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1.3 Jogo e Cultura Midiática
from A Arte do Encontro
by Luiz Falcão
de que Caillois percebe primeiro a importância dos jogos ao estudar as festividades do sagrado de transgressão.
Ou seja, muito embora o autor traga a centralidade do jogo para a reflexão da sociedade, não deixa de carregar em si uma visão de mundo que o marginaliza. Dito de outra maneira, os jogos seriam mais evidentes nas sociedades que o autor aponta como primitivas. Isso não quer dizer que o jogo deixa de existir nas sociedades civilizadas, e sim que costuma existir sob disfarces. O motivo de tal disfarce seria a tendência do jogo a se institucionalizar nessas sociedades, por conta da necessidade de compartilhar as regras dos mesmos. Reforço que não compartilho o ideal de tal hierarquização sacro-ludo-social. Mais frutífero que isso, no meu entendimento, é pensar em diferenças, em diversidade.
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Não me parece acertado afirmar que existe somente a via que leva da turbulência à regra. Ela existe, é fato. Mas também parece existir a via contrária, ou mesmo jogos que não se colocam em via nenhuma, destinados a permanecer ou na turbulência, ou na regra. Mais do que isso, independentemente da turbulência ou da regra ou, se preferirmos, da experiência ou da disciplina, o jogo existe de maneira análoga a um mediador cultural.
Para dar continuidade ao raciocínio proposto, exponho que a área de concentração do Programa de Pós-Graduação onde gesto a presente pesquisa, denominada Cultura Midiática, permite discutir como o jogo, enquanto mídia, promove a (re)organização cultural. Mais do que isso, a relação entre jogo e cultura é profícua para a pesquisa, de modo que o historiador Johan Huizinga surge como o nome que me parece mais indicado para nortear a reflexão. Huizinga, após se dedicar ao estudo do declínio da Idade Média e à crítica da cultura de massa, debruçou-
-se sobre o jogo. A obra Homo ludens: o jogo como elemento da cultura, publicada em 1938, às portas da Segunda Guerra Mundial, buscou, no lugar de inserir o jogo entre as demais manifestações culturais, determinar o caráter lúdico da cultura (HUIZINGA, 2017)19 .
A primeira inquietação que salta aos olhos do autor diz respeito à visão predominante na época que, grosso modo, conjecturava ao jogo funções e finalidades meramente biológicas. No lugar disso, Huizinga (2017, p. 5) afirma que “a intensidade do jogo e seu poder de fascinação não podem ser explicados por análises biológicas. E, contudo, é nessa intensidade, nessa fascinação, nessa capacidade de excitar que reside a própria essência e a característica primordial do jogo”.
Huizinga preocupa-se ainda em reconhecer que o jogo não é fundamentado em um elemento racional ou, mais ainda, uma exclusividade humana. Para o autor, o jogo é uma atividade do espírito, de maneira que:
A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana. Se os animais são capazes de brincar, é porque são alguma coisa mais do que simples seres mecânicos. Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional (HUIZINGA, 2017, p. 6).
Categórico em sua afirmação, Huizinga busca demonstrar a convivência do humano com a realidade do jogo, uma espécie de mundo poético, que distinta da natureza/realidade física, compõe um solo, no qual as demais manifestações culturais irão fincar suas raízes, de modo que “as grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde o início, inteiramente marcadas pelo jogo” (HUIZINGA, 2017, p. 7). Dito de outra maneira, a cultura não surge do jogo, mas surge como jogo.
19. A escolha por essa versão da obra se dá pela comodidade da leitura em meu idioma nativo. A versão de 1949, publicada em inglês, encontra-se acessível em: https://goo.gl/eoDanF.
Tal posicionamento semeia alguma confusão sobre a obra do historiador. No lugar de um determinismo lúdico da cultura, ou seja, apontar que toda e qualquer manifestação cultural humana se origina de algum jogo, o autor busca mostrar que a estrutura lúdica se faz presente nas manifestações culturais, presença essa justificada pela antecedência do jogar ao humano ou ao racional. Sobre a estrutura que define os jogos, Huizinga (2017, p. 33) aponta que:
O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria, e de uma consciência de ser diferente da “vida quotidiana”.
O motivo da relação entre a definição de jogo proposta por Huizinga e as demais manifestações culturais é patente. Ao assumir a perspectiva do autor, a palavra jogo poderia ser substituída por outras, sem maiores prejuízos à definição. O direito, por exemplo, também é uma atividade cujas partidas são executadas dentro de limites de espaço (o tribunal) e tempo (a audiência), com regras livremente consentidas, embora obrigatórias (os ritos e costumes de uma corte judicial), e diferentes da vida cotidiana (o comportamento do indivíduo não é o mesmo dentro e fora de uma audiência). O mesmo poderia se aplicar ao culto, à arte, à filosofia, e até mesmo à guerra, como mostra o autor. Destarte, o argumento de Huizinga é que, com o desenvolvimento da cultura, os aspectos lúdicos passam para um plano subjacente aos fenômenos culturais.
