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José Maschio
Repórter que conta histórias. Na vida fez de tudo. Até coisas bem feitas. Isso raramente. Foi catador de ossos (em um tempo que usavam ossos para fazer botões), boia-fria, pacoteiro, bancário, professor universitário. Trabalhou em redações de jornais alternativos, sindicais, jornais legais e jornalões. Hoje dedica-se à militância social e a escrever livros. Os dois últimos: Crônica de Uma Grande Farsa (em parceria com Luiz Taques) e o romance Tempos de Cigarro Sem Filtro.
Um bom virado
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Um virado. É só nisso que sonho hoje. Um bom virado. Como aquele dos tempos de adolescência, infância. Na roça. Era assim quase sempre. O frango preparado ao molho. Antes é claro, cercado e preso pelos guris. E sabes amigo. Cercar frango solto é coisa para quem tem ginga no corpo. Ou dança. É enganado. Que um bom frango, mesmo uma galinha, tem meneio, tem saberes que não sabemos. E, num repente, mudam o rumo da corrida. Assim como Garrincha com os joãos de sua história. Cercar frango é coisa para gente de sapiência. E quanto mais guri, mais sábio nisso de meneio. Eu fui um garoto desses, cercador de frangos. Hoje não cerco nem minha estupidez. Estupidez de velho. Que sabe só recordar passado que foi. Por isso essa angústia pelo bom virado. O virado da roça. Aqui no Flores do Campo. Essa ocupação de povo sem moradia, que chamam sem-teto. E quando a polícia chega. E chega todo dia, tenho saudades de um tempo em que conseguia. Cercar o frango, entender sua ginga. Com a polícia nem é possível ginga. Nem gingado de corpo. Petulantes eles contra nossa miséria. Chamam a gente de invasores. Pô, é só busca por teto. Eles, tão miseráveis quanto. Mas fardados. E fardados se acham. Eles achados, mas miseráveis como nós. Impõem razões que não razoamos. E quando se vão. Para voltarem depois, fica a certeza. Querem que a gente saia daqui. Devem defender interesses outros. Que sabemos. Os interesses imobiliários valem mais que a vida. Dos miseráveis que
somos. E é quando eles vão é que penso no bom virado. Era assim. Um frango ao molho e farinha. Farinha muita. Para volume e consistência. Volume de comida, consistência de corpo. Era feito à noite para a labuta do dia seguinte. No eito, a roçar ou capinar, a boca salivava. De pensar no virado. A gente comia e se deliciava. Nem precisava de requento. Que o bom virado, o virado da roça. Comemos frio. E se come com prazer. Um prazer que é quase como fazer sexo. Pois dizem e acredito. Comer e comer são as delícias da vida. Já quase nem faço uma coisa ou outra. Uma por falta de tino. De senso. Ou de bom senso. Envelheci, sofri e perdi. Perdi mulheres que me comiam. Adoráveis mulheres. E nem foram culpas delas. Foram culpas minhas. Que o homem, sabe menino? O homem é animal estúpido, que nem percebe a mulher do lado. Quando percebe é que perdeu. Essas perdas são as quais mais lamento. Onde andarão as mulheres que andaram pela minha vida? Devem estar bem melhores que eu. Espero que sim. Que isso de morar em ocupação, no despreparo da vida, é dolorido. Como é dolorido pensar que vida toda, a viração da vida podia ter dado certo. Não deu. Às vezes, só às vezes, me sinto como Caim. Não o Caim de Abel, mas o Caim de Lilith. Teve ele ela. Vivia bem ele com ela. Mas, imposição do demônio que chamam deus, teve que deixar Lilith. E quando voltou, nada sabia sobre Enoch, filho dele com Lilith. E já nem sabia das curvas de Lilith. Isso de desperceber é o mais dolorido. Cá estou eu, a lamentar as mulheres que passaram pela vida. Pela minha vida. E, sério, não consigo
lembrar nenhuma saliência, descompostura de uma só. Mulheres melhores que eu. Todas elas. Perfeitas. E eu, com minha imperfeição. As perdi. A todas elas. Mas o homem é assim. Estava a falar de necessidade de corpo. E acabei por falar de mulheres. Necessárias elas. Sempre. E também, elas, necessidade de corpo. Mas a fome é outra necessidade. Quase sempre maior que qualquer outra. Por isso, o sonho de um bom virado. Na roça, o virado de frango era fartura. Sinal de gente que conseguia comer. Quase uma ostentação. Que muitos. E não poucos. Não conseguiam isso de ter virado de frango na marmita de boia-fria. A maioria aparecia com sopa de fubá com couve. Miséria de olhar e sentir. Alguns mais virantes nisso de viver, improvisavam. E traziam virados de avoantes. De rolinhas, pequenas, sórdidas. Ou de asa branca, quase uns franguinhos. Essa viração variava, mas acabava, também, em um bom virado. Esses eram os espertos. Devem ter dado certo na vida. Não foi meu caso. Aqui, no ocaso da vida. Na ocupação Flores do Campo. Que nem sabemos o que vai virar. Se der certo, teremos um teto. Caso não. Busco outra viração. Por isso hoje só penso num bom virado. Frango ao molho e farinha.