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1.1 Jogo e Estudos do Imaginário

Antes de ir ao jogo, de fato, julgo importante delimitar sob qual lente o imaginário é observado em minha genealogia intelectual. Embora uma miríade de estudiosos, de áreas distintas, tenha se debruçado sobre o imaginário (tais como o psicanalista Jacques Lacan e o filósofo Jean-Paul Sartre), faço opção, sem juízo de valor, pela perspectiva adotada pelo GP Mídia e Estudos do Imaginário, uma vez que faço parte do mesmo. Doravante, sempre que o termo for utilizado, é sob a ótica da noosfera. Para Edgar Morin (2011, p. 141):

As representações, símbolos, mitos, ideias são englobados, ao mesmo tempo, pelas noções de cultura e de noosfera. Do ponto de vista da cultura, constituem a sua memória, os seus saberes, os seus programas, as suas crenças, os seus valores, as suas normas. Do ponto de vista da noosfera, são entidades feitas de substância espiritual e dotadas de certa existência. Oriunda das próprias interações que tecem a cultura de uma sociedade, a noosfera emerge como uma realidade objetiva, dispondo de certa autonomia e povoada por entidades que denominaremos “seres de espírito”.

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Com isso, assumo o imaginário como real (e, portanto, distinto do devaneio e da fantasia) e intersubjetivo (distinto de uma realidade solipsista, puramente subjetiva), que retroage com a cultura, de modo que ambos se influenciam e atualizam. Essa perspectiva concebe “que o imaginário preexiste às condições concretas de vida de uma sociedade, considerando a existência de uma memória arquetípica12 que permeia toda a cultura herdada por essa sociedade” (CONTRERA; MIKLOS, 2014, p. 221). Tal linha de pensamento se distingue, embora não se oponha ou exclua – numa frequência significativa, se

12. Ao observar o caráter arquetípico do imaginário, a obra do psicólogo Carl Gustav Jung passa a ser referencial para tais estudos. Embora não seja citado diretamente na presente pesquisa, é importante ressaltar que o pensamento de Jung permeia a noção de imaginário do GP Mídia e Estudos do Imaginário.

complementa – da perspectiva de que o imaginário seria fruto das experiências concretas de uma sociedade.

Sobre o caráter arquetípico do imaginário, Morin (2011) vai apontar para os seres de espírito que povoam a noosfera. Tais entidades estariam agrupadas em cosmobioantropomórficas e logomorfas. O primeiro grupo se refere aos sistemas de crenças, tais como os mitos e as religiões13 . O segundo grupo, por sua vez, diz respeito aos sistemas de ideias, tais como doutrinas, teorias e filosofias.

Definir o imaginário, conforme a lente que me proponho a utilizar, se fez necessário para evitar que quaisquer desentendimentos sobre o uso do conceito ocorram. Após essa digressão, que considero profícua, minha primeira meta é abordar o conceito de jogo do ponto de vista psicológico.

Para tanto, tomo como aporte teórico a obra O brincar & a realidade14, publicada em 1971, escrita pelo psicanalista Donald Woods Winnicott. O autor, de maneira alguma, foi o único a se debruçar sobre a relação entre o jogo e a psique humana. Porém, ao contrário dos autores que o precederam (mas com quem certamente dialoga em sua obra), seu interesse foi “o brincar como algo em si mesmo” (WINNICOTT, 2019, p. 72), e advogou que “o brincar deve ser estudado como um tema em si mesmo” (WINNICOTT, 2019, p. 71), ou seja, uma visão não-utilitarista, que buscou compreender o jogar/brincar. Por conta disso, justifico minha opção por este autor ante outros nomes da psicologia, tais como Melanie Klein, Jean Piaget, Lev Vygotsky e

13. A distinção entre mito e religião proposta por Morin diz respeito a uma narrativa simbólica, no primeiro caso, e a institucionalização de um determinado universo mitológico, no segundo caso. 14. Evidencio a correlação e a confusão entre os termos brincar e jogar. Os demais livros citados nesse capítulo possuem o termo jogo presente em seus títulos, enquanto a obra de Winnicott recebe o termo brincar no título, embora todas elas, em inglês, façam referência ao verbo to play. Por conta disso, utilizarei referenciais que digam respeito tanto ao jogar quanto ao brincar.

