a maconha propriamente dita que será usada como tratamento medicinal, mas a substância derivada da erva. Os benefícios estão atrelados expressiva e beneficamente aos esquemas químicos, biológicos e biotécnicos.
Assim se pode atribuir bons resultados no tratamento de crianças que tem, por exemplo, convulsões sérias. Maconha? Tô limpo! Na tentativa de reinventar os métodos de prevenção do uso da maconha, um trabalho é realizado por alunos dos cursos de psicologia e jogos digitais de uma universidade particular no Paraná. A pesquisa está relacionada, há mais ou menos quatro anos, a adolescentes entre 11 e 15 anos. A partir da perspectiva de que está se prevenindo, mas sem se comunicar diretamente com o público, foi criado o jogo “Tô Limpo”. Fernando Lopes, estudante de jogos digitais e um dos idealizadores do jogo, acredita que os adolescentes, principal público consumidor da maconha “estava sendo prevenido da questão do uso de drogas apenas com palestras, mas muitas vezes as palavras não trazem resultado imediato. A verdade é que tanto está cansado se falar, como ouvir sobre as consequências da droga. O jovem já vê isso por televisão, rádio, amigos e pais”. Então a proposta do jogo é fazer com que se fale de maconha, mas de uma forma diferenciada e especificamente pensada na linguagem do jovem brasileiro: a internet e os jogos digitais. Para isso contam com pesquisas levantadas por outros cursos da universidade e aplicam os métodos a mais de 1200 pessoas. Está lançada a parceria entre educação, jogos e saúde. “O jogo ajuda diretamente adolescentes na faixa de 12 a 18 anos
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a pensar um pouco sobre a questão do uso de drogas através de uma brincadeira lúdica, que é exatamente o ambiente onde o adolescente se sente melhor e mais habituado a falar de coisa séria. É mais que um recurso, é um instrumento a mão, uma cartilha, técnica e subsídio para que professores possam ter algo de informação ao adolescente”, conclui Fernando sobre o método que acredita ser eficiente na prevenção do uso e abuso das drogas. Dizer não à erva não é apenas mostrar o lado negativo, mas mostrar como o comportamento do jovem pode ser refletido, retardar os efeitos do tráfico de drogas, assim como uma briga contra a reflexão das pessoas sobre o uso de drogas. Dizer não é tratar de questões neurológicas que alteram o pensamento, a percepção e age nas questões de efeitos a respeito das emoções de acordo com o organismo. Um simples baseado pode adulterar os sentimentos. E qualquer uso de substâncias químicas pode tirar efeitos perceptíveis de fatos que a pessoa não saberá lidar. O outro lado da moeda: libera aí! De repente o estresse do dia a dia precisa de um pouco mais de calma. De repente a vida precisa desacelerar e ser vivida como se fosse possível pausar os momentos. De repente, na calma do quarto, é preciso que uma boa música toque, que se entre em uma vibe (quase) cósmica e a fumaça do bom baseado aqueça nosso corpo e mente. As mãos vão ficando menos trêmulas, o corpo entra numa energia diferente, os olhos baixam e a respiração não é mais ofegante.
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O militante, estudante de química e usuário de maconha – sim, não há problemas! - James Kava, um dos responsáveis pela Marcha da Maconha em Curitiba, defende a importância de falar sobre esse assunto. A erva precisa entrar na roda e ser pontuada, também, através de pontos positivos. “Pois a legalização não está falando da substância, mas sim da defesa de um modelo de regularização. A proibição falhou com todos os dispositivos e premissas da proibição,
É importante que se tenha o debate em torno da maconha para o amadurecido do discurso de outras drogas. por consequência afetou diretamente na diminuição de demanda da oferta, mas, por fim, resultou numa repressão do tráfico de drogas de forma errada”, diz o estudante. A proposta do movimento em prol da marcha é de controlar e se preocupar de forma efetiva e liberal
com problemas das drogas. O que ele se propõe é a discutir que a partir dos efeitos da legalização, não será preciso traficar juntamente com outras drogas mais pesadas. Pois uma vez liberado o consumo, o mercado negro do tráfico de drogas - que não pede CPF e RG para quem já está comprando – perde forças. Então o que precisa, de fato, é ter mais controle e consciência. O Uruguai é um exemplo internacional de uma política de legalização de uma cadeia produtiva até então criminalizada. Faz só três anos que a política de legalização nesse pais está em vigência e o que se nota é que lá houve uma diminuição drástica nos números de homicídios, violência e o tráfico de drogas. O mercado compete com o tráfico, o produto consequentemente é sempre de melhor qualidade, esse mercado negro vai migrando e acaba sumindo. Tendo a opção, como é o caso do Uruguai, de plantar em casa ou designar alguém para plantar, e muitas vezes ter até uma cooperativa para poder fazer uso medicinal, resulta no controle e na compra nas farmácias. É uma política que traz três eixos de uso delas, deparando-se com uma diminuição drástica em todos os seus problemas, visto que a proibição mostrou que não funcionou e a legalização talvez funcione também como proibição. É isso que se precisa entender. Existe um preconceito muito grande em comentar sobre a maconha, principalmente em relação as outras drogas. As pessoas mal sabem que é uma planta, que já foi utilizada há muitos anos atrás, inclusive no
