Até que ponto há
SEGURANÇA NA REDE?
Acreditamos estar seguros na internet até o momento em que algo DE ESTRANHO acontece. conheça o lado não tão confiável assim da rede que nos conecta virtualmente
DEPRESSÃO: A DOENÇA QUE SÓ AUMENTA DEVE SE TORNAR A MAIS POPULAR NO MUNDO EM 2020, SUPERANDO O CÂNCER
MATERNIDADE NATURAL: A HISTÓRIA DE PAIS QUE OPTARAM PELO PARTO HUMANIZADO DENTRO DE CASA
NETFLIX MUDA A TRADIÇÃO DE VER TV. A ESCOLHA DA PROGRAMAÇÃO AGORA É TOTALMENTE SUA
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PAIS E MÃES SEM DOCES E FRESCURAS
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O RÁDIO E O FUTURO
Ser mãe e pai ao mesmo tempo não é uma tarefa muito doce, mas é com certeza deliciosa
Veículo já foi condenado à morte inúmeras vezes; no entanto, é o meio que mais se mantém necessário com tanta informação à disposição
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INCLUSÃO OU ILUSÃO?
COCAÍNA: A DROGA PERFORMÁTICA
Será que a intergração de pessoas com deficiência Um dos motivos que leva ao vício da cocaína é a dentro do ambiente acadêmico tem acontecido sensação de bem-estar, causa pelos neutotransde forma satisfatória? missores da droga: a dopamina e a noradrenalina
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COMO, QUANDO E ONDE VER TV: A DECISÃO AGORA É SUA 27
GRAVIDEZ NA ADOLESCÊNCIA: NÚMEROS AINDA PREOCUPAM
A expansão da TV sob demanda reflete uma mu- Ao todo são 7,3 milhões de adolescentes grávidas dança significativa na maneira de consumir televi- no mundo. Entre elas, dois milhões têm menos de são, com a possibilidade de o telespectador criar 15 anos programação personalizada
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O UNIVERSO DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Atualmente, os filmes de super-heróis são alguns dos mais lucrativos da história do cinema
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AS SOBREVIVENTES DA FALTA DE INFORMAÇÃO
A história de pessoas que descobriram estar com trombose cerebral - mas mal sabiam do que se tratava a doença
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EU ACHEI QUE ESTAVA SEGURO
A sociedade está cada vez mais conectada e digital, mas não prestamos atenção na nossa segurança. Isto é, até alguém invadir nossas contas
43 ESPERANÇA NAS RUAS A história de um grupo de voluntários que ajuda moradores em situação de rua
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O MAL DO SÉCULO É A SOLIDÃO DEPRESSÃO
Já somos o terceiro país no mundo com o maior número de pessoas com depressão. E a previsão para os próximos anos não são nem um pouco animadoras
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A VANGUARDA DE OLÍVIA
SEGUROS? Exatamente no dia em que é lançada a última Entrelinha de 2015, o aplicativo Whatsapp está bloqueado pela justiça brasileira por 48 horas. O processo que culminou nesse bloqueio corre em sigilo de justiça e não há certeza sobre seu teor: se o aplicativo foi proibido por ser utilizado para fins ilícitos (pedofilia, pirataria, tráfico etc.) ou se é alguma jogada de operadoras que perderam cada vez mais espaço para o conversador instantâneo e gratuito. Independente do motivo, a gritaria tem sido grande. Essa reação não só se deve ao aplicativo bloqueado, mas especialmente à nossa evidente dependência da internet. Tudo pode ser feito por meio da rede e muito de nossas vidas está, hoje, nesse limbo que é o ambiente virtual. Em meio a isso tudo, está nossa segurança. Até que ponto estamos realmente seguros ao compartilhar dados os mais diversos na rede? A matéria de capa traz essa questão a partir de uma conversa inusitada com um professor de dados. Além desse tema, também estão presentes assuntos relacionados à gravidez na adolescência, a perigosa trombose cerebral em mulheres jovens, depressão, parto humanizado e o crescimento do uso de cocaína.
Os desafios e o preconceito enfrentado por quem A Entrelinha é uma produção do curso de Jornalismo opta por realizar o parto humanizado
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da Universidade Positivo e é elaborada a partir de reportagens produzidas em disciplinas curriculares.
O MOÇO E O VELHO
A história dos dois bares mais antigos de Curitiba
Boa leitura e boas festas!
Expediente Reitor
Coordenadora do curso de jornalismo
José Pio Martins
Maria Zaclis Veiga Ferreira
pró-reitor administrativo
professora-orientadora
Arno Antonio Gnoatto
Ana Paula Mira
pró-reitor ACADÊMICO Carlos Longo
coordenação de projeto gráfico Hendryo André
diretor da escola de com. e negócios
DiagramaÇÃO
Rogério Mainardes
Karina Sonaglio
EDITORa Ana Paula Mira
EDITORIAL Da Redação
FOTO DA CAPA Victor Lovato
Reportagem
AMANDA OLIVEIRA
PAIS e mães,
sem doces E fresCURAS Ser mãe e pai ao mesmo tempo não é uma tarefa muito doce, mas é com certeza deliciosa
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Antes de começar a contar história, essa reportagem não vai revelar os nomes dos seus entrevistados, pois muitos não querem ser, ou não podem se revelar, devido a situações jurídicas. Entre 1992 e 1999, foi possível constatar um crescimento de famílias com mulheres sem cônjuges e com filhos no Brasil. Segundos dados do IBGE, na época, a região Norte tinha maior pontuação com 20,4% de famílias, em 1999. Em segundo lugar, no mesmo ano, estavam Nordeste e a região Sudeste. Em 1992, esses dados eram de 18,6% no Norte, para, 16,5% no Nordeste e 15% no Sudeste, como mostra o gráfico abaixo.
alguém tem que impor limites, alguém tem que dizer não pra algumas coisas, e eu sou a pessoa que mais faz isso’’, relatou D. M., mãe do Felipe, de 5 anos. Assumir essas duas funções ao mesmo tempo pode resultar em um desequilíbrio de identidade, como comenta L.M. “Eu sou aquela que corrige e incentiva, que faz janta e acompanha no Muay Thai. Sou eu quem vai incentivar a Valentina a cuidar se si mesma, fazer maquiagem, cuidar da beleza, e também quem vai “espantar” os garotos que quiserem se aproximar dela antes do tempo como geralmente os pais fazem’’, brincou. Mas isso também tem a ver como as crianças interpretam A decisão de ser pais e mães ao e têm relação com isso. ‘’Não sei como é mesmo tempo não é uma tarefa fácil, para eles terem a parte dócil e enérgica mas, muitas vezes, necessária. ‘’ Às ve- na mesma pessoa”, confessa L.M. Tanto elas, quanto eles acabam nezes é realmente se sentir duas pessoas em uma só’’, brinca L.M.. A jornalista, de cessitando conciliar a dupla função de ser 29 anos, nasceu em Presidente Pudente mãe e pai. “Tudo sou eu que faço”, de(SP), mas, também, fez magistério e diz sabafou L.R., pai do Thomaz, de 5 anos. que isso ajuda na educação dos seus fi- ‘’O meu maior problema são os mesmos lhos: Douglas, de 14 anos, e Valentina, de das mães solteiras, que é não poder divi1 ano e 3 meses. L. M. escolheu assumir dir com alguém os trabalhos domésticos a função de mãe e pai ao mesmo tempo. e familiares’’, comentou. ‘’Eu faço tudo Como acontece com ela, existem vá- sozinho, pois não tenho empregada. rios pais e mães com essa dupla função.” Lavo, cozinho, limpo a casa, dou banho Tenho respeito de um pai e sou amiga nele, escovo os dentes com ele, levo no O IBGE divulgou também dados de como mãe’’ comenta V. G., que é a mãe médico quando precisa, entre outras ati1981 a 2001. Já naquela época, ocorria da Eduarda, de 12 anos, e da Fernanda, vidades’’, explicou L.R. O P.S., que é pai um crescimento de famílias com mulhe- de 14 anos.” Alguém tem que assumir, de dois adolescentes, comenta que passa res sendo referência no comando das famílias. Segundo os dados, em 1981, eram 16,9%, e em 2001, a pontuação chegou a 27,3%. Com isso, entende-se que as famílias diferentes, em que a função maternal e paternal é imposta para uma pessoa apenas, não são um fenômeno recente.
Entrelinha | JORNALISMO UP
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pela mesma situação, mas tenta sempre resolver na base do diálogo. ‘’ A função da mãe está ligada ao afeto, carinho e o ambiente. O lado do pai é mais aquele que corre atrás, estabelece regras e organiza o ritmo da rotina. Sempre fazendo eles entenderem a importância das coisas. Mas tudo é sempre resolvido na base do diálogo‘’, comentou P.S. Dificuldades Além das dificuldades de assumir os dois papéis, para muitas famílias, sejam elas famílias de um chefe só, separadas, distantes, mães jovens, famílias do coração, entre outras situações, os obstáculos a serem superados são muitos. ‘’ Educar e sustentar sozinha uma família não é fácil. Quando tem o pai e mãe as despesas são divididas e as possibilidades de você dar o melhor para o seu filho são maiores. Ter que arcar com as despesas sozinha e ainda mais quando você não tem uma formação escolar para lhe ajudar, e quando você tem que começar do zero carregando suas responsabilidades junto contigo, não é nada fácil’’, desabafou V.G. Outro obstáculo a ser superado é o ‘’desequilíbrio natural’’, como a L.M. comenta. ‘’Acho que em relação às tarefas domésticas ou aos compromissos, a gente até dá conta, porque eu acho que mulher tem essa coisa de arregaçar as mangas e encarar as realidades com coragem. Mas a questão da convivência com a paternidade também é um aprendizado constante. Essa coisa de se relacionar de maneira diferente com quem você teve um relacionamento um dia que não deu certo é um desafio. Se os pais não estão juntos é porque em algum momento se decidiu por isso, e de repente é preciso manter uma relação saudável, respeitosa, que dê aos filhos a maior segurança possível, que não os prive de uma convivência paternal bacana. É um desafio que traz à tona muitas qualidades em nós, e tudo vai depender da maneira com que vamos decidir lidar com as situações’’, relatou L.M. Como as mães precisam aprender mais sobre a função paternal, os pais necessitam desenvolver suas funções maternais, e abrir mão de muita coisa. ‘’Eu tive que aprender muita coisa, como fazer penteados e cuidados principalmente
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com minha menina. Mas já estou craque’’, brincou L.A. de 32 anos, que nasceu em Barracão – PR, e hoje mora em São João Batista – SC com seus dois filhos Antoni Gabriel, de 4 anos, e Cauani Gabrielli, de 7 anos. Segundo ele, a internet ajudou bastante na hora de aprender. Mas, mesmo conseguindo assumir os papéis de mãe e pai, muitos precisam de ajuda. ‘’Meus pais me ajudam muito e, até terminar minha casa, moro com eles. A babá, contratei para cuidar deles na parte da manhã, porque tenho que trabalhar’’ explicou L.A. Para D.M., na época em que morava em Jacarezinho –PR, com seus avós, eles acabavam dando um apoio. ‘’ Meus avós me ajudaram muito na questão de me darem casa pra morar, comida, roupa limpa. Mas o dinheiro era comigo, e eu fazia faculdade em período integral, então eu não tinha como arrumar um emprego’’ disse D.M. Somente no último ano de faculdade que ela conseguiu uma renda extra. ‘’Comecei a fazer drenagem linfática na casa das pessoas pra levantar um dinheirinho e fazer alguns atendimentos fisioterapêuticos nas casas de pessoas conhecidas’’, comentou D.M. Porém, nessa época, o pai do Felipe morava em outra cidade. ‘’Quando o Felipe nasceu, a situação era inversa, o pai estudava em Londrina (PR) e permaneceu lá durante os primeiros cinco anos de vida dele. O Felipe só via o pai aos fins de se-
mana’’ disse. Para D.M. foi difícil namorar a distância na época, sem que ela se chateasse ‘’quase sempre’’, como comentou.‘’Diversas vezes eu me senti perdida e sozinha nessa missão, e cheguei até a entrar em pânico algumas vezes, por não saber o que fazer, pra onde correr e pra quem recorrer’’, desabafou. Além disso, no tempo que morou em Jacarezinho, D.M. precisou lidar com a mãe do seu namorado na época, mesmo que ela a ajudasse bastante. ‘’A maior dificuldade era entrar em consenso com a minha ex-sogra, que queria se impor sobre vários assuntos e tomar decisões sem me pedir opinião. Ela queria tomar partido de várias coisas, como escolher a roupa, levar pra passear só com ela, arrumá-lo pra alguma festa ou ocasião especial, levá-lo pra dormir na cama dela. Até parecia que rolava uma disputa, onde ela queria parecer que era mãe do meu filho’’, revelou D.M. No começo, ela disse que deixava, pois precisava dar conta da faculdade que era integral, mas, com o tempo, percebeu essa rivalidade, e que isso também prejudicou ainda mais no seu relacionamento na época com o pai do Felipe, e aumentou logo depois do término deles. ‘’Isso tudo só gerou mais conflito e acabou separando tudo de vez’’, confessou. Atualmente, ela mora em outra cidade. ‘’Tomei a decisão de vir morar em Curitiba para estudar e tentar alavancar
minha carreira profissional, já que em Jacarezinho eu não teria muitas oportunidades por ser uma cidade muito pequena. Hoje, eu costumo ir para Jacarezinho de dois a três fins de semana por mês e o Felipe vem às vezes para Curitiba passar as férias comigo’’ explicou D.M. Mas ela acha complicado manter a educação a distância. ‘’O fato de estar longe, e não poder fazer as coisas do jeito que eu gostaria, e ver coisas que acontecem do jeito que eu não queria, não é fácil‘’ revelou. Para D.M. além de morar longe do filho, a divergência de informação e opinião pode causar uma confusão na cabeça do Felipe. ‘’Lá na casa do pai tem coisas que deixam ele fazer e que em casa eu não deixo, por exemplo, minha ex-sogra dá mamadeira pra ele até hoje, e em casa isso não existe faz muito tempo’’, comentou. Ela acredita que isso pode contribuir para a criação de duas personalidades diferentes: uma na casa do pai e outra na casa dela . ‘’O pai dele tem mania de fazer brincadeiras tontas e ensinar coisas que ainda não devem ser ensinadas, e aí quando eu chego, tenho que fazer o papel de chata, corrigir e dizer que ele não pode fazer isso, ou dizer aquilo’’, falou. Mesmo que, segundo D.M., isso não seja culpa do seu filho, ela se sente na obrigação de falar e acabar assumindo a função paternal. ‘’Preciso mostrar que é errado e que ele não deve mais fazer certas coisas’’ explicou D.M. Além disso, depois que se separou do pai do Felipe, D.M. percebe que seu filho sente falta dos dois reunidos. ‘’Às vezes ele diz que gostaria de sair pra comer uma pizza comigo e com o pai, ou pergunta o motivo de eu não ir mais na casa do pai dele, ou convida o pai dele pra ir na minha casa lá em Jacarezinho quando eu estou lá’’, comentou. ‘’Mesmo sendo triste ver ele querendo que as coisas sejam como já foram tempos atrás, de ambos os lados ele ganha muito amor e atenção e já se acostumou com essa situação’’, revela D.M. Já para V.G, mãe da Eduarda e da Fernanda, foi complicado na época quando descobriu que iria ser mãe aos 14 anos de idade. ‘’No meu caso, eu não tinha nada além das meninas, porque morava com meu pai e minha madrasta e uma meia
irmã. Eu não tomava as decisões, no meu caso eu só aceitava o que meu pai e minha madrasta achavam que era o melhor fazer’’, desabafou V.G. Ela também sofreu como D.M. com a falta de independência para tomar as decisões. ‘’Eu dependia do meu pai e da minha madrasta. Era muito difícil me impor, ainda mais por eu ser uma criança que não sabia lidar com duas crianças sozinha. Eu acabava confundindo muita coisa, ficava triste com os privilégios que minha irmã tinha.
{ } Para muitas famílias os obstáculos a serem superados são muitos
Naquela época não caía a ficha que minha irmã era filha única da minha madrasta e que eu era a enteada morando na casa dela com dois bebês’’, revelou. ‘’Quando eu cresci mentalmente é que percebi muitas coisas, principalmente que eu era mãe e pai e que tinha que me comportar como tal’’ comentou. Além disso, ela teve que lidar com os olhares de reprovação das pessoas. ‘’Aos olhos de muita gente como família, amigos e conhecidos, eu era mais uma menina que iria ter uma penca de filhos. Muitos comentavam e olhavam pra mim dessa forma, como mais uma menina perdida. Muitas vezes essas pessoas quase conseguiram me fazer desistir, mas, graças às minhas filhas, eu persisti’’ revelou. No caso do L.R., pai do Thomaz, o mais complicado é a rotina exaustiva. ‘’Minha vida é cansativa enquanto pai que faz tudo sozinho. Ele vai para a casa da mãe aos fins de semana e por isso é só nesses dias que consigo fazer as coisas pra mim: dormir até mais tarde, ir no cinema, sair com amigos. Então, não tenho muito espaço para descansar ou higienizar a mente dos trabalhos, tanto domésticos quanto profissionais’’, comentou L.R. Rotina e guardas A escolha de se encarregar de ser mãe e pai ao mesmo tempo traz várias consequências e mudanças. Uma delas, principalmente com casais que se sepa-
ram, é sobre a guarda das crianças. ‘’Após seis anos casado com M. P. decidimos nos separar em setembro de 2012 e ela ficou com a guarda das crianças ‘’, comentou L.A. Como sempre acompanhava a rotina das crianças, e percebia uma falta de atenção por parte da mãe, L.A. recorreu à guarda dos seus filhos. ‘’Ela era muito descuidada com as crianças, mais na parte de remédios que meu menino tinha baixa imunidade e anemia de proteínas’’, disse L.A. Mas a necessidade de recorrer judicialmente aumentou quando sua ex-mulher quis mudar de cidade e levar as crianças. ‘’Em dezembro ela veio e me disse que iria embora para Curitiba, porque tinha conhecido uma pessoa pela internet e iria embora levando as crianças, sem ter parente algum ou conhecidos em Curitiba . Depois disso, decidi entrar com medida cautelar urgente junto ao fórum. Juntando provas e testemunhas, consegui a guarda deles’’ explicou L.A. Quando conseguiu a guarda dos seus filhos, houve uma grande mudança na vida de L.A. ‘’Houve uma mudança total em minha vida. Cheguei a perder emprego por estar com eles doente às vezes. Uma semana era o menino e na outra a menina, aí era consulta, exames, e os patrões não entendiam que era eu que tinha que cuidar das crianças, mesmo que minha mãe me ajudasse bastante’’, revelou L.A. Como ele pagava aluguel, precisou até vender seu carro e comprar um terreno, para estruturar melhor seus filhos. ‘’Trouxe meus pais pra morar comigo também. Então, reforcei a estrutura da casa e estou há dois anos construindo minha casa no andar de cima pra poder dar mais conforto para meus filhos. Acho que até o fim de ano consigo terminar’’, falou L.A. otimista. Além das mudanças na estrutura da casa, L.A. teve que lidar com outras dificuldades. ‘’Depois de um tempo fui ficar sabendo que quem minha ex-mulher iria conhecer em Curitiba era outra mulher. Não tenho preconceito algum. Ela se assumiu e hoje voltou a morar aqui. O pai dela teve até que mandar dinheiro pra ela poder voltar embora, imagina se tivesse com as crianças’’, revelou L.A. Ao descobrir a homossexualidade da ex-mulher, L.A precisa, também, explicar sobre esse
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assunto para seus filhos. ‘’Hoje tenho que explicar para meus filhos que a mãe é homossexual, mas tento evitar um pouco esse assunto, pois são muito novos ainda e tem muita coisa que não entendem’’, explicou. A rotina de L.A mudou bastante ao conquistar a guarda das crianças e assumir a função de mãe e pai. ‘’ Acordamos seis horas da manhã. Arrumo eles, escovo os dentes, tomamos café e deixo em uma babá que confio e de quem ele gostam também’’ disse L.A. Segundo ele, é bem corrido, principalmente a hora do almoço. ‘’O meio-dia é bem corrido, porque depois, uma hora da tarde, deixo eles na escola e volto ao trabalho. Às cinco da tarde pego eles na escola, e à noite dou banho, comida e muitas vezes eles adormecem na sala mesmo. Mas, quando estão acordados, levo para cama, e eles me pedem para ler uma historinha e rezar com eles”, comentou L.A. Quando não seguem essa rotina, L.A. comenta que eles às vezes saem para andar de bicicleta, se a previsão do tempo ajuda, ou eles ficam em casa. “Quando está frio ficamos em casa assistindo ou jogando. Eles não perdem as Chiquititas e Carrossel”, brincou L.A. Porém, existem várias outras histórias diferentes. A.K., de 27 anos, mãe de Haru de 6 anos, comentou que, mesmo longe do pai da sua filha, ele sempre a ajudava a cuidar dela. “Eu não estava com meu ex-marido, mas ele era pai mesmo assim. Sempre cuidou dela. Eu sempre precisei dele para educar a Haru”, comentou A.K. Para ela, a situação foi diferente, pois a separação foi decidida “na boa, sem traumas’’, como comentou. Já para F.V., que é mãe do Gabriel de 5 anos, ela não pode se comprometer com nada, pois está passando por “vigias” em tudo, já que está aguardando sobre a guarda do seu filho. “Não posso falar nada, pois isso pode ser usado no julgamento”, explicou F.V. Para L.R. pai do Thomaz, a situação é outra, já que tem a guarda do filho. “Minha família sou eu, meu filho Thomaz, e meu labrador Guimba”, brincou. Mas, para conquistar essa guarda, não foi tão simples. “Tive uma briga jurídica com a mãe dele pela guarda e por isso, evitava ao máximo falar dos meus problemas, ainda mais no meu blog, para não dar motivos negativos contra mim. Mas já chegamos
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banho enquanto seu filho faz companhia para a Valentina. Para ela, é importante essa independência do filho, pois ajuda bastante. Além disso, o Douglas pratica esportes, e eles fazem parte de uma igreja, o que interfere na rotina. “Ele tem atividades durante a tarde e, algumas vezes, a noite e aos sábados ele tem cursos e esportes. Além disso, participamos de um grupo de célula na teça-feira à noite e dos cultos nos fins de semana”, comentou L.M. Já, para D.M. participar dessa rotina diária do seu filho é complicado devido à distância. “O Felipe mora em Jacarezinho com o pai, porém passa o dia todo na minha casa, com meus avós. Minha avó ou meu avô buscam ele no colégio, ele almoça em casa, faz a tarefa, toma banho e no fim da tarde o meu avô o leva até a casa do pai dele, ou então o pai ou minha ex-sogra passam em casa para pegá-lo, e no dia seguinte o levam pra escola de manhã, e assim por diante”, comentou. Isso acontece desde que D.M. decidiu morar em Curitiba. Mas, independente de distância, ou da guarda dos filhos, é importante con“MAS JÁ CHEGAMOS A seguir conciliar as duas funções. E isso, não é uma tarefa nada fácil. “Tem que UM ACORDO E DESDE haver mais do que organização, tem que ENTÃO ELE (FILHO) VIVE dar dedicação, pois eu posso passar fome COMIGO” por algum tempo, por preguiça ou outra “Meu dia na verdade começa na noite an- ocupação a fazer. Mas meu filho não. Ele terior. Antes de dormir preciso arrumar a tem que comer no horário dele, tem que bolsa da Valentina para a escolinha e dei- tomar banho e sou eu quem tenho que xar preparado o que será o almoço do dia controlar isso, além de escovar os dentes, seguinte, só para o meu filho colocar no fazer trabalhos, programar alguma ativimicro-ondas e almoçar quando voltar da dade com ele, como pintar, brincar de escola. Acordamos antes das 7 da manhã, quebra-cabeça, entre outras coisas lúdiarrumo a Valentina e me arrumo, levo ela cas’’, comentou L.R. Segundo ele, o tempara o CMEI e de lá vou trabalhar. Meu po que sobrar depois de tudo isso, é para filho de 14 também acorda cedo, toma ele. “O que sobrar é para mim, quando café da manhã e vai para a escola”, co- sobra”, brincou. menta. Segundo ela, as escolas são perto O lado bom de casa, o que facilita bastante. “A escoApesar de mudanças na rotina, falta lha das escolas foi decisiva na escolha do apartamento também’’, disse L.M. Sem de tempo para cuidar só de você, difiter carteira de motorista, depende do culdades de administrar as duas funções transporte público para de locomover em uma pessoa só, ser chefe de uma com seus filhos. “Quando volto do tra- família diferente tem suas vantagens. balho desço do ônibus próximo ao CMEI “Hoje eu vejo que consegui ser os dois da Valentina, pego ela e então vou para a ao mesmo tempo. O amor e a admiracasa’’ explicou. Ao chegar em casa, L.M. ção das duas por mim não tem preço. Elas comenta que dá banho na sua filha, e vai perguntam sobre tudo para mim. Me ajufazer a janta. Depois disso, ela vai tomar dam, me dão força. O olhar delas por mim a um acordo e desde então ele vive comigo’’, explicou. Como moram juntos, a rotina dos dois é complicada, igual à das outras famílias. ‘’Ele estuda de manhã, na escola que eu trabalho. Por isso, todo dia acordamos cedo para ir pra escola, mesmo nos dias que não trabalho lá. Alguns dias ele fica no integral, pois são os dias em que leciono à tarde. Nos dias em que ele sai ao meio-dia, vamos pra casa e, depois de almoçarmos, às terças e quintas, levo ele na natação e no futebol. No fim do dia, fazemos os trabalhinhos da escola e essas coisas”, relatou L.R. Mas, mesmo conquistando a guarda do seu filho, e superando os obstáculos diariamente, L.R. confessa; “Minha bandeira é a valorização da paternidade, mostrar que existem pais capazes de cuidar de uma criança e, assim, acabar com a enorme desigualdade que aflige tantos pais na hora de lutarem por seus filhos, pelo acesso a eles, que já é mais facilitado agora com a lei da guarda compartilhada, mas, mesmo assim, muito negativa aos pais”, desabafou. Como ele, L.M. leva uma rotina excessiva com seus filhos.
