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Camila Mossi

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Samantha Abreu

Samantha Abreu

Nasceu em Porto Alegre e cresceu no interior de São Paulo, mas mora em Londrina há década e meia, é quase pé-vermelho. É cronicamente apaixonada pela Nádia, por literatura, arte e café. Licenciada em Letras Vernáculas e Clássicas; em Pedagogia e em Artes Visuais. Especialista em Língua Portuguesa; mestre e doutoranda em Letras. Publicou os livros de crônicas Agora sapiens (2018, Penalux) e o Silêncio é sempre externo (2021, SECC/ PR). Em 2020, ganhou o Outras Palavras – Prêmio de Obras Literárias da Lei Aldir Blanc (SECC/PR) com o livro de crônicas inédito Anticonstitucionalissimamente. Adora falar sobre literatura e alimentar a chama da leitura nos jovens. A Camilinha sonhava em ser escritora, ser entrevistada pelo Jô e convencer o Veríssimo de que é sua filha. Faltam os três últimos itens.

Soneca Divina

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Há males que têm um público-alvo bem específico: histeria é mal de mulher; burnout só assola rico; siricutico só pobre; piripaque só velhos. Insônia é um dos males mais curiosos: só atinge gente ocupada. O conceito de insônia é, em resumo, não conseguir dormir na hora de dormir. Requer uma rotina. Uma agenda. Você nunca vai conhecer um desocupado insone porque ele simplesmente pode dormir sempre que quiser. Não há registros fiéis dos primeiros casos de insônia, mas ensaio um, com o risco de acusação de apócrifo.

Conta-se que no primeiro dia, Deus estava inquieto. Fez as instalações elétricas do mundo que acabara de criar: separou a luz e as trevas. Assim que inventou a noite, o criador já não dormiu bem, preocupado com o planejamento hidráulico e a gestão hídrica de sua obra. No segundo dia, dividiu as águas do céu e as águas da terra, mas não ficou satisfeito: um planeta inundado limitava bastante seu projeto. E assim, foi a segunda noite em claro.

Já era manhã do terceiro dia quando o Todo-poderoso teve a ideia de separar terra e mares. Uma montanha sinuosa de terra desnuda constrangeu o Pai:

— Terra virgem não pode ser lisa! — então cobriu a terra de ervas verdes, as sementeiras e as árvores frutíferas de todo tipo, cor e formato.

Viu que decorar era bom e passou a terceira noite ansioso pelo dia seguinte:

— Vou encher o mundo de brilho! — salpicou o céu noturno de estrelas marcando a passagem dos dias e dos anos para que, em breve, todos também pudessem ficar ansiosos com o futuro. Fez sol e lua e viu que talvez decoração fosse mesmo seu forte. Distraído com a beleza da primeira lua cheia, não conseguiu pregar o olho na quarta noite.

No quinto dia, Deus criou os animais aquáticos e as aves e não percebeu seus indícios de exaustão mesmo quando criou o ornitorrinco. Mandou todo mundo multiplicar que ele voltaria no dia seguinte para uns retoques na fauna.

— Desde que o mundo é mundo, eu só trabalho! — na quinta noite, já estava louco para terminar sua obra e lamentou por não ter criado a legislação trabalhista no primeiro dia.

No sexto dia de privação de sono, Deus criou o gado, os répteis — inclusive a serpente — e feras da terra de toda sorte, uma delas a sua imagem e semelhança. Incumbiu a mulher de encher a terra e o homem de gerenciar toda a criação, que ele não aguentava mais ser o criativo, o administrador e o gerente, tudo ao mesmo tempo. E Deus viu que delegar tarefas era bom, mas na sexta noite, ainda estava preocupado se o homem faria seu trabalho direito.

Só no raiar do sétimo dia que o Todo-poderoso olhou para o mundo em harmonia pela primeira — e única — vez e constatou que sua obra estava completa, já podia descansar.

Desocupado, bocejou antes de dormir feito um anjo. Uma soneca divina que dura até hoje.

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