Brasil. As pessoas não pesquisam, por exemplo, que existia uma empresa no Brasil, chamada Lim Comany Brasil, com sede em Santa Catarina, que produziu cordões de cano e óleo, diversos outros derivados da planta e eram utilizados não apenas para fumar. Vertentes do movimento a favor do consumo livre da maconha afirmam que a proibição no Brasil é racista, e que a raiz de todo o mal está no preconceito. Relacionam o uso de drogas com delinquência e marginalidade, bem como muitas vezes com a pobreza. Ainda que não seja segredo que o usuário de drogas transita em todas as classes sociais. O que acontece é que, a partir desse modelo repressor e segregado, apenas uma parcela desses usuários é punida: o negro, pobre e favelado. E isso é retrógrado diante do desejo de uma política verdadeiramente comprometida com a saúde pública. O que o movimento pede ao marchar pelas ruas não só de Curitiba, como do país inteiro, é que se pense mais em relação a todas as drogas. É importante que se tenha o debate em torno da maconha para o amadurecido do discurso de outras drogas. Para eles, a maconha não é a grande ameaça da saúde mundial. Outro quesito é a equiparação ao álcool e ao tabaco, pois tecnicamente deveriam pertencer ao mesmo estatuto. As três são drogas, portando merecem a mesma atenção, elas devem ser legalizadas e ter controles iguais. Em outros países já existem salas de uso assistido que são nada mais
nada menos que salas de usuários que já fazem uso da cannabis de forma voluntária e independente; existem também usuários que foram contidos com a prevenção ou pela internação; aqueles que já fazem o uso frequente e que tem maneiras de reduzir os danos do uso que fazem da substância devido ao uso por muito tempo. A política de danos, de legalização, serve para todas as drogas. Um exemplo que não notamos – ou omitimos – são fatos a respeito de substâncias como o sal e o açúcar. Ambos geram danos à saúde e não existem políticas de redução de dados diante dessas duas fortes personagens à da classe das drogas não psicoativas. Uma medida interessante foi a retirada dos saleiros dos restaurantes e a regulação dos saches. Isso diminuiu muito o uso do sal e consequentemente a diminuição das pessoas em hipertensão. Assim como açúcar que era disponível em açucareiros fez com que evitasse o consumo excessivo. Os exemplos são só para ilustrar que essas políticas não estão proibindo, mas regulamentando e conscientizando para que as pessoas façam da melhor maneira possível. Quando pensamos no modelo de legalização, existem modelos muito diferenciados entre si. O modelo, por exemplo, proposto nos Estados Unidos, na cidade de Califórnia, já existe desde 1996 e prescreve na receita médica para que você possa adquirir a cannabis. Houve uma medicalização exclusiva, provando que a cannabis serve para qualquer doença e para qualquer usuário. Só assim, obtém uma legalização por vias medicinais,
um avanço para a legalização efetiva da maconha. A legalização para o tratamento abre espaço, obviamente, para outros debates necessários para a desmistificação da erva. Precisamos marchar pela maconha! “A Marcha da Maconha é uma entidade da sociedade civil organizada na forma de movimento social colaborativo e autogestionado” como os membros conceituam. A proposta de debate nas ruas começou em vários estados pelo país, mas em Curitiba, por exemplo, começou a ter uma maior visibilidade a partir dos anos de 2006 e 2007. Diferente das marchas feitas em 2001, que sofreram grandes represálias, sendo proibidos de marchar, e limitados a um único local, no centro da cidade, na Boca Maldita. Isso é um avanço para políticas públicas no Brasil, visto que a substância não é legalizada, mas o debate é necessário. Em torno desse assunto temos a legalidade da Marcha que, após longos processos de violências, sofreu durante um longo período. Agora temos também um xeque-mate na política de drogas, que talvez seja o recurso 635.569 que está no STF (Supremo Tribunal Federal), com Teori Vaz, que está trabalhando na operação Lava Jato, deixando assim o assunto um pouco de lado. Talvez voltem no final de ano ou no máximo no começo do ano que vem. Esse discurso no legislativo é capaz de definir diretrizes importantes para, por exemplo, um grande questionamento como a quantidade de maconha que distingue o indivíduo de usuário e traficante.
