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1 SOB O DISFARCE DE JOGO

Apontar o jogo como objeto de estudo pertinente à Comunicação não é, de maneira alguma, pioneirismo de minha parte. Uma investigação não-exaustiva6 aponta um total de 335 dissertações de mestrado e 141 teses de doutorado em Comunicação que incluem a palavra jogo7. Além disso, a existência do GP Games8 na Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) serve de indicativo sobre a significativa oferta de trabalhos envolvendo a temática.

Tomei a decisão de nomear a primeira face dessa pesquisa como Maya. De acordo com o físico Fritjof Capra (1975, p. 88, tradução própria), “a palavra maya – um dos termos mais importantes da filosofia indiana

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6. Pesquisei, no dia 4 de fevereiro de 2019, a palavra jogo no catálogo de teses da CAPES, disponível em https://goo.gl/U85NRa. Os resultados foram então refinados a partir do campo Área Conhecimento, no qual selecionei as duas opções referentes à Comunicação. 7. Compreendo, e gostaria de explicitar, que dentre os resultados, muitos poderão não ser relacionados ao jogo em si, tendo em vista que a palavra é utilizada na língua corrente em expressões idiomáticas, que entregam resultados tais como jogo das imagens, a comunicação em jogo, entre outros exemplos. O argumento, contudo, não é quantitativo, mas sim qualitativo: independente da exatidão do número de teses e dissertações, a presença do jogo é percebida. 8. Disponível em: https://goo.gl/kGo367.

– foi alterando o seu significado ao longo dos séculos. Da ‘força’, ou ‘poder’, do agente divino e mágico, tornou-se sinônimo do estado filosófico de qualquer pessoa sob o fascínio do jogo mágico”. Capra, enquanto promotor da ecologia e do pensamento sistêmico, comparece nos bastidores de todo o trabalho, de modo que a homenagem em nomear as partes de acordo com termos que absorvi por meio da leitura do autor é justa e cabível. O físico continua:

Maya, portanto, não significa que o mundo seja uma ilusão, como é frequentemente afirmado, erroneamente. A ilusão está meramente no nosso ponto de vista, se pensarmos que as formas, estruturas, coisas e acontecimentos que nos rodeiam são realidades da natureza, em vez de entender que são conceitos do nosso espírito quantificador e categorizador. Maya é a ilusão9 de tomar esses conceitos pela realidade, de confundir o mapa com o território (CAPRA, 1975, p. 88, tradução própria).

É justamente a metáfora de mapa e território que me motivou a escolher o termo. Por meio de Baitello Junior (1999), em suas reflexões acerca da relação entre a cultura e o brinquedo, tomei conhecimento daquele que talvez tenha sido o pioneiro na relação entre Comunicação e Jogo: o cibernetólogo Gregory Bateson.

Em sua Teoria do jogo e da fantasia, Bateson aponta para duas instâncias da comunicação: a metalinguística, em que o sujeito do discurso é a linguagem; e a metacomunicativa, em que o sujeito do discurso é a relação entre os interlocutores. O jogo, contudo, “marca um passo adiante na evolução da comunicação – o passo crucial na descoberta das relações mapa-território. No processo primário, mapa e território estão igualados; no processo secundário, podem ser discriminados. No jogo, estão tanto igualados quanto discriminados” (BATESON, 1972, p. 185, tradução própria).

9.  Julgo salutar evidenciar que a palavra ilusão tem sua raiz etimológica no termo latim in ludere, que pode ser traduzido como em jogo.

Isso quer dizer que, numa comunicação denotativa, o conceito e a realidade se igualam, se confundem. Já numa comunicação conotativa, o conceito e a realidade passam a ter um caráter relacional. Friso que, para Bateson, é o jogo que marca a evolução da comunicação no sentido de divergir ambas, enquanto hibridização entre denotação e conotação. Portanto, já nos primórdios das teorias da comunicação que permeiam10 o campo hoje, jogo e comunicação apresentam uma relação intrínseca.

Destarte, o objetivo desse capítulo é ulterior à justificativa da aderência entre comunicação e jogo. No sentido de uma crítica, procuro conceituar jogo de acordo com o referencial teórico utilizado ao mesmo tempo em que justifico a afinidade com a Área de Concentração e com a Linha de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação na qual minha pesquisa se insere, além do Grupo de Pesquisa do qual faço parte.

