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Marco Fabiani

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Marcia Paganini

Marcia Paganini

É médico cardiologista. Na universidade participou intensamente dos movimentos estudantis, que eclodiram em meados da década de 70, reivindicando a redemocratização do país. A vivência com estudantes de diversas áreas, principalmente jornalistas, despertou nele interesse pelos textos. Desde essa época escreve com regularidade. Inicialmente eram textos militantes. Mas desde que se formou vem se dedicando a textos literários. Pela Atrito Arte lançou: Trilhas do fogo (contos/2004), Contos de Pau e Pedra (2005), Histórias de um Norte Tão Velho (contos/2009), A memória é um pássaro sem luz (romance/2013), Um bourbon para Faulkner (romance/2018). Tem textos publicados na revista CULT (nº 100Divide o tempo entre medicina e literatura. E entende que são áreas que se encontram, principalmente pelo caráter profundamente humanista de ambas. Recebeu em 2015 a Bolsa Circulação Literária pelo projeto “Um dedo de prosa”.

Ao que espera

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O velho viu o liquido cristalino descer pela cânula até seu braço. Sentiu a substancia queimá-lo, no local da punção, como se houvesse ali uma minúscula chama. Ele acabara de acordar e permanecia ainda numa situação intermediaria de semi-consciência. Como tudo que acontecia com ele nas últimas semanas, a diferença entre dormir e despertar, entre presente e passado, anoitecer e amanhecer, estava cada vez menor. Tudo parecia misturar-se numa massa em que o tempo perdeu suas costuras e tudo se emplastrava num fluxo continuo, onde a imagem da moça dando um comprimido e a irmã, anos e anos atrás, oferecendo um pedaço de fruta, ocupava o mesmo espaço nesse mundo misterioso das células memoriais.

Agora ele é apenas um homem emagrecido, consumido pela enfermidade, movendo-se lentamente na cama. Ao seu lado, a senhora corpulenta ajuda-o mais uma vez a mudar de posição até achar o conforto. Ele a olha e transmite gratidão no rosto. Ela apenas sorri e pergunta se está tudo bem. Ele murmura que sim. Olha mais uma vez e pergunta se o filho tinha ligado. Já havia perguntado dezenas de vezes. Ela, com um sorriso, responde afirmativamente. Ele então desliga-se do mundo à volta. Quase não tinha mais dor física, graças aos medicamentos. Apesar da perene sensação de mal estar, agora conseguia dormir, alimentar-se, viver com esses confortos mínimos que restam na velhice. O suficiente para cultivar suas lembranças, como quem cultiva um jardim

de espinhos. As memórias, como uma cama de pregos, doíam e sangravam. Na sua história de vida, lembranças e culpas eram exatamente a mesma coisa. Olhou novamente à volta do quarto. Constatou uma vez mais, o que de longe já sabia. Que a cada hora, o mundo real se distanciava. Uma espécie de consciência do fim próximo. Ele passou a habitar essa pequena faixa de território onde a vida e a morte abraçam-se fraternalmente, como duas amigas inseparáveis, esquecidas das inimizades e enfrentamentos de outros tempos. É um tempo de reconciliação. Do pedido e da oferta do perdão, de amarrar as velhas cartas com laços de fita, de arrumar os armários, organizar os livros, quitar as dividas, agradecer aos que não merecem, varrer o chão e deixar a alma feito um lar, limpo e perfumado. Mas e o filho? Viria? Já não havia mais a alternativa da busca. Só a da espera. Nesse momento ele olhou a porta, pois nitidamente ouviu passos no corredor e num delírio teve a certeza de que ouvia os passos do rapaz. Não era. Como outras vezes. Não se transformaram em presença os passos que ele tanto pensava ouvir, ora no corredor da casa, ora na sala. Ele, tantas vezes imaginando um abraço terno, prolongado. Como também não era a voz do filho no outro lado da linha, a cada vez que soava a campanhinha do telefone.

Lá fora, a manhã ensolarada de abril espalhava calor pelas ruas e a vida fluía numa pacífica normalidade. O avião riscou a manhã e sobrevoou a cidade rumo ao aeroporto. Em minutos, os pneus tocariam a pista e o motor rosnaria, num esforço enorme para deter aquele gigante.

Mal o avião começou a taxiar e o rapaz, desrespeitando os avisos, soltou o cinto. Com visível ansiedade, na primeira oportunidade saiu rapidamente pelas escadas da frente. Mal esperava esse momento, depois da viajem. Não podia perder um minuto sequer. Passou-se uma vida inteira desde que partiu de casa sem acenos de despedidas. Depois, os longos anos de silencio e o desejo de reconciliação brotando recentemente.

O rapaz saltou do taxi e subiu aos tropeços a escada e chegou ao quarto. A senhora abriu a porta, convidou-o a entrar.

Ele não viu que os olhos dela estavam úmidos.

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