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Moacyr Eurípedes Medri
Professor UEL – aposentado Escritor
Livros: • Da Cor Da Terra - causos e contos (2011) • Cheiro de Chuva - causos e contos (2015) • Travessia: a felicidade não mora ao lado - romance (2016) • Pedras, Paus & Pétalas - romance (2019)
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Crias do Solimões
Janeiro de 1976. Londrina, Manaus. Da roça para a capital do Amazonas. Tremia dentro do avião. Da enxada, para o mestrado.
Voando sobre a bacia amazônica, via, lá embaixo, a floresta como uma toalha felpuda. Meu coração acelerou muito. Pareceu, até, pular no peito. Vivi os melhores momentos da minha vida. Vi o que há de mais belo. Senti as mais intensas emoções.
Lago Janauacá. Saía de Manaus embarcado e descia nesse lago. Da primeira vez desci com uma mochila nas costas: uma troca de roupa e uma rede para dormir. Um descamisado, pele cor de cobre, chegou. E atrás dele, cinco ou seis crianças. Apresentei-me. Contei quem era e o que fazia. Apresentou-se como Raimundo Nonato. Disse-lhe que precisava de um lugar para passar aquela noite. Depois, com calma, veria algum lugar para eu ficar, pois que teria que fazer aquela tarefa a cada quinze dias durante o ano. Sorriu. Disse-me que o lugar era aquele mesmo. Que não reparasse. A casa era pequena, mas cabia mais um. Que comida também tinha. Que o lago e o Rio Solimões eram generosos.
Ainda que Raimundo e Dona Alice, tivessem sete filhos em um só cômodo, um jirau com umas panelas pretas, uns poucos talheres tortos, uma faca dentada, acolheram-me com o maior carinho do mundo.
Dormi e tomei refeição com a família do Raimundo e Dona Alice a cada quinze dias, durante todo o ano de
1976. Deparei-me e aprendi valores que não conhecia o bastante: paciência; meiguice; solidariedade; partilha.
Vi Raimundo preparar farinha de mandioca; vi carne de caça de véspera e farinha socada num pilão; vi Raimundo levantar às cinco, tomar um gole de café com tapioca e sair com luz de candeeiro. Vi Raimundo pegar a trilha do seu seringal; vi Raimundo com um terçado numa mão e uma espingarda na outra; vi Raimundo chegar com bolotas de borracha do seu cernambi; Vi Raimundo com um veado nas costas, outra vez um jabuti. Vi Raimundo trazer um galho de pitomba, um cesto de cacauí, um cacho de pupunha, uma penca de tucumã, graviolas e cupuaçus. Vi Raimundo jogar o anzol no lago, também no Rio Solimões e, em minutos, pegar dois ou três peixes grandes, o suficiente para todos. Satisfeito, me dizia que o lago e o rio tinham muito, mas que, aqueles, para agora, bastavam... E com essa atitude, ensinava-me a conservar para ter sempre. Também o vi voltar ensopado de chuva.
Pela manhã, antes de sair para coleta de amostras de seringueira para a minha pesquisa no instituto, comia pupunhas cozidas, tucumãs crus com café quente, ou uma tapioca de frigideira. Depois do café, ele pegava sua canoa e levava-me até o local em que eu fazia a coleta.
Dona Alice estava de barriga. Perguntei como faziam. Ele sorriu. Eu também. Como assim? – perguntou-me. No Paraná vocês não fazem? Ri dele. Ele de mim. Vô fazê uma homenage. Pra quem me dá a vida.
O céu estava limpo. A lua clareava as redes dependuradas. Essas águas do lago corriam para o Solimões. Esse
rio é como as mulheres ribeirinhas. Todo ano se enche e, no seguinte, se esvazia - pensei.
Mas a hora chegou. A água do lago escorria para o Solimões. Mas, de repente, os gemidos da Dona Alice cresceram. Todos dormiam. Raimundo pulou da sua rede e acendeu uma lamparina. Eu via tudo. Fiquei imóvel. Saí da rede. Corri até o fogão. Joguei lenha nas brasas de ontem. Fervi água. Amolei a faca de cortar peixe. Flambei-a no braseiro e esperei. — Raimundo! Precisa de alguma coisa? — Corre! Traz a faca.
Cortou o cordão. Pegou a criança e, no lusco-fusco do pavio da lamparina e a claridade da lua, correu até o barranco e gritou: — Solimões! Aqui está ele! Por conta do que tem dado pra nóis, por todas as cria que oferece todos os dia, esse aqui vai tê o seu nome! Vai si chamá Solimões! Solimões Nonato da Silva! – sorriu.