Virginia Axline, que também se dedicaram ao tema, embora sob um viés ora terapêutico, ora pedagógico.

Para iniciar a compreensão do conceito de jogo pela ótica de Winnicott, é necessário se aprofundar em sua perspectiva acerca do desenvolvimento humano. Para o autor, o bebê inicialmente vive num estágio de controle onipotente da realidade. Esse controle, de caráter mágico, se dá pelo fato de que o bebê ainda não percebe o mundo à sua volta. Tudo é subjetivo. Por não perceber nada como não-eu, é por meio de sua vontade que ele sacia sua fome, por exemplo – uma vez que não compreende a existência de outra pessoa o nutrindo.

Posterior a esse estágio, surgem os objetos e fenômenos transicionais. Tais fenômenos se situam numa zona intermediária, não pleiteada nem pela realidade subjetivamente concebida, nem pela realidade objetivamente percebida. Para o autor, as experimentações do indivíduo só podem ocorrer nessa área intermediária, “entre a atividade criativa primária e a projeção daquilo que já foi introjetado” (WINNICOTT, 2019, p. 15).

Tal área possui caráter incontestável, e a partir do momento em que é reivindicada como objetiva ou subjetiva, se esvai. A partir da reflexão sobre os fenômenos transicionais, Winnicott (2019, p. 88) define o brincar como “uma experiência, uma experiência sempre criativa, uma experiência no continuum espaço-tempo, uma forma básica de viver”. Atento-me, sobretudo, ao emprego da afirmação forma básica de viver ao brincar. Winnicott (2019, p. 52-53) esclarece que:

[...] sonhar e viver aparentavam ser duas coisas da mesma ordem, enquanto o devaneio seria de outra. O sonho está ligado à relação de objeto no mundo real, enquanto a vida no mundo real está ligada ao mundo dos sonhos de maneira bastante familiar, especialmente a psicanalistas. Por outro lado, a fantasia é um fenômeno isolado que absorve energia, mas não contribui nem para os sonhos nem para a vida.

Nessa acepção, fica patente a afinidade do brincar com o sonhar e com o viver. Por excelência, situa-se na zona intermediária, simbólica, entre os dois. Implica tanto a ação concreta, pertinente ao viver, quanto a ação imaginativa, pertinente ao sonhar. O fantasiar/ devaneio, por sua vez, implica uma inação concreta e uma atividade mental dissociada.

Embora Winnicott pertença a uma corrente teórica que não assume um caráter intersubjetivo àquilo que denomino Imaginário, é possível travar pontos de contato: o playground (na acepção original do termo, território de jogo) não é subjetivo, uma vez que foge à concepção psíquica do indivíduo; tampouco é puramente objetivo, pois não é concretamente percebido na realidade externa. Penso, a partir disso, que a intersubjetividade do Imaginário reside justamente nessa zona transicional entre a subjetividade e a objetividade, e por isso não é nem concebida e nem percebida. É experimentada.

Tal como a noosfera moriniana é oriunda da tessitura cultural, o brincar winnicottiano também apresenta uma relação com a cultura. Ao assumir que a aceitação da realidade pelo indivíduo nunca é completa, o brincar se torna difuso com o desenvolvimento humano, espalhado por todo o território intermediário entre o mundo subjetivo e a realidade objetiva. Por isso, “qualquer coisa que eu diga sobre a brincadeira das crianças também serve para os adultos” (WINNICOTT, 2019, p. 72), uma vez que “existe uma evolução direta dos fenômenos transicionais para o brincar, do brincar para o brincar compartilhado e, em seguida, para as experiências culturais” (WINNICOTT, 2019, p. 89).

As aproximações se intensificam ao observar que para os dois autores, a cultura é fruto da angústia: angústia ante a consciência da própria mortalidade (MORIN, 1975) e angústia da ausência materna (WINNICOTT, 2019). Nessa acepção, o bebê se angustia com a ausência espaço-temporal materna. Conforme seu psiquismo evolui, experimenta a ambivalência desse espaço transicional, que tanto o une à mãe quanto o separa dela.

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