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CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Meu ponto de partida é o final de minha última jornada. Durante o mestrado, cuja linha de pesquisa foi a Análise de Processos e Produtos Midiáticos, tive a oportunidade de pesquisar as idiossincrasias do processo comunicacional presente nos larps (IUAMA, 2018a). Uma descrição mais acurada do que é o larp ainda será abordada no decorrer da presente tese. Por hora, atenho-me a definir que é o acrônimo para live action role playing, cuja (possível) tradução seria ação viva de desempenho de papéis. Usualmente, é grafado como um substantivo, em letras minúsculas, num movimento para tornar o termo mais palatável. Um processo similar ocorreu com termos hoje corriqueiros, como é o caso de laser (Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation) e radar (RAdio Detection And Ranging). Embora possam ser associados a práticas arcaicas (se observarmos que o desempenho de papéis permeia as descobertas da arqueologia humana), o uso do termo teve início na década de 1970 para definir uma prática lúdica que consiste na criação e experimentação colaborativa de um ambiente ficcional capaz de gerar narrativas por meio do desempenho de papéis pelos envolvidos. A ausência de um enredo previamente definido é uma característica fundamental, de modo que o desencadeamento da narrativa ocorre de maneira espontânea e improvisada. É uma arte dramática, com presença

e uso do corpo como plataforma de expressão. Também é caracterizado pela ausência de uma audiência passiva.

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A pesquisa de mestrado, embora tenha respondido satisfatoriamente a dúvida que a norteou, suscitou novos questionamentos, sobretudo acerca das implicações de uma prática cujo processo comunicacional é caracterizado pela horizontalidade, sem hierarquias ou diferenciações entre emissor e receptor, patente no larp. A intenção, portanto, é pesquisar como esse processo, observado nos larps, contribui para a interação social. Por isso, fiz a opção por continuar os estudos em nível de Doutorado numa linha de pesquisa nomeada Contribuições da mídia para a interação entre grupos sociais.

Por conta dessa opção, surge de fato o tema da pesquisa. É disseminada a existência de um fenômeno chamado gamification (também ludificação ou gamificação, ou ainda gameficação1) atualmente. Dentre suas características, que serão devidamente abordadas no decorrer da tese, aponto que a gamification promoveria uma perspectiva competitiva e hierarquizante. Ao mesmo tempo, opera em consonância com as tecnologias de informação, de modo que até mesmo o conceito de jogo está cada vez mais convergente com a noção de game (como opto por doravante denominar os jogos eletrônicos). Após observar as características do larp, cheguei à dúvida que norteia essa pesquisa: seria possível a existência de um contraponto ao processo de gamification, aqui entendida como o transbordamento da competitividade e virtualização presentes nos games para outras esferas da vida social?

Com o intuito de responder tal pergunta, parto da hipótese de que esse contraponto não só é possível, como já existe, e opto por nomeá-lo Ludocomunicação. Para auxiliar nessa tarefa, desdobro a questão norteadora em dois escopos secundários:

1. A opção por manter o termo em inglês nessa pesquisa se dá pela dispersão de traduções utilizadas.

● Realizar uma reflexão teórica acerca do fenômeno da gamification;

● Realizar uma investigação empírica dos larps, com o intuito de interpretar se esse jogo fornece um modelo distinto daquele da gamification.

Sobre a escolha do termo Ludocomunicação, são três os motivos. Em primeiro lugar, observo uma diferente perspectiva comunicacional a partir de uma prática lúdica. Além disso, flerto nessa pesquisa com uma alternativa ao progresso tecnológico, de maneira que é justa a homenagem no termo escolhido ao movimento ludista, ocorrido na Inglaterra no começo do século XIX em protesto à Revolução Industrial. O nome advém de Ned Ludd, personagem fictícia utilizada para antropomorfizar o movimento. Por último, falo de Comunicação numa perspectiva social, como criadora de comunidades, comunhão, companheirismo, do comum. Coerente ao referencial teórico que compõe a pesquisa, afirmo desde já que abordo a Comunicação como termo correlato ao vínculo. Não por acaso, vínculo é oriundo do latim vinculum (laço, derivado do verbo latino vincire, encantar), que também deu origem ao substantivo brinco, que por sua vez é a raiz etimológica da palavra brincar, essa outra maneira que a língua portuguesa tem para se referir ao lúdico. Destarte, observo que tal hipótese aponta para uma impregnação do lúdico em outras esferas da vida social, cuja essência seria a colaboração horizontal, assim como a presença do corpo e dos vínculos.

A principal justificativa para a presente pesquisa é o ineditismo. No que diz respeito aos jogos, os estudos de Comunicação têm se debruçado predominantemente sobre os games. O motivo de tal preferência é compreensível: a indústria de jogos eletrônicos movimenta finanças de modo no mínimo tão robusto quanto a indústria cinematográfica desde o início do século XXI. Contudo, o jogo analógico e a brincadeira não são objetos relevantes para a maioria das pesquisas que se debruçam sobre o tema. Não tenho dúvida de que o jogo é uma mídia,

uma maneira de ligar as pessoas. Porém, essa mídia, se deslocada do contexto tecnológico e mercadológico, é praticamente ausente nas pesquisas comunicacionais. Acredito que apenas esse vácuo teórico2 já apresenta justificativa válida para que uma pesquisa seja conduzida nesse sentido.

Aponto ainda o florescimento de larps com temáticas socialmente relevantes nos últimos anos, tais como discussões sobre gênero (HAMMERÅS; MALVIK, 2000), mecânicas de opressão (GIOVANNUCCI; GIOVANNUCCI, 2017), o significado do álcool em nossas vidas (PRADO, 2014) e a questão palestina (MUSTAFA; SAMAD; RABAH, 2013), para citar alguns exemplos. Se existe a possibilidade de uma prática lúdica comunicar temas tão pertinentes, certamente existe também a justificativa para pesquisar as nuances, tanto comunicacionais quanto lúdicas, nela presentes.

Mas considero que a justificativa vai além. Especificamente sob o recorte que será dado, tendo o larp como a prática lúdica sobre a qual me debruçarei durante a pesquisa, sua presença têm se mostrado recorrente por meio da realização de larps no Centro Cultural da Juventude Ruth Cardoso e na Biblioteca Pública Municipal Viriato Corrêa, ambos em São Paulo, assim como pela inclusão frequente dos larps na programação das unidades do SESC (Serviço Social do Comércio), em diversas cidades do Estado de São Paulo, bem como por programas como o VAI – Valorização de Iniciativas Culturais – promovido pela Secretaria da Cultura da Prefeitura de São Paulo, que viabilizou a publicação de um guia sobre o tema (FALCÃO, 2013). Trago tais exemplos para mostrar que existem políticas públicas que utilizam o larp para promover a interação entre grupos sociais. E, ainda que a viabilização de tais atividades na esfera pública seja plenamente salutar, chamo a atenção para a ausência de reflexões científicas acerca de suas implicações.

2. A consulta no banco de teses da CAPES, efetuada em 14 de fevereiro de 2019, não retorna nenhuma pesquisa brasileira sobre o termo larp no campo da Comunicação além da minha própria. Tal dado se confirma pelo total desconhecimento do tema e falta de interlocução na participação de eventos científicos.

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