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2.2 Comunicação econômica

A afirmação de que a Comunicação29 pode ser um instrumento de manipulação não é, de maneira alguma, inédita. Tampouco, incontestável. É possível até dizer que tal discussão está datada: a Comunicação é apenas uma das instâncias capazes de influenciar as tomadas de decisões dos indivíduos. Contudo, a discussão a que me proponho diz respeito à relação entre a Comunicação e o paradigma. Vale lembrar que, para o físico Thomas Kuhn (1998, p. 218), paradigma “indica toda a constelação de crenças, valores, técnicas, etc..., partilhadas pelos membros de uma comunidade determinada”, ou seja, “é aquilo que os membros de uma comunidade partilham e, inversamente, uma comunidade científica consiste em homens que partilham de um paradigma” (KUHN, 1998, p. 219). Considero que a palavra-chave aqui presente é partilha.

Se existe a necessidade da partilha para a instituição de um paradigma para uma determinada comunidade, é pertinente que se pense no papel da Comunicação nessa partilha. É sobre essa questão que o presente item procura argumentar. Existe um paradigma que prega a separação do sujeito e do objeto. Nesse processo de separação, atribui ao primeiro o erro, o desvio, porque não é mensurável, enquanto ao segundo, concede a centralidade, uma vez que a ele se aplicam operações racionais de análise, de maneira a ser percebida uma certa linearidade e, portanto, previsibilidade.

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Assim, aponto que a perspectiva hegemonicamente vigente da Comunicação, enquanto ciência, parece compartilhar alguns desses valores. Ao refletir sobre o processo histórico pelo qual a Comunicação passa do século XVII em diante, Vicente Romano observa o mesmo processo de dissociação entre sujeito e objeto. Dessa forma:

29. Ressalto que, nesse item, o uso do termo Comunicação privilegia a percepção de sua função informacional (ROMANO, 2004).

[...] a natureza não era só um conjunto de coisas. Passou a considerar-se cada vez mais como uma estrutura mecânica que se poderia decompor e voltar a compor de várias maneiras. A natureza externa e a humana eram concebidas como rigorosamente separadas. Hoje esta dicotomia é pensada em termos de natureza e cultura, natureza e história, rural e urbano, matéria e mente, pares opostos que refletem a divisão entre existência imaterial e cultura. Esta linha de pensamento oferece uma terceira dicotomia. A própria natureza humana se divide em espírito e corpo, inteligência e sentimento, razão e emoções. Este dualismo se expressa hoje de muitas maneiras: biologia e psicologia, arte e ciência, etc. Por último, a natureza social também se apresenta de forma dicotômica. A sociedade se define como os indivíduos que a constituem, o que se denomina individualismo metodológico (ROMANO, 2004, p. 28-29, tradução própria)30 .

É patente que a crítica perpetuada por Romano apresenta diversos pontos de contato com os posicionamentos de Weber, Morin e Capra trazidos no item anterior. É nesse sentido que trago a acepção de Comunicação hegemonicamente vigente. Entre os polos emissor e receptor, exacerba-se o papel das mídias. As mídias (objeto) passam a ser, porque facilmente quantificáveis e determináveis, a parcela hierarquicamente superior dos estudos da Comunicação31 .

Dentro dessa perspectiva comunicacional, é coerente que os polos do processo sejam substituídos por mecanismos, de maneira que todo o

30. A obra de Romano é de difícil acesso. Embora exista a perspectiva da publicação de versão brasileira, até o presente momento não existe nenhuma previsão concreta. É possível, contudo, acessar uma versão embrionária, extremamente sintética, em que o próprio Romano esboça o que viria a ser a obra em questão. Tal versão encontra-se disponível em: https://goo.gl/zZNQdB. 31. É preciso reconhecer que minha própria pesquisa se insere nessa lógica. Uma vez que a área de concentração do Programa de Pós-Graduação, a linha e o grupo de pesquisa em que estou inserido incluem a palavra mídia em seus títulos, torna-se patente que minha pesquisa também centralize uma mídia. Nesse sentido, minha preocupação é observar a cultura como fator subjacente para esse processo.

modelo possa ser objetivamente percebido. Como apontou Capra, ao valor da quantificação, segue a expansão, a competição e a dominação. É dada a largada para a expansão exacerbada das inovações nas TICs. Romano (2004, p. 16, tradução própria) observa que:

As inovações começam nos setores militar e econômico e passam para o setor privado. Assim, a lógica da superação do tempo e do espaço, determinantes nas esferas militar e econômica, é aplicada na esfera privada. Nesse sentido, a interação com o entorno é o resultado da política militar e econômica. O antigo aforismo de que uma sociedade é como ela se comunica é modificado no sentido de que uma sociedade é como é comunicada na economia. [...] Por meio da biosfera, sabe-se que muitas intervenções específicas em contextos naturais podem levar à inversão. Quanto mais se apliquem as TICs (Tecnologias de Informação e Comunicação) ou as mídias na comunicação cotidiana, mais serão reforçados os processos de descontextualização, perda de lugar, tempo e sensorialidade na comunicação e na experiência. Onde e como os perigos desta evolução são procurados depende, por sua vez, dos interesses específicos. Assim, por exemplo, faz sentido analisar suas repercussões nas estruturas de poder e dominação e na organização da sociedade.

