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Prefácio

Larp: A Heresia da Imaginação

por Jorge Miklos

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“A imaginação é um insulto às religiões” (Marília Fiorilo)

Certa data, ao participar de um evento acadêmico que buscava refletir sobre a Idade Média, projetada e retratada no cinema, fui tomado de surpresa por uma citação que trazia um pensamento de Tomás de Aquino: Ludus est necessarius ad conversationem humanae vitae. “O brincar é necessário para (levar uma) a vida humana” (Tomás de Aquino, Suma Teológica II-II, 168, 3, ad 3).

Com essa frase, o mais renomado doutor da Escolástica pretendia afirmar que Deus brinca e, dessa forma, o ser humano precisa brincar para encontrar a razão mais profunda do mistério da realidade que é brincada por Deus.

É com essa premissa teológica e teleológica que apresento, com honra e alegria, o livro de Tadeu Iuama, fruto de sua tese de doutorado e expressão de uma vida que pensa brincando e brinca com o pensar. E o

faz com muita seriedade, uma vez que parece que os valores sociais se esqueceram da relevância do lúdico para o desenvolvimento humano.

Os fenômenos culturais revelam, nas mais diversas sociedades (no tempo e no espaço), a necessidade humana de dar expressão às crenças e valores que circulam no imaginário, de forma que possam ser percebidos por meio dos sentidos e não somente do intelecto. Desde os tempos primevos, nota-se uma intensa participação dos sentidos na experiência cultural: dançamos em homenagem aos deuses e deusas, cozinhamos sabores, cheiramos odores, ouvimos e entoamos canções.

É sobretudo por meio dos rituais brincantes que o imaginário toma forma e ganha expressão. Por meio dos rituais, o mito se atualiza e o símbolo ganha sentido, aproximando-nos do sagrado e do grupo social que nos constitui culminantes. O brincar espontâneo é o caos encontrado e novamente ordenado.

A partir da constatação de que o brincar foi - como quase tudo - fagocitado pela lógica da instrumentalização que o transformou em commodity, o leitor brincante irá encontrar nas páginas a seguir um convite para refletir sobre esse brincar no contemporâneo. Esse processo é, pomposamente, chamado de gamificação, ou seja, técnicas de design de jogos que utilizam a lógica dos jogos para nutrir diversos contextos, não relacionados a jogos, e obter resultados mais eficazes de produtividade.

O brincar, o jogar, é de ancestralidade arquetípica. Lidamos com a hipótese de que, se por um lado, o plano da consciência humana é adaptativo e requer a unilateralidade da realização e da pujança, esse campo é compensado por uma dimensão irracional, lúdica, não lógica, que emerge das profundezas arcaicas do inconsciente coletivo e compensa a ação da razão que, em exagero, gera patologias ou a mais crassa barbárie.

O lúdico é o território dos deuses, expressão da magia e do sagrado, uma vez que ele se opõe ao profano. A função do brincar representa um vínculo entre dados reais e imaginários, racionais e irracionais, preenchendo assim a lacuna entre a consciência e o inconsciente. Brincar é uma manifestação da energia psíquica e consiste em uma série de ocorrências de fantasias que surgem, espontaneamente, forjando a cultura.

Na “jaula de aço” da ordem racional e burocrática da produtividade sistêmica capitalista, cujo sentido é a busca da eficácia, o brincar é transgressor, uma vez que proporciona o contraponto necessário do caos, da desordem, do improdutivo, do criativo, do irracional e da gratuidade.

Nesse sentido, o brincar espontâneo é subversivo e ameaçador. Todas as forças da ordem sistêmica consciente se organizam no sentido de reprimir, recalcar e tentar destruir essa energia.

Já dizia o ditado popular: ‘se não pode com eles, junte-se a eles’. É o que tem feito – e esse é o alerta e o diagnóstico do autor – o sistema hegemônico da sociedade de mercado: a apropriação do brincar e sua conversão em sistema de games, o que implica dois efeitos: 1) gera uma bilionária indústria cultural por meio de agentes econômicos, os grandes conglomerados midiáticos de games, que formam uma rede interplanetária abalizada na articulação entre o modo de produção capitalista, que alimenta a acumulação de capital financeiro, numa economia de interconexões eletrônicas; 2) criam um sistema que lazer e entretenimento que promove a sedação de mentes e corpos – alienação. Tal condição evidencia que as corporações de games e entretenimento exercem duplo papel estratégico na contemporaneidade: agentes econômicos e agentes culturais comprometidos com a massificação de milhões de mentes. O sociólogo espanhol Manuel Castells postulou que é mais eficaz domesticar mentes do que torturar corpos.

Mesmo diante de um diagnóstico lúgubre, o autor não permite que a sua lucidez eclipse a potência criativa que habita a cultura. Há de se lembrar que onde há poder, há também contrapoder.

Graças ao seu conhecimento orgânico – que transforma informação em sabedoria orgânica – Tadeu lembra-nos daquilo que a maioria de nós, mesmo estando nas trincheiras da pesquisa acadêmica, esquecemos: o jogo, no caso específico o larp, cria ambientes (oikos) de vínculos, ativando a imaginação, fonte da nossa liberdade e da nossa condição imanente e transcendente. Para jogar o larp é preciso imaginar. E quando falamos de imaginação, falamos no poder de criar outra realidade, edificar utopias.

Em sua sementeira, o Cristianismo se bifurcou em duas vertentes opostas, no que tange à imaginação: os cristãos ortodoxos que creditavam na fé (ennoia) o suporte da crença que apazigua, que traz alívio, passividade, mas também alienação, imobilidade, disciplina e obediência; e os cristãos gnósticos que depositavam na imaginação (epinoia) o despertar de uma atividade interna desenfreada, inconformista, indisciplinada, transgressora.

A imaginação é herética, uma vez que ousa abrir espaço para a fantasia, para as dúvidas, hesitações, incongruências, incoerências, oxímoros. A imaginação coloca o sujeito em um movimento inesperado, imprevisível. A imaginação é audaciosa, flexível, flácida. A imaginação não acalma, perturba. A imaginação espanta e gera sabedoria. Para sorte da Igreja Católica, dos Estados Democráticos contemporâneos populistas, das economias neoliberais, do Ministério da Educação e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), a imaginação não prosperou. A imaginação é um insulto para os que se adaptam na unilateralidade do mundo concreto.

Em seu livro, Tadeu evidencia que o larp impulsiona para a força da imaginação, propulsora da fantasia e, ao que parece, é uma alternativa

mais saudável a esse processo de sedação de consciências e corpos que tem adoecido a sociedade contemporânea. Enquanto o game reivindica submissão, o larp suspira pela criatividade da contestação.

Finalizo esse breve relato testemunhando que com Tadeu redescobri a magia de brincar com o pensamento e abri para a possibilidade de ser brincado por ele. Nossa pareceria muito fecunda, despertou o Dom Quixote que estava adormecido. Que Moira, filha de Raquel e Tadeu, receba do mundo menos pragmatismo e mais imaginação.

Jorge Miklos

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