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Marcelo Conti 59 a
ra, na sala do apartamento de D. Dora, uma televisão já mostrava lances de Copas anteriores, relembrando momentos de glória da nossa seleção. Muito embora o som estivesse quase ao nível zero, foi preciso um par ou ímpar entre os homens presentes para se definir quais deles carregariam o caixão até o carro. Sim, “até o carro” porque cortejo nem pensar! E, por acaso, vocês imaginam como os dois funcionários do Serviço Funerário estavam vestidos? Bem, o motorista vinha num terno escuro (não dava para definir a cor) de fazer inveja a qualquer baile-fantasia. A gravata era meia-sola, ou seja, só ia até a altura do primeiro botão do casaco. Se abrisse o casaco, além da barriga, perceberíamos que o cidadão não usava cinto na calça. Agora, bem vestido mesmo estava o ajudante. Sabe aquele camarada que trabalha, trabalha e trabalha, mas não tem tempo para dormir? O rosto, deformado, parecia uma abóbora daquelas do “halloween” (a festa das bruxas americanas). Terno pra quê? Meteu uma calça cinza e uma camisa branca (?), porque afinal era com luto que ele tratava. E, claro, por baixo da camisa uma camiseta da seleção canarinho que, pela cor, deveria ser do ano de 1970, a do tri. O traje se completava com um eficiente aparelho de telefone celular “mostrando” as últimas do esporte. Uma lástima... Bem, lá foi o velho Pedro para seu descanso eterno sem que ninguém o acompanhasse. Ninguém é modo de falar, porque a viúva e um abnegado amigo seguiram o rabecão até o cemitério. Lá chegando, quatro valorosos funcionários aguardavam ansiosos o momento de enterrar o defunto. Levaram o caixão até a sepultura naquele silêncio característico da ocasião. Revezavam-se puxando o carrinho que os levaria ao túmulo da família do falecido. Eram três a conduzir e um a olhar o jogo numa pequena televisão, dessas de uns 5 cm2, comprada num camelô qualquer. Claro que o “telespectador” tentava disfarçar, mas isso era impossível. Como o caixão do velho Pedro, passavam o aparelho de mão em mão. Como a bola, que corria de pé em pé no campo de jogo... Pararam diante do túmulo, e a viúva quis uma última despedida. Abriram o caixão e rezaram (a viúva e o amigo). A bola estava com Thiago Silva. Tocou de primeira para Casemiro... “Desce o caixão, Abel”, disse um dos coveiros. Veio o caixão. Casemiro enfiou para Neymar. O caixão descendo... Neymar entrou na corrida e fuzilou no gol do adversário. Lá se foi o caixão, e Pedro junto! Os coveiros quase se engalfinharam para rever o lance. Só que o juiz anulou o gol, alegando impedimento. Abel sussurrou um palavrão no ouvido de Clarindo, o outro coveiro. “Pega o caixão e vê se presta atenção, Zé Carlos!”, disse Clarindo. Volta o caixão. Tampa-se o caixão, pois a tampa voou no