É interessante deixar em evidência que os valores do paradigma mecanicista, segundo Capra, são características essenciais tanto do setor militar quanto do setor econômico, assim como para essa perspectiva comunicacional. Tanto que a ligação entre globalização financeira e as TIC é umbilical – não seria possível um mercado financeiro internacional sem tecnologias de comunicação que o permitissem. Ao mesmo tempo, os conglomerados midiáticos desempenham um papel crescente na economia mundial (ROMANO, 2004).

A reflexão de Romano não surge ex nihilo. Para compreender em profundidade a relação entre comunicação, economia e tecnologia que o autor advoga, considero necessário um mergulho em sua trajetória

acadêmica. Um dos mentores de Romano foi o cientista político e jornalista Harry Pross. Dentre as inquietações de Pross, figura a relação entre comunicação e poder. De suas reflexões, surge o conceito de economia do sinal, intimamente ligado com sua proposta de teoria da mídia (PROSS, 1987).

A economia do sinal versa sobre o fato de que o emissor usualmente deseja economizar o esforço para realizar uma emissão. Quanto maior for seu alcance espaço-temporal, ou seja, quanto mais pessoas forem atingidas pelo mesmo sinal, mais econômica é a emissão. Dito de outra maneira, a economia do sinal visa “alcançar em tempo mais curto através de espaços mais amplos o público mais numeroso para o maior número possível de mensagens segundo o princípio do custo mínimo” (ROMANO, 2004, p. 75, tradução própria). Por conta disso, dá-se a demanda do aperfeiçoamento da técnica dos sinais32 .

Nesse sentido, a teoria da mídia observa distintos patamares da economia do sinal. Na mídia primária, não existe nenhum aparato entre o emissor e o receptor. Exemplos disso são quaisquer formas de emissão de sinal que dependam única e exclusivamente do corpo, tais como a fala e os gestos. Na mídia secundária, existe um aparato que auxilia a emissão – caso das pinturas e demais formas de grafia, assim como parte significativa dos instrumentos musicais. Aqui, já é percebido um deslocamento na dinâmica espaço-temporal: um texto, por exemplo, pode ser lido em um local e/ou em um tempo distinto da pessoa que o escreveu.

Por último, a mídia terciária compreende aquelas em que existe um jogo de aparatos (dois ou mais) entre a emissão e a recepção: pelo menos um que codifica a mensagem de maneira a aumentar a eficiência da emissão e um que a decodifica para que possa ser recebida. Os exemplos abundam,

32. Tal aperfeiçoamento da técnica apresenta-se como um processo cíclico de inovação-comercialização-massificação-declínio: após o período inicial de comercialização de inovação, os preços costumam cair, de modo que é necessário desenvolver inovações subsequentes a fim de arcar com os custos de investimento do processo (PROSS apud ROMANO, 2004).

tal como a emissão de uma imagem via internet, convertida em linguagem binária, e decodificada novamente como imagem no aparato que a recebe. Via de regra, a mídia terciária refere-se aos meios eletrônicos33 .

Destarte, a discrepância entre a economia de sinal quase nula na mídia primária e a economia de sinal extremamente eficaz da mídia terciária costuma tecer relações de poder. Isso porque, de acordo com Romano (2004, p. 80, tradução própria):

O poder de uns seres humanos sobre outros se baseia na apropriação do biotempo orgânico, o qual é insubstituível, e pressupõe competência de sinais. Quanto mais longe e mais rápido chegue o sinal, quanto mais pessoas o percebam, mais biotempo pode ser colonizado pelo emissor do sinal e, por fim, salvar-se o próprio biotempo.

Concomitantemente, retomo a reflexão de que a mediação é uma forma de alienação (BEY, 1994a). Tal alienação apresenta-se gradiente, cuja variação é dada de acordo com o grau de mediação. Nesse sentido, é esperado que, a fim de consolidar uma relação de poder, os processos comunicacionais com maior grau de mediação sejam privilegiados.

Observo que tal perspectiva exacerba de maneira descomedida as relações de hegemonia: a capacidade de emitir o sinal economicamente possibilita a mercantilização dessa apropriação do biotempo, o que permite que mais recursos estejam disponíveis para investir em inovações que aumentam ainda mais a economia do sinal. Observar os conglomerados midiáticos no começo do século XXI aponta para uma concentração exacerbada do poder de emissão, uma vez que:

O mercado mundial terminou nas mãos de oito multinacionais: Disney,

33. Pode-se dizer que, enquanto a mídia secundária é análoga ao Prometeu mítico, ou seja, fruto da técnica, a mídia terciária é tributária da eletricidade tal qual a criatura do Dr. Frankenstein literário, ou seja, é cria da conversão da técnica (libertação das limitações impostas pela natureza) em tecnologia (dominação humana sobre a natureza).

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