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e sua admiração é maravilhoso. Quando olho para trás, e vejo que consegui, que a sociedade preconceituosa não me venceu e de que tinha gente ao meu lado, fico feliz’’ desabafou V.G. Para L.A. essa felicidade refletida no rosto dos seus filhos já é suficiente, mesmo não sendo nada fácil ainda. ‘’ Hoje com eles junto comigo sei que não tem sido muito fácil, mas me faz muito bem ver eles sorrindo’’ confessou. A parceria e a superação fazem parte dessas famílias. Mas isso é uma motivação para esses super pais e mães ao mesmo tempo. ‘’ É uma motivação bem prazerosa’’, comentou L.M. Segundo ela, isso tem a a ver com a relação que ela cultiva junto com seus filhos. ‘’ Eles são meus melhores amigos. Fazemos tudo junto”, disse. Por isso, para ela tudo está relacionado à harmonia do lar, à criação deles para uma ideia de família, que dessa forma, os incentive a planejar bem futuramente a sua família. “Eles estão sentindo o que é esse desequilíbrio, eles vivenciam comigo as maiores dificuldades, sabem o que é ver uma mãe se desdobrando diariamente, então eu busco usar as nossas experiências, não para reclamar da vida ou algo assim, mas para motivá-los a buscar algo ideal, no tempo certo, da melhor maneira que eles puderem’’ revelou L.M. Ela sabe que para seus filhos, a maior referência é a ela, por isso cuida para saber o que está passando para eles. Já, V.G. mesmo se arrependendo de algumas coisas do seu passado, supera tudo o lado das suas filhas. ‘’Hoje conquistei minha casa, tenho um excelente emprego não posso negar. Posso me arrepender de quase tudo no meu passado, principalmente de não ter escutado meu pai, minha madrasta, e minha mãe, mas de uma coisa que eu não abriria mão é das minhas duas filhas, pois elas me fizeram o que eu sou hoje. Com elas me tornei uma mãe dedicada, sempre querendo o melhor para cada uma”, comentou V.G. A experiência de vida de viver e conviver em uma família ‘’ diferente’’ do padrão importo pela sociedade de “pai + mãe + filho’’ sugere novas formas de viver, sem deixar de lado a união, parceira e companheirismo. “Muitas vezes ter uma família diferente te faz dar muito valor a ideia de família e a repassar esses valores para os filhos’’ relatou L.M. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
BRUNA KARAS
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Será que a integração de pessoas com deficiência dentro do ambiente acadêmico tem acontecido de forma satisfatória?
Bianca tem 22 anos, é publicitária e cursa MBA em marketing. Ela nasceu em Curitiba mas atualmente mora em Votuporanga, no interior de São Paulo. Hoje, trabalha no setor de marketing do Banco do Brasil. Se estivéssemos em 1989, Bianca não teria se formado no ensino superior e, até 1991, não trabalharia. Isso porque ela possui uma doença genética chamada atrofia muscular, que diminui a força dos músculos e, por isso, ela precisa usar uma cadeira de rodas. Foi somente nestes anos que foram criadas as leis que dispunham sobre a integração e sobre as cotas para contratação de pessoas com deficiência. A Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, passou a assegurar o pleno exercício dos direitos individuais e sua efetiva integração social. Esta lei também viabilizou a inclusão de pessoas com deficiência no ensino regular, a garantia de todos os direitos à saúde e programas exclusivos de pessoas com deficiência, a execução de normas que garantam a funcionalidade de edificações e vias públicas para pessoas com deficiência, entre outros. “Inclusão é tratar os alunos com deficiência com a mesma igualdade de oportunidade dos outros, atendendo cada aluno em sua especificidade”, declara Liliane Oliveira, especialista em educação especial com ênfase na atuação com alunos surdos. Atualmente, são classificadas como deficiências a motora, visual, auditiva, física e intelectual. Há, também, os chamados transtornos de desenvolvimento – nos quais se encaixam o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), dislexia, transtornos mentais, entre outros; e, desde 2007, as chamadas altas habilidades ou superdotação. Bianca, apesar de não ter nenhum prejuízo intelectual, entrou por cotas para trabalhar no Banco do Brasil por conta da cadeira de rodas e da redução de sua capacidade motora. Durante a escola e a faculdade, precisava de pequenas ajudas de amigos e professores para realizar algumas tarefas, mas no geral fazia tudo sozinha. No trabalho, há um engenheiro que faz o acompanhamento e monitoramen-
to do local, há a adaptação do local de trabalho de acordo com suas necessidades, mas, mesmo assim, não pode participar de todas as tarefas. “Mesmo assim tem coisas que eu não consigo fazer, tem tarefas que eu fico de fora para poder fazer outras”, esclarece Bianca. Marcia Cordeiro foi professora da Bianca na 4ª série do ensino fundamental, em Curitiba. Atualmente ela é orientadora pedagógica, e trabalha com cerca de 20 alunos que têm algum tipo de deficiência. “A Bianca sempre fez tudo sozinha, era muito independente, a gente só ajudava de vez em quando, a tirar e guardar material da mochila, essas coisas”. Para Marcia, a maior dificuldade da inclusão é a novidade. “Como os profes-
sores e as escolas não são preparados para a inclusão, todos aprendemos na prática do dia a dia, e isso não é o ideal”. De acordo com o Censo Escolar do Ministério da Educação, em 2014 foram registrados aproximadamente 698.770 alunos com deficiência matriculados em classes comuns do ensino básico. Em 1998, eram cerca de 26 mil pessoas com deficiência matriculadas em classes comuns. Os números representam um aumento de 66% nas matrículas de pessoas com deficiência nas classes comuns da educação básica nos últimos 16 anos. Um dos últimos Censos Escolares feitos pelo MEC indicava que havia cerca de três mil escolas no Paraná, dois mil alunos surdos e apenas 400 intérpretes de Libras, Entrelinha | JORNALISMO UP
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ou seja, apenas 1/5 dos alunos possuíam intérpretes. Liliane contesta: “O que a gente faz com todos os outros 1.600 alunos que ficaram sem intérpretes? O que eles apreendem das aulas?”. Para ela, muito do que a gente observa hoje no Brasil é somente uma inclusão física, que não é efetiva e não é suficiente para todos os alunos. “Não há estrutura para suprir as necessidades de cada um”, acrescenta. No dia 1º de abril de 2009, a Universidade Positivo inaugurava seu Centro de Inclusão, criado inicialmente para atender os alunos surdos que estudavam na universidade. Em 2010 houve uma mudança interna na gestão, que passou a coordenação do Centro de Inclusão para o curso de Pedagogia. Até hoje, a coordenadora do curso de pedagogia é a responsável pelo Centro. Izabella Romanetto é a supervisora pedagógica do Centro de Inclusão há cinco anos. “Nosso principal objetivo é implantar uma política, uma prática e uma cultura inclusiva na instituição”, explica Izabella. Em 2010, o Centro de Inclusão da Universidade Positivo atendia 30 alunos. Hoje, o número é 80% maior: são 150 alunos que fazem acompanhamento regularmente com as profissionais do local. “Dentro da Universidade esse número é
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muito maior, pois tem muitos casos que não chegam até nós ou porque a independência do aluno é maior ou porque o grau de deficiência é menor”. Mesmo com o aumento expressivo nos últimos anos e com o número de alunos com deficiência dentro da Universidade dez vezes maior, ou seja, que chegue a 1.500, o percentual de alunos com deficiência seria de 6,25%: não representaria nem 10% dos 24 mil alunos atendidos pela instituição em todos os níveis de ensino (técnico, tecnólogo, graduação, pós-graduação, mestrado e doutorado). Liliane ministra duas disciplinas num curso de magistério: metodologia em educação especial e libras. “A carga horária que temos hoje está bem longe de ser a ideal, mas nós tentamos trabalhar o que dá, tentamos ensinar os alunos a quebrar essa barreira cultural que leva ao preconceito, tentamos explicar o básico das deficiências e que tipo de adaptação é necessária para cada uma, para que o aluno tenha pelo menos alguma noção ao se deparar com essas situações”. Para Marcia, o bom andamento da inclusão depende bastante também da vontade e disponibilidade do professor. “Há professores que se preocupam em estudar mais sobre as necessidades daquele aluno,
sobre as adaptações metodológicas ideias para cada tipo de deficiência; mas há também aqueles que têm preguiça, falta de paciência ou até mesmo preconceito, e aí não se interessam e não ajudam em nada”. Os dados do MEC revelam um panorama otimista nesse sentido: nos últimos 11 anos, o número de professores com formação em educação especial aumentou 198%. Em 2014, eram 97.459 docentes com esse tipo de especialização, contra 3.691 professores em 2003. “Eu me formei em pedagogia há apenas sete anos aqui na Universidade Positivo, e não tive absolutamente nada sobre inclusão nem sobre educação especial durante a faculdade”, reconhece Izabella. Em 22 de dezembro de 2005, o Decreto nº 5.626 incluiu a Libras como disciplina curricular obrigatória para os cursos de formação de professores (licenciaturas), tanto em níveis médio quanto superior, em todas as áreas do conhecimento. Além disso, instituiu-a como disciplina optativa em todos os demais cursos de educação superior e educação profissional. “Este trabalho de inclusão enquanto formação no ensino superior ainda é muito pequeno e precário. O aluno que se forma hoje para entrar numa sala de aula não está preparado para lidar com a inclusão”,
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garante Izabella. Mas, para ela, é muito fácil utilizar-se deste discurso da falta de preparação para justificar um certo desinteresse por parte do professor em aprender e estudar mais sobre o assunto: “A gente não vive mais numa sociedade padrão, mas as pessoas ainda se incomodam muito com a diversidade”. Para Liliane, o empenho do professor de se interessar em ajudar aquele aluno é fundamental, já que às vezes o professor precisa ter a disponibilidade de fazer uma prova diferente, de adaptar sua metodologia. “No caso dos surdos, por exemplo, ou o aluno presta atenção no quadro ou no intérprete, e o professor tem que conseguir entender isso e adaptar a didática”, explica a professora. No entanto, todas as entrevistadas concordam que a inclusão no ensino básico é muito mais complexa que no ensino superior. Como nos ensinos fundamentais a presença destes alunos em classes comuns é obrigatória, as escolas têm que dar conta dos mais diversos diagnósticos e complexidades dos alunos. “Os alunos com deficiência que vêm cursar o ensino superior geralmente têm as condições mínimas para conseguir estudar e se formar”, afirma Izabella. Em 2014, Marcia foi até a Secretaria de Educação para pedir ajuda com três alunos novos na escola. Eles tinham diagnóstico de Síndrome de Down, rebaixamento intelectual e Transtorno Opositor Desafiador. Ela conta que havia muitas dúvidas em como tratá-los academicamente, se eles podiam ser reprovados ou se as provas estavam adaptadas da forma correta, por exemplo. “Cabe à escola ir atrás das informações básicas sobre como lidar com cada aluno e repassar isso aos professores, que podem se interessar e ir além do básico ou não”. Ao sair tanto do ensino básico quanto do ensino superior, os alunos com deficiência têm mais uma importante etapa a ser vencida: o mercado de trabalho. Em 24 de julho de 1991, a Lei nº 8.213 regulamentou a contratação de pessoas com deficiência nas empresas e estipulou que as empresas com 100 ou mais funcionários são obrigadas a preencher de 2% a 5% de seu quadro de funcionários com pessoas portadoras de deficiência. Para Liliane, que trabalha na área de
educação especial desde 1992, houve uma profunda mudança de paradigmas dos dois lados. As empresas, que começaram a implementar as cotas por imposição da lei, hoje já começam a mudar sua cultura profissional e passam a se preocupar verdadeiramente em receber esses funcionários de forma satisfatória. “Uma dessas montadoras aqui no Paraná criou uma identificação especial no uniforme dos surdos, para que num caso de emergência as pessoas saibam que eles precisam ser avisados. Além disso, instalaram um alarme visual na empresa, que, além de fazer o barulho, pisca uma luz colorida, para que os deficientes auditivos também possam saber que algo está errado”. O Centro de Inclusão da Universidade Positivo também auxilia a instituição como empresa com os funcionários que possuem deficiência. Segundo Izabella, vários alunos da Universidade acabam se formando e trabalhando dentro da própria instituição. Para os casos de trabalhos externos, a Universidade mantém diversas parcerias com empresas para encaminhar currículos e colocar estes alunos no mercado de trabalho. “Quando encaminhamos um aluno para uma vaga, tentamos estar presentes durante todo o processo: mandamos para a entrevista um intérprete de Libras próprio
para as empresas que não têm, vamos até os locais para orientar os colegas de trabalho com relação às atividades que podem ser desenvolvidas e a forma como devem ser solicitadas, por exemplo”, explica Izabella. Segundo Liliane, “vemos hoje que a questão da competitividade e competência entre as pessoas com deficiência também aumentou muito. Como mais pessoas estão se capacitando, a qualidade também tem aumentado. A lei dá a oportunidade, mas não garante o emprego se a pessoa não tiver qualidade”. Ainda assim, as empresas não querem contratar pessoas com deficiências intelectuais ou transtornos comportamentais, que são situações mais complexas. Preferem preencher suas vagas com as deficiências físicas (incluindo deficiência auditiva e visual) que são mais simples de lidar no dia a dia. “A grande questão hoje é que a inclusão, apesar de ser um trabalho que precisa melhorar muito, faz parte da sociedade e não interessa mais se você concorda ou discorda”, finaliza Liliane. “As pessoas com deficiência fazem parte do mesmo mundo das pessoas sem deficiência, a inclusão está aí no dia a dia de todos nós e não dá mais para voltar atrás”, encerra Izabella.
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Reportagem
GRAZIELA FIOREZE
Como, quando e onde ver TV: a decisão agora é sua
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A expansão da TV sob demanda reflete uma mudança significativa na maneira de consumir televisão, com a possibilidade de o telespectador criar programação personalizada
Visualize o seguinte cenário: sua série preferida vai ser transmitida na televisão em instantes. É o episódio mais esperado da temporada, e você passou dias aguardando o momento de saber o que acontece na trama. Coincidentemente, para sua infelicidade, no mesmo horário será comemorado o aniversário de 60 anos daquela tia que sempre pergunta “e as namoradinhas?”, e seus pais ficariam extremamente desapontados, a ponto de suspender a assinatura da TV a cabo - meio que você utiliza para assistir à série - se você preferisse ficar em casa assistindo à televisão. Pensou no drama? Agora imagine que esse conflito de interesses não precise mais ser colocado na balança, em um mundo em que você pode ir ao aniversário da sua tia, assim como pode sair com os amigos para jantar, ir à balada, ao teatro, ao parque, tudo isso sem se preocupar se vai perder aquela série que tanto adora, que é transmitida justamente naquele momento. Imagine que agora não há como deixar de assistir a nenhum episódio, a não ser que você tenha enjoado e “partido para outra” – como qualquer relação de amor, a de espectadores e séries também funciona assim. Pode parecer uma realidade ainda distante, mas não é. A mudança no modelo de consumo dessas produções televisivas é expressiva. Os espectadores não aceitam mais serem controlados pela programação da televisão, que diz quando, a que horas, e onde é preciso estar para consumir. Agora, eles querem escolher o que assistem, como, quando e onde bem entenderem, até dizer “Chega, cansei!”, se for preciso. Nesse cenário, ganha espaço a chamada TV sob demanda, que tem um número crescente de produções disponíveis em diferentes plataformas, e que possibilita ao próprio usuário fazer sua programação e estabelecer preferências – como melhor horário e local - quanto ao que será visto. “Eu não vejo televisão há mais de 12 anos”, confessa Camila Barbieri, de 32 anos. “Minha única utilização da TV é para filmes ou algo muito pontual na programação, geralmente dos canais pagos”, explica a jornalista, que optou
por utilizar a internet como principal meio para consumir entretenimento, uma vez que percebeu a queda na qualidade na programação de TV. Na mesma situação de Camila, está Breno
imediatamente após a exibição. “Não tem como esperar determinado canal resolver transmitir determinadas séries - que você não escolhe quais – e, ainda, com meses de atraso”, justifica.
Lopes Nogueira, de 20 anos: “Hoje raramente sei sobre a programação de algum canal, e a televisão é mais um enfeite”. Assim como Breno, em comum com Camila, o estudante Madson Melo compartilha do hábito cada vez menos frequente de ver televisão: “Raramente eu ligo a TV hoje em dia”. De acordo com o professor do Departamento de Cinema da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Alfredo Suppia, a substituição do meio tradicional de consumo televisivo pela TV sob demanda pode ser explicada, em partes, pela rotina das pessoas que também mudou - jornadas de trabalho cada vez mais longas alteram o jeito de consumir. “Não dá mais para sair do trabalho e assistir à novela das 8 como antigamente - por essa razão, já há algum tempo, a novela das 8 nunca começa antes das 9 da noite. A TV sob demanda contorna esse problema”, explica. O estudante Breno Lopes Nogueira explica que se relaciona muito bem com o novo modelo expandido pela internet - a ponto de deixar a TV a cabo de lado - porque possibilita o contato com séries produzidas por vários países, estas que podem ser vistas quase
Na lista de serviços que deram certo e demonstram cada vez mais força no mercado, o Netflix não pode deixar de ser mencionado. Fundada em 1997 por Marc Randolph e Reed Hastings, a empresa entrou no mercado norte-americano do entretenimento oferecendo o serviço de “entrega” de DVD’s via correio. Dez anos mais tarde, com a empresa já consolidada, os fundadores foram mais ambiciosos e resolveram separar os modelos de negócio. O Netflix deixou de lidar com os discos de plástico, e passou a oferecer, exclusivamente, o serviço de streaming de vídeos online. Ao longo dos meses, o Netflix conquistou um número significativo de assinaturas, confirmando a estratégia vencedora e ousada que a empresa levou adiante. Hoje a empresa já contabiliza a marca de mais de 60 milhões de assinantes ao redor do mundo. No Brasil, o serviço de streaming entrou em funcionamento em setembro de 2011, e possui um público cativo de mais de 2 milhões de assinantes, segundo a empresa de pesquisa eMarketer. Simultaneamente ao número de usuários, também cresce o valor de mercado da empresa – que hoje chega a 34 bilhões Entrelinha | JORNALISMO UP
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de dólares, o equivalente a aproximadamente R$ 100 bilhões - e já supera a tradicional rede de TV americana CBS. Segundo uma pesquisa realizada pela Clear Voice Research, o Netflix já é o meio preferido dos americanos, em comparação com a TV tradicional. A pesquisa mostra que 50% dos entrevistados afirmaram gastar mais tempo assistindo a conteúdos disponibilizados no Netflix do que nos meios tradicionais de TV. Desde que começou a investir em produções originais – como a premiada série “House of Cards”, a primeira websérie a ganhar um troféu na maior premiação da televisão dos Estados Unidos, o Emmy – o serviço de streaming confirma presença em pelo menos 40% dos lares americanos, o que demonstra a franca ascensão do modelo que disputa o espaço na casa dos telespectadores com os meios convencionais. Projeções de especialistas do mercado financeiro apontam que o Netflix tem potencial, caso continue a crescer nesse ritmo extraordinário, de atingir 180 milhões de assinantes no ano de 2020, em todo o mundo. Embora a TV a cabo tenha que aceitar que a forma de consumir conteúdo vem mudando progressivamente e precise conviver com os novos modelos de distribuição, há de se considerar que o meio tradicional ainda se mantém ativo quanto às produções televisivas. O crescimento na quantidade de séries produzidas pelo meio tradicional é claro. De acordo com uma pesquisa da FX Networks, em 2014 os canais a cabo norte-americanos transmitiram 180 novas produções televisivas. Quinze anos antes, no final da década de 90, o país estreou apenas 23 novas ficções televisivas. A pesquisa revela um crescimento, hoje, de mais de 600% no número de produções em comparação ao ano de 1999. Se acrescentarmos no cálculo o número de produções geradas pelos novos participantes no segmento de TV sob demanda e pelos canais abertos, o número é ainda mais expressivo. E isso só tende a engrandecer a arte de fazer entretenimento televisivo, independentemente dos formatos e modelos de distribuição.
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Quanto à qualidade do que é transmitido, Alfredo Suppia ressalta que não há como confirmar se as produções de hoje são melhores do que antes do surgimento da TV sob demanda. “São momentos e contextos diferentes. Mas o que posso afirmar é que hoje o que de melhor temos em audiovisual não está na TV aberta”, opina. E quem ganha com o momento promissor são os aficionados por séries, que encontram uma variedade muito maior de títulos e gêneros ao seu dispor: de comédias românticas, tramas sobre super-heróis, até histórias policiais ou de zumbis; a lista de produções é extensa. E o mais vantajoso de tudo: o consumo desse conteúdo pode ser feito no smartphone, no tablet, no computador ou na televisão, da maneira e no horário mais conveniente. “Eu preciso ter meu tempo para ver as séries quando posso. Depender da TV a cabo, mesmo havendo a possibilidade de gravar os episódios, faria com que eu assistisse muito menos”, conta Madson Melo, que assiste à média de 15 episódios por semanas e acompanha, no total, mais de 40 séries. Para Camila Barbieri, usuária assídua das novas tecnologias de distribuição, o potencial da internet alavancou o alcance das séries: “A Internet trouxe compartilhamento - de arquivos e de ideias - e é o epicentro de tudo. Ela não apenas permitiu que tivéssemos acesso a produções nunca antes imaginadas, como fez isso com rapidez, eficiência e qualidade”. Enquanto o consumidor se beneficia, o agente produtor, por sua vez, enfrenta um grande desafio: “prender” a audiência. A oferta é ampla e abre margem para que os espectadores se fidelizem a determinados produtos, mas também cria uma inconsistência de público, uma fragm e nta çã o clara. A i n -
dústria da produção de série se estabelece, portanto, como um mercado de nicho, que precisa firmar seu público a cada nova produção lançada. De acordo com Suppia, apesar do desafio evidente, as novas gerações de produtores também se beneficiam, uma vez que a expansão de canais de distribuição amplifica as possibilidades para quem trabalha no meio: “A variedade de canais de circulação e janelas de exibição só favorece o artista. Havendo coerência e honestidade, o trabalho de quem produz nunca será afetado”. Suppia aponta que, embora seja difícil palpitar sobre como as novas produções serão lançadas nos próximos anos, é preciso compreender as novas tecnologias como ferramentas de trabalho a serem exploradas e que exigem adaptação, mas que isso tende a ocorrer naturalmente com o passar do tempo, e já vem mostrando sinais de mudança. “As TVs interativas e online pedirão produtos mais dinâmicos e diversificados, com sofisticação variável, mas os produtores vêm se adaptando a isso”, indica. Ao passo que a infraestrutura para a distribuição muda gradativamente, os conteúdos também vão se adaptar, pelo menos é o que acreditam os especialistas do meio e o que esperam os
c o n s u m i d o r e s . O que os profissionais do meio precisam compreender é que o consumidor não é mais passivo diante do modelo. É a liberdade concedida ao espectador um dos grandes potenciais de serviços de streaming como o Netflix, que vem incentivando, inclusive, hábitos de consumo diferenciados, como é o caso do fenômeno conhecido como “binge watching”. Conhecido no Brasil como “maratona de séries”, a atividade nada mais é do que assistir a um grande número de episódios – às vezes uma temporada inteira, caso esteja disponível e haja disposição – em determinado espaço de tempo, sem interrupção. O usuário faz seu horário, opta pelas produções que mais combinam com seu gosto e, caso se apaixone pela trama, pode assistir até cansar. “Já cheguei a acompanhar 90 séries regularmente e a virar 24 horas assistindo, com boas maratonas, daquelas que você diz que vai ver só mais um e não consegue parar”, relembra Camila Barbieri. Hoje, a jornalista confessa que conseguiu reduzir a quantidade de séries que acompanha, e que a lista é proporcional à qualidade, mas ainda brinca: “Eu costumo dizer que troco 40 minutos de sono por um episódio de série”. Por trás da vontade de fazer maratonas, está um trabalho estratégico de roteirização. Alfredo Suppia, professor do Departamento de Cinema da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), explica que as séries são roteirizadas, em geral, de duas formas: episódios autônomos ou encadeados. “O mais comum ultimamente são os capítulos encadeados, em que cada episódio termina com um cliffhanger, uma espécie de gancho para o episódio seguinte, que por sua vez retoma do ponto anterior”, explica. Essas séries terminam com uma espécie de clímax que, segundo o professor, atiça a curiosidade do espectador e faz aumentar o desejo por assistir ao próximo episódio a fim de saber o desdobramento da história. O Netflix adquiriu tamanho sucesso, em partes, porque disponibiliza a nova temporada de algumas de suas produ-
ções de uma única vez, como é o caso da série “Orange is the new black”. Com esse volume de episódios disponíveis – uma temporada inteira tem em média 13 capítulos-, não há viciado por série que resista aos encantos desse modelo. Pode parecer exagero, mas a essa dependência são muitos os adeptos. Um episódio aqui, outro ali. Quando se dá conta, uma temporada inteira vista. Uma noite inteira de sono perdida. Um vício se instalando. Pergunte a qualquer viciado em séries e ele vai confirmar: não existe sono ou cansaço que impeçam a insaciada vontade de saber o que acontece no episódio seguinte. Alex Palombo, de 41 anos, é um deles, e não tem problemas em assumir que é viciado em séries. E nem teria como negar, basta perguntar quantas séries ele acompanha: são 64 no total. Além de fanático assumido, o analista de Tecnologia da Informação é fundador de um dos sites mais conhecidos pelos aficionados da internet.
{ } “Já cheguei a acompanhar 90 séries regularmente e a virar 24 horas assistindo”
Trata-se do Banco de Séries, site que permite ao usuário controlar suas atividades, indicando quais séries acompanha ou pretende assistir em breve e marcando como “visto” o episódio conforme for assistindo. O site, similar a uma rede social, permite diversas ações para que o usuário administre sua rotina de “seriador”, além de abrir espaço para comentários em fóruns de cada episódio, atribuição de notas às séries e lembretes sobre novas produções e novos episódios lançados. São mais de 200 mil cadastrados e o site contabiliza, diariamente, cerca de 30 mil episódios marcados como visualizados, de um total de 115 milhões, desde que o site entrou em funcionamento. Pensando que
o tempo médio de um episódio é de 40 minutos, os usuários do Banco de Séries assistem, no total, 20 mil horas de séries por dia. Se os números indicam que aparentemente a dependência em séries tem “terreno fértil” no Brasil, algumas pesquisas já se ocupam em estudar o comportamento psicológico de pessoas com esse perfil. De acordo com uma pesquisa realizada pela Universidade do Texas, pessoas que assistem séries excessivamente podem desenvolver problemas relacionados à depressão e solidão, ou ao menos escondem nessa prática o diagnóstico desses problemas, bem como o de convívio social, de desempenho de outras funções, como estudos, trabalho e até mesmo outras práticas de lazer. Na visão da psicóloga Thaís Santin Castoldi, a atividade de assistir séries, quando em excesso, pode refletir uma carência que busca ser suprimida, ou, ainda, revela-se como uma tentativa de fugir da realidade, o que pode gerar um quadro de ansiedade e depressão: “É possível que ocorra negação e não aceitação do mundo real como ele se apresenta. É um mundo (o ficcional) ao qual o indivíduo se apega para não ter de enfrentar os problemas da vida”, explica. A perda de habilidades sociais de comunicação e socialização são alguns dos outros problemas que podem afetar o comportamento dessas pessoas, segundo a psicóloga. A substituição de um modelo mais controlador – a TV convencional – para outro mais libertador – serviços de streaming como o Netflix - evidencia transformações em diferentes agentes desse processo: do consumidor, que pode até desenvolver um vício diante da infinidade de produções televisivas disponíveis, ao produtor – que precisa lidar como o novo meio, adaptar-se às suas particularidades e inovar no sentido de atrair e segurar o público. De certeza temos uma: o futuro já se instalou, e o jovem que não precisa mais ficar angustiado de ter que ir no aniversário da tia e perder sua série favorita agradece. Todos os outros que amam televisão, também. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
GUILHERME DEA
Veículo já FOI condenado à morte inúmeras vezes; no entanto, é o meio que mais se mantém NECESSÁRIO COM TANTA INFORMAÇÃO À DISPOSIÇÃO
O rádiO
E O FUTURO 18
Nas manhãs de segunda a sexta-feira, pouco antes de eu sair de casa para ir para a faculdade, faço o mesmo ritual que milhões de brasileiros fazem todos os dias quando saem de casa: ligo o rádio. É um hábito de gerações e que vem sido nutrido por décadas e mais décadas desde 1930, quando o primeiro modelo de rádio automotivo, o Motorola 5T71, foi lançado pela Galvin Manufacturing Company. É algo quase universal - basta começar a prestar atenção nas pessoas ao seu redor e ver como a ação de ligar o sistema receptor de ondas é algo beirando o automático. Mas de uns tempos para cá este hábito sofreu mudanças drásticas. Antes eu ligava o rádio e, enquanto esquentava o motor do carro nos dias mais frios, procurava a minha estação favorita no dial, torcendo para estar tocando uma música boa, diferente, ou que o programa matinal me informasse sobre algum possível acidente no meu caminho até o destino. Agora, enquanto o motor está esquentando, não procuro mais uma frequência específica no pequeno display. Meus olhos estão grudados no meu celular, procurando a playlist que mais se adeque ao meu humor no momento e que me proporcione uma descontração para tornar a jornada diária até a faculdade menos solitária e entediante. O advento tecnológico da primeira década do século XXI trouxe ao consumidor um leque de possibilidades que no século anterior era inimaginável. A popularização do protocolo bluetooth, a ascensão dos smartphones, apps e dos sistemas automotivos – tudo isso deslocou a fonte de músicas e diversão no carro do rádio para o celular. Não mais estamos presos ao Top 10 que repete as mesmas músicas há meses, programas com assuntos que não nos interessam ou A Voz do Brasil e seus destaques do senado. Ouvimos a nossa música, os nossos podcasts. Montamos a nossa programação, com o nosso conteúdo, a qualquer hora, em qualquer lugar. Podemos até mesmo ouvir rádios de outros países – uma possibilidade antigamente restrita a entusiastas de radiocomunicação com seus receptores customizados recebendo sinais de outros continentes. Eu mesmo sou um
adepto desta prática: constantemente estou ouvindo a BBC Radio 1 de Londres no carro (o DJ Greg Miller é um constante companheiro no trânsito caótico da hora do almoço). Não somos mais limitados nem mesmo pelas opções disponíveis no dial. Todo este avanço tecnológico tem contribuído para uma série de discussões acerca do futuro do rádio. Nas estatísticas, os números permanecem constantes e fortes, mas pequenas alterações em certas categorias apontam para uma iminente época de transição e convergência do rádio com outras mídias. Segundo dados do Mídia Dados Brasil, a porcentagem da penetração do rádio no meio caiu de 90% em 2003 para 71% em 2013 – isso significa que o número de pessoas que ouviam rádio pelo menos uma vez por semana caiu 19% em 10 anos. Na audiência, a diferença não chega a ser muito grande: na Grande São Paulo, de acordo com o IBOPE, no ano de 2003, a média de audiência das rádios (AM e FM) entre os meses de abril e junho foi de 16,6 pontos. O mesmo período marcou, em 2013, 13,23 pontos. No Rio de Janeiro, o período em 2003 obteve audiência de 17.6 pontos, enquanto que em 2013 a média vista foi 14.80. Ambos os estados viram uma queda de 3 pontos em um período de 10 anos, o que não é crítico. Se a audiência está estável, então por que se preocupar? Ao se analisar a audiência do rádio e separá-lo por faixas etárias, percebese a universalidade do veículo. Ele tem boa audiência em praticamente todas as faixas, especialmente entre 30 – 65 anos. De acordo com a Pesquisa Brasileira de Mídias, feita pelo Observatório da Imprensa, o tempo gasto ouvindo rádio aumenta proporcionalmente à idade do ouvinte – ou seja, quanto mais velho, mais tempo se ouve. Os jovens são uma importante parcela dessa audiência e são os que menos ouvem, de acordo com a pesquisa. Nas estatísticas do Mídia Dados, as faixas de 15 a 19 anos e 20 a 29 anos tinham, respectivamente, penetração de 75% e 78% em 2013. Em 2015, estes números caem para 65% e 71%. Para comparação, as faixas de 30 a 39 anos e 40 a 49 anos tinham 78%
e 76% em 2013 e 72% e 71% em 2015. Enquanto a faixa jovem teve uma queda de cerca de 17%, a faixa zdulta sofreu 11%. “Pela minha experiência, posso supor que ouvir rádio é uma atividade mais antiga, uma espécie de cultura à qual as gerações mais novas são pouco fiéis. Rádio para os jovens representa a meu ver uma atividade de “passagem”, não de escolha. Quando expostos ao rádio, ouvem-no, mas quando por opção, decidem por formas mais “tecnológicas” para ouvir música”, explica Adriana Neves, locutora e programadora da emissora Mundo Livre FM. Em longo prazo, essa erosão pode trazer uma perda de audiência grande, pois a audiência jovem de hoje será a audiência adulta de amanhã. E quando a audiência adulta de hoje envelhecer mais e a faixa erodida tomar o seu lugar, será que os números serão os mesmos? Do outro lado do Atlântico Não é só no Brasil que os dados apontam para uma mudança. Do outro lado do Atlântico, outro país também está passando por uma queda na audiência um pouco maior: a Inglaterra. Historicamente a terra de Sua Majestade Real Rainha Elizabeth II e o rádio possuem uma forte conexão e o veículo faz parte da cultura e da identidade nacional do país. De acordo com a Academia de Rádio do Reino Unido, a primeira estação de rádio inglesa surgiu em 1922 pelas mãos da British Broadcasting Company e funcionava de maneira experimental, com transmissões se expandindo pouco a pouco pela Inglaterra, Escócia e Irlanda. Em 1927, o controle sob as frequências de rádio é passado para a British Broadcasting Corporation (BBC) - a corporação midiática governamental que é financiada pelos impostos do Reino Unido - por um mandato real. O primeiro diretor Entrelinha | JORNALISMO UP
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geral da BBC Radio foi John Reith, que estabeleceu a fundamentação para as transmissões de serviço público no Reino Unido, e seu ideal de “informar, educar e entreter” é utilizado até os dias de hoje. Inicialmente utilizado como uma ponte entre a monarquia e o público por meio de discursos transmitidos nacionalmente, o rádio sofreu evoluções rapidamente devido à Segunda Guerra Mundial e foi transformado em arma de guerra: o serviço BBC Empire Service foi criado em 1932 para transmitir notícias para ingleses morando em outros países da Europa Continental e África, mas, com o confronto se elevando cada vez mais, foi transformada na BBC Overseas Service e passou a transmitir notícias do front para toda a Europa, inclusive para países sob o domínio do Eixo. Com o fim da guerra, o serviço foi renomeado para BBC World Service e passou a transmitir para o mundo todo, sendo atualmente a maior transmissora internacional do mundo. Nos anos 60, as rádios domésticas da BBC passaram por uma reformulação, adotando o estilo numérico utilizado até hoje. Rádios comerciais só foram permitidas a operar a partir de 1973. Mesmo estando historicamente ligada com o rádio, a audiência inglesa também mostra sinais de mudança. Segundo dados do Radio Joint Audience Research (RAJAR), que monitora a audiência desse veículo de comunicação, a BBC Radio 1, a estação estatal voltada para o público jovem, teve uma perda de quase 1 milhão de ouvintes. Seu programa matinal comandado por Nick Grimshaw teve a menor audiência de um programa no slot do café da manhã em 10 anos. Em resposta a uma matéria do The Guardian, a BBC apontou que 90% deste um milhão eram ouvintes de 30 anos para cima, fora da faixa alvo 16-29. Mesmo a estação mais ouvida da BBC, a Radio 2, com uma programação mais voltada para o adulto contemporâneo, também sofre com perdas de audiências: também teve uma queda de quase um milhão de ouvintes do primeiro trimestre de 2014 até o primeiro de 2015. Nas medições de março de 2015, apenas as estações exclusivamente digitais ganharam audiência (Ra-
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dio 6 Music e Radio 4 Extra), e mesmo assim não foram todas. Nas estações comerciais, a situação não é diferente. Das 224 estações listadas no RAJAR em março, 106 perderam audiência, 98 viram os seus números subirem e 20 foram inauguradas recentemente e, portanto, não obtiveram comparação. Não foram apenas os números de audiência que sofreram baixas. O horário gasto por ouvinte com o rádio é outro que tem ficado no negativo. Usando a mesma medição das estações comerciais inglesas acima: 91 estações viram o tempo dedicado pelo ouvinte abaixar, 113 obtiveram um acréscimo e 20 não foram comparadas. As estações da BBC também não escapam: das 10 estações nacionais (incluindo digitais), 5 delas foram ouvidas por menos tempo pelos seus ouvintes do que no ano passado.
música se viu à beira do colapso com a pirataria, para então ser salva pela Apple com o iTunes e o iPod. A simplicidade de comprar uma música digitalmente, escolher apenas uma faixa ou o álbum inteiro, e depois colocá-la em um dispositivo portátil, leve e com um espaço enorme (1GB para a época era quase um absurdo, cabiam 1000 músicas!) fez a cabeça do consumidor que estava acostumado com o walkman e o discman. A música se viu liberta das restrições físicas e temporais e se tornou ainda mais íntima das pessoas, capazes de construírem suas playlists e ouvi-las quando bem entenderem. As previsões de morte erraram feio: iPod e rádio andaram lado a lado e ninguém matou ninguém. Uma segunda revolução musical teve início a partir da segunda década do século XXI: o streaming de músicas. Os jovens são uma O usuário pode ouvir quase qualquer faixa a qualquer momento, desde que importante parcela tenha uma conexão com a internet. Didessa audiência e ferente do conceito do iPod, o arquivo são os que menos não está presente no dispositivo – ele é constantemente carregado e reproduziouvem do de acordo com a demanda, igual a Quando se classifica por faixa etá- um vídeo do Youtube. Apesar de estar ria, uma situação semelhante ao que explodindo em sucesso recentemente, está acontecendo no Brasil aparece. muitos dos serviços desse tipo surgiram Os jovens têm ouvido menos rádio, en- há anos, mas sempre foram restritos a quanto os adultos estão ouvindo mais. países específicos. Um deles, o PandoNovamente nas estatísticas do RAJAR: ra, foi fundado em 2004, mas até hoje em 2007 o jovem de 15 a 24 anos gasta- continua restrito a apenas três países. va cerca de 13 horas semanais ouvindo Outros dois grandes nomes também já estações comerciais e 11 horas nas es- têm um tempo no mercado: o Deezer tações da BBC, enquanto que em 2015 entrou em operação em 2007, enquaneles têm gastado cerca de 11 e 9 horas to o Rdio nasceu em 2010. Porém, sem respectivamente. Os adultos de 25 a 44 dúvida alguma, o principal nome desanos? Antes gastavam 14.5 horas nas te grupo é o Spotify. Fundado por uma comerciais e 15 horas nas da BBC, hoje startup sueca em 2008, aportou nos estes números estão em 14 horas, para Estados Unidos em 2011 após uma séambos. Percebe a diferença? Apesar de rie de adiamentos, chegando ao Brasil a audiência geral sofrer leves altera- apenas em 2014. Atualmente o serviço ções, os adultos têm segurado a barra tem cerca de 75 milhões de usuários ao e os jovens têm se afastado aos poucos. redor do mundo. Estes serviços funcionam quase da Os oponentes do rádio mesma maneira. Milhares de músicas Desde o começo da década, o rádio são disponibilizadas ao usuário, que tem visto o surgimento de oponentes pode ouvi-las por streaming, sendo lina disputa pela atenção das pessoas – mitadas de acordo com o tipo de conta. o suficiente para declararem a morte O serviço grátis geralmente é suportado do rádio, só para não vê-la acontecer. por anúncios musicais que são tocados No início dos anos 2000, a indústria da automaticamente, além de limitarem a
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escolha do usuário apenas a álbuns ou playlists, sem poder escolher uma faixa específica. Ao assinar um dos planos, outras opções se tornam disponíveis tais como escolha livre de músicas, ausência de anúncios, melhor qualidade de streaming e disponibilização de reprodução offline com o arquivo guardado em cachê. O modelo de streaming é apontado por muitos como o futuro da música. Tanto que até mesmo a Apple está entrando na jogada, com seu próprio serviço marcado para lançamento no dia 30 de junho deste ano. Para se diferenciar da concorrência, a Apple também está montando uma estação de rádio online, 24/7, que será comandada pelo DJ britânico Zane Lowe e que terá programas comandados por grandes artistas tais como Pharrell Willians e Elton John. Um movimento no mínimo inusitado a esta altura do campeonato.
faz com que o público mais jovem se distancie cada vez mais do dial. É preciso também levar em conta o fato da tecnologia aplicada aos equipamentos disponíveis hoje em dia. O rádio (físico) é muitas vezes um objeto obsoleto, ou desconhecido. É por essa razão que o rádio, tanto na forma física ou enquanto instituição precisa de constante evolução no que diz respeito às tendências e novas tecnologias.” Sobre como as novas tecnologias impactam a maneira como descobrimos música, Adriana explica: “acredito que as pessoas que no passado utilizavam o rádio como forma de descobrir novas sonoridades, novos artistas e novas músicas, continuem a fazê-lo. Os jovens que foram expostos a esse modelo por conta de seus pais ou irmãos, têm mais facilidade em repetir tal modelo, mas na maioria, acredito que eles utilizem formas mais “modernas” para tal. ” Já Roberto Sam acha que ficou mais fácil para os artistas O Rádio e o Futuro menores ganharem reconhecimento. “As novas mídias se tornam opções “Antigamente, as músicas internaciopara o público que consome rádio, sim, nais, por exemplo, eram lançadas pelas mas “afastar” essas pessoas do veículo rádios e só depois de muito tempo chenão seria a palavra perfeita para esta si- gavam às lojas brasileiras. As emissoras tuação”, diz Ricardo Sam, coordenador brigavam para conseguir a “exclusividade produção da Rede Transamérica de de”. Hoje em dia, antes dos artistas ou Produção. “Em muitos casos, há con- gravadoras entrarem em contato com vergência destas mídias. E quando não as rádios para execução de uma música, há, o público ainda encontra no rádio o público já teve acesso à mesma atrauma fonte de conteúdo diferenciada. vés da internet. Artistas “menores” tem Com opções mais variadas de entreter chances maiores de divulgar um trabaa audiência, a fatia do bolo se torna lho. O Mundo está menor. ” menor, lógico, mas não quer dizer que Estamos entrando em um tempo de vão deixar de comê-lo. ” Em reposta a transição. Novas mídias estão crescenuma pergunta sobre a maneira que o do, assim como outras vezes ao longo streaming muda a nossa maneira de da história da comunicação. E como já interagir com o rádio, Ricardo é direto: vimos antes, não haverá uma morte “cada vez mais, num futuro próximo, as do rádio – e sim um novo passo adianpessoas ligarão o Rádio para consumir te. Haverá a convergência com outros conteúdo falado, informação, opinião, meios, e assim como já faz hoje em dia, debates, interação... deixando a parte o rádio ultrapassará limites antes immusical para algo mais “personalizável” possíveis – geográficos, temporais, físiatravés de aplicativos ou canais especí- cos. Assim como o seu ouvinte cresce, o ficos. ” bom e velho rádio também. “Quando o Já a locutora e programadora da rá- rádio consegue exercer um papel mais dio Mundo Livre FM Adriana Neves tem interativo, quase que “visual”, o jovem, uma visão um pouco diferente sobre o a meu ver, participa mais. Ouvir rádio é impacto das diferentes mídias no rá- uma cultura, e o jovem é mais imediadio. “Atualmente a oferta de música, de tista, portanto tudo o que for proposto playlists confeccionadas para os mais de forma mais visual e participativa surdiversos tipos de gostos e situações, tirá maior impacto”, conclui Adriana. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
JORGE CAMARGO
Cocaína: a droga performática Um dos motivos que leva ao vício da cocaína é a sensação de bem-estar, causada pelos neurotransmissores da droga: a dopamina e noradrenalina
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“Bem, experimentei, e então? Dura uns 10 minutos o efeito, que é fantástico. Depois dá uma certa paradeira e vontade de não se mexer, um gosto horrível na boca, quentura nas dobras do cérebro, febre, você se belisca e não sente nada, não consegue assistir a um filme porque o movimento dá aflição, vem um sentimento de incompetência, medo e você fica rangendo os dentes. Mas que lucidez para falar, pros primeiros minutos de uma conversa! E se tiver bastante, não cansa: você pode passar três dias seguidos de pura festa! Depois vem a insônia, aquela cor de pele esquisita , as olheiras amarelas e os poros lisos, descascando. Vontade de não comer, e sim de dar mais um teco”. O relato acima bem poderia ser real, mas quem conta é Maria Del Carmo, personagem principal do livro “Viva a Música”, de Andrés Caicedo. Ela exemplifica muito bem o efeito da cocaína quando chega ao cérebro, o que é confirmado por Fernandinho*. “O efeito dura 10 minutos, depois vem aquele gosto amargo na garganta e a vontade de mandar mais, mais e mais”, conta o rapaz de 23 anos. “Mas o ápice do efeito é sensacional: você se sente invencível, poderia dançar sem parar, poderia cheirar carreiras e mais carreiras por dias seguidos”. Fernandinho experimentou cocaína pela primeira vez há pouco mais de quatro meses, acompanhado de dois amigos, o Pablo* e o Escobar*, em uma noite de verão, sentados em uma calçada qualquer de Curitiba. Ao ser questionado, ele admite não saber por que experimentou. “Sempre tive vontade de saber qual era a sensação da cocaína, mas demorei a experimentar pelo medo do vício e, confesso,
gostei”, conta ele. Os últimos dados da Organização Mundial da Saúde apontam que cerca de 5% da população mundial, com idade entre 15 e 64 anos, é usuária de drogas, ou seja, cerca de 243 milhões de pessoas sofrem de dependência química, uma doença que altera a relação entre o indivíduo e seu modo de consumir droga, o que pode resultar tanto em problemas de saúde como familiares e sociais. O Brasil, nos últimos anos, alcançou o 2º lugar no ranking de maiores consumidores de cocaína, ficando atrás apenas dos Estados Unidos. Roberto Saviano, no livro “Zero Zero Zero”, sobre o mercado internacional da cocaína, relata que cerca de metade das 100 toneladas de cocaína que circulam pelo Brasil em direção a Europa ficam por aqui, e são consumidas por cerca de 2,8 milhões de pessoas.
nehouse, a cantora que virou ícone entre os mais jovens pelos excessos, ou então o Pó Delivery, serviço de entrega da droga em casa. Saviano define a droga como performática. “A heroína faz de você um zumbi. A maconha relaxa e deixa seus olhos injetados de sangue. A cocaína é outra história, é a droga performática. Com ela, você pode fazer qualquer coisa. Antes que ela faça seu coração explodir, antes que seu cérebro vire mingau, antes que seu pau amoleça para sempre, antes que o estomago se torne um chaga purulenta, antes de tudo isso você trabalhará mais, se divertirá mais, trepará mais. A cocaína é a resposta exaustiva à necessidade mais imperativa da época atual: a falta de limites. Com a cocaína você viverá mais intensamente. Se comunicará mais, primeiro mandamento da vida moderna. Quanto mais você se comunica mais é feliz, quanto mais se comunica mais goza a vida, quanto mais se comunica mais comercia sentimento (...)”. “Bem, experimentei, Quando cheirou pela primeira vez, e então? Dura uns Fernandinho conta que teve medo. “O coração disparou, e olhei para meus amigos 10 minutos o efeito, assustado. Lembro que comentei algo do que é fantástico” tipo ‘que medo de morrer’. Eles riram de mim. Depois, só me permiti aproveitar. Falei mais, ri mais, me diverti mais”, conO usuário da droga no país não tem fessa. Escobar confirma a sensação de um perfil definido: pode ser um mendigo bem-estar da droga descrita por Caicedo, ou um empresário de um arranha-céu de mas relata os danos que a droga tem lhe luxo em São Paulo. Mas a idade dos chei- causado. “No nariz já saíram feridas que radores no Brasil está diminuindo cada vez demoraram a curar e, quando cheiro, o mais. A indústria do tráfico tem inovado pau não sobe de jeito nenhum”, conta no marketing para ganhar cada vez mais ele, e dá uma risada triste, acanhada, enjovens, como a venda de papelotes de co- vergonhada. O rapaz, que cheira há poucaína estampados com o rosto de Amy Wi- co mais de um ano, já perdeu a conta de
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quantas vezes mandou um raio, gíria para a cocaína. “Não passei nem um mês sem cheirar”, conta ele, não se orgulhando por isso, e sim preocupado com a situação em que se encontra. “Sou um homem viciado”, assume. Em sua biografia Eu Sou Ozzy, o vocalista do Black Sabbath, Ozzy Osbourne, conta que se apaixonou imediatamente na primeira vez que cheirou. “É a mesma coisa com toda droga que já tomei: a sensação da primeira vez que usei é o que eu queria sentir pelo resto da vida. Mas nunca funciona dessa forma. A gente pode tentar tudo o que quiser, mas, acreditem,
um comportamento que gera prazer, e a cocaína tem uma ação muito intensa nesse sistema de recompensa, o que é um dos motivos de gerar um prazer imenso e também uma busca repetida pelo uso da droga”.
vam que dava pra chapar eu usava. Mas o crack foi o que destruiu minha vida em pouco tempo. Enquanto cheirava cocaína e fumava maconha, ainda conseguia trabalhar. O crack me destruiu, só não roubei porque não faz parte da minha índole, mas se eu tivesse continuado, com certeza teria chegado a isso”, conta. “Cheirei um tempão. Já cheguei a ficar “a sensação da priem depressão, já pensei em me matar por meira vez que usei é o não ter cocaína. Sempre pensava, ‘pô, mique eu queria sentir nha mãe tá em casa, preocupada comigo e eu aqui, cheirando’. A depressão vinha pelo resto da vida” principalmente no dia seguinte, quando batia aquele arrependimento, mas aquilo não impedia de cheirar no outro dia”, relata Marco André, que diz não ter gastado muito dinheiro com a droga – que é tida como uma das mais caras e considerada droga de playboy – porque era amigo de grandes traficantes. Não existe no mundo um mercado mais rentável que o da cocaína. Segundo Saviano, em 2012, no ano do lançamento do iPhone 5 e do iPad Mini, a Apple se tornou a empresa mais capitalizada que já se viu numa lista de ações. As ações da Apple subiram 67% em um só ano. Um aumento notável para os números da finança. Se você tivesse investido 1.000 euros em ações da Apple no início de 2012, agora você teria 1.670 euros. Nada mau. Mas se tivesse investido 1.000 euros em cocaína no início de 2012, você teria agora 182 mil euros: cem vezes mais do que investido na ação recordista do ano!”. “A segregação social está inclusive nas drogas. O cara que vende e que usa maconha ou crack tem o estereótipo de ser mais pobre do que aquele que vende ou nunca se consegue aquela sensação da Içami Tiba também afirma no livro usa cocaína”, comentou Escobar em uma primeira vez”. “123 Respostas Sobre Drogas” que não há conversa descontraída. Segundo dados da Segundo o psiquiatra Renato Batiste- um nível seguro para o uso das drogas, se- ONU, em 2009 foram consumidas 21 tola Damaceno, não existe um nível segu- jam quais forem, até mesmo a maconha, neladas de cocaína na África, 14 na Ásia e ro para o uso da droga. “A cocaína pode que “vicia e provoca dependência psico- 2 da Oceania. Na América Latina e Caribe, viciar já na primeira vez em que é usada. lógica”. No caso da cocaína, que tem um foram consumidas mais de 101 toneladas Atualmente, a forma mais comum de ser alto poder viciante, as chances de viciar no da droga. A cocaína é o petróleo branco da administrada é fumada, o crack. Mas, seja primeiro uso chegam a 80%. nova era da economia mundial. como for, a cocaína pode causar danos Marco André Bersani (41) começou permanentes ao cérebro desde o primei- a fumar maconha aos 12 anos e aos 16 Danos psíquicos ro uso”, explica o médico, que trabalha cheirou pela primeira vez. Faz 10 anos que Um dos motivos que leva ao vício da com dependentes químicos de um Centro ele está livre da droga, depois de chegar cocaína é a sensação de bem-estar, caude Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas ao fundo do poço, na última fase da de- sada pelos neurotransmissores da droga: (CAPS AD). “Uma alteração comum pelo pendência química: o crack. “Já usei tudo a dopamina e noradrenalina. Essa microsuso repetido da cocaína é o de recompen- quanto é tipo de droga. Já cheirei cola, já cópica gota, quando chega ao cérebro, sa cerebral, que é ativado quando temos tomei chá alucinógeno, tudo que me fala- contagia uma célula, que contagia outra e
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assim por diante, até envolver todo o corpo em um formigamento instantâneo. A dopamina é o que permite com que você seja o centro das atenções. Com ela, tudo é mais fácil: é mais fácil falar, mais fácil paquerar, mais fácil ser simpático. Já a segunda, a noradrenalina, faz com que tudo a sua volta se amplifique: cai um copo? Você ouve primeiro que todo mundo. Te chamam? Você se vira antes de terem terminado de pronunciar seu nome. É assim que ela funciona: aumenta o seu estado de vigilância. Uma pessoa que usa cocaína - seja ela administrada de maneira intranasal, intravenosa, oral, fumada, intramuscular, sublingual, vaginal ou retal - repetidas vezes têm uma tendência de que o sistema de recompensa passe a não funcionar como antes. Ou seja, essa substância química, que age através da dopamina, tende a alterar a forma de a pessoa sentir prazer se não usar cocaína. “Um dependente grave vai precisar da cocaína para ter uma neurotransmissão normal, e essa é uma alteração comum no uso da cocaína”, conta o psiquiatra Renato Damaceno.
{ } A cocaína é o petróleo branco da nova era da economia mundial
A cocaína pode aumentar o medo, a sensação de perigo e até gerar crise de pânico, depende da quantidade usada e do organismo do indivíduo. É comum o consumo de outras drogas relacionadas à cocaína, como bebidas e maconha. Mas essa mistura é perigosa, por que uma droga potencializa o risco da outra. Por si só, a cocaína aumenta o risco de sintomas psicóticos, e para quem já tem uma pré-disposição pode até desenvolver uma psicose crônica, como a esquizofrenia. “O uso excessivo da droga comumente causa sintomas psicóticos, que podem levar o usuário a ter delírios ou a sensação de estar sendo vigiado, além de alterações no comportamento. A maconha também tem esses riscos”, explica Renato. Quanto a esse estado de vigilância,
Juliano* conta que prefere pagar a pernoite em um motel qualquer para poder usufruir da droga à vontade. “Certa vez, tampei todas as câmeras de vídeo do meu quarto”, conta ele. Sentindo-se perseguido depois de uma longa noite de muita cocaína, ele conta que passou uma fita adesiva na webcam do computador, na câmera do celular e até na câmera do iPad. “Juro, achei que havia câmera até no sensor do alarme”, conta ele, que cheira desde os tempos da faculdade, há mais de 10 anos. A tal mania de perseguição é algo também confirmado por Fernandinho. “Por muito tempo eu só fumei maconha, mas o efeito me deixa muito noiado demais, mas sinto que isso começou depois que comecei a cheirar”, relata o jovem. “Sinto como se as pessoas estivessem rindo de mim, falando de mim o tempo todo. É perturbador”. Já com a cocaína, o efeito é diferente. O que Saviano afirma em seu livro, o introspectivo Fernandinho concorda. O rapaz conta que, quando cheira, se sente mais confiante em conversar. “Não sou muito bom em expressar meus sentimentos. Sou meio grosseiro e sempre acho que as pessoas estão falando ou rindo de mim. Então, quando a droga está em efeito no meu corpo, sinto que posso realmente fazer qualquer coisa”, afirma. Além de doenças psíquicas, a cocaína também apresenta outros riscos ao corpo. Um único uso da cocaína pode ocasionar um acidente vascular cerebral isquêmico, porque a cocaína tem o efeito vasoconstritor, que faz as artérias que irrigam o cérebro se contraírem. Além disso, o uso prolongado da cocaína pode afetar o córtex frontal do cérebro e trazer prejuízos às funções cognitivas, como na organização de tarefas. Outras drogas Sabotage cantava “conheço manos tão feliz, usava só um baseado e não afundava o nariz. Começo a cola com certas rapaziada, não mandava uma inteira, mas ficava com a rapa”. A música, que retrata a realidade enfrentada pelo próprio cantor, também conta a história de outras pessoas que usam a droga; como Fernandinho, define também Escobar, e também Juliano. Todos começaram apenas no verdinho, ou seja, apenas no baseado. Mas, como explica a psicóloga Zuleika Souza, a
droga causa prazer, mas nunca é a mesma sensação da primeira vez, o que leva o indivíduo sempre a procurar outras drogas. “O efeito da maconha é bem diferente do efeito da cocaína, mas a pessoa que usa vai experimentando para buscar prazer. A pessoa que fuma maconha fica mais vulnerável para usar outras drogas, e assim vai experimentando”, explica Zuleika. Família Zuleika Souza afirma que a família e amigos são importantes para sair do vício. “É o alicerce do ser humano, e para o dependente químico é algo muito significativo. Muitos que chegam vêm com os vínculos fragilizados, então, o trabalho realizado é no resgate dos valores familiares, o que, muitas vezes é possível, mas em outras esse vínculo já está totalmente corrompido”. Ela afirma também que se afastar de um ciclo de pessoas que também fazem uso da droga é importante. “Reconstruir novas relações e se afastar por um tempo é, até estar recuperado emocionalmente, necessário para ter sucesso”, explica. Casado há mais de 20 anos, Marco André Bersani se livrou do vício em um culto evangélico, quando sua filha mais nova nasceu. Hoje, ele tem dois netos e um casamento reestruturado. “Eu fiquei internado um tempo no Hospital Psiquiátrico Pinheiros, onde hoje é o Shopping São José, e sai de lá pensando que tava livre. Mas sempre tinha recaída. Não conseguia parar, tentei tudo e não conseguia. Na noite que fui nesse culto, na casa do irmão Silvio, saí de casa com a intenção de comprar uma pedra de crack. Quando cheguei lá, ouvi um louvor e já senti alguma coisa diferente dentro do meu peito, era a presença de Jesus bem forte. Entrei naquele culto, com muita oração e, quando eu saí, percebi que já estava liberto, e até o pensamento de passar e comprar uma pedra se foi”, conta ele. Quando sua filha nasceu, ele a nomeou Vitória. “Ela foi a minha vitória”, desabafa ele, emocionado. Vício secreto O uso de cocaína é constante entre grandes nomes do entretenimento, seja no cinema, na música ou na televisão. Elis Regina é um exemplo da música popular brasileira que morreu, aos 36 anos, vítima Entrelinha | JORNALISMO UP
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de uma overdose de cocaína. Mas ela não é a única. O ator Fábio Assunção, a atriz Vera Fischer, o cantor Kurt Cobain, a cantora Amy Winehouse, a cantora Janis Joplin, entre tantos outros ícones brasileiros e internacionais, foram vítimas da dependência química, seja em cocaína ou heroína. A overdose, que foi a responsável pela morte de muitos conhecidos e desconhecidos também, se dá pelo uso excessivo de drogas, principalmente pela mistura da cocaína com o álcool, o que causa o chamado de cocaetileno. “A mistura dessas duas substâncias tem um efeito estimulante semelhante ao da cocaína, mas tem um tempo de ação mais duradouro e fica no organismo por mais tempo, aumentando os riscos à saúde, o uso é comum e bem arriscado”, explica Renato Damaceno. “A overdose vai depender da tolerância que a pessoa já tem à droga e também depende de outras doenças que a pessoa possa ter. Uma pessoa que já tem uma doença cardíaca ou uma doença cerebral apresenta um risco maior. Já uma pessoa que não tem essa tolerância e que na primeira vez usou bastante pode mais facilmente ter overdose”, afirma o psiquiatra. Renato afirma ainda que deixar de usar a droga por um determinado tempo diminui a tolerância e aumenta o risco de chegar a uma overdose. A troca de fornecedor ou até mesmo o consumo da cocaína de outro país, cuja substância possa ser mais pura que no Brasil, pode, também, apresentar um risco maior de overdose. Joaquín* experimentou cocaína pela primeira vez aos 19 anos, em um carnaval fora de época em São Paulo. Durante um ano e meio cheirou todos os sábados, até que em um determinado dia ele extrapolou. “Eu tinha almoçado uma macarronada, e depois fui encontrar a galera. Um dos caras tava fumando um baseado e eu dei uns três tapinhas. A minha prima, que estava junto, resolveu que ia cheirar. Então, ela quebrou as carreiras e mandou duas, eu mandei três e, em seguida, tomei um litro e meio de vinho, tudo na brincadeira, na festa”, conta ele, hoje com 37 anos. A prima de Joaquín tinha a mania que a maioria dos cheiradores tem: de pegar a buchinha e o pouquinho que sobra dentro para passar na gengiva ou colocar sublingual para amortecer. “Ela, muito louca,
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pegou uma buchinha que achou que estava vazia e tacou dentro da minha boca. Mas tinha metade. Cara, imagina: álcool, nicotina, maconha e cocaína. Eu parecia a menina do exorcista, vomitando”, relata Joaquín. “Minha boca e minha gengiva amorteceram e começou a fechar a minha garganta. Eu não consegui mais respirar. Ninguém quis me levar para o hospital, então, fui dormir e fiquei barganhando com Deus, ‘se eu sair dessa eu não fumo e nem cheiro mais’. Meu corpo todo tremia, eu não tinha controle muscular. Depois de umas três horas eu peguei no sono. No outro dia, quando acordei, só agradeci e nunca mais cheirei”, desabafa. Ivete Martines Munhoz Villar, coordenadora do CAPS-AD de São José dos Pinhais, conta que é importante mobilizar a sociedade sobre um problema que está presente em todo o mundo. “O tratamento para o dependente químico está mais humanizado, mas ainda existe muito preconceito, principalmente da sociedade para com o usuário, que acaba tendo recaídas e voltando para o meio onde é aceito”, explica. O vício ainda é tratado como secreto. Dois dias antes da festa do cinema, que premia as principais produções, uma reprodução da estátua do Oscar foi retirada de Hollywood Boulevard. A estátua, criada pelo artista plástico Plastic Jesus, causou polêmica por estar “cheirando cocaína”. Em seu site, o artista justificou que “a peça pretende chamar a atenção para o problema escondido de Hollywood do vício em drogas, que afeta centenas de pessoas da indústria do entretenimento e é amplamente ignorado até que alguma grande celebridade morre”. Jesus já havia causado polêmica no ano passado ao fazer uma representação da estatueta do Oscar injetando heroína. Questionado, ele afirmou que era uma resposta à morte do ator Philip Seymour Hoffman. Em um tratamento de desintoxicação, são comuns as recaídas. “O primeiro passo é aceitar que precisa de um tratamento, as recaídas são esperadas, e não deve haver julgamento por isso”, afirma Ivete. As principais drogas que são consumidas pelo mundo são a maconha, o álcool, o crack, o LSD, a cocaína, o tabaco, o ecstasy, os solventes como thinner, cola e esmalte e também medicamentos antidepressivos
sem orientação médica e anfetaminas. Em 1987, a Organização das Nações Unidas instituiu o dia 26 de junho como o Dia Internacional de Combate às Drogas. A data é uma conscientização sobre um problema que se faz presente no dia a dia de todo cidadão. Os cheiradores estão mais presentes na sua vida do que você imagina. Segundo Saviano, o sujeito que está sentado ao seu lado cheira. A professora de inglês do seu filho cheira. Se não eles, o seu irmão, o seu colega de trabalho, o seu chefe. O caminhoneiro, que faz chegar o café na sua cidade cheira para se manter acordado por mais algumas horas enquanto dirige. Ou então o policial que vai te parar. Quem está ao seu lado cheira. Seu professor de português da faculdade, seu melhor amigo. Se não eles, a secretária do seu dentista, ou o médico cirurgião que te operou quando você foi atropelado. Se não eles, o escritor que você lê, o jornalista que você vê na tevê. Mas, se você acha que nenhuma dessas pessoas cheira cocaína, ou você é incapaz de ver, ou está mentindo. Ou, simplesmente, quem cheira é você. *Alguns nomes foram alterados para manter a identidade das fontes em anonimato.
Reportagem
LUIZA RAMPELOTTI
GRAVIDEZ
na adolescência: NÚMEROS AINDA PREOCUPAM
Ao todo são 7,3 milhões de adolescentes grávidas no mundo. Entre elas, dois milhões têm menos de 15 anos
Entrelinha | JORNALISMO UP
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No Brasil, 12% das adolescentes de 15 a 19 anos tinham pelo menos um filho em 2010, segundo o relatório anual Situação da População Mundial do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA). Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o número de adolescentes grávidas está crescendo. Entre 2011 e 2012, 25 mil meninas entre 10 e 14 anos deram à luz, e 440 mil jovens entre 15 e 19 anos tiveram gestações não planejadas. Além disso, 21,5% dos partos no país são feitos em mulheres com até 20 anos. A gravidez precoce é um dos episódios mais preocupantes relacionadas à sexualidade na adolescência, que traz sérias consequências para a vida dos adolescentes envolvidos, de seus filhos que nascerão e de suas famílias. A maioria desses adolescentes que se tornam pais não têm condições financeiras e nem emocionais para assumir a maternidade/paternidade. Por causa da repressão familiar, muitos deles fogem de casa e quase todos abandonam os estudos. Segundo um estudo realizado pela pediatra Maria Sylvia de Souza Vitalle e pela nutricionista Olga Maria Silvério Amâncio, da Universidade Federal de São Paulo, quando a atividade sexual tem como resultado a gravidez, isso gera consequências tardias e a longo prazo, tanto para a adolescente quanto para o recém-nascido. A adolescente poderá apresentar problemas de crescimento e desenvolvimento, emocionais e comportamentais, educacionais e de aprendizado, além de complicações na gravidez e problemas de parto. Ainda de acordo com elas, o contexto familiar tem uma relação direta com a época em que se inicia a atividade sexual. As adolescentes que iniciam a vida sexual precocemente ou engravidam nesse período, geralmente, vêm de famílias cujas mães têm uma biografia semelhante, ou seja, também iniciaram a vida sexual precocemente ou engravidaram durante a adolescência. A adolescência é um período de mudanças fisiológicas corporais e psicológicas, considerada, por alguns, um momento de conflitos ou crises. ‘’Não podemos descrever a adolescência como sendo uma simples adaptação às transformações
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corporais. Mas é um importante período no ciclo existencial da pessoa, em que o adolescente toma uma posição social, familiar, sexual e entre o grupo’’, afirma a psicóloga Bárbara Macedo. Por que a adolescente fica grávida é uma questão que sempre intrigou a todos. Para a psicóloga Bárbara Macedo, na adolescência, a utilização dos métodos anticoncepcionais não ocorre de modo eficaz, inclusive devido a fatores psicológicos próprios do período da adolescência. ‘’A adolescente nega a possibilidade de engravidar, e essa negação é tanto maior quanto menor a faixa etária’’, declara. A atividade sexual da adolescente é, geralmente, eventual, justificando para muitas a falta do uso contínuo de anticoncepcionais. A maioria delas também não assume diante da família a sua sexualidade, nem o uso do anticoncepcional, que denuncia uma vida sexual ativa. Dessa forma, além da falta ou má utilização dos meios anticoncepcionais, a gravidez e o risco de engravidar podem estar associados à falta de diálogo entre pais e filhos, a um funcionamento familiar inadequado, à grande permissividade falsamente vinculada como desejável a uma família moderna ou à baixa qualidade de seu tempo livre. Constatada a gravidez, se a família da adolescente for capaz de acolher o fato com harmonia, respeito e colaboração, essa gestação tem maior probabilidade de ser levada de forma normal e sem grandes transtornos. Porém, havendo rejeição, conflitos traumáticos de relacionamento, punições cruéis e incompreensão, a adolescente se sentirá profundamente só nesta experiência difícil e desconhecida, e o risco da procura do aborto aumenta muito, o abandono de casa, e qualquer atitude impensada que acredita que poderá resolver seu problema. “’O bem-estar afetivo da adolescente grávida é muito importante para si mesma, para o desenvolvimento da gravidez e para o bebê. A adolescente grávida precisa encarar sua gravidez a partir do valor da vida que agora nela habita, precisa sentir segurança e apoio necessário para seu conforto
afetivo, precisa de diálogo e da presença de amor e solidariedade que a ajude nos altos e baixos emocionais, comuns na gravidez’’, diz a psicóloga Bárbara. Vida Real Amanda Mathias Cordeiro Rocha, 20 anos, é mãe da Alice, de 1 ano. Sua gestação foi difícil. Havia terminado o namoro quando descobriu a gravidez, o namorado não quis reatar, porém, assumiu a criança. Sua família não reagiu muito bem no início da notícia. ‘’Foi muito difícil ter que contar que eu seria mãe, e o pior, solteira. Meus pais surtaram no começo, mas depois todo mundo ficou encantado e querendo conhecer logo o rostinho da Alice’’, conta Amanda. Hoje, Amanda é casada com Luan Raphael Rocha, também com 20 anos, que cuida da Alice como se fosse sua própria filha. ‘’Pra mim, ela é a minha filha, independente de não ser de sangue. Eu e Amanda começamos a namorar quando a Alice tinha 4 meses, então eu pude acompanhar as fases dela e nasceu esse amor. A primeira palavra dela foi ‘’papai’’ e fui eu quem ouvi, isso me faz sentir pai’’, conta o papai babão. Luciana Cordeiro, mãe de Amanda, conta que foi um choque no começo, inclusive pela condição financeira da família. ‘’A gente não estava em uma boa fase, eu estava desempregada, o pai da Amanda é aposentado e ela estava trabalhando. O pai da Alice disse que ia ajudar, mas assim que ela nasceu começaram os problemas com ele, porque ele também estava desempregado’’, relembra Luciana. Porém, à medida que a gravidez de Amanda se desenvolvia, o amor da família pelo bebê também aumentava. ‘’Quando a gente conseguiu assimilar tudo, perceber
o desenvolvimento da gestação, digerir que realmente aquilo estava acontecendo, a gente começou a olhar com outros olhos. Olhos de conformação e apoio, e começou a nascer o carinho e amor. Virei uma vovó coruja’’, diz a vovó Luciana.
dedicar só ao trabalho, para conseguir sustentar o filho. Em outras ocasiões, a criança fica sob a responsabilidade dos avós e o pai continua levando a vida como se nada tivesse acontecido. “Assim que meu filho nasceu, levei o serviço ainda mais a sério. Perdi muito das Um filho não é gerado por uma única coisas que costuma fazer um rapaz com pessoa aquela idade, como sair com os amigos Cabe destacar que a gravidez precoce e aproveitar o dinheiro para as compras. não é um problema exclusivo das meninas. Mas, a partir do momento que você tem Não podemos esquecer que, embora os uma família, as coisas mudam, as responrapazes não possuam condições biológicas sabilidades aumentam e o dinheiro tem para engravidar, um filho não é concebido que ser usado com muita cautela. Por por apenas uma pessoa. E se é à menina conta disso, a partir da notícia, me tornei que cabe a difícil missão de carregar no um pai”, comenta Fábio Amorim Mendes, ventre o filho durante toda a gestação, de hoje com 31 anos, mas pai do primeiro fienfrentar as dificuldades e dores do parto, lho aos 17. o rapaz não pode se isentar de sua parcela de responsabilidade. Por isso, quando uma adolescente engravida, não é apenas “Foi muito difícil ter a sua vida que sofre mudanças. O pai, asque contar que eu sim como as famílias de ambos, também seria mãe, e o pior, passa pelo difícil processo de adaptação a uma situação imprevista e inesperada. solteira. Meus pais A responsabilidade de casamento surtaram no começo” deixou de existir na maioria dos casos, mesmo porque a sociedade assumiu uma postura mais liberal em relação ao fato. A médica Adriana Lippi Waissman, obstetra Bárbara explica que o pai adolescendo Hospital das Clínicas da Universidade te pode mudar naturalmente. “Existe algo de São Paulo, especializada em gravidez que se chama instinto. Porém, isso vai muna adolescência, diz: ‘’O que percebemos dar de acordo como foi formada sua estrué que os meninos, muitas vezes, gostam tura psicológica, como o pai que o rapaz da gravidez de suas companheiras porque teve. Quando a criança nasce, ele perceisso representa uma maneira de firmar a be que aquela responsabilidade é dele, e própria masculinidade. Eles também estão nesse momento começa a arcar com as atravessando uma fase de transição, de atitudes”. busca da identidade e, de uma forma ou Porém, a atitude de Fábio é rara. O outra, a gravidez da companheira é prova fato é que muitos adolescentes, ao se torde que são realmente homens’’. narem pais, têm a prática de abandonar a Por outro lado, o adolescente vê na mãe da criança e consequentemente seus gravidez da garota uma maneira de perpe- próprios filhos. Isso acaba fazendo com tuar a família. O menino se preocupa com que haja a generalização de que pais adoisso e soma a essa ideia de continuidade lescentes são irresponsáveis. da família a sensação de estar criando algo Há raras pesquisas sobre o comporpróprio, que é dele mesmo. ‘’Então, algu- tamento do pai adolescente, mas os esmas vezes, eles acabam assumindo essas tudiosos da questão estimam que apenas gestações. Assumir não significa morar um em cada três assuma a responsabilijunto na mesma casa, embora isso possa dade pela paternidade e um número ainacontecer’’, afirma Adriana. da menor se case com a mãe da criança. Segundo a psicóloga Bárbara Macedo, Em 2006, dos 111365 homens na grande com a paternidade precoce, alguns ado- São Paulo que disseram o “sim”, somente lescentes acabam pulando etapas da vida. 2941 (2,6%) tinham entre 15 e 19 anos, seMuitos deixam o estudo de lado para se gundo dados da Fundação Seade. O mais
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comum é simplesmente morarem juntos. Após juntarem as escovas de dentes, 62% sobrevivem com suporte financeiro dos parentes – em geral, os da “noiva”. Fora da escola O resultado da gravidez na adolescência são jovens fora da escola, sem chances no mercado de trabalho, que não têm renda para sustentar sozinhos seus filhos. Uma vida marcada pela falta de planejamento, de perspectivas, de opções, como pontua Célia Márcia Birchler, referência técnica na saúde do adolescente da Secretaria Estadual de Saúde do Espírito Santo (Sesa). “É uma perpetuação da pobreza.” Uma pesquisa realizada pelo Serviço Pré-Natal de Gravidez na Adolescência da Universidade Federal de São Paulo, com 40 adolescentes grávidas, por exemplo, revelou que apenas 5% delas continuaram a estudar durante o período de gestação. A maioria não completa o ensino médio e acaba ocupando subempregos. No Brasil, atualmente 75% das adolescentes que têm filhos estão fora da escola. O país tinha 309 mil meninas de 15 a 17 anos nessa situação em 2013, e mais de 257 mil delas não estudam e nem trabalham segundo o levantamento do Movimento Todos pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), de 2013. A Pnad mostrou que o Brasil tinha 5,2 milhões de meninas de 15 a 17 anos. Dessas, 414.105 tinham pelo menos um filho. Neste grupo, apenas 104.731 estudam. As outras 309.374 estão fora da escola. Um pequeno grupo só trabalha (52.062). ‘’As meninas acabam abandonando a escola pelo motivo da gravidez. Aqui a gente tem muitos casos desse tipo. E não tem o que eu possa fazer. Infelizmente, elas assumem outras responsabilidades e prioridades nessa determinada fase da vida que não tem outra solução possível, ainda. O que a gente precisa é de políticas públicas, que também passem pela educação, assistência social, saúde. Todas as partes interligadas para que a gente possa enfrentar esse desafio’’, declara a diretora do Colégio Estadual José Bonifácio, em Paranaguá-PR, Elizabete de Souza Picolli.
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Reportagem
SACHA SANCHES
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Com o sucessivo lançamento de filmes de super-hérois baseados em histórias em quadrinhos, a venda desses gibis, consequentemente, subiu. Inicialmente, os preços eram baixos e um leitor assíduo de quadrinhos saía da banca com a sacola cheia. Hoje, o mercado de quadrinhos, também denominados HQs, é bem diversificado, porém com uma realidade extremamente distante do Estados Unidos e Japão, por exemplo. É claro que nesses países a indústria já é solidificada. Originalmente, a primeira história em quadrinhos foi criada pelo artista americano Richard Outcault, em 1895. A linguagem dos HQs, tal como é conhecida hoje, com personagens fixos, ações fragmentadas e diálogos dispostos em balõezinhos de texto, foi inaugurada nos jornais sensacionalistas de Nova York. Na verdade, as origens das HQ são mais remotas ainda, já que culturas mais antigas, como a grega e a egípcia, narravam histórias através de sequências de imagens desenhadas. Segundo o livro Narrativas Gráficas, de Will Eisner, em 1929, os gibis do marinheiro Popeye foram criados e, um ano mais tarde, o Mickey, para no ano de 1938 surgir o Pato Donald. A partir de 1933, os quadrinhos que envolviam as histórias de Walt Disney começaram a ser publicados, sempre no formato padrão das histórias em quadrinhos da época. Historicamente, durante a Segunda Guerra Mundial, foram criados vários super -heróis norte-americanos para ajudar na luta dos Estados Unidos contra a Alemanha e o Japão. Por causa da censura na década de 50, muitas editoras foram à falência, principalmente nos Estados Unidos. É dito que o renascimento dessas histórias em quadrinhos veio a acontecer nos anos 60, com a criação de mais uma série de super-heróis. A partir daí, as narrativas dos HQs começaram a variar tanto em histórias mais leves quanto dramas. O interesse era tanto que não demorou para as empresas explorarem o tema através da comercialização de brinquedos com a imagem dos personagens, programas de rádio e filmes. No início da década de 70 os quadri-
nhos underground surgem e estes eram vendidos de forma independente também. Os Freak Brothers de Gilbert Shelton, Victor Moscoso e Bill Griffin eram os mais conhecidos e vendidos. Em Curitiba, Fabrizio Andriani trabalha com design gráfico e ele comenta que o quadrinho independente está muito bem, levando em conta a participação de quadrinistas que vendem seus títulos em feiras e eventos de HQs. “Viver de quadrinhos ainda é complicado, mas é uma situação muito melhor que no passado. É necessário o artista saber empreender sua arte, saber vender seu gibi, saber qual é o seu público, qual é sua pegada comercial”, explica Fabrizio. Nos anos 80, os americanos inventaram o graphic novel direcionado para um público mais adulto. O grande destaque e principal ponto desta nova linha foi a história de um Batman sombrio e misterioso, amargurado e violento, e foi aí que o cavaleiro das trevas de Frank Miller firmou a maioridade no mundo dos super-heróis. A violência, a insanidade, a sensualidade e as crises existenciais passaram a habitar as narrativas dos quadrinhos, e exemplos de obras como a assassina Elektra de Frank Miller, Watchmen de David Gibbons e Alan Moore, Demolidor de Stan Lee e Bill Everett, entre outros. Foi também em um conjunto ideológico daqueles anos, que os quadrinhos logo passaram a despertar interesses políticos e sociológicos. Os quadrinhos consolidaram-se como produtos culturais lucrativos durante o período entre os anos 1950 e 1960. Já os gibis nacionais tiveram um impacto em razão de sua moralização por causa dos dois tipos de publicações que muitos roteiristas e ilustradores consideravam ameaçadoras. Uma delas era a publicação dos gibis estrangeiros que dominavam a concorrência com um custo mais baixo; e a outra dos quadrinhos psicólogicos de terror e violência que chamavam a atenção significativa, sendo que ao mesmo tempo despertavam a revolta de grupos mais conservadores que desprezavam a arte, pois eles tinham a visão de que era uma leitura perturbadora e negativa à sociedade.
Depois do surgimento de HQs baseadas em histórias de super-heróis, a venda desses gibis se estabeleceu. O patriotismo era o ponto-chave. Os super-heróis, com sua clássica visão do bem e do mal, serviram muito bem a esse propósito. E o maior exemplo disso foi o mais patriota de todos: o Capitão América. As histórias em quadrinhos mais famosas são realmente aquelas que retratam a vida de super-heróis, eternizados na arte sequencial e transportados para a linguagem cinematográfica, ganhando projeção internacional. No fim da década de 30, surgiu o primeiro super-herói que possuía identidade secreta, o Superman de Siegel and Shuster. Enviado do planeta Krypton para viver entre os humanos e criado por um casal de fazendeiros do Kansas, ele preservava sua identidade secreta como repórter Clark Kent, porém usava seus poderes para combater a injustiça. Muitos o destacam como o personagem que marca o início da Era de Ouro. O artigo de René Gomes Rodrigues Jarcem, História das Histórias em Quadrinhos, de 2007, aborda que o Superman foi logo polemizado por causa de Friedrich Nietzche. Na época, os nazistas haviam se apropriado de diversos conceitos deste filósofo alemão, incluindo o do übermensch, que traduzido acaba de certa forma tornando-se similar ao título de Superman. As pessoas esquerdistas do mundo inteiro acusaram o personagem de ser um símbolo do imperialismo norte-americano. Com a criação do Superman, a indústria dos super-heróis nasce e se consolida. Quando o governo americano instituiu a Lei Seca em 1920, que proibia a fabricação e a comercialização de bebidas alcoólicas no Estados Unidos, o evento acabou se tornando fundamental para o principal cenário de origem da indústria dos quadrinhos. E foi no ano de 1933 que ocorre a Grande Depressão, crise econômica americana que fixou mais um ponto marcante para o surgimento das narrativas de super-heróis em quadrinhos. É claro que as histórias em quadrinhos já existiam antes disso, porém elas eram apenas publicadas em tirinhas dos jornais americanos. Entrelinha | JORNALISMO UP
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A era de ouro Conforme é apresentado no livro Enciclopédia dos Quadrinhos, de André Kleinert, uma capa massante havia chegado ao mercado pelo preço de 10 cents. A imagem era um homem muito forte que erguia um carro com as próprias mãos, vestido com uma roupa colante azul e um S no peito e junto a uma capa vermelha. Os traços eram do homem de aço e esse foi o marco inicial da chamada Era de Ouro dos quadrinhos. A partir da década de 40, houve um estouro de criatividade. Tudo motivava novas invenções, que imediatamente caíam no gosto da molecada. E foi nesse período que surgiu o Lanterna Verde, o Flash e a Mulher-maravilha também, que hoje é apontada como um dos mais importantes personagens feministas.
“São vários os filmes feitos de adaptação de HQs. As HQs podem influenciar comportamento, criar gírias e ditar algumas tendências em moda e design de ambientes, por exemplo”. Ele explica que os quadrinhos fazem parte de uma literatura de massa e são entretenimento puro. “O cinema tem um glamour que as HQs não possuem. É um outro nível, mas também é entretenimento. Mas pode ser um modismo, pode ser que daqui alguns anos o cinema se canse de usar quadrinhos e diminua essa febre toda de filmes de super-heróis e coisas do tipo”. E ele ainda acrescenta: “Acredito que dificilmente todos que assistem aos filmes inspirados em HQs realmente leiam HQs”. Fabrizio Andriani é um dos responsáveis pelo evento Gibicon e, para ele, os filmes baseados em super-heróis são puro modismo passageiro. “É claro que dado o Era de prata investimento absurdo que a indústria cineQuando a guerra acabou, o que sobrou matográfica faz, isso acaba trazendo novos foi um mundo a reconstruir. Os quadrinhos leitores e estimulando o mercado, mas o de heróis passaram a ser menos interes- que impressiona no Brasil é a quantidade santes diante de um público mais maduro. de material autoral com temáticas diversas Entretanto, crescia o movimento de críticos que fogem totalmente dos super-heróis. que notavam a violência em suas páginas. E isso eu acho extremamente saudável!” E foi nesse contexto que o psiquiatra Fredric Wertham publicou um livro im“Foi muito difícil ter plicando que a maior parte dos casos de violência infantil eram influenciados peque contar que eu los quadrinhos, o que fez surgir a Comics seria mãe, e o pior, Code Authority, uma forma de autocensura solteira. Meus pais para eliminar os conteúdos mais violentos. Stan Lee, criador da Marvel Comics, surtaram no começo” começou com o Quarteto Fantástico para competir com a Liga da Justiça, mas logo ele criou o Thor, Hulk, Homem de ferro, Em Curitiba Homem aranha, os Vingadores e os X-Men. Na capital paranaense há um interesse Estes eram os heróis construídos com per- crescente e, de acordo com Fabrizio, isso é sonalidades mais complexas. Sendo assim, o início de uma onda positiva para os quaa Marvel tinha, pela primeira vez, con- drinhos paranaenses e curitibanos. A última dições para competir com a DC Comics. Gibicon foi um sintoma claro disso. Ele explica que a cultura das HQs é explorada de No cinema diversas maneiras em Curitiba. “A Gibiteca, Quando o Superman chegou aos cine- a mais antiga das Américas, é um local onde mas, ele elevou a popularidade dos heróis o cidadão pode ler cerca de 10 mil títulos, a um novo nível, e dessa vez bem mais forte além disso ela também é formada por dedo que antes. O início da febre dos heróis no senhistas e roteiristas os quais realizam dicinema havia começado e aparentemente versos tipos de oficinas. A Gibiteca também atinge seu ápice nos dias de hoje. A verda- fornece o seu espaço para debates e pade é que o mundo precisa tanto dos heróis lestras com artistas do Brasil e do mundo”. agora como quando eles foram criados. Ele ainda comenta sobre a Gibicon. “Eu Para o quadrinista Antonio Eder, os creio que a Gibicon esteja indo por um caquadrinhos influenciam, sim, o cinema: minho bem interessante, em que a qualida-
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de e a cultura são os dois focos principais. Quando me refiro à qualidade, não me refiro somente em trazer grandes nomes dos quadrinhos, mas principalmente em ter um evento formativo, que tenha sempre os melhores workshops e mesas redondas sempre mais aprimoradas e com temáticas diversas” Fabrizio acha que o evento foge do estereótipo geek, trazendo outros elementos e referências que os quadrinhos utilizam e que fujam das modinhas passageiras também é visto como um viés interessante para o evento. “Queremos algo a mais e algo melhor, mais profundo. Quem lê quadrinhos sabe que os autores bebem em milhares de fontes, muitas vezes fontes da literatura clássica, ou de filmes neorrealistas, ou da escola russa e assim por diante. Está na hora de o evento ir cavar mais a fundo.” Segundo Antonio Eder, tem muita coisa acontecendo em Curitiba, e isso inclui 12 álbuns de quadrinhos sendo feitos, o que é um número significativo. “São mais de 1000 páginas de quadrinhos sendo roteirizados e desenhados. Acredito que ano a ano o público irá consumir mais quadrinhos. E quadrinhos muito segmentados, coisas realmente de nicho sendo produzido. Assim gêneros como infantil, fantasia, sci-fi, terror, ação de super-heróis, aventuras e tantos outros temas são alcançados por essas futuras publicações”. Fabrizio também explica que, além da Gibiteca e dos eventos, outra realidade que vem crescendo em Curitiba é a publicação de novos títulos com algumas editoras especializadas em quadrinhos, formando o movimento como a DogZilla, Quadrinhopole e Quadrinhofilia. “Também existem escolas especializadas como a Club Comics, a Octopus entre outras. E também temos alguns nomes que despontam no cenário internacional como Ibraim Roberson, que já desenhou para a Marvel e atualmente desenha para a Bonelli da Italia, e Carlos Magno, que já desenhou diversos títulos para editoras americanas e atualmente desenha o Robocop.” Ele diz que os quadrinhos também estão se mobilizando politicamente. “Pela primeira vez foi criada uma frente de quadrinistas e ilustradores que participaram da Conferência Municipal de Cultura para estabelecer regras e critérios para proteger a classe e favorecer a produção e a profissão”, finalizou.
AS SOBREVIVENTES
DA FALTA DE
INFORMAÇÃo A HISTÓRIA DE PESSOAS QUE DESCOBRIRAM ESTAR COM TROMBOSE CEREBRAL - MAS MAL SABIAM DO QUE SE TRATAVA A DOENÇA
Reportagem
GRAZIELA FIOREZE Entrelinha | JORNALISMO UP
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Gramado é uma das cidades brasileiras mais lembradas pelos turistas. Fica no Rio Grande do Sul, mais precisamente na serra gaúcha, região que carrega em sua história invernos com as mais baixas temperaturas. Em agosto de 2013, a neve foi protagonista em uma das semanas mais frias da região em pelo menos 20 anos. E o frio é, inegavelmente, um dos principais convites que atraem uma leva tão grande de turistas, especialmente em julho e em dezembro – muito embora tenha sua economia aquecida por conta do turismo quase todos os meses do ano. A cidade leva a sério esse negócio de fazer dinheiro com o dinheiro que turista traz para gastar. Os empresários da região investem pesado e constantemente em novas atrações para encher de brilho os olhos dos visitantes. Há quem diga que Gramado está se tornando a Disneyland brasileira, visto o grande número de parques temáticos. Se naquele ano foi sorte do turista que presenciou a chegada da neve, agora basta abrir a carteira e tirar em torno de R$ 80,00 e conferir você mesmo: o parque Snowland produz “neve” para alegrar quem quiser ver, todos os dias. É só desembolsar e curtir. Mas, ainda que seja um dos destinos prediletos dos viajantes, Gramado se caracteriza pelo clima hospitaleiro e aconchegante de cidade de interior. E faz todo o sentido, se pensarmos na população residente: são no máximo 35 mil habitantes, espalhados por 240 mil quilômetros quadrados, entre área rural e urbana. Já que foi mencionada, a Disney serve para comparação: os parques temáticos mais famosos do mundo possuem um total de 120 quilômetros quadrados de área. Cabe a Disney em Gramado, mas quase não sobra espaço pro resto. Cidade pequena sim. Daquelas que as pessoas se identificam pelo sobrenome. - Fioreze? Tu é parente do Celso? Aquele que é primo do Fioreze que trabalha no Banco do Brasil? Ou é da família do Henrique do restaurante de fondue? Sim. Basta informar o sobrenome que no outro lado da conversa já foi ela-
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borada a árvore genealógica da família. E é por essas e outras que a conversa flui naturalmente numa cidade como Gramado; por natureza, as pessoas aprendem a gostar de conversa fiada: na fila do Banco – o número de agências bancárias não enche uma mão, possivelmente; na saída da igreja, do colégio, e até do cemitério. Não há infinitas opções de lugares a serem frequentados, o que aumenta ainda mais a probabilidade de as pessoas se encontrarem repetidas vezes. Coisa de cidade pequena, daquelas que pessoas por toda parte se conhecem. Prova disso é a atenção necessária ao percorrer as ruas do Centro: é preciso estar atento para não passar de antipático em meio aos conhecidos que abanam, insistentemente, para dar oi. Gramado é o tipo de cidade que não demanda obrigatoriamente de veículos noticiosos para informar o que está acontecendo por sua volta. A comunicação naturalmente acontece, do jeito tradicional: de boca em boca. De pessoa para pessoa. E quando o teor é trágico, então, a informação circula com ainda mais velocidade. E não foi diferente em meados de janeiro de 2014, dia que mudaria a vida de Jéssica Zygoski por completo a partir dali. Jéssica sempre foi estudiosa e, pelo que confirmam familiares e amigos próximos, nunca tirou notas abaixo de 8. Assim que se formou, em 2011, no Ensino Médio do Colégio Estadual Santos Dumont, que fica no centro da cidade, ela sabia decididamente o que pretendia realizar no passo seguinte: seu desejo era cursar Engenharia de Produção. Mas mais do que ter em mente a decisão sobre qual curso escolher, Jéssica sabia que não era tão simples assim. Para estudar qualquer uma das Engenharias em uma universidade particular, o investimento é grande, e sua família não tinha condições de bancar os custos. Inclusive, Jéssica tinha que trabalhar para ajudar com as despesas da casa. Além dela, sua mãe tem que sustentar o irmão, que tem 9 anos. Mas a jovem sabia que esse não seria um empecilho para atingir seu maior objetivo. Esforçada, a garota conseguiu por meio do Prouni uma bolsa integral na Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), na cidade de São Leopoldo, a mais ou menos 100 quilômetros de Gramado. Como a maioria dos estudantes universitários que moram na cidade, Jéssica utilizava o transporte gratuito oferecido pela Prefeitura para os deslocamentos até o campus, que levavam em média uma hora e meia. Natural de Gramado e moradora do bairro Várzea Grande, a jovem, com 19 anos na época, acordou em um dia como qualquer outro. Era em janeiro. Dia normal se não fosse uma
JÉSSICA ANTES DA DESCOBERTA DA DOENÇA | FOTO: ARQUIVO PESSOAL
dor de cabeça boba e uma sensação estranha no estômago. Ela suspeitava de ter comido um lanche que não caiu muito bem. - Achei estranho. Mas ah! Era só um mal estar bobo, nada de mais. Como as dores não cessavam, ela foi até o hospital e lá lhe deram soro e algum remédio que nem lembra o nome. - Nem me olharam direito e me colocaram no soro. Pensavam, assim como eu, que não era nada de mais. Foi pra casa. Acordou no dia seguinte ainda com dor, mas foi trabalhar do mesmo jeito.
- Passei o dia trabalhando com dor e vomitei algumas vezes. A dor persistia. Jéssica passou boa parte da noite vomitando. Às 5 da manhã veio o susto: sua mãe, que acordava nesse horário para ir ao trabalho, a encontrou estática, completamente imóvel, mas ainda acordada. Tudo o que fazia era ranger os dentes. Vanilde, a mãe, pediu socorro. Às pressas, a jovem foi levada ao hospital da cidade. Ao contar essa história, dali em diante – dos quase dois meses seguintes - ela já não lembra de mais nada. É por meio do relato de
Porto Alegre ou Caxias do Sul. E foi nessa última que Jéssica passou as semanas seguintes, lutando pela vida. O que ela não imaginava era que a dor de cabeça que lhe atormentava há alguns dias não era, como deduzia, apenas um mal estar passageiro. Era Trombose Cerebral. Não é exagero afirmar que boa parte das vítimas desta doença só toma conhecimento de seus sintomas, causas e gravidade quando se depara com o problema – como foi a história de Jéssica, que só tomaria conhecimento do que havia passado mais de um mês depois, com a lucidez recuperada e as marcas deixadas. Pelo menos metade da população brasileira não sabe ao certo quais são os reais riscos que a trombose cerebral representa, muitos deles sequer sabem da existência da doença. Pesquisas revelam que apenas 4% dos brasileiros consideram os coágulos sanguíneos a maior ameaça à vida. Pelo menos 50% da população acredita que os acidentes de trânsito e a AIDS são os fatores mais preocupantes. A trombose é um mecanismo de proteção do organismo, que realiza a parada de perdas sanguíneas para fora dos vasos, como em um corte no braço, por exemplo. Mas, aliada a fatores externos, como o uso de determinados medicamentos, tabagismo, alterações genéticas, doenças reumatológicas ou traumas, esse distúrbio pode se manifestar em qualquer parte em que existam veias no organismo (coração, pele, pulmão, JÉSSICA JÁ RECUPERADA COM A MÃE | FOTO: ARQUIVO PESSOAL cérebro), ainda que seja mais recorrente o aparecimento nos membros inferiores sua mãe e de outros familiares que ela do corpo, principalmentes nas pernas. sabe dos detalhes. O que ocorre é a formação dos chamaMomentos mais tarde, houve a li- dos trombos, ou coágulos, em que ficam beração da vaga no Sistema Único de “aprisionadas” uma quantidade anorSaúde e a estudante foi encaminhada mal de sangue. com urgência a Caxias do Sul, a 70 quiAna Calila de Merces, de 29 anos, é lômetros, onde foi internada na UTI do apenas mais uma das vítimas que não Hospital Pompéia, após uma série de sabiam da doença até que, tarde deexames para investigar o que podia ter mais, tiveram que aprender a lidar com acontecido. O hospital que funciona em as consequências. Das repetidas vezes Gramado, o Arcanjo São Miguel, limita- que foi ao médico, voltando para casa se a atender casos de menor gravidade com medicação para enxaqueca, ela só por conta de sua estrutura. Os casos percebeu que algo, de fato, estava ermais complexos, que demandam mais rado quando teve sua visão bastante recursos, são encaminhados imediata- comprometida. “Eu não enxergava mais mente a cidades mais preparadas, como nada, pensei que ia ficar cega”. Diagnos-
ticada há seis meses, ela sabe da sorte que teve: “minha médica disse que se eu tivesse demorado um pouco mais, teria morrido. O sangue já estava bastante coagulado”. No caso de Denise Garcia, de 24 anos, diziam ser apenas inflamação no ouvido. Queixando-se de dores intensas na cabeça, voltou do hospital para casa com uma receita de antibiótico e a indicação de repouso por alguns dias. Mas as dores só aumentavam. Ao tossir, ao espirrar. Para a surpresa da economista, na consulta com sua otorrinolaringologista, seu ouvido não tinha nada. Uma ressonância indicaria o real problema, a trombose, muito mais grave do que imaginava até então. “Eu não fazia ideia de que essa doença poderia afetar o cérebro, pensava que era coisa de idoso e que só dava na perna”, conta. A trombose cerebral é uma doença silenciosa. Alguns dos sintomas associados, como dor de cabeça e cansaço, podem ser atribuídos a outros problemas de saúde, o que dificulta um diagnóstico certeiro. Mas é assunto sério: ela se manifesta como um tipo de Acidente Vascular Cerebral (AVC), que ocorre quando há o entupimento total de uma das artérias do cérebro, e os danos podem ser irreversíveis. Quando não leva o paciente à morte, pode trazer sequelas como cegueira (notada já como sintoma por Ana Calila, uma das personagens desta reportagem), paralisia e dificuldade da fala. O diagnóstico tardio ou negligenciado (devido às diversas possibilidades clínicas que envolvem a manifestação da doença) é mais uma barreira que põe em risco a condição da paciente, e é mais comum de acontecer do que se imagina, pelo que foi possível identificar ao confrontar diversos depoimentos de vítimas. Assim foi o caso de Alexsandra Lopes, de 20 anos, que só soube ao certo o que tinha quando completou 10 dias de internação, em março deste ano. O principal sintoma era a dor de cabeça, como é comum na maioria dos casos. A investigação iniciou com uma tomografia que mostrou que a estudante estava sofrendo um acidente vascular cerebral. Foram 31 dias de internação no hospiEntrelinha | JORNALISMO UP
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tal. O resultado? Alexsandra não pode praticar atividades de impacto, o que compromete em partes sua formação, pois não tem condições de participar de nenhuma aula prática no curso de Educação Física. Sua fala, memória e rapidez de resposta também foram prejudicadas. Após o ocorrido, Alexsandra foi investigar as possíveis causas da trombose. Na família, nunca houve casos parecidos. Não bebia, muito menos fumava. A principal suspeita dos médicos é que o facilitador do quadro tenha sido o uso de anticoncepcional oral, que contém hormônios. Utilizando o modo contraceptivo desde os 13 anos, ela nunca foi alertada sobre os riscos associados. Em momento algum ela imaginou que uma medida de “proteção” poderia se voltar contra ela daquele jeito. E não dá nem para mensurar o número de mulheres que, assim como Alexsandra, não fazem a mínima ideia do que podem estar fazendo com seu organismo. Em todo o mundo, cerca de 9% das mulheres com idade reprodutiva fazem uso de contraceptivos orais. Em países desenvolvidos esse índice duplica para 18%. Apesar de ser um assunto controverso – há os que defendem os benefícios e há quem se mostre contra os
ressadas no assunto, e é por esse motivo que elas são as mais prejudicadas diante da doença potencialmente fatal. No consultório ginecológico, ambiente que deveria, em tese, preparar e prestar esse serviço às pacientes, a falta de informação reflete o completo descaso. A enquete básica é quase sempre feita - “Você fuma? Você bebe? Você tem relações sexuais com que frequência? – mas, para que a paciente saia da consulta com um nome de anticoncepcional prescrito para utilizar, não precisa de muito mais do que isso. Uma investigação mais aprofundada não é feita antes da escolha do modo contraceptivo, ainda que existam muitas outras maneiras de evitar uma gravidez indesejada. Exames de sangue sequer são solicitados. A paciente pode ter um histórico familiar ou outros fatores externos que aumentam significativamente os riscos – a combinação de pílula e cigarro, por exemplo, aumenta em oito vezes o risco de acidente vascular cerebral, mas isso sequer é verificado. “Minha ginecologista apenas receitou e eu comecei a tomar. Não fiz nenhum tipo de exame”, conta Alexsandra Lopes. “Você pensa que está tomando um remédio para o seu bem e, quando vê o resultado, é assustador. Eu quase morri por não ter informações”.
de medicamentos hormonais. Mas isso não é posto em jogo no momento da consulta médica. À paciente, é sonegado o direito de saber mais detalhes de seu corpo para tomar a decisão correta. Da parte dos ginecologistas, se mostra ausente a recomendação criteriosa desses remédios. Muitos deles, inclusive, nem sabem da existência do documento oficial da OMS. O perigo da formação de coágulos em mulheres que fazem uso da pílula como método contraceptivo pode estar associado a um dos tipos mais novos do hormônio progestágenos, contido em alguns dos anticoncepcionais mais recentes, como mostra um estudo divulgado pela “British Medical Journal”. Proteínas relacionadas à coagulação do sangue podem interagir com esses hormônios, fazendo com que o organismo forme os trombos. Islandia Lanna Silva é outra vítima do anticoncepcional. Fazia regularmente o acompanhamento ginecológico, mas sempre que se queixava das dores de cabeça que sentia frequentemente, a médica simplesmente mudava o medicamento, alegando que a dor desapareceria. “Ela nunca pediu nenhum tipo de exame e nunca citou a trombose cerebral”, confirma. Das sequelas, Islandia, que é cantora, precisa conviver com a perda da audição do ouvido direito e o comprometimento de 50% da visão. A falta de informação e de instrução médica vitimiza mulheres que acreditam estar protegendo a si mesmas. Consultas rápidas, de médicos que mal tocam nos pacientes, não revelam uma realidade distante, se o leitor alguma vez já consultou um médico do sistema de saúde brasileiro. Jéssica Zygoski atribuiu ao sofrimento que precisou enfrentar, associado à falta de informação, uma combinação ainda mais infeliz: tabagismo e anticoncepcional. A jovem não tinha fatores de risco, pesquisas comprovam Há, inclusive, um documento da a mínima ideia do que podia acontecer que o uso de anticoncepcionais orais é o Organização Mundial da Saúde, que dá com seu corpo e que, no mínimo, encaprincipal complicador atribuído ao diag- recomendações para o uso seguro de rava esse risco a cada cigarro que tragava nóstico de trombose, além de histórico anticoncepcionais. Muitas mulheres e a cada pílula ingerida. “Eu nunca tinha familiar da doença, que também deve possuem uma condição genética, conhe- ouvido falar de trombose cerebral”, conser investigado. cida como Trombofilia, que potencializa fessa. “Eu fumava, mas desconhecia o Mas esses estudos não chegam ao em até 30 vezes os riscos de formação perigoso que ambos, juntos, causavam”. conhecimento de grande parte das inte- de coágulos no sangue com a utilização Eram em média 10 cigarros por dia, um
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hábito adquirido aos 15 anos que seria prolongado durante 4, até o diagnóstico. Ainda que as bulas indiquem a raridade das complicações relacionadas ao uso do anticoncepcional, a página no facebook “Vítimas de anticoncepcionais: unidas a favor da vida” reúne os casos de centenas de mulheres que tiveram histórias semelhantes envolvendo os efeitos adversos do uso do medicamento. A página, que possui hoje mais de 60 mil curtidas, abre espaço para que as vítimas publiquem vídeos em que contam o drama que viveram, de maneira a conscientizar outras mulheres para que sejam mais cuidadosas quanto à escolha do modo contraceptivo. Trata-se de dar à mulher o poder de escolha e, especialmente, o poder da informação sobre o que fazer com o seu corpo. É direito dela saber que os hormônios aumentam a coagulação do sangue e isso implica em sério risco à saúde houver fatores associados. As consequências da prescrição pouco cuidadosa de ginecologistas podem ser devastadoras, e quanto a isso as pacientes não podem e nem devem se calar, por isso a ideia de mobilizar as mulheres na internet. Estima-se que em cada 1 milhão de habitantes por ano, de três a quatro pessoas são diagnosticadas com trombose cerebral por ano. Ainda que seja uma doença rara – constituindo menos de 1% dos acidentes vasculares - e extremamente delicada, tem cura, especialmente se tratada na primeira hora após o surgimento dos sintomas. No entanto, mesmo que o atendimento seja feito muito rapidamente, o risco de sequelas permanece. A região do cérebro afetada e o tamanho do coágulo podem decidir o futuro da vítima. No caso da Jéssica, o coágulo estava localizado muito próximo – a quatro centímetros - do cérebro, o que inviabilizava qualquer tipo de procedimento cirúrgico e diminuía a expectativa da equipe de médicos quanto à recuperação da jovem. Alternando entre quadros de lucidez e outros de completo estranhamento, Jéssica não respondia bem aos medicamentos, que não faziam com que o coágulo diminuísse, e por esse motivo ela foi colocada em coma induzido.
- No hospital, eles falavam para minha mãe que se eu sobrevivesse, iria passar o resto da vida vegetando. Jéssica ficou um mês em coma e mais 15 dias internada no hospital. Nesse meio tempo, enquanto aguardava as reações da paciente, a cidade de Gramado se mobilizava para dar todo o apoio financeiro que fosse necessário, afinal de contas era um tratamento extremamente caro e sua família não tinha condições de bancar todas as despesas médicas com as quais o hospital não arcava. Toda a semana a jovem estampava páginas dos dois jornais em circulação na cidade, com informações sobre a evolução de seu quadro; eventos foram realizados com o objetivo de reverter todo o valor em doação à família Zygoski; urnas para a doação de dinheiro foram espalhadas por diversos estabelecimentos comerciais da cidade e nas redes sociais os moradores publicavam e compartilhavam os dados bancários para doação de qualquer quantia. Após receber alta, sem ter nenhuma recordação sobre a noite em que passou mal e que a deixaria pelo menos 40 dias longe da cidade e de seus amigos, a estudante foi para casa, tão sedada que nem reconhecia o local. Jéssica não era mais a mesma pessoa. Não andava, sequer conseguia ficar de pé, pois o lado esquerdo de seu corpo estava paralisado, e o outro muito atrofiado. Não falava - pelo uso da traqueostomia, que permite a chegada de ar aos pulmões - e usava sonda e fraldas. Aos poucos foi entendendo e digerindo o que havia acontecido e a reviravolta que a vida tinha dado. - Foram me explicando e me mostrando como a cidade inteira e arredores se mobilizaram e me ajudaram não só financeiramente como torcendo, orando e mandando pensamentos positivos. Felizmente, as previsões desanimadoras dos médicos não se confirmaram - diziam que ela tinha apenas 10% de chances de sobreviver e, se isso acontecesse, seria dependente de terceiros durante toda a vida. Hoje, ela fala, caminha, recuperou boa parte dos movimentos do lado do corpo paralisado em intensas sessões de fisioterapia, e até
JÉSSICA ZYGOSKI DEPOIS DA DOENÇA | FOTO: ARQUIVO PESSOAL
retomou o curso de Engenharia de Produção. E a grata surpresa veio há alguns meses: “Fiz uma ressonância magnética para checar a evolução do coágulo e descobri que ele nem existe mais”. No dia 16 de janeiro de 2015, completou um ano do evento que mudaria a vida de Jéssica Zygoski. “Posso dizer que estou de aniversário, completando um ano hoje”, comemorou na época. Encarar a morte tão de perto, definitivamente, mudou a percepção da jovem sobre a vida. “Sou uma Jéssica muito diferente da antiga, foi um aprendizado sem tamanho”. Ela, que pensou que “morrerria de tanto viver” lá pelos 80 anos, celebra a recuperação quase que plena, depois de enfrentar uma doença que sequer tinha conhecimento sobre. Da falta de informação, de instrução, - de sorte, alguns diriam - à falta de lembranças desanimadoras, Jéssica se transformou em uma mulher que passará a desejar a si mesma, em todo dia 16 de janeiro, um “Feliz ano novo”.
Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
GUILHERME DEA
ACHEI ESTAVA SEGURO EU
QUE
A sociedade está cada vez mais conectada e digital, mas não prestamos atenção na nossa segurança. Isto é, até alguém invadir nossas contas
38 O USUÁRIO OBSCURO DA INTERNET | FOTO: VICTOR LOVATO
Eu achei que estava seguro. Cheguei no escritório do professor Ludovico Szygalski Júnior um pouco cansado. Não por causa da breve caminhada de uma quadra que fiz rapidamente após estacionar o carro na primeira vaga que vi, mas porque acelerei o máximo que pude (porém, dentro dos limites permitidos pelas leis de trânsito) para chegar ao local antes que a bateria do meu telefone acabasse e não permitisse que eu gravasse a entrevista. Mesmo com o rádio fornecendo uma fraca fonte de energia, o uso da localização geográfica e da internet móvel pelo Google Maps somado ao terror denominado “sinal de celular” das operadoras brasileiras se provaram mais fortes, e a cada breve espaço de tempo que conseguia olhar rapidamente para a tela, a porcentagem da bateria diminuía ainda mais. Logo que saí do carro, ativei o meu modo de emergência energética – também conhecido como “modo avião”. Originalmente concebido pelas fabricantes como uma maneira para que o usuário conseguisse utilizar seu dispositivo em aviões comerciais, o modo avião interrompe qualquer emissão de sinais no dispositivo, tanto de recepção quanto de envio, permitindo então que você use seu celular sem interferir nos sinais da aeronave. Se realmente usar o celular dentro do avião o faz cair é um debate extenso e para outro momento, mas o que é realmente verdade é que com funções a menos para se executar, a bateria de um celular dura mais. Logo, sempre que estou com bateria a nível crítico ou em algum lugar em que o sinal é péssimo ou inexistente (chácaras de parentes no meio
do mato em locais remotos, rodovias, na Universidade Positivo), eu ativo o modo avião. Limita bastante, mas a bateria consegue durar algumas horas a mais. E nesse caso me garantiria que a entrevista seria realmente gravada. Confesso que estava me sentindo um pouco nervoso quando entrei no escritório branco e com poucos móveis. Apenas uma escrivaninha em L nos fundos da sala, um criado-mudo no fundo e um sofá do lado esquerdo da entrada. Quando estou um pouco nervoso eu geralmente falo um pouco demais, o que não foi diferente aqui. Logo fui pedindo desculpas pelo breve atraso, que tinha tido um problema com o transporte, que estava corrido, com pouca bateria, que inclusive estava com a camiseta da Mostra de Profissões 2015 da Universidade Positivo ainda pois não dera tempo de trocar. E logo encaixei o assunto da conversa: segurança digital. Enquanto eu explicava para o professor um pouco mais sobre a reportagem, os objetivos e o que eu iria perguntar, ele pegou uma folha em branco e começou a anotar uma breve lista. Enquanto isso me fazia algumas perguntas sobre como eu usava meu celular e coisas que me deixavam verdadeiramente agoniado. Assim que terminei de explicar, ele abaixou a caneta. - Eu tenho uma proposta para você. - Prossiga. (Confesso que fico bem mais formal do que o necessário nestas ocasiões de entrevista) - Eu lhe contarei uma história, mas você não pode gravá-la. Você terá que memorizá-la e fará sua reportagem com base nisso.
- Oh, por mim tudo bem. Posso anotar algumas coisas então? – Disse eu já me abaixando pra pegar a caneta e o bloco de anotações na mochila. -Não, você terá que lembrar tudo de cabeça. – Respondeu ele, me fazendo parar no meio do caminho. É estranho explicar a relação entre jornalista e gravador/bloco de anotações. São companheiros inseparáveis como cinema e pipoca, feijão e arroz, Kim Kardashian e seu telefone. Mas isso também varia para cada jornalista. Alguns conseguem memorizar muito bem, outros não conseguem, e por aí vai. Eu me encaixo nos que não lembram muito bem, mas mesmo assim eu topei. Deixei o meu celular de lado e cruzei os braços. A história que o Professor Ludovico me contou é fascinante e assombrosa. E lhe resumirei o melhor que eu consegui lembrar em minha memória. Um homem chega em um bar popular e movimentado, senta-se em um canto e pede a senha do WiFi para o garçom. Para efeitos de fluidez literária, vamos chamá -lo de Eusébio. Ele abre um programa que monitora os pacotes enviados através da rede na qual ele está conectado, e logo ele consegue ver o que está acontecendo nesta rede, quais sites as pessoas estão acessando, que serviços estão utilizando, mensagens enviadas etc. Eusébio se pergunta “isso tudo está sendo passado pelo WiFi, mas será que eu consigo ir mais fundo? ”. Ele então liga o bluetooth do seu computador e vasculha o ambiente. Logo, Eusébio descobre que muitas das pessoas ali deixam o bluetooth dos seus celulares ligados e, utilizando um outro programa, ele consegue entrar nestes celulares. Alguns minutos depois, Eusébio está vendo tudo o que as pessoas estão vendo em seus celulares, as mensagens sendo trocadas, as fotos sendo compartilhadas, tudo o que está sendo digitado. E as pessoas ali nem sequer imaginam o que está acontecendo. Utilizando-se das informações de um dos celulares, Eusébio entra no e-mail de uma das pessoas presentes. Logo, ele se questiona “será que consigo utilizar este mesmo login e esta mesma senha para acessar outros serviços? ”. E então procede, entrando em uma rede social utilizando os mesmos dados. Tudo ali está disponível Entrelinha | JORNALISMO UP
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para ele: fotos, mensagens, e-mails, conversas, curtidas, históricos; ou seja, toda a vida digital de alguém que ele sequer conhece. Eusébio pode postar o que ele quiser, onde quiser e sob o nome de um desconhecido para ele; e tudo com efeitos potencialmente gigantescos. “E se eu postasse esta foto aqui? ”, pensa. Antes de proceder para o próximo passo, Eusébio então se certifica de que ele não pode ser rastreado. Ele está em um local movimentado - um estabelecimento comercial - utilizando o endereço IP do WiFI do estabelecimento. A única coisa que poderia denunciá-lo seria o MAC Address, um identificador único alocado a interfaces de comunicação físicos (ou seja: modens, roteadores celulares, antenas), mas basta uma rápida visita às configurações da placa de rede para que isso seja modificado e não seja mais um problema. O garçom cedeu a senha da internet para ele sem pedir sua identidade. Do ponto de vista da legislação, qualquer crime ocorrido neste endereço será de culpa do dono do estabelecimento. Ele então entra na DeepWeb. Também conhecida como DeepNet, DarkNet, entre outras alcunhas. A internet como um todo é muito maior do que imaginamos. A internet que nós conhecemos normalmente, aquela que você usa para acessar redes sociais, sites de pesquisa, séries online, fofocas no EGO ou aquele fórum totalmente dedicado a palhaços (sim, isso existe), ou seja, toda a extensão da internet que é indexada pelas engines de busca tradicionais, compreende apenas uma fração da internet como um todo. Se a internet fosse um iceberg, a internet que nós usamos e conhecemos seria aquela parte que fica acima da água. Nesta mesma metáfora, a DeepWeb seria a parte submersa do iceberg. Esta parte não é acessível por meios normais, requer softwares especiais, técnicas específicas e não são indexadas pelas engines de busca. É amplamente conhecido que a DeepWeb é separada em camadas; por serem ocultas, não se sabe tudo sobre elas. É preciso entender que esta região da internet é extremamente perigosa. É onde drogas, armas, assassinatos por encomenda e todo o tipo de horror possível, imaginável e inimaginável da raça humana estão. O simples ato de entrar nesta região (que é um feito difícil
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por si só) pode fazer com que você perca total controle do seu computador ou até mesmo ser preso. O que Eusébio, o cara da mesa do canto do bar, está fazendo em um lugar tão perigoso? Vendendo as informações que acabou de colher. Informações são produtos valiosos e caros. Na DeepWeb, dinheiro comum não é utilizado. Em seu lugar utiliza-se uma moeda criptografada chamada BitCoin, cuja proteção impede que transações e movimentações sejam rastreadas. As informações vendidas têm destinos variados. E Eusébio consegue alguns BitCoins na transação. Prosseguindo para outra parte da DeepWeb há um local onde vírus, malwares e ferramentas de invasão são disponibilizadas e vendidas. Eusébio então compra um malware com o dinheiro que acabou de ganhar e então o lança nos celulares que ele obteve acesso. As outras pessoas podem até observar algo de estranho em suas telas, mas não há mais escapatória: seus celulares já estão infectados e tudo o que há ali – informações, apps, fotos, mensagens, vídeos, informações de digitação, senhas – já não lhes pertence mais. Para finalizar a noite, Eusébio resolve então criar um hotspot e distribuir sua internet com todos ao redor. Ele cria um hotspot público, aberto. Com um sinal forte e ausência de senha, logo muitos se conectam a sua rede. E tão logo quanto, mais informações e mais celulares também estão infectados e capturados. Nomes, logins, senhas e números de cartão de crédito estão completamente expostas, como se fossem um arquivo qualquer. E com tanta coisa em sua mão, logo surge uma outra ideia na cabeça de Eusébio. Ele começa a cobrar suas vítimas para terem suas informações de volta. Seus celulares são travados remotamente, impedindo a qualquer um – exceto o cara da mesa do canto do bar – de acessar seu conteúdo. Estelionato. Em um outro dia, Eusébio resolve viajar. Ele entra no site de uma companhia aérea, checa se o site é seguro e então procede para a compra utilizando os dados que conseguiu anteriormente. No aeroporto, a fim de utilizar o WiFi de uma operadora que exige um login e uma senha, nosso amigo Eusébio, o cracker, cria um hotspot aberto que gera
uma página de login exatamente igual à verdadeira. Um homem senta-se perto dele com o seu computador, disposto a se conectar na internet para trabalhar. O computador busca automaticamente pelo sinal mais forte, que é o do nosso cracker. Ele procede colocando seu login e senha, mas a página aparenta não funcionar. Ele muda então de rede e consegue utilizar normalmente. Ao mesmo tempo, nosso amigo Eusébio consegue as informações capturadas na página falsa e utiliza a rede para continuar os seus trabalhos. E assim ele segue.
{ } Se a internet fosse um iceberg, a internet que nós usamos e conhecemos seria aquela parte que fica acima da água
Em seguida, a história (que o professor me conta) mudou de foco, e então nos concentramos na figura do “sem noção”. O Sem Noção é aquela pessoa que realmente não tem noção alguma. Que posta coisas racistas em suas redes sociais, apoia movimentos que nem imagina, fala o que der e vier na cabeça, a qualquer hora e em qualquer lugar. É aquele que mente para o chefe dizendo que está doente e logo em seguida posta uma foto na praia no facebook. Aquele que fala mal do professor no meio da aula no Twitter. Tudo o que ele faz na internet ficará lá para sempre. - Nós achamos que na internet escrevemos a lápis. Mas na verdade escrevemos tudo a caneta. Não dá para apagar. – disse o professor Ludovico. – Tudo o que fazemos na internet fica marcado, registrado. E as empresas monitoram isso. Você não tem ideia do quanto somos monitorados todos os dias. O professor segue me explicando sobre como as empresas são capazes de rastrear até mesmo a posição do celular de um empregado. É assombroso. Segundo ele, nós é quem deveríamos ser pagos para usar os celulares, e não nós pagarmos para usá-los.
- Muitos nem imaginam que muitas portas são fechadas para eles por conta do que postam nas redes sociais. Um post pode ter sérias consequências, pode ter impactos gigantescos na vida de uma pessoa. Nós achamos que estamos escrevendo a lápis. Mas na realidade estamos escrevendo o nosso futuro com caneta. Enquanto ele me contava estas histórias, eu comecei a ficar apreensivo. Identifiquei-me com alguns hábitos mencionados nas histórias. O Professor olhava com frequência para a tela de seu computador. E enquanto ele me contava sobre o monitoramento pela parte das empresas, não pude deixar de notar uma atmosfera “Orson Wellesística” que subitamente me fez sentir como se estivesse no futuro opressor comandado pelo Grande Irmão em seu romance “1984”. Confesso que por uma fração de segundo eu tive o ímpeto de pular em cima do meu celular em uma tentativa fútil de impedir que meus dados fossem roubados. Se meu celular não estivesse no modo avião, eu provavelmente teria o feito – obviamente de uma maneira mais discreta e sutil. E não, eu não estava sendo hackeado pelo professor. Os grandes vazamentos Segurança digital ainda é um tema muito ignorado pela população em geral. Segundo uma pesquisa realizada pelo Instituto Ponemon e comissionado a pedido da CNN, cerca de 110 milhões de cidadãos estadunidenses – quase metade da população total do país- tiveram algum tipo de informação pessoal exposta em 2014. Segundo a pesquisa, isso resulta em torno de 432 milhões de contas afetadas e que continham nomes, informações de cartões de débito e crédito, questões de segurança, números de telefone, datas de aniversário e até mesmo endereços de residências. Os dados alarmantes foram divulgados em um período complicado em debates sobre a ética digital, agravado por uma série de vazamentos de informações de grandes companhias que vêm ocorrendo desde 2011, quando uma invasão à rede online da Sony, a Playstation Network, trouxe a segurança digital para o
centro dos debates na internet. Em agosto de 2014, cerca de 500 fotos de conteúdo pessoal – e muitas contendo nudez – de celebridades foram postadas no site 4chan, que então repostou o conteúdo por meio de sites como o reddit e o Imgur. Mais tarde foi confirmado que as fotos foram obtidas por conta de uma brecha do iCloud, o serviço em nuvem da Apple que armazena fotos, vídeos, músicas e informações de produtos da companhia. Em novembro do mesmo ano, um grupo conhecido como “Guardiões da Paz” invadiu os servidores da Sony Pictures e demandou uma quantia em dinheiro para que o grupo não divulgasse os conteúdos guardados. Inicialmente ignorado, o grupo cumpriu a promessa e disponibilizou na internet milhares de arquivos confidenciais, incluindo e-mails e informações confidenciais sobre filmes, projetos, pagamentos, atores, atrizes e negociações. Porém, um dos piores casos seja o vazamento de informações do site Ashley Madison, em julho deste ano. Inicialmente, um grupo chamado “The Impact Team” exigiu o fechamento do site especializado em casos extraconjugais como requisito para não vazar informações confidenciais. O grupo dono do site não cumpriu a exigência e, no dia 21 de julho, um arquivo de 10GB foi disponibilizado na internet com informações capazes de identificar os usuários (outros arquivos com mais dados foram disponibilizados nos dias seguintes). Diferente das outras invasões, a do Ashley Madison não traz apenas informações de cobrança, mas também o nome real de pessoas que se cadastraram no site em busca de affairs por motivos diversos. Ou seja, muitas pessoas possivelmente descobriram infidelidades em suas relações. Não é preciso raciocinar muito para entender que muitas pessoas tiveram suas vidas arruinadas com isso. Há relatos de suicídios e extorsões ligados ao vazamento, endereços governamentais e
figuras publicadas encontradas entre os dados, e por aí vai. E há casos bem mais sérios: e-mails registrados na Arábia Saudita se encontram no Ashley Madison. Na Arábia Saudita, o adultério pode ser punido com morte. Não apenas a Sony e o Ashley Madison sofreram com isso. Outras empresas como a Target (uma das maiores redes comerciais dos Estados Unidos), o eBay, a Adobe, o Snapchat e o banco americano JPMorgan Chase também sofreram algum tipo de ataque recentemente, vazando números de cartão de crédito, endereços e... bem, você entendeu. Já imaginou o que aconteceria se alguém conseguisse tomar sua conta do banco? Não é algo que desejamos que aconteça com a gente algum dia. Firewalls não bastam Continuei minha conversa com o professor Ludovico falando um pouco do ambiente empresarial. - Muitas empresas não cumprem seus regulamentos de segurança. E há muito papo sobre a cloud, a nuvem. Na realidade não importa muito qual nuvem você escolha, se é o Azure da Microsoft ou outro. O cara pode me dizer “ah, mas eu coloquei um firewall na minha nuvem e tudo mais”, não adianta tanto assim. É possível gerar um ataque de dentro para fora com um simples pacote. Olhei para ele com uma expressão que provavelmente deve ter sido de surpresa. Eu não sabia que ataques desse tipo poderiam ser executados. - Pronto. Eu acabei de lhe falar tudo o que você precisa saber sobre segurança digital. Eu devo ter ficado boquiaberto por uns bons segundos. Eu realmente achava que sabia algo de segurança digital, mas então descobri que não sabia nada. Eu realmente me considerava até então um
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usuário relativamente cuidadoso com as minhas contas. Eu uso autenticação em dois passos – que requer um código aleatório gerado de 30 em 30 segundos em um dispositivo específico além da minha senha padrão – em todas as contas possíveis e variei as senhas utilizadas, com o auxílio de um gerenciador de senhas que guarda tudo em um arquivo criptografado, totalmente sob o meu controle e que está guardado em algum servidor aleatório por aí. Mas após a conversa eu me senti extremamente exposto, vulnerável. Me senti muito besta e me perguntei como eu não havia sido hackeado até então. - Será que não foi mesmo? –perguntou Ludovico. Eu nunca tinha parado para pensar nisso. A pergunta por si só já me fez sentir um arrepio na espinha, mas quando um professor especialista em segurança digital e analista forense lhe fala isso, a sensação é bem pior. Aliás eu comentei que toda a história que ele me contou era baseada em fatos reais? Após terminarmos nossa conversa, que se estendeu bem mais do que os quinze minutos que eu havia pedido no telefone, pedi para gravarmos algumas respostas para que eu pudesse utilizá-las no rádio. Quando perguntei para ele qual seria a maior vulnerabilidade à segurança digital atualmente, a resposta foi seca, simples e direta: “as pessoas”. Segundo ele, as pessoas não tomam os devidos cuidados de segurança e se expõem ao risco. No ambiente corporativo, esses cuidados devem ser redobrados. Não devem ter conexões externas, devem utilizar senhas de várias camadas, criptografia de dados e mais uma série de medidas de segurança.
tes e outras pessoas online. É importante também se informar sobre como sites e lojas guardam suas informações antes de cedê-las, especialmente se forem informações sensitivas. Uma vez compartilhada, não se pode pegar a informação de volta. – disse-me Jessy Irwin, evangelista de segurança digital da AgileBits, uma empresa focada em softwares de segurança, via e-mail. Lembra que eu disse que eu costumo usar aplicativos para aumentar a minha segurança? Pois bem, a AgileBits é responsável por uma delas. Resolvi buscar mais um ponto de vista de dentro da indústria. Por motivos geográficos e econômicos óbvios, resolvi contatá-los pelo Twitter e eles gentilmente me responderam por e-mail. A visão deles sobre o estado da segurança digital atualmente reforça a teoria de que o usuário mediano de internet não é muito bom neste quesito em âmbito pessoal. Jessy citou pesquisas próprias da AgileBits e outras do setor que comprovam isso. Segundo ela, as pessoas ainda comentem os erros básicos, como usar a mesma senha em diversos serviços, baixar anexos suspeitos e cair em golpes de pishing. Não é novidade que muitas empresas estão tentando achar novos meios de autenticação mais seguros que as senhas de números e letras. Há a autenticação em dois passos (que requer um fator a mais que sua senha, como o seu celular ou um código gerado por um token ou um aplicativo), que é uma opção que existe há um bom tempo. Há também grandes empresas investindo no uso da biometria: o sistema Touch ID da Apple utiliza um scanner embutido no botão home do iPhone para ler a digital do usuário; o suporte ao sistema de identificação por digital está presente Nada esteve e nunca estará 100% no Android 6.0 Marshmallow; e por fim, seguro o Windows 10 da Microsoft vem com - Estar seguro na era digital requer um sistema denominado Windows Helatenção e proatividade por parte dos lo, que permite a utilização de câmeras usuários de tecnologia. Para ser verda- com sensores que leem a íris do olho do deiramente seguro, o usuário comum usuário. Seguindo essa linha, perguntei precisa estar atento a como sua infor- a Jessy qual seria o futuro das senhas. mação pode ser utilizada (e potencial- As senhas ainda estarão por aí por mente roubada), e cautelosa sobre que algum tempo. A maior parte da interinformações ela compartilha com websi- net confia em um usuário e uma senha
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como forma de autenticação, e leva um tempo muito longo para desenvolvedores e companhias de tecnologia adotarem novos padrões ou mudar como eles constroem seus sistemas. Esperamos no futuro ver mais senhas combinadas com autenticação de múltiplos-fatores, para que os usuários tenham outras maneiras de se proteger e de proteger suas informações online. Por fim, perguntei a ela se estávamos seguros em um mundo cada vez mais conectado. A reposta foi bem interessante. - Esta é uma questão difícil, pois nada esteve ou estará 100% seguro. Não estamos tão seguros quanto poderíamos, mas ficamos mais a cada vez que alguém aprende e adota um novo tipo de comportamento para se manter seguro online. O [nosso] grande objetivo é fazer com que desenvolvedores que façam tecnologia adotem hábitos mais seguros, e com que usuários também adotem hábitos mais seguros. Se ambos os lados trabalharem em conjunto, todos nós podemos unir forças e ter uma internet cada vez mais forte e resiliente. A minha correspondência com Jessy foi muito breve, mas me ajudou a formar uma visão melhor e mais ampla sobre o estado da segurança digital atual. Ao fim da entrevista com o professor Ludovico, ele gentilmente me acompanhou até a saída. No caminho, fui pegar minha mochila e notei que tinha uma exatamente igual à do professor, uma mochila disponível no catálogo da fabricante de computadores Dell e que é muito bem recomendada. Notei que a minha mochila estava com um dos bolsos aberta. - Opa, minha mochila estava com um bolso aberto. – Eu disse, meio envergonhado e já fechando. - Para você ver, você está saindo de uma conversa sobre segurança com a mochila aberta. Uma ironia do destino. Uma metáfora para o meu aprendizado ali dentro. Achando que estava seguro, quando na verdade não estava. - Bem, só espero que pelo menos as portas do meu carro estejam trancadas. – Sorri, me despedindo.
Reportagem
LAURA TORRES
EsperançA
NAS RUAS
A história de um grupo de voluntários que ajuda moradores em situação de rua
VOLUNTÁRIA KATIA | FOTO: ARQUIVO PESSOAL
tinuei aguardando, mesmo com a expectativa de que ela não atenderia e não daria nada certo. Quando estava quase desistindo, uma voz ofegante atende, “Alô!?”. Durante a ligação, Katia explicava diversas formas para que eu chegasse até a casa dela, e só depois de algum tempo consegui finalmente informar que já estava na frente. Depois disso, ela pediu que eu aguardasse um momento, que o filho dela já iria descer. No apartamento situado no 4º andar do prédio, moram apenas Katia, o filho adolescente e um gata de estimação. O menino chama-se Gabriel, tem uma aparência de roqueiro, algumas tatuagens, e é músico. Deve ter entre 23 e 25 anos. Gabriel apoia a mãe em todo esse projeto, e ajuda nos preparativos em casa, compra pão e ajuda a arrumar doações, mas não sai para a rua com o grupo. Ele explica que gosta de ficar sozinho. “Sou músico, e precisamos de silêncio às vezes”, diz. Depois de alguns minutos Gabriel aparece na frente e me conduz até o bloco em que fica o apartamento, entramos no elevador e o silêncio entre nós é constrangedor. Logo quando saímos do elevador, a luz ascende automaticamente e é possível sentir um cheiro maravilhoso de comida, que se espalhava por todo o corredor. Era evidente que este era o apartamento da pessoa que procurava. O lar de Katia era pequeno. Ao passar a porta, do lado direito era a cozinha, comprida e estreita, com uma bancada, em
que era possível ver caixas de chá, panelas com água quente, e muitas garrafas térmicas. Contando por cima, deveria ter umas oito, no fogão dois panelões com sopa, da onde vinha o cheiro tão maravilhoso, no final, a cozinha se juntava com a lavanderia. Depois, continuando no pequeno corredor, chegávamos até a sala de estar e jantar, que também estavam juntas. Além disso, havia dois quartos e um banheiro. Pequeno mas o suficiente para Katia e o filho. Na sala, não era possível encontrar o sofá, que estava coberto por sacolas de doações, cobertores e sapatos. Os sacos se espalhavam pelo chão até o meio da sala. Quando cheguei, além de Katia e Gabriel, também estava no apartamento, Célia, a grande amiga de Katia. Célia era um pouco mais alta que Katia, tem o cabelo loiro meio ruivo, sempre preso em um semicoque na altura da nuca. Célia de Fátima Oliveira trabalha como agente de saúde e, à noite, a cada 15 dias vai até o apartamento de Katia para ajudar no projeto. Katia se dividia entre dar atenção para mim, cuidar para que a sopa não queimasse e reunir as doações para levar até o carro. Enquanto isso, Célia preparava o chá e colocava nas garrafas térmicas. Aos poucos, outros integrantes do Grupo da Esperança chegavam ao apartamento. Toca o interfone, Katia atende, e sem ouvir ao menos quem era já diz: “Pode subir!”. O condomínio em que mora conta com um portão que tem o interfone e
VOLUNTÁRIOS EM DIA DE ENTREGA DA SOPA | FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Seis voluntários. Pessoas que, sem obrigação, ocupam um dia de suas semanas para mudar a vida de outras pessoas, na maioria das vezes, desconhecidos e sem receber nada material em troca. São todos espíritas, mas não têm como objetivo levar alguma religião para as pessoas, eles querem levar amor, esperança, atenção, para quem, muitas vezes, não tem mais fé na vida e não vê uma saída para a situação em que se encontram. O grupo sai nas noites para levar, como o próprio nome já diz, esperança. São conhecidos pelas pessoas que recebem a ajuda como os anjos da noite. Era uma quinta-feira tranquila, estava frio mas a chuva não ameaçava chegar. Coloquei o endereço no gps e fui. Cheguei em uma rua pouco movimentada, estacionei na frente do local indicado e telefonei para Katia. Katia Simone da Cruz, uma mulher simpática, falante e extremamente prestativa. É baixinha, deve ter no máximo 1,60 de altura, tem os cabelos curtos, loiros. Quando completou 50 anos passou por um enfarte e depois disso teve a certeza de que, se Deus a deixou na terra, era para fazer algo de bom para os outros. Agora, no auge de seus 52 anos, tem a energia de uma criança e a todo momento anda para lá e para cá, e de vez em quando com um cigarro em mãos. Mesmo depois dos problemas de saúde, continua fumando e não pretende parar. O telefone tocou algumas vezes e con-
é possível abrir apertando o botão e uma porta, para entrar nos apartamentos que só abre com chave. Para não ter que subir e descer a todo o momento, Katia criou um mecanismo: conseguiu uma espécie de corda, com um gancho na ponta, em que ela coloca a chave e vai soltando até que a pessoa que está embaixo consiga pegar, depois ela sobe e devolve a chave para Katia. Quem tocou o interfone dessa vez era um casal, Shirley Mattoso e João Mattoso, casados; ela, matemática e ele, contador. Shirley tem o cabelo tingido de vermelho, é baixinha e gordinha, aparenta uns 45 anos. É possível imaginá-la dentro de uma sala de aula, com alunos bagunceiros, conversando e jogando bolinha de papel, ela com pastas de chamada nas mãos, a régua grande de matemáticos, cabelo preso no formato de um coque, típico de professores, entrando na sala e pedindo silêncio aos alunos. João também não é muito alto, formado em contável e extremamente formal, no jeito de se vestir e falar, certamente, quando trabalhava em algum escritório de contabilidade era o ‘certinho’, talvez por isso deu certo na profissão que requer organização e raciocínio. Nenhum continuou na carreira de formação. Hoje eles têm uma empresa e trabalham juntos. Começaram a participar da ação, com o Grupo da Esperança há um ano e meio e, agora, tem um compromisso toda quinta-feira e não marcam nenhuma outra coisa nesse dia. Não muito tempo depois, chegou Gilberto Varpechowski. Ele trabalha com informática e fotografia. Alto, deve ter 1,80m, aparenta ter mais de 40 anos, cabelos loiros e ralos. O rosto é comprido e parece sempre sério. Introspectivo, e sempre pronto a ajudar. Com a fala tranquila, passa calma e sensatez quando fala. Há algum tempo buscava fazer algo que não envolvesse apenas o próprio interesse. Como sempre ouviu muito sobre fazer o bem, conheceu as pessoas que participavam da ação e se juntou a elas. Sempre gostou de ajudar as pessoas que precisam e fazer coisas que não fossem apenas do próprio interesse. O projeto começou no grupo espírita que frequentam. Uma menina chamada Priscila começou, mas por algum motivo não deu certo, e então Katia assumiu a responsabilidade e agora comanda o grupo. Ela conta que, no começo, era para a sopa
ser feita na casa de cada um dos participantes, mas como nunca ninguém pode ela puxou a responsabilidade e acaba fazendo em sua casa todas as vezes. Eles saem a cada 15 dias, nas quintas-feiras, levando sopa, chá e pão, quando está frio, para moradores em situação de rua. No verão, levam sanduíche e suco. Isso é o que levam de material, mas, na verdade, levam atenção, carinho e amor que essas pessoas não recebem. Essa noite era a vez da sopa, pão e chá. Shirley e João encontraram algum lugar no sofá cheio de doações e sentaram, Gilberto conversa na cozinha com Celia, e Katia sempre andando de um lado para o outro e falando muito. Enquanto Célia terminava de colocar o chá, Gabriel chegou com seis sacolas de pão. Eram 160 pães. Entrega a nota com o valor de R$70,00 para a mãe e se dirige para a mesa de jantar, coloca todas as sacolas em cima e começa a tirar o pão dos sacos, passando para uma sacola retornável. Da cozinha, era possível ouvir Katia dando instruções para ele, “não jogue fora essas sacolas, nem rasgue.. porque nós usamos como lixo quando estamos na rua”.
{ } Mas, na verdade, levam atenção, carinho e amor que essas pessoas não recebem
Todo o trabalho do grupo sobrevive com doações. Raramente ela ou algum outro integrante tiram dinheiro do próprio bolso para algo. Por isso, Katia tem um caderno em que anota toda a contabilidade. Anota o dinheiro que entra, o que sai, extratos da conta no banco e anexa todas as notas fiscais. Depois, na página do grupo no facebook, ela coloca, a cada saída, o quanto e com que gastou o dinheiro, fotos dos alimentos, dos chás e de tudo pronto. O interfone toca mais uma vez, e agora chegaram as duas pessoas que faltavam, Silvana e Norma. Silvana Varpechowski é mãe de Norma e irmã de Gilberto. Começo a conversar com o trio, sentamos na sala enquanto os
outros terminavam de arrumar os detalhes. Gilberto fala sobre a motivação para começar a participar desse projeto, “Nós ficamos tão envolvidos com os próprios assuntos que às vezes esquecemos de fazer algo que não seja para nós mesmo”. Ele relembra sobre uma vez que estava muito frio, foram até o Mercado Municipal para começar o trabalho e tinhaviaha várias pessoas descalças no chão frio. Outra vez, estavam passando pela Rua XV de Novembro e havia um rapaz com o braço quebrado, deitado na calçada sem nenhum cobertor ou algum tipo de proteção. Mas como o grupo já tinha passado por vários outros lugares antes, não tinham mais doações que pudessem servir para aquela pessoa, “Foi horrível, uma situação de impotência... ver a pessoa naquela situação e não poder fazer nada por ela”, conta. Silvana acredita que, depois que começou o trabalho, valoriza mais as coisas e as pessoas. Tem várias pessoas muito inteligentes na rua, bem instruídas, conversam sobre qualquer assunto, mas por algum motivo foram parar lá. Norma Haluch tem apenas 25 anos, é formada e a mais nova do grupo. Sempre envolvida com assuntos sociais, desde os 16 anos, acompanhava a mãe ao orfanato e depois, na faculdade, também fazia trabalho voluntário. Ela conta que começou a enxergar as pessoas com outros olhos. Antes de participar do projeto, às vezes tinha medo de chegar perto, ou tinha medo de que algum morador em situação de rua fizesse algum mal a ela. Mas agora vê que eles são tão frágeis quanto quem tem um lar, precisam de atenção, e a maioria deles gosta de conversar. Relembra a história de uma senhora, de aproximadamente 60 anos, que, mesmo apesar de tudo o que passa, não perdeu a alegria de viver. Ela canta músicas da igreja em que frequentava, dança e até planta bananeira. Contou a história dela: era casada, mas o marido traiu ela, eles brigaram e ela acabou na rua. Antes de sair, todos vestido a camiseta do grupo, preta com escritas brancas que dizem: “E quando você tem fé, o impossível começa a acontecer”, se reúnem, comem um pouco da sopa e se reúnem para uma reza. Hoje quem puxa a oração é Celia: “Meu mestre Jesus, obrigada por mais essa noite que vamos sair e alimentar quem precisa, nos proteja e ampare, que tenhamos
um bom retorno”, e rezam um Pai Nosso. Todos prontos, hora de ir para a rua fazer o bem. Como os outros carros estão lotados eu vou com Shirley, João, doações, um saco de pão e duas garrafas de chá. No caminho, Shirley começa a contar como a quinta-feira é um dia especial para eles e do quanto gostam de estar com os moradores. Antes, passávamos por eles e nem olhávamos, tinha medo. Hoje, vemos com outro olhar, conhecemos a história, é um olhar carinhoso. João começa a contar histórias que marcaram. Uma vez, estávamos na Rua Barão do Rio Branco, havia uma moça muito abatida. Ela foi espancada pelo marido, a Katia se aproximou e deu amparo. São muitas histórias, problemas com a família, com drogas. Tem um casal de jovens que ficava em um ponto específico. Ela estava grávida e quando deu a luz, a criança foi recolhida pela Prefeitura de Curitiba. E o que é possível perceber foi que o casal não se movimentou muito para reverter a situação. Talvez pelo motivo de que estar ali, com aquela “liberdade”, era mais importante do que assumir uma responsabilidade com um filho. Teve uma situação, perto do natal, em que fomos distribuir pacotinhos um pouco mais elaborados, por causa da data. Estávamos perto do terminal do Capão Raso, e chegaram duas pessoas extremamente embriagas para pegar o pacote. Ficamos conversando por muito tempo e no final os dois pediram um abraço. Se emocionaram muito e falaram sobre a importância daquele abraço, mais do que o alimento que receberam. Os dois homens eram irmãos. Um deles, era contador, bem de vida, tinha um escritório e ganhava muito dinheiro. De repente, sem saber explicar direito o que aconteceu, ele se perdeu, e perdeu também tudo o que tinha... Dinheiro, bens e família. Depois de mais ou menos 15 minutos dentro do carro chegamos ao Mercado Municipal, primeira parada do grupo. Quando descemos do carro, Katia já está conversando com um grupo de moradores e os outros integrantes se dividem em levar pão, sopa, chá, ou roupas e cobertores. Lá conhecemos o Seu Vilson, que tem 57 anos e mora há 4 na rua. Normalmente fica na região do Mercado Municipal e sempre pega sopa com o Grupo da Esperança.
Quando encontrei com ele, estava deitado na beirada de um degrau, na frente de um estabelecimento fechado. Estava deitado em cima de pedaços de papelão, coberto por um cobertor fino, e encostava a cabeça em uma mala preta de tamanho médio que, com certeza, guardava tudo o que aquele homem tinha na vida. Enquanto caminho pelo mercado com Katia encontro outros moradores em situação de rua, deitados e sentados na frente das lojas, que já estão fechadas naquele horário. Encontro também um grupo de viajantes, eles andam sem rumo para onde quiserem. Era um grupo de 5 pessoas, dois iriam para o Rio de Janeiro e os outros três iriam para Foz do Iguaçu. Conversando com eles, se aproxima um homem de estatura média, vestido com um colete florescente. O nome dele é José, é paraibano, foi para São Paulo tentar a vida. Tem mulher e filhos lá. Mas por algum motivo veio parar em Curitiba. Provavelmente em busca, mais uma vez, de melhores condições de vida. Está na cidade há dois meses e pretende ficar aqui até completar a etapa. Sentamos e começamos a conversar. Ele parabeniza a todo o momento o trabalho que o grupo da Esperança faz. Trabalha no estacionamento, cuidando das lojas e dos
carros. Também vende o cartão de estacionamento Estar, para quem precisa. Enquanto come um pão, explica: “Eu não estou aqui porque eu quero. Estou aqui porque estou precisando. Eu agradeço por isso aí que todos vocês estão fazendo. Só que meu objetivo não era estar aqui, eu queria mesmo era estar com minha família em São Paulo. Só que eu estou aqui, e tenho que ficar até eu arrumar condições para voltar para lá. Trabalho como guardador de carro, vendo cartões de estacionamento. Quando sobra um dinheirinho eu vou para o hotel, para dormir. Para não dormir aqui na rua, né?! Porque aqui é muito frio. Trabalho todo dia aqui, acordo 5 horas da manhã e venho para cá. Fico até as oito horas da noite e vou para outro lugar. Depois volto para cá”. José tem 39 anos, escolheu vir para Curitiba por acreditar que era uma cidade diferente das outras. De acordo com ele, mesmo com a fama de “povo gelado” o curitibano é acolhedor. Tem um respeito pelos imigrantes. Me despeço de José e vou ao encontro de Gilberto, que está fazendo carinho em um cachorro. Me aproximo de um morador que está desconfiado, comendo um pão, com um cobertor nos ombros e com um
FRASE ESCRITA NA CAMISETA DOS VOLUNTÁRIOS | FOTO: ARQUIVO PESSOAL
carrinho de recolher papelão, parado perto dele. Puxo assunto sobre o cachorro e pergunto se ele é o dono. Ele responde que sim, mas não parece querer continuar o assunto. O cachorro está muito bem cuidado, é de porte médio, todo preto e com a pata esquerda dianteira e direita traseira branca com pintinhas pretas e o peito branquinho. É impressionante a forma como os animais são tratados. É um cuidado e um carinho muito grande com os cachorros que os acompanham. Ficamos mais um tempo ali e atendemos os que vão chegando. Passado algum tempo José volta, emocionado, abraça Katia e começa a chorar. Entre lágrimas desabafa: “Eu moro na rua, mas o importante é eu falar sobre o carinho que vocês têm por nós, não tem dinheiro que pague. E ninguém faz isso por nós. Todo mundo acha que nós somos vagabundo, enquanto vocês tratam a gente como gente!”. Katia pede para que ele pare de chorar, dá um abraço e se despede, pedindo para que José se cuide e desejando que fique com Deus.
{ } “Estou aqui porque estou precisando. Eu agradeço por isso aí que todos vocês estão fazendo”
Partimos para outro ponto da cidade. Agora o lugar é mais escuro, tem mais pessoas reunidas. É a marquise de um banco. João para o carro e descemos. Quando atravessamos a rua para chegar até eles, Celia passa e pede para que eu fique por perto. Tem várias pessoas, sentadas no chão, em pé e em cima de um colchão de casal. Aqui, elas estão mais alteradas, é nítido o consumo de drogas, como bebidas alcoólicas. Também são pessoas mais jovens, devem ter entre 20 e 30 anos, enquanto no mercado eram pessoas mais velhas. Enquanto observo a distribuição de alimentos chega até mim um rapaz, extremamente magro, aparenta ter 26 anos. É uma noite fria em Curitiba e ele está ape nas com uma camiseta, bermuda e tênis.
OS VOLUNTÁRIOS | FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Ele pede um agasalho, fala que vai morrer de gripe se continuar desabrigado desse jeito. Eu acompanho ele até o carro para ver se tem algo que o serve e começamos a conversar. Seu nome é Paulo Ricardo dos Santos, 41 anos. Formado em administração, fala inglês e espanhol, já foi para os Estados Unidos e há uns 10 ou 12 anos conheceu o crack. Está na rua a nove anos. Ele já usava maconha e bebidas alcoólicas, mas o crack foi devastador em sua vida. “Eu perdi totalmente o controle da minha vida, das minhas ações, perdi meu emprego, tudo. E eu não consigo sair. Já desisti. Desisti de tudo, desisti de trabalho, de igreja, até da minha família. E agora estou aqui. Na rua. Já tentei ir para aquelas comunidades terapêuticas Eu fico bem, encontro emprego, começo a trabalhar. Mas depois eu caio de novo. Cada recaída é pior que a outra. E essa que eu estou agora é a pior de todas, porque eu não estou conseguindo sair de nenhuma forma. Eu já perdi a fé na vida.” Paulo abandonou a família, pois acreditava que eles não mereciam sofrer tudo aquilo. Eles não têm notícias dele já faz nove anos. Disse que passa a noite acordado, consumindo drogas, dorme e quando acorda já vai até a favela pegar mais. Para sustentar o vício ele rouba ou se prostitui. Por vários momentos na conversa ele diz que não acredita mais na vida e repete que não tem mais fé. Não sabe o que fazer. Ao contrário de Paulo, tem um senhor que o
grupo percebe a evolução. Encontraram ele em uma praça, já o conhecem e chamam pelo nome. Seu Luis, a cada 15 dias vai até a praça para conversar com os integrantes do Grupo das Esperança. Um senhor extremamente inteligente, poliglota, fala grego e espanhol. Não é possível entender o motivo que o levou até aquela situação, mas descobri que era empregado executivo de uma empresa, tinha esposa e filhos. De repente acabou se perdendo. Mas agora é possível perceber que cada vez que o grupo o encontra ele está mudado. Se veste um pouco melhor, procura um lugar para dormir e toda quinta aparece para conversar com o grupo. Talvez ele nem precise mais do alimento, mas ainda precisa da atenção. E o grupo entende como uma vitória. Esse é o reconhecimento por tanto trabalho. No fim da noite, o Grupo volta e se reúne novamente na casa de Katia; se sobrou sopa, ela separa em potinhos e cada um leva um pouquinho para casa. É tarde da noite, já passa da 1 hora e Katia continua ativa, andando de um lado para o outro. É possível perceber o amor que ela coloca em tudo o que faz e a satisfação de mais um trabalho concluído. “Se eu tivesse que passar a noite fazendo o que eu faço eu passaria sem problema nenhum. Essa experiência muda completamente a maneira de pensar, encontramos pessoas que na correria do dia a dia nós não reparamos, mas nesse momento você para, dá atenção, pergunta o nome. O benefício maior, somos nós que recebemos, isso é o que vale”, explica Katia.
Reportagem
LUIZA RAMPELOTTI
O MAL DO SÉCULO É A SOLIDÃO
DEPRESSÃO
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JÁ SOMOS O TERCEIRO PAÍS NO MUNDO COM O MAIOR NÚMERO DE PESSOAS COM DEPRESSÃO. E A PREVISÃO PARA OS PRÓXIMOS ANOS NÃO SÃO NEM UM POUCO ANIMADORAS
Aqui no Brasil, apesar do clima tropical, de sol e calor a maior parte do ano e muitas festas, o número de pessoas com a doença cresce a cada ano. Somos o terceiro país mais deprimido do mundo. Foi a BioMed Central (BMC) quem disse. Dizem que em 2020 a depressão vai ocupar o segundo lugar entre as causas de doenças e incapacidades, e ainda se tornar a doença mais comum no mundo, superando o câncer. E tem mais, a depressão ocupa o quarto lugar entre as dez principais causas de morte no mundo. É um monstro conhecido por matar lentamente e com requintes de crueldade. Faz aproximadamente um milhão de vítimas todos os anos. Para desenvolver a depressão não é necessária uma causa definida. Ela simplesmente acontece e se instala. Mas vale lembrar que depressão é diferente das nossas flutuações de humor habituais. Existe diferença entre a doença, e sensações de tristeza ou melancolia. ‘’A depressão é um estado anormal, em que o deprimido demonstra um sofrimento psicológico, com interferências em sua vida social e familiar, independente de idade ou sexo’’, comenta a psicóloga Márcia Homem de Mello. O humor do deprimido é quase sempre de tristeza, angústia, uma irritabilidade constante e ansiedade. Já não se interessa mais pelas atividades que gostava, sofre alteração no sono, no apetite, perde o interesse em sexo, se sente abandonado, não tem mais esperança, já não se importa com a aparência, é sempre pessimista e pode ter constantes dores de cabeça e problemas digestivos. Tudo isso é sinal da depressão. Como as pessoas são diferentes, esses sintomas variam entre elas. O estado depressivo mais elevado pode gerar pensamentos de inutilidade, culpa, vontade de suicídio. Esse é o caso de Jô Eurich. “Um dia eu comentei que estava com depressão pra minha família, mas eles não levaram a sério. Achavam que eu não fazia as coisas por mera preguiça, mas eu sabia que estava com um problema e não iria conseguir lidar com ele sozinha. Mas ninguém me ajudava, não. Eu tinha vontade de morrer, sumir do mundo, chorava muito, ninguém me entendia”. Não há depressão que seja igual. Diferente da gripe ou qualquer outro vírus que possa torturar nosso corpo, a depressão
é única para cada portador, o que faz dela um martírio solitário. É a doença da solidão, do isolamento, da falta de amparo. Muita gente deprimida acaba sendo ignorada, abandonada. “As pessoas simplesmente cansam e vão embora. Não queremos dar trabalho, mas precisamos de amor. Não pedimos para ter uma doença, não escolhi ter depressão.’’ Raquel Avolio é escritora e comenta a vontade de receber apoio e amor. “Enfrentei o que chamo de “dias sombrios’’ durante quatro longos meses de 2015. Todo dia eu procurava uma razão para levantar da cama, para sorrir, para resolver uma questão de matemática. Nunca fui diagnosticada com depressão e somente depois de uma crise - que resultou em duas longas semanas de estresse na minha casa - que consultei uma psicóloga. Fui a apenas uma consulta porque não gostei da doutora, mas percebi que eu não queria fazer mais perguntas. As perguntas sempre foram os problemas. Ainda tenho meus momentos de desespero e tristeza, de deitar a cabeça no travesseiro e segurar o choro, mas sinto que melhorei muito. Creio que achei forças ao olhar ao redor e perceber o que amo, o que quero e que eu devo construir o que desejo aos poucos. Sinto que a pressa, a necessidade de estar tão bem resolvida quanto alguns amigos e até a pressão social foram as causas dos meus dias sombrios. Gosto de repetir algumas frases específicas para lembrar que cada ser humano vive de uma forma diferente e que não é necessário me moldar para viver como o outro.’’ Maria Luiza Neves conheceu os dias sombrios. Apesar de não ter sido diagnosticada com a doença, ela sabe o que passou e a sua luta diária para se manter de pé. Porém, a depressão não consegue ser curada com medidas simples, como um passeio com os amigos, como muita gente próxima do paciente recomenda. Quando o sentimento é persistente e tarefas de rotina se transformam em momentos de
terror, é preciso buscar ajuda especializada. “O psicólogo ou psicanalista proporcionará uma escuta sobre as questões envolvidas na causa da depressão e, assim, será possível buscar um modo diferente de lidar com suas questões”, afirma a psicóloga Márcia Fraga. Kamila Macaron foi diagnosticada com depressão profunda. O rosto sempre coberto de lágrimas foi o que a fez retornar ao psiquiatra. ‘’Estava ficando constrangida no serviço, pois sempre estava com lágrimas no rosto e atrapalhava muito o meu desempenho. Sentia muita culpa e muita revolta, sentia um peso muito grande nas costas e levava a vida com muito pesar. Não gostava que as pessoas me vissem chorando e nem quando perguntavam o motivo. Sempre queria sumir e me isolar, ficar em um canto calada, no escuro. Tomei podem colaborar procurando ter um relacionamento normal, demonstrando afeição, respeito, oferecendo incentivos, elogios. O acompanhamento médico e o uso correto dos medicamentos também são fundamentais para a recuperação. A doença é bastante complexa, com sintomas tão diversificados que alguns são opostos: há deprimidos que comem demais e outros que simplesmente não senEntrelinha | JORNALISMO UP
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tem fome. Sem contar que a intensidade dos sintomas é variável; daí o porquê de se falar em depressão leve, moderada ou grave. Por essas e outras razões, o diagnóstico pode ser bastante complicado e, em alguns casos, não muito preciso. O importante é que, tão logo se desconfie que haja um estado depressivo, a pessoa procure um especialista que possa realizar o diagnóstico mais preciso possível. O tratamento A busca por ajuda começa com o conhecimento dos sintomas característicos da depressão, sem o qual ninguém desconfia que está doente. Para se ter uma ideia do tamanho do problema,dados divulgados pela Federação Mundial para a Saúde Mental apontam que pessoas com depressão demoram, em média, mais de 11 meses para procurar um médico. Para piorar, o diagnóstico definitivo de depressão, em geral, só é confirmado após cinco consultas. Tudo isso acaba atrasando ainda mais o tratamento e, principalmente, a recuperação. Não são todas as pessoas deprimidas que sentem todos esses sintomas. É até normal em alguns dias e momentos sentir alguns deles. A persistência e ter vários ao mesmo tempo é que pode indicar tratar-se de um quadro depressivo e a necessidade de um tratamento. Segundo a FMSM, se a pessoa experimentar cinco ou mais desses
sintomas, incluindo necessariamente o espírito deprimido e o desânimo, por um período superior a duas semanas, deve considerar seriamente uma consulta médica.
A depressão trouxe consequências muito ruins para Karina Macaron. O apoio de sua mãe e as consultas ao psicólogo foram fundamentais. Os melhores resultados no tratamento da depressão são obtidos Consequências com a combinação de psicoterapia e me‘’As consequências da depressão na dicamentos. Um especialista poderá dizer minha vida foram devastadoras, pois eu qual é a terapia ideal. Além disso, só um me afastei de todo mundo que me ama- psiquiatra pode determinar o tempo de va. Por mais que eu tentasse responder uso e a dosagem dos remédios, todos de aos carinhos, mensagens e ligações, algo venda controlada (a receita fica retida na me repelia, algo me impedia de conviver farmácia). “Há casos em que não pode hacom outras pessoas. Eu me senti inútil, um ver interrupção da medicação sem risco de lixo, uma à toa por não trabalhar no perío- retorno do quadro depressivo, mas não é do do afastamento. Eu não conseguia sair a maioria. Geralmente se faz o tratamento de casa, nem pra pegar cartas, eu via uma e depois pode haver uma diminuição propessoa na rua, eu queria me esconder. Me gressiva da medicação sob acompanhasentia um monstro toda vez que me olhava mento do psiquiatra. Isso porque muitas no espelho, até que parei de me olhar. Sen- pessoas ficam dependentes psicologicatia agonia, medo, angustia, aflição, revolta, mente da medicação e recusam as tentatirejeição, repulsa.’’ vas do psiquiatra de retirá-los gradualmente’’, a psicóloga Márcia Fraga explica.
Sintomas CARACTERÍSTICOS DA DEPRESSÃO: > Rebaixamento do humor; > Desânimo, redução da energia, necessidade de maior esforço para fazer as atividades do dia a dia, falta de motivação; > APATIA, dificuldade de reação diante de uma notícia boa ou ruim; > ALTERAÇÃO da capacidade de sentir o prazer e a alegria; > DIMINUIÇÃO da capacidade de concentração; > DIFICULDADE EM DECIDIR ALGO; > IRRITABILIDADE, ANGÚSTIA, ANSIEDADE; > SENTIMENTO de medo, insegurança, desespero, desesperança e desamparo; > NEGATIVISMO, e pessimismo, ideias de culpabilidade, baixa autoestima e autoconfiança, sensação de falta de sentido na vida, inutilidade, fracasso, doença ou morte
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{ } “As consequências da depressão na minha vida foram devastadoras”
Outro aspecto relevante em relação aos medicamentos antidepressivos é evitar a banalização do uso. “É importante também não criar o hábito de ‘medicalizar’ as tristezas normais da vida de cada um”, aconselha a profissional. Traduzindo: jamais se deve usar antidepressivos sem o diagnóstico definitivo da doença.
Reportagem
BRUNA KARAS
A vanguardA
DE OLÍVIA
OS DESAFIOS E O PRECONCEITO ENFRENTADO POR QUEM OPTA POR REALIZAR O PARTO HUMANIZADO Entrelinha | JORNALISMO UP
PEQUENA OLÍVIA COM A MÃE | FOTO: MARIA RITA ALMEIDA
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Abril de 2014 foi um mês movimentado. O jogador brasileiro Daniel Alves foi alvo de racismo ao ver uma banana ser jogada em sua direção durante um jogo de futebol na Espanha. O escritor Gabriel Garcia Márquez morreu aos 87 anos. A Presidente Dilma Rousseff sancionou o Marco Civil da Internet. Foram condenados 73 policiais militares pelo Massacre do Carandiru que aconteceu em 1992. O corpo de Bernardo Boldrini foi encontrado em um matagal depois de ficar 10 dias desaparecido. O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, ainda tentando controlar a crise hídrica do estado, anunciou a cobrança de multa para quem aumentasse seu consumo de água. E nasceu a Olívia. Em casa. Dentro de uma banheira. Parto natural – ou, em termos técnicos, por via vaginal. Paula e Daniel, quando descobriram-se grávidos, já sabiam que se interessavam pela ideia de dar à luz em casa. Foram atrás de mais informações e conheceram, por meio de amigos, o Grupo Luar. “Só de pensar em ir para o hospital e correr o risco de ter algum tipo de violência ou interferência excessiva foi suficiente para irmos atrás do grupo. A gente queria ser os protagonistas do nosso parto”, conta Paula. Quando conheceram o Grupo, no início da gestação, eles já tinham quatro anos de atuação com partos domiciliares. Começaram a participar ativamente de todos os workshops que o Grupo promovia. Nestes encontros, que eram totalmente livres e abertos, o grande objetivo era a difusão de informações sobre partos, gravidez e, uma vez por mês, havia os relatos de parto. Encantaram-se. Autonomia e liberdade era tudo que eles buscavam. Encontraram. O Grupo faz algumas exigências: estar fazendo o pré-natal desde o início da gestação e estar vinculado a um hospital caso ocorra algum problema. Em Curitiba, por meio do Programa Mãe Curitibana, que atendeu a Paula, a vinculação com maternidades acontece automaticamente a partir do primeiro registro nas Unidades de Saúde. Foi a partir da 35ª semana de gestação que o Grupo Luar começou a acompanhar a Paula semanalmente – que
continuou com o acompanhamento do SUS. “Eles vinham fazer os exames básicos como por exemplo auscultar o bebê e contar os batimentos, mas acabam ficando a tarde inteira conversando, tomavam café e isso acabou construindo uma amizade entre a gente”, recorda Daniel. Com 41 semanas e dois dias, no meio da madrugada, começaram as contrações. Paula e Daniel ligaram para o Grupo e avisaram, mas pediram para que eles esperassem uma nova ligação um pouco mais tarde, quando as contrações estivessem mais ritmadas. Paula conta que ela e Daniel optaram por ficar um pouco sozinhos e curtir aquele momento a sós. Eram 3h30 quando os integrantes do Grupo chegaram. Fizeram os exames básicos e começaram a ajudar a preparar o ambiente. Uma banheira com água morna foi colocada no meio da sala mas, antes de entrar, Paula passou por vários momentos de preparação do corpo: tomou banho, meditou, acendeu velas, ficou ouvindo músicas e relaxou o máximo que conseguiu. “A partir deste momento eu meio que perdi o contato direto com o mundo, porque você entra num processo muito interno, parece que você não está mais inteiramente ali”, revela Paula. Ela conta que a Olívia, por exemplo, ameaçou sair umas seis ou sete vezes. “A gente via a cabeça dela, achava que ia sair e de repente ela voltava”, ri. Para ele, ficou claro que é nessa hora que, no hospital, a mulher é rompida e machucada, já que, quando a cabeça aponta a primeira vez, os médicos e enfermeiros seguram a criança e não deixam esse processo de alargamento natural da vagina acontecer. Nesse momento, Daniel recorda a gravidez de sua primeira filha com outra mulher, há nove anos. A gestante optou pelo parto normal no hospital. Eles esperaram em casa o máximo que conseguiram para que a dilatação fosse a maior possível. Ao chegar no hospital, deram analgesia para a gestante e a dilatação travou. Foram horas esperando pela dilatação que não aconteceu. O bebê teve que ser retirado com fórceps e causou uma laceração terrível. “É aquilo que a gente aprendeu com o grupo sobre a
52 OLÍVIA COM OS PAIS | FOTO: MARIA RITA ALMEIDA
importância da dor né, a partir do momento que cortaram a dor dela, cortaram também a produção de hormônios que eram essenciais para aquele processo, e todo o resto foi prejudicado”. Para ele, o mais triste é que estas mulheres têm o direito ao sofrimento arrancado delas. Afinal, quem faz cesárea está de pós-operatório e todos ao redor entendem suas necessidades. Mas quem tem parto normal e sofre essas consequências, muitas vezes, sofre muito mais que quem faz cesárea e não tem o direito de passar por esse processo. “Você sai do hospital costurada numa área muito mais delicada que quem fez a cirurgia e tem que ouvir das pessoas que é um absurdo você ter parto natural e estar tão debilitada. A maternidade no Brasil hoje é um sistema perverso”, desabafa. No meio do caminho, Paula e Daniel tiveram que ouvir propostas absurdas vindas da empresa de cesáreas que atua hoje no Brasil de forma institucionalizada. Um dos médicos que os atendeu nas consultas de pré-natal propôs que eles fizessem todo o acompanhamento pelo SUS e pagassem um cachê “por fora” para que ele os esperasse no hospital quando chegasse a hora do parto. “Revolta e vontade de denunciar não faltaram, mas resolvemos não comprar essa briga”, explica a mãe da Olívia. Emoção não faltou para o casal ao contar do exato momento em que Olívia saiu da barriga da mãe. “Foi tão simples e bonito. Ela nasceu boiando na água, não chorou e já veio direto para o meu peito. Aí ficou olhando a janela quietinha e em seguida mamou um pouco”, recorda Paula. Depois de quarenta minutos, nasceu a placenta. É um processo semelhante ao nascimento da criança, mas as contrações são muito mais tranquilas e fáceis de suportar. Daniel e Paula optaram por fazer a chamada “tintura” da placenta, guardá-la num pote de vidro e enterrá-la. Esse preparado garante o uso da placenta para inúmeros fins como a produção de remédios, pomadas e tratamentos de doenças. Além disso, o casal fez, junto com o grupo Luar, um ritual de bênçãos do cordão umbilical com velas – queimando-o para cortá-lo. Nós passamos dez dias sem dar ba-
nho na Olívia para não tirar o Vérnix. O primeiro banho dela foi no dia de ir ao pediatra pela primeira vez. O vérnix é um material branco e gorduroso que protege a pele do bebê desde a barriga da mãe contra possíveis infecções e ações bacterianas. Além disso, hidrata, protege o recém-nascido da luz solar, tem propriedades regenerativas e auxilia na formação do manto ácido (desenvolvimento do pH da pele do bebê depois do nascimento). Uma das maiores recompensas para o casal foi o interesse despertado nas pessoas de seu convívio social. “Todo mundo que conversa com a gente se interessa em pesquisar mais sobre o assunto, e isso vai desconstruindo esse mito de que o parto natural é difícil e sofrido, né”, constata Daniel. “A esposa de um amigo nosso teve o primeiro filho de cesárea e, depois de saber do nosso parto, se encorajou de ter parto domiciliar assim como a gente”, relata Paula. Ela ainda conta que uma das coisas mais bacanas no processo foi o cuidado do grupo com os três. Depois do parto, eles mesmos arrumaram toda a casa, fizeram comida e levaram para o casal. Depois disso, Daniel, Paula e Olívia deitaram na cama e dormiram. Antes de ir embora, os amigos deixaram toda a louça lavada, comida pronta e a casa arrumada. “É muito gostoso você receber esse carinho todo naquele momento tão especial”, reconhece ela. Para o pai, um dos aspectos mais importantes dessa experiência foi a forte conexão entre mãe e filha, construída desde os primeiros dias da gestação, mas que foi consolidada com o parto. Daniel acredita que a interdependência das duas, o risco de vida, a necessidade de uma ajudar a outra e o protagonismo das duas durante todo o processo foi essencial e gerará excelentes frutos no futuro da relação entre as duas. O parto, para Paula, foi um processo de autoconhecimento também. Uma oportunidade para acessar sentimentos antigos e entender algumas situações. Para ela, também é muito importante que aconteça a ressignificação do parto. “Todo mundo merece ter uma experiência incrível como a nossa”, assume. Entrelinha | JORNALISMO UP
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Reportagem
VINICIUS ARTHUR
O velhO
E O MOÇO A HISTÓRIA DOS DOIS BARES MAIS ANTIGOS DE CURITIBA
54 TONINHO, DO BAR DO TONINHO | FOTO: VINÍCIUS ARTHUR
“Se o rio é mar, Curitiba é bar”. Talvez essa seja uma das frases mais certeiras que disse um bigodudo poeta da capital paranaense. Ele, que foi muito amigo do velho e nem devia saber do moço. Um que é clássico e fiel a suas origens e outro que se mantém forte em meio ao progresso. Talvez chamar de moço nem seja a escolha certa, já que é praticamente um quarentão. Enxuto, mas um quarentão. O outro é velho, sim, centenário pra ser mais preciso, ou mesmo menos preciso, já que passou mais de uma década de seus cem anos. Stuart é um senhor formal e regrado, que tem tantas histórias que suas paredes não conseguem conter. A cada dia tem mais uma, basta puxar papo e esperar elas chegarem. Toninho é bem mais simples, é do interior de São Paulo, mas achou refúgio em Curitiba. São figuras simples, modestas e acima de quaisquer instituições. Da cidade? Talvez. De amigos? Com certeza. O moço, nem tão moço assim, se chama Toninho, do Bar do Toninho, para ser mais preciso. Tem boas anedotas e uma porção de torresmo que faz até o mais vegetariano ficar tentado. Ele fica no Batel, bairro chique, das baladas e ricaços, mas não é desses que Toninho faz sua alegria. Sua porta é aberta, todos os dias, para quem quiser entrar. A cerveja é você que pega e apenas com dinheiro que se paga. O papo é bom, as porções idem e para os apaixonados por futebol, digo, atleticanos apaixonados pelo clube, um reduto em meio à modernidade. Toninho é o nome do dono. Paulista radicado em Curitiba nos anos oitenta, no início da década. Antônio Carlos Stella nasceu em Fartura, no interior de São Paulo, mas com um pezinho no Paraná. Aliás, foi num pulo do outro lado do rio Itararé, em Carlópolis, que separa São Paulo do Paraná, que ele conheceu uma moça chamada Vilma Rocha, na época farmacêutica, mas que pouco depois se tornou Dona Vilma, esposa do Antônio e uma cozinheira de mão cheia. A primeira vinda para Curitiba foi para fazer uma cirurgia. Um proble-
ma nos rins de Antônio o trouxe pra cá e foi paixão à primeira vista. Ele se encantou pela cidade. Palavras dele. A vida no caminhão não cabia mais pra eles, era muito esforço pra alguém recém-operado e a força de ficar quarenta dias na estrada já não era a mesma. Por essas e outras, como dar um futuro melhor para as crianças que eles vieram para a capital. De lá pra cá são 33 anos de vida no bar, e esse vício não precisa de tratamento. Deixemos Antônio de lado e falemos de Stuart, ou Dino, seja lá qual for o nome verdadeiro do bar. As histórias de ambos caminham tão juntas que saber quem é quem é muito difícil. Pra tentar facilitar: Stuart é o da placa na fachada e Dino é a alma e simpatia do bar. Atrás do balcão desde os 14 anos, ele nem sabe mais viver fora dali. Talvez os pés não saibam como ficar longe do tablado de madeira antiga. O formato deve encaixar perfeitamente e isso não deixa ele sair de onde está. Dino Chiumento veio para o Brasil com 13 anos, fugindo de uma Itália desolada pela guerra que recém era acabada. Era o ano de 1949. Chegando ao Brasil, foi para Morretes e um ano depois subiu a serra do mar, chegando ao bairro do Portão. Desse bairro demorou a sair, mas acabou indo morar no Batel depois dos filhos crescidos. Falando em filhos, foi ali no Portão que conheceu sua esposa, dona Mari Rosi Chiumento. Ela era amiga da irmã de Dino e de um frequentar a casa do outro nasceu o romance. Casaram quando ela tinha 17 e ele 20 anos. Em dezembro, serão sessenta anos de casados. Um casamento tão longo assim é uma raridade, mas o de Dino com o bar já dura 65 anos e também não tem hora pra acabar. Um homem com amores sexagenários que não se conflitam, talvez seja uma das historias que o bar Stuart oferece. Aliás, de histórias um certo Jorge Moura, garçom do bar há trinta anos, é cheio. Aliás, não procure pelo Jorge, chegue lá antes das cinco e chame o Alemão. Ele mesmo conta que já atendeu o telefone do bar e quando se apresentou como Jorge teve a surpresa de Dino do outro lado da linha:
”Estão deixando cliente entrar no balcão?”. Se nem Dino chama ele de Jorge, não são os clientes que vão mudar isso. O primeiro emprego de Jorge foi ali. Alias, o único emprego de Jorge é como de garçom no Stuart. Ele até pensou em sair do bar depois de um tempo, mas acabou pegando gosto pela vida boemia, primeiro servindo e depois abraçado numa loira, bem gelada. Jorge não sabe o que é a vida fora dali. Aprendeu a ser gente dentro do bar, sofreu o fim dos três “casamentos” ali dentro. Ele diz que foi uma via de duas mãos, ele entrava com a bunda e as ex -mulheres com o pé. Reconstruiu-se várias vezes. Reinventou-se junto ao bar. As histórias de Jorge são de todo o tipo. Desde políticas até sobre os meninos inexperientes que trabalharam por lá e não sabem o que é massa podre( um tipo de massa que vai ao forno). Sim, o rapaz negou veementemente que a massa das empadinhas era “podre” quando uma cliente perguntou, o que gerou mais risos do que problemas. Além dessa, ele conta um causo com o senador Roberto Requião, quando ele ainda ela governador do estado. Jorge fala como fosse um cronista ou um contador de historias profissional. Certa feita estavam Ratinho, o apresentador bigodudo do SBT, e o senador Álvaro Dias, achincalhando o governador do estado numa mesa do bar. Nessa hora o próprio homenzarrão chegou. O silêncio impera por alguns segundos. Ele senta na mesma mesa de seus inimigos, pede comida e bebida. Após terminar ele levanta e afirma que não irá pagar a conta, pois governador não paga contas e também por que sabia que aqueles filhos da p*** começariam a falar mal dele assim que virasse as costas. As duas coisas aconteceram. Eles pagaram e o xingaram pelo resto do dia. Para ouvir mias dessas basta ir lá e puxar papo com o alemão. Se o movimento estiver baixo ele vai parar e te fazer rir por horas. Essas e outras histórias é que fazem desse velho algo como um avô que tem uma boa história para cada hora. De renovação o velho entende. Ele nasceu há cento e onze anos, pertinho de onde está hoje, na ComendaEntrelinha | JORNALISMO UP
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dor Araújo. Em 1904 José Richter criava dentro do colégio Paternon uma bodega, que nunca deve ter imaginado que se tornaria um patrimônio de Curitiba. Em 1927 ele mudou-se para a Rua XV de novembro, no numero 195. Hoje opera ali uma rede de fast-food que tem como símbolo dois animais africanos de pescoço comprido cujo nome não pode ser citado. Ainda nesse endereço foi comprado pelos irmãos Afonso e Leopoldino Mehl, no ano de 1940. Ficou ali até 1954, quando mudou-se para o atual endereço, na esquina das praça Osorio com a Alameda Cabral, numero de fachada é o 427. Dino já tinha quatro anos de casa nesse período. As fotos da inauguração ainda estão penduradas nas paredes do bar, entre prêmios e fotos dos famosos que vão ali. Dino é o rapazinho de camisa preta, fácil de reconhecer. Aliás, famosos preenchem as paredes com fotos, mas são os anônimos que fazem do bar um lugar único, onde amigos de longa data se encontram. Um deles é Jamil Messmar, que frequenta o bar desde os 26 anos. Tendo seus 58, são 42 anos de Stuart. Mas não foi apenas para farrear que ele esteve ali. Aos trinta anos, após servir o exército, ele trabalhou numa charutaria que ficava dentro do bar. Numa época em que o cigarro ainda era permitido nesses ambientes. Seu Alexandre, cujo sobrenome ele não lembra, foi seu chefe por seis meses. Depois disso ele voltou a ser apenas cliente do bar. Ele conta, com todo o saudosismo do mundo e um sorriso sem igual, das alegrias do bar. O balcão de macieira e a barra de gelo para gelar o chope chegam imediatamente à mente dele. A “plaquinha tão bonita” da charutaria também é uma memória que não se perde. Ele se tornou amigo de Dino e conta que passou vários fins de ano na casa dos Chiumento. Chama Dino de maior amigo que tem , conta das ligações para Dona Rosi cujos assuntos só podem ser citados depois das dez da noite e chama Alemão de seu filho, cujo parto durou 26 horas. A vida dele não é a mesma sem o bar, sem as porções de miúdos acebolados e as garrafas de
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Caracu. Fala dos tempos em que Ligeirinho, que hoje tem um bar de mesmo nome, trabalhava ali. Sorri. E correndo para pegar um taxi diz que a praça O Osório é que não seria a mesma sem o bar, mas o Stuart não sentiria falta do seu Osório. Quando falou em porções não deixou de citar o carro-chefe da casa: a porção de testículos. Claro que o prato, chamado por Alemão de “sedução”, tira qualquer um do sério quando é citado. A historia é curiosa, pois foi um fazendeiro de Medianeira que propôs o tal petisco. Trouxe as joias de 37 touros e falou que seria um sucesso. Assim como ele disse, aconteceu, e o prato vendeu rapidamente. Até hoje o “sedução” faz sucesso entre os clientes. Jamil, Jorge e Dino têm algo em comum: não sabem quando vão largar o Stuart. Jamil cuida da mãe que, já idosa, precisa de ajuda pra tudo, então cada minuto que sobra é a chance de uma fugidinha para o bar. Jorge teme pelos cinco anos que faltam para se aposentar e Dino, aposentado desde 1987, criou raízes ali. Jorge fica até meio nervoso em falar sobre o fim dessa história, pois não é algo para pensar agora. Jamil é amigo de muitos e alegria do ambiente quando dá o ar da graça. São algumas das tantas figuras que preenchem o Stuart e a vida de Dino Chiumento. O senhor grisalho e sério, como bom italiano que é, tem o mesmo jeitinho com todos e assim ganha qualquer BAR STUART | FOTO: VINÍCIUS ARTHUR
um que tope tomar um chope e conversar sobre o bar que ele tanto ama. Aliás, é só pedir que ele conta tudo que passou ali dentro e como a vida dele e a do bar andam juntas. Tão juntas que nem férias esse homem tirou. Sim, são sessenta e cinco anos em que as pausas acontecem apenas nos feriados e se a saúde não estiver boa. Coisa que aconteceu apenas uma vez, quando teve um problema na coluna. Sem férias, ele nunca mais voltou para a Itália, pois na duas vezes que se organizou para ir acabou desistindo de última hora. Não quis mais. O que ele nunca quis mesmo foi provar o tal testículo que está no menu há mais de 30 anos. Confessa que nem vontade sentiu quando viu o tal prato. O homem é decidido mesmo. Foi do bar que ele tirou o sustento para criar os filhos. Aliás, esses trabalharam ali quando mais moços e aprenderam o oficio do pai. Seguiram outras carreiras. O que não desanimou Dino. Ele seguiu e viu seus filhos crescerem, e trazerem os netos para o bar. Não apenas os netos e bisnetos que já estão grandinhos também aparecem as vezes. No total são 3 filhos, seis netos e mais seis bisnetos. Pelas contas dele, logo chegam os próximos na linhagem dos Chiumento. Ele explica por que de tanta certeza: “Nasci num dia 21, fui pai com 21 anos, avô aos 41, bisavô aos 61 e faço 80 em janeiro. Daqui pouco mais de um ano deve vir o trineto” ele conta com um sorriso no rosto. Sorriso que se sustenta por nuca
DINO CHIUMENTO, DO BAR STUART| FOTO: VINÍCIUS ARTHUR
ter pensado em parar. Pra ele o melhor remédio é o trabalho e nem a mulher tenta mais tira-lo da bancada. Uma vida cruzada com um bar e a historia deve ter final feliz. Não é todo dia que se ouve isso. Alias, do Toninho o final pode ser mais melancólico. Como apenas ele e a esposa é que tocam o bar, o cansaço já bateu algumas vezes. E ele pensa sim em parar. Mesmo tendo conseguido comprar o bar há apenas 7 anos, as forças já não são as mesmas. O negócio familiar que hoje está nas mãos deles começou em 1947, quando foi montado nesse mesmo endereço o Armazém do Salvador. Durou uns quinze anos e depois fechou também. Tornou-se um depósito do café Alvorada. No ano de 1978 foi aberta a Mercearia Gabriela pelo seu Anisio. Nesse momento já começou a ter mais cara de boteco. Em 1982 que chegou a vez de Toninho comprar o lugar. Nascia então a Mercearia Stella. Nome que fantasia que dura até hoje, mesmo que tenha caído no esquecimento. Toninho é bem mais fácil que Stella para quem procura um bar para ver futebol e comer torresmo. Dali, tal qual Dino, Toninho tirou o sustento dos filhos. Hoje a filha mora em Campo Mourão e o filho o ajuda
quando pode. Mas tem sua vida bem longe do bar. Toninho é simples e essa é uma das raízes de seu sucesso. Ele não aceita cartão e não tem funcionários. Até conta que disse uma vez que compraria uma maquininha de cartão, seus clientes ficaram muito felizes. Porém na sequencia disse que aumentaria os preços em 10% pelos custos gerados pelo investimento. Onde mandaram ele colocar a maquina fica você pode imaginar. Assim ele facilita os negócios e seus clientes sabem como funcionam as coisas. Funcionários também aumentariam os custos e ele não é das pessoas que criam confiança muito fácil. Melhor eu e minha esposa cuidarmos de tudo, diz ele. O ambiente é familiar e tem ares das “vendinhas” de bairro, mesmo que esteja encravado no Batel. Marca registrada do bar é a simplicidade, que ele busca manter. “Pra que competir com os bares modernos, eu tenho o meu bar e o meu espaço. Não quero a cara deles, quero a minha”. Seu Antônio Carlos Stella foi quem deu o apelido ao bar, que fica num placa enorme sobre a porta. O velho já trocou de dono quatro vezes e agora não é mais de Dino. Esse
demorou 25 anos para compra-lo e vendou em 2008. Para ele já não era mais hora de ser dono de bar e em menos de meia hora fechou o negocio. O moço dificilmente trocará de dono. Toninho e sua esposa, dona Vilma, são alma e corpo do bar. Dedicam-se com tudo que tem para ele. Não sabem até onde vai tudo isso. Ela respira fundo antes de falar sobre o final dessa historia. Sabe que a saúde do marido já não é mais a mesma e os filhos já estão crescidos e criados. Talvez mais alguns anos, talvez acabe logo. O final dessas historias é diferente, pois umas delas não deve ter fim. Os novos donos do Stuart assumiram o legado de Dino e tocam com firmeza o barco. Toninho talvez não tenha tanto sorte. Mas enquanto estiver ali será um recanto de simplicidade, sossego, atlético, churrasco e amigos no meio do moderno Batel. Até lá, basta chegar, pegar sua cerveja na geladeira e pedir a porção de pasteis. Cuidemos do moço, pois do velho já tem gente cuidando. Toninho e Stuart ou Dino ou como você quiser são mais que bares, são instituições da cidade. Uma cidade boêmia, mais quente do que aparenta. Sem mar, mas cheia de bar.
Entrelinha | JORNALISMO UP
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