Além dessas características, Huizinga também elenca outras: o jogo também se mostra uma atividade não-séria, ou seja, sabe-se que aquilo é só faz-de-conta. Por isso, seriedade se opõe ao jogo, embora o contrário não se confirme. Para alguém que não participa de um determinado jogo, aquilo é costumeiramente percebido como não-sério. Isso vale para os familiares que observam uma criança brincando, mas, se expandido o olhar para a relação do jogo com as demais manifestações
culturais, também seria a base para a incredulidade frente às crenças não compartilhadas com outros indivíduos, por exemplo.
Essa distinção nem sempre ocorreu. Huizinga utiliza a expressão mito vivo, à qual tomo a liberdade de traçar paralelos com mundo encantado. Mundo encantado, grosso modo, diz respeito à compreensão do humano sobre o mundo, na qual a realidade concreta e a realidade imaginária coexistem ligadas pelos símbolos. Com a racionalização do mundo, ou seja, a busca pela racionalidade mesmo em fenômenos irracionais, ocorre o desencantamento do mundo, abordado magistralmente pelo sociólogo Max Weber (2004). É quando o mundo se torna desencantado, e o mito se torna mitologia, que o jogo passa a se opor à seriedade. Por isso as crianças, mais livres da jaula de aço da racionalização do mundo do que os adultos, se veem mais comprometidas com a fusão entre jogo e seriedade.
O jogo também é desinteressado, ou seja, é externo ao “mecanismo de satisfação imediata das necessidades e dos desejos e, pelo contrário, interrompe esse mecanismo. Ele se insinua como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização” (HUIZINGA, 2017, p. 11). Por isso, ao jogo se opõe o trabalho20. Afirmação inquietante, sobretudo ao observarmos a constelação de astros dos esportes atuais (tanto esportes físicos quanto o advento recente dos ciberesportes/ eSports). Porém, para o autor, tal atividade seria uma imitação forçada que, embora possa parecer um jogo, não o é, pois opera dentro de tal mecanismo de satisfação de necessidades e desejos.
A partir desse arrazoado teórico, procurei trazer conceitos suficientes do autor para rumar em direção ao meu intuito central nesse item, que
20. A oposição entre jogo e trabalho é comum entre os estudiosos que se lançam ao tema. Para um aprofundamento sobre essa questão, indico a obra O Trabalho como Vida, de Dietmar Kamper (1998).
é apontar a relação entre jogo e cultura midiática. Minhas primeiras pistas sobre tal discussão advêm de Huizinga (2017, p. 212), quando este afirma que:
Já no século XVIII o utilitarismo, a eficiência prosaica e o ideal burguês do bem-estar social (elementos que foram fatais para o barroco) haviam deixado uma forte marca na sociedade. Estas tendências foram exacerbadas pela revolução industrial e suas conquistas no domínio da tecnologia. O trabalho e a produção passam a ser o ideal da época, e logo depois o seu ídolo.
A justaposição entre tal afirmação de Huizinga e o desencantamento do mundo weberiano me parece inegável. A racionalização do mundo e a imposição do utilitarismo à práxis humana convidam a uma tecnossacralidade, ou seja, a uma postura de devoção sacra do humano ante a técnica (MIKLOS; SOARES, 2016). De mãos dadas com o elogio à técnica, a economia passa a ter uma centralidade descomedida.
Nesse contexto, é coerente que o jogo passe a ter um papel subalterno na cultura, marginalizado e infantilizado. O jogo, até então presente na sabedoria da maiêutica socrática e das disputas escolásticas medievais, na arte da jogralia e dos repentistas, no simbolismo dos rituais e das festividades e até mesmo no renome dos holmgang21 e das justas, passa a ser considerado algo restrito ao divertimento, ao risível. Etimologicamente, tal trajetória fica evidente no português, em que o lúdico (relativo ao latim ludus, que era como os romanos se referiam aos jogos) transfigura-se em jogo (relativo ao latim jocus, que por sua vez era o termo utilizado para piadas). Contudo, a competitividade, geralmente associada aos jogos, permaneceria, embora desligada de seu caráter lúdico, devido ao excesso de seriedade e ao interesse material. Para Huizinga (2017, p. 222):
21. Duelos formais escandinavos que consistiam em um combate estritamente regrado sobre um pedaço de couro ou tecido. Eram reconhecidos como uma maneira de resolver disputas.
Esse impulso dado ao princípio agonístico, que parece estar novamente levando o mundo em direção ao jogo, deriva principalmente de fatores externos e independentes da cultura propriamente dita, numa palavra, dos meios de comunicação, que tornaram toda espécie de relações humanas extraordinariamente fáceis. A técnica, a publicidade e a propaganda contribuem em toda a parte para promover o espírito de competição, oferecendo em escala nunca igualada os meios necessários para satisfazê-lo. É claro que a competição comercial não faz parte das imemoriais formas sagradas do jogo. Ela surge apenas a partir do momento em que o comércio passa a criar campos de atividade em que cada um precisa esforçar-se por ultrapassar o próximo.
Portanto, aqui é onde entra de fato a relação do jogo com a cultura midiática. Os processos tecnológicos, a lógica de produção e consumo que pauta a sociedade, a massificação que promove a pasteurização das manifestações culturais: todos esses fenômenos contribuem para uma apropriação do jogo pela cultura midiática, tema que será mais amplamente abordado no capítulo subsequente. Contudo, de maneira sintética, me proponho a afirmar, sob o risco de soar categórico: o consumo midiático tem usurpado, crescentemente, o espaço do lúdico no tempo do ócio.