É importante reconhecer que minha pesquisa é oriunda de um contexto espaço-temporal específico. Nos últimos anos, a área de conhecimento na qual a Comunicação está inserida, juntamente com as áreas de Informação e Museologia, teve o nome alterado de Ciências Sociais Aplicadas I para Comunicação e Informação11. Tal alteração levanta a inquietação de um novo balanceamento entre aquilo que o comunicólogo espanhol Vicente Romano (2004) aponta como as duas funções da Comunicação: função informacional e função social. De um lado, cabe à Comunicação informar, e disso advém todo o estudo relacionado às técnicas midiáticas que visam clarificar e difundir a informação. Do outro, cabe também à Comunicação socializar, e disso advém os estudos que apontam para as reflexões sobre o papel da Comunicação na criação e manutenção de comunidades. Embora a área de conhecimento ainda esteja subordinada à grande área das Ciências Sociais Aplicadas, a mudança de nome indica um movimento, talvez motivado pelo interesse,

10. Parte significativa tanto das teorias informacionais quanto das teorias sociais da comunicação estabelecem diálogo com as discussões propostas pelo Colégio Invisível (ou Escola de Palo Alto), do qual Bateson fez parte. 11.  Disponível em: https://goo.gl/MP45ZL.

às ditas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), ou seja, ao viés técnico da Comunicação.

Por isso, é importante frisar também o local onde essa pesquisa nasce. Tanto meu orientador (Jorge Miklos) quanto a líder do grupo de pesquisas do qual faço parte (Malena Contrera) e o coordenador do Programa de Pós-Graduação em que estou inserido (Maurício Ribeiro da Silva) compartilham a orientação de Norval Baitello Junior, docente da PUC-SP, em parte de suas respectivas formações. O pensamento que trafega pelos Grupos de Pesquisa Mídia e Estudos do Imaginário (UNIP), Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia (PUC-SP), mas também pelo Narrativas Midiáticas (Uniso), pelo Compreensão como Método (UMESP) e pelo Cultura do Ouvir (FCL), igualmente importantes na minha trajetória acadêmica, possui algumas idiossincrasias:

● A priorização pelos indivíduos envolvidos nos processos comunicacionais;

● A atenção dada à Comunicação presencial;

● A relevância dos aspectos culturais presentes;

● O reconhecimento da interdisciplinaridade para abarcar o tema.

Dessa forma, de maneira sintética, esses pesquisadores atentam-se mais ao aspecto humano da comunicação do que à produção midiática em si. De certa forma, o que advogam aproxima-se de uma Antropologia da Comunicação, uma vez que buscam aprofundar e refletir sobre a dimensão humana da comunicação, sobretudo o aspecto cultural, naquilo que Romano designa como a função social da comunicação.

Friso que o presente projeto é tributário do projeto de meu orientador, denominado Ecologia da comunicação: estratégias contra-hegemônicas do imaginário na religiosidade popular. À primeira vista, pode parecer

que existe pouca aderência entre tais pesquisas. Contudo, como buscarei apontar no decorrer desse capítulo, o jogo e o sagrado podem ser vistos como elementos correlatos: há ludicidade no sagrado, e também há sacralidade no jogo. Inclusive, a aproximação entre o larp e a religiosidade popular, especificamente, já foi objeto de reflexões anteriores (MIKLOS; IUAMA, 2018), de maneira que “não raramente, nas manifestações da cultura popular, a religiosidade, não apartada do cotidiano, mas presente inteira nele, reinventando-o, dando a ele novos significados, explode como poesia, como brinquedo, como erotismo que envolve o corpo e todos os seus sentidos” (PICHIGUELLI; SILVA, 2017, p. 14) Portanto, em consonância com o projeto de pesquisa de meu orientador, busco por processos lúdicos que estão situados fora do eixo hegemônico da midiatização, desatados da lógica do capital. Nesse contexto, os vínculos sociais que porventura possam emergir de tais práticas poderiam criar transformações no entorno social. Dito de outra maneira, a pesquisa versa sobre estratégias contra-hegemônicas de resistência presentes em processos lúdicos.

A partir do reconhecimento da perspectiva que define minha pesquisa, também dedico espaço para refletir sobre os teóricos que serão utilizados doravante. O número de estudiosos que se dedicaram ao jogo é definitivamente maior do que a minha capacidade de articulação, e, portanto, um recorte se faz necessário. A justificativa para tal recorte se deu pelo fato dos teóricos escolhidos serem, cada um a partir de seu campo científico, seminais nas reflexões da ludologia, ou seja, do estudo dos jogos. Reconheço ainda que outros enquadramentos teóricos levariam a outras considerações. Tais considerações não seriam melhores nem piores, mas sim diferentes (e salutares).

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