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SARAH MENEZES
Foto: Gabrielly Domingues.
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A busca por felicidade nos ofícios que a vida adulta impõe.
“Eu acho que sou muito imatura pra escolher a profissão que vai sustentar meus filhos, minha família. Se eu fizer uma escolha errada agora, ela vai refletir nos outros, sabe?” Mariah Endres tem 16 anos. Pra ela, outubro não é mais o mês do dia das crianças, e o segundo semestre não significa a chegada das férias ou do Natal. Para a menina, esse é um momento chamado: “escolher o que eu vou fazer para o resto da minha vida. “Eu gosto de Engenharia de Produção” conta a estudante, “mas nunca tive um contato profundo com isso. Eu gosto daquilo que li nos sites das Universidades, mas não é o suficiente pra escolher se é o que eu quero pra minha vida.” Mariah está no terceiro ano do Ensino Médio, e deve decidir logo o rumo da sua vida profissional. O problema é que, como a menina mesmo conta, a fase ainda é de bastante imaturidade. Ana Elisa Marchesan também terminou a escola com 16 anos. Assim como Mariah, ela precisou escolher a profissão durante o último ano do Ensino Médio. O caminho escolhido também foi parecido com o que Mariah pretende ir: Engenharia de Controle e Automação. Foi aprovada na Universidade Federal de Santa Maria logo na primeira tentativa, e começou o curso depois do término da vida escolar. Hoje, com 22 anos, Ana está formada em Engenharia. Segundo ela, começar a faculdade tão cedo não é tão bom assim. “Foram pouquíssimos os semestres que passei sem nenhuma final. Não estava acostumada com as exigências da faculdade. Meus professores e co-
legas eram muito inteligentes, e eu tinha que aprender muita coisa sozinha, em casa.” Ana conta que teria aproveitado a faculdade muito mais se tivesse cursado em um momento mais maduro da vida. Hoje, a engenheira percebe que a pouca idade acaba afetando bastante o rendimento de quem entra na Universidade logo depois de terminar a escola. “Eu tinha muito medo de não aprender direito uma coisa, e depois ser cobrada disso na vida profissional”, conta Ana. Hoje, ela afirma que, sem o apoio dos amigos e colegas, talvez não tivesse conseguido concluir o curso. Nem todo mundo acerta de primeira. Acsa Cristina passou por uma experiência diferente de Ana Elisa. Também terminou a escola aos 16 anos e prestou vestibular na Universidade Federal de Santa Maria. Escolheu Engenharia Mecatrônica e Medicina, mas na hora da redação “fui pra Engenharia porque não ia alcançar o ponto de corte de Medicina”, conta a menina. Depois do primeiro semestre, a estudante percebeu que não bastava apenas gostar de fazer cálculos e física para cursar Engenharia. “Peguei um trauma de física. A escola não prepara a gente para as matérias da faculdade. Larguei antes de o primeiro semestre terminar.” Acsa conta que trancar o curso não foi fácil. Segundo ela, o medo é baseado em “não saber o que a gente quer”. Meses depois, a menina prestou vestibular mais uma vez, e desta, para Produção Editorial, mas não chegou a cursar. Hoje, Acsa está no terceiro ano de Teologia. No momento, a menina está na Índia, em uma experiência com Missões.
“É muito bom ver que é isso mesmo que eu quero pra minha vida. Levou muito tempo pra perceber o que eu gostava ou não de fazer.” A estudante conta que é muito difícil sair da escola já convicto do que se quer fazer para o resto da vida. Segundo ela, as experiências vividas – inclusive as desistências -, foram essenciais para construir a certeza de que hoje ela está no lugar certo. O psicólogo Ivo Carraro afirma que alcançar a felicidade na vida profissional depende de conciliar inteligências. “Ninguém nasce inteligente”, conta Carraro, “a gente desenvolve inteligências no decorrer da vida.” Ele afirma que pessoas com habilidades em linguística, por exemplo, devem procurar profissões como Jornalismo, Direito ou até mesmo Pedagogia. Ao conciliar as inteligências desenvolvidas com uma profissão de sucesso, segundo Carraro, é possível alcançar a felicidade na profissão escolhida. Davi Nogueira tem uma história um pouco mais peculiar. No caso dele, a profissão não foi uma escolha. “A gente não escolhe ser pastor. A gente se percebe sendo, no decorrer da vida.” Davi tem 37 anos, e é natural do interior de Minas Gerais. Há três anos, é pastor ordenado pela Igreja Presbiteriana do Brasil. Entretanto, ele conta que “vem sendo pastor” há cerca de dez anos. Davi jogava vôlei profissionalmente quando, por causa de um acidente, ficou com o joelho e a profissão comprometidos. Foi em uma viagem missionária que começou a fazer algumas artes gráficas para ajudar na igreja. Passou a trabalhar como desig-
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ner, até que sua família na fé ficou sem pastor. Foi convidado para pastorear cerca de cem pessoas, mesmo não sendo um pastor propriamente dito. “Foi a partir daquele contato com a igreja que eu fui percebendo: eu era pastor”, conta Davi. Em 2010, surgiu a oportunidade de estudar Teologia. “Eu me vi diante do momento de poder largar tudo e finalmente dar vida pra algo que não cabia mais dentro de mim. Não teve pesar algum, mas pelo contrário. Eu amava o que eu fazia antes. Mas a coisa é maior do que a gente. Minha paixão por Design foi suplantada pela alegria de ser pastor.” “Se a pessoa descobre que não é aquilo, que caminho ela deve seguir? Que siga a profissão que esteja de acordo com a sua inteligência”, conta o psicólogo Ivo Carraro. Uma pesquisa do Linkedin aponta que 39% dos brasileiros mudam de carreira no decorrer da vida. É uma busca constante por felicidade e satisfação – mesmo nas segundas nubladas e frias, quando dá aquela preguiça de ir trabalhar. Há quem diga que “se você fizer o que realmente gosta, nunca vai precisar trabalhar.” Mas Janete Borges, de 37 anos, não queria fugir da obrigação de trabalhar. Ela só queria ser mais feliz. “Eu sempre gostei de fazer bolos, mas nunca imaginei que isso fosse virar o meu sustento”, conta Janete. Natural de Curitiba, ela trabalhou como analista financeira de uma grande multinacional durante treze anos. Durante as férias, Janete começou a fazer bolos para os amigos. Quando voltou ao trabalho, a empresa iniciou
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um processo de demissão facultativa. “Foi o empurrãozinho que eu precisava. Já há algum tempo eu pensava em fazer algo que eu gostasse muito.” A boleira conta que almejava a sensação de estar cansada e com olheiras, mas fazendo algo com amor e carinho. E foi fazendo bolos, que Janete encontrou esse sentimento de realização profissional. “Às vezes eu penso “poxa, aquele salário não cai mais”. Mas você batalhar por uma coisa que você gosta de fazer é totalmente diferente. É outro gás que você tem.” Janete começou a fazer os bolos sozinha, e hoje conta com a ajuda da mãe em situações de muitas encomendas. Ela mesma quem fez a logo da Boleria, pensou as embalagens e métodos de propaganda. Através de uma página no Facebook, ela alcança novos clientes e atualiza os que já tem a respeito das novidades. Hoje, no Brasil, segundo o IBGE, cerca de 11 milhões de pessoas estão desempregadas. As vagas para estágios e trainees estão cada vez mais raras. Por consequência, os jovens têm se formado e se deparado com um mercado de trabalho “fechado”. “Quando a gente acredita, a gente vê possibilidade”, conta o pastor Davi. “A gente vê a realidade por trás daquilo que está se construindo ainda. É preciso coragem para ir atrás daquilo que você acredita que define você.” Davi conta que o pastor está em constante contato com desgraças, gente morrendo, casais se separando, pessoas doentes, e que isso coloca em cheque o rumo que a vida dele tomou. “Às vezes eu penso o que aconteceria se eu voltasse atrás no Design. Mas, não.
Não sou eu mais.” Experiência e autoconhecimento foram fatores decisivos para que quase todas as histórias reportadas tenham alcançado o sucesso desejado. A única que ainda não alcançou foi Mariah, que está no primeiro degrau da escada. No Brasil, histórias de coragem não são muito comuns. Costumamos ouvir que fulano é médico porque o pai mandou ou advogado porque o avô quis. Aqui, fazer faculdade é visto como se fosse a porta de entrada para o sucesso. E assim, as possibilidades são, muitas vezes, diminuídas ao tamanho de quatro ou cinco anos de cursos que focam em apenas uma área específica. Formam-se profissionais frustrados e cidadãos que precisam “desistir” para então irem atrás de uma carreira que realmente lhes satisfaça, traga felicidade e sensação de pertencimento. Assim, ao fim de todos os anos, milhares de jovens encontram-se na mesma situação que Mariah: precisando escolher um caminho entre dezenas, que “vai ser pro resto da vida”. Enquanto as oportunidades de felicidade forem diminuídas a um único ofício para a vida inteira a ser escolhido aos 16 anos; o advogado vai ser desonesto, o político vai ser corrupto, o professor vai aplicar a mesma prova, o aluno vai colar e os profissionais serão cada vez mais medíocres. É preciso direcionamento profissional logo na escola com pequenas amostras do que é a vida real das profissões almejadas pelos estudantes. É necessário compreender que a vida profissional vai além de bater-ponto: é o lugar do cidadão na sociedade.