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2.1 Paradigma objetificador

No presente item, busco trazer uma visão crítica ao paradigma hegemonicamente vigente, no sentido de apontar como essa lógica de pensamento faz parte do mesmo fenômeno que a gamification. Reforço que a minha intenção é refletir sobre os aspectos que evidenciam um possível mutualismo epistemológico, sem criar uma relação de causalidade. Sobre o emprego do termo paradigma26, adoto a noção apontada por Morin (2007, p. 10):

Qualquer conhecimento opera por seleção de dados significativos e rejeição de dados não-significativos; separa (distingue ou disjunta) e une (associa, identifica); hierarquiza (o principal, o secundário) e centraliza (em função de um núcleo de noções-chave); essas operações, que se utilizam da lógica, são de fato comandadas por princípios “supralógicos” de organização do pensamento ou paradigmas, princípios ocultos que governam nossa visão das coisas e do mundo sem que tenhamos consciência disso.

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Portanto, o paradigma se apresenta como um agente inconsciente que direciona nossa perspectiva. Muito embora a formação de um paradigma possa ter origem em um mito (o que faria com que pudesse ser classificado como entidade cosmobioantropomórfica), o paradigma opera como uma entidade logomorfa27. Esse elemento, isolado, já permite conjecturar o motivo de se comportar como um princípio oculto supralógico: o paradigma teria existência na realidade imaginária, distinta da realidade concreta. Ou seja, muito embora não seja passível

26. Para uma discussão abrangente e aprofundada sobre paradigmas, indico A estrutura das revoluções científicas (KUHN, 1998). 27. Em caráter não conclusivo e de questionamento, pondero se essa noção pode fornecer uma importante pista acerca da confusão gerada pelo fato da Ciência, por vezes, depender mais de crença do que de lógica. De qualquer forma, julguei coerente registrar tal inquietação. Paralelamente, observo que o filósofo francês Gaston Bachelard (1996) aborda os princípios subjacentes à epistemologia, no que chama de psicanálise do conhecimento. Posteriormente, Bachelard iria se dedicar aos estudos do Imaginário.

de observação direta, sua existência ainda assim interfere significativamente em operações observáveis. Portanto, é por essa trilha de rastros que me proponho a seguir, uma vez que assumo a impossibilidade de alcançar a entidade em si.

Para tanto, me atenho a uma consonância teórico-metodológica: uma vez que observo os princípios da complexidade, considero coerente recorrer prioritariamente ao próprio Edgar Morin (2007) ao realizar a crítica de tal paradigma. Paralelamente, fazem-se presentes as reflexões de Fritjof Capra (2006) e Max Weber (2004). Considero que os três autores realizam críticas que dialogam entre si, mesmo que Morin aponte um paradigma de simplificação, enquanto Capra fale em paradigma mecanicista e Weber em desencantamento do mundo. Por isso, optei por não assumir o termo de nenhum dos três autores. Paradigma objetificador, por sua vez, parece-me abarcar simplificação, mecanicismo e desencantamento. A primeira afirmação, no sentido de delinear tal paradigma, é dada por Morin (2007, p. 76):

Pode-se diagnosticar, na história ocidental, a hegemonia de um paradigma formulado por Descartes. Descartes separou de um lado o campo do sujeito, reservado à filosofia, à meditação interior, de outro lado o campo do objeto em sua extensão, campo do conhecimento científico, da mensuração e da precisão. Descartes formulou muito bem esse princípio de disjunção, e esta disjunção reinou em nosso universo. Ela separou cada vez mais a ciência e a filosofia. Separou a cultura dita humanista, a da literatura, da poesia e das artes, da cultura científica. A primeira cultura, baseada na reflexão, não pode mais se alimentar nas fontes do saber objetivo. A segunda cultura, baseada na especialização do saber, não pode se refletir nem pensar a si própria.

Tal ruptura entre sujeito e objeto é alvo de críticas, conforme a própria metodologia adotada aponta. Além disso, uma opção à disjunção entre os saberes também é abordada pelo método da compreensão, já mencionado anteriormente. Nesse momento, minha preocupação é

mais no sentido de evidenciar o diálogo entre os autores propostos. A crítica para tal paradigma, assim penso, surgirá consequentemente a tal diálogo.

Nesse sentido, observo que Capra (2006) aponta como características do pensamento mecanicista autoafirmativo a racionalidade, a análise, o reducionismo e a linearidade. Em consonância, tal paradigma germina os valores de expansão, competição, quantificação e dominação. Aqui, observo a relação focal da presente discussão: os paradigmas, além de constituírem princípios supralógicos, também formatam os valores dos indivíduos e/ou sociedades que comungam com seus pressupostos. É ao analisar de forma racional que o objeto é reduzido a uma linearidade. Ou seja, “uma visão de mundo classificadora, analítica, reducionista, numa causalidade linear” (MARUYAMA apud MORIN, 2007, p. 23). A partir desse processo, é possível quantificar. A quantificação permite a expansão e, por conseguinte, a competição. Finalmente, quando a competição é vencida e/ou a expansão é efetivada, surge a dominação.

Aqui, faz-se necessário apontar a diferença entre racionalidade e racionalização. De acordo com Morin (2007, p. 70):

A racionalidade é o jogo, é o diálogo incessante entre nossa mente, que cria estruturas lógicas, que as aplica ao mundo e que dialoga com esse mundo real. Quando este mundo não está de acordo com nosso sistema lógico, é preciso admitir que nosso sistema lógico é insuficiente, que só encontra uma parte do real. A racionalidade, de todo modo, jamais tem a pretensão de esgotar num sistema lógico a totalidade do real, mas tem a vontade de dialogar com o que lhe resiste.

A definição de Morin deixa patente que minha crítica não se destina à racionalidade. Pelo contrário, é fruto dela. A crítica aqui cabível é ante a racionalização, que “consiste em prender a realidade num sistema coerente. E tudo o que, na realidade, contradiz esse sistema coerente é afastado, esquecido, posto de lado, visto como ilusão ou

aparência” (MORIN, 2007, p. 70). Nesse sentido, o diagnóstico de Weber (2004) aponta para uma transmutação/corrupção da racionalidade em racionalização. Dissociado do sujeito, o mundo se torna mero objeto, passível de dominação. A quantificação, a expansão e a competição apontadas por Capra operam como instrumentos para tal. Ao mesmo tempo, os sujeitos são enredados por essa mesma teia de sentidos que eles próprios criaram. Uma cela abstrata de abstração28. Conforme Morin (2007, p. 43):

E assim toma forma o paradigma-chave do Ocidente: o objeto é o conhecível, o determinável, o isolável, e por consequência o manipulável. Ele detém a verdade objetiva e, neste caso, ele é tudo para a ciência, mas manipulável pela técnica, ele não é nada. O sujeito é o desconhecido, desconhecido porque indeterminado, porque espelho, porque estranho, porque totalidade. Assim, na ciência do Ocidente, o sujeito é o tudo-nada de toda verdade, mas ao mesmo tempo ele não passa de “ruído” e erro frente ao objeto.

O paradigma converte-se em paradoxo. A busca pela totalidade afirma-se também como a demanda pelo niilismo. Os meios tornam-se o fim em si, como aponta Weber (2004). Nesse sentido, gostaria de frisar a hierarquização entre objeto e sujeito, no qual o objeto recebe destaque. Torna-se hierarquicamente superior justamente por ser manipulável e determinável. Numa visão romântica, constitui o princípio pelo qual a dominação do objeto, antes um obstáculo a ser superado no caminho da realização do sujeito, passa a ser a própria realização do sujeito. Numa visão pragmática, faço valer a escolha do título para essa parte da pesquisa: Maya. A sobreposição do conceito ante a realidade. Talvez coincidentemente, Maya é traduzida como poder. E não seria exagero dizer que o paradigma objetificador frutifica e/ou é fruto de uma relação de poder.

28. Por mais paradoxal que pareça, a ambiguidade do termo cela abstrata de abstração é intencional. Com esse termo, me refiro tanto a uma cela que impossibilita a abstração, quanto a uma cela intangível que compele a uma indefinida abstração.

Para Morin (2007), a revanche do sujeito se daria pela moral e pela ideologia. Weber (2004) aponta para um sentido similar quando evidencia a ascensão da ética protestante. Tal transição é emblemática na conversão do mago em sacerdote. Enquanto o primeiro possui uma relação subjetiva com o mundo, que diz respeito à sua própria vivência e aos outros sujeitos que com ele se relacionam (sua clientela), o segundo é institucionalizado, e seu poder sobre seu rebanho advém de dogmas universalizados. Similarmente, Caillois (2017) afirma que o xamã é figura emblemática das sociedades de caos, ao passo que nas sociedades de contabilidade tal posto é ocupado pelo mandarim: enquanto o primeiro se funda na experiência, o segundo é fruto da disciplina. Assim, é possível chegar à afirmação de que:

Ora, este paradigma do Ocidente, afinal um filho fecundo da esquizofrênica dicotomia cartesiana e do puritanismo clerical, comanda também o duplo aspecto da práxis ocidental, de um lado antropocêntrica, etnocêntrica, egocêntrica quando se trata do sujeito (porque baseada na autoadoração do sujeito: homem, nação ou etnia, indivíduo), de outro lado e correlativamente manipuladora, frieza “objetiva” quando se trata do objeto. Não deixa de ter relação com a identificação da racionalização com a eficácia, da eficácia com os resultados contabilizáveis. Ele é inseparável de toda uma tendência classificacional reificadora, etc. Tendência corrigida, às vezes com vigor, às vezes suavemente, por contratendências aparentemente “irracionais”, “sentimentais”, românticas, poéticas (MORIN, 2007, p. 55).

Destarte, o objeto é favorecido especificamente por ser determinável, quantificável e, sobretudo, manipulável. Nesse paradigma objetificador, apresentam-se duas opções ao sujeito: a subalternidade a uma hierarquia cristalizada ou a submissão à condição de objeto, de modo que possa ser visto de maneira quantificável, determinável e manipulável.

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