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2 TRAPAÇA MIDIÁTICA
from A Arte do Encontro
by Luiz Falcão
Um dos grandes temas que permeia a história humana desde o advento do projeto da Modernidade é o fim da terra incognita. Com o desenvolvimento tecnológico, não apenas os transportes se tornaram mais velozes, como também os meios de comunicação, de maneira a permitir conexões entre seres humanos em distintas partes do globo. Enquanto a entrada no século XX é marco de um mapeamento da superfície terrestre que tende ao total, a entrada no século XXI marca uma proximidade, ainda que por vezes virtual, exacerbada entre os habitantes do planeta. Em um voo comercial, é possível cruzar um continente em questão de horas. A conexão com os habitantes do outro lado do mundo, via telefonia ou internet, é instantânea. O efeito imediato disso é uma exacerbação da velocidade, num processo amplamente analisado pelo filósofo Paul Virilio (1996), que afirma que nossa sociedade é dromocrática, ou seja, governada pela velocidade.
É patente a relação da Comunicação com o espaço-tempo (ROMANO, 1998a). Cabe às TICs alargar ou encurtar a relação espaço-tempo. Exemplos de tal afirmação são as gravações, cuja função é perpetuar um fenômeno perene, e as ligações telefônicas, que conectam duas pessoas separadas por um determinado espaço. Romano aponta ainda para a
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existência de duas percepções espaço-temporais: pública e privada. O espaço e o tempo públicos, por serem compartilhados, precisam ser quantificáveis, de modo que tendem à linearidade. Já no âmbito privado, tempo e espaço comportam-se de maneira não-quantificável e não-linear, dado o seu caráter subjetivo. Com o desenvolvimento das TICs, a percepção do espaço passa a tender ao infinito, assim como a do tempo passa a tender ao nulo22. Por conta disso, as esferas pública e privada do espaço-tempo passam a se confundir. Sobretudo, a dinâmica de cada uma delas passa a contaminar a outra: quantificamos o que deveria ser não-quantificável, tal como o tempo que passamos com a pessoa querida, assim como transformamos em infinito o que deveria ser limitado e quantificável, tal como a conversão do espaço de trabalho no espaço privado23 .
No que diz respeito ao jogo, os três autores convidados para discutir o tema (Huizinga, Caillois e Winnicott) são unívocos sobre a relação desse com os limites espaço-temporais, conforme exposto no capítulo anterior. Winnicott (2019) e Huizinga (2017) devotam parte significativa de suas reflexões ao assunto, seja sob o nome de zona transicional, seja sob o nome de círculo mágico (conceitos que doravante tomarei como paralelos). Ao tomar o mundo atual como um mundo de extremos, onde os fenômenos tendem a se dividir entre infinitos e imediatos, como essas zonas transicionais/círculos mágicos se comportam? Se a zona transicional winnicottiana é, por excelência, o espaço da experiência,
22. Embora a Física e a Matemática não sejam minha área de expertise, é possível observar uma analogia ao conceito de dromocracia de Virilio. Se a velocidade é igual à variação de espaço dividida pela variação de tempo, a divisão de um número que tende ao infinito por um que tende ao nulo reforça ainda mais o caráter titânico da velocidade. Pondero se a relação entre metros por segundo e bits por segundo não seria um termômetro de tal mudança de ordem de grandeza da velocidade na qual, no lugar de criar uma relação espaço-temporal, cria uma relação informativo-temporal. 23. O próprio termo home office contém em si a semente de tal conceito: como domiciliar é o adjetivo e escritório o substantivo, escritório domiciliar implica que o lugar passa a ser, acima de tudo, local de trabalho. Ao contrário do comum imperativo trabalhe em casa, penso que o mais correto seria more no trabalho.
o que ocorre quando ela é impossibilitada, seja por se tornar nula, seja por se tornar infinita?
Inicialmente, procuro em Caillois (2017) as respostas. Se a experiência se torna impossível, assim também o são os jogos turbulentos. Restam os jogos regrados, uma prisão inexorável destinada à regulamentação do mundo habitado24. Visto por outro referencial, seria a jaula de aço proferida por Weber (2004). Mais do que isso: se os espaços e tempos se confundem, é possível inferir que o que está dentro e o que está fora do círculo mágico assim também o fazem. Nesse sentido, Caillois (2017, p. 87) enfatiza que “ao opor firmemente o mundo do jogo ao mundo da realidade, ao ressaltar que o jogo é essencialmente uma atividade à parte, deixam prever que toda contaminação com a vida cotidiana corre o risco de se corromper e de arruinar sua própria natureza”.
Seria possível contestar tal afirmação de Caillois, uma vez que correr o risco de se corromper não implica automaticamente na corrupção. Contudo, a exposição do autor sobre manifestações de jogos corrompidos não deixa dúvidas, uma vez que, infelizmente, tratam-se de fenômenos comuns no nosso entorno: o jogo de competição corrompido se manifesta como violência; o de acaso, como superstição; o de simulacro, como alienação; e, por fim, o de vertigem como a euforia decorrente do consumo de drogas. Não seria um exagero pessimista apontar que se tratam de quatro características morbidamente presentes na nossa sociedade. Reflexões competentes sobre a violência e o consumo exacerbado de drogas compõem o métier das mais diversas áreas do conhecimento25 . Quanto à superstição, foi alvo de estudo da Filosofia (Baruch Espinoza) e da Psicologia (Burrhus Frederic Skinner), para citar duas áreas. Acredito que, aos estudos da Comunicação, cabe um aprofundamento
24. Talvez não seja tanta coincidência assim a prevalência da economia nesse cenário, uma vez que economia (do helênico oikos-nomos) poderia ser traduzida como regulamentação do mundo habitado. 25. Uma pesquisa exploratória sobre violência e drogas no banco de teses da CAPES, realizada em 15 de fevereiro de 2019, retorna mais de dez mil resultados para cada uma das palavras.
sobre a alienação, uma vez que as mídias parecem desempenhar um papel central nesse processo. Nesse sentido, assumo que as mídias se interpõem entre o indivíduo e a experiência, de maneira a assumir um papel de mediação. Sobre esse aspecto, o historiador Hakim Bey (1994a, p. 7, tradução própria) afirma que:
Toda experiência é mediada – pelos mecanismos de percepção sensorial, lembrança, linguagem, etc. [...] Todavia, a mediação ocorre em graus [...], de acordo com a intensidade de participação imaginativa que demandam. [...] A mediação equivale a uma divisão, e essa divisão equivale à "alienação".
Retomo Romano (1998a), para quem a principal diferença entre o espaço-tempo público e privado é que o primeiro é compartilhado. No que tange esse compartilhamento, como exposto no capítulo anterior, é possível refletir acerca dos meios de comunicação de massa assumirem o papel que outrora pertenceu ao jogo, no que diz respeito a fortalecer um imperativo de competitividade (HUIZINGA, 2017).
Com isso, o argumento que pretendo defender no decorrer desse capítulo é que esse fenômeno se insere como parte de um processo. Tal processo perpassa nossa sociedade, nossa estrutura comunicacional e até mesmo nosso paradigma epistemológico. Tais esferas se sobrepõem (mesmo que paradoxalmente), alimentam e são alimentadas umas pelas outras, de modo que observar cada uma delas pode fornecer pistas sobre o todo, de maneira que assumo os princípios dialógico, recursivo e hologramático (MORIN, 2007) como base para minha reflexão, no lugar de apontar para um falacioso determinismo de alguma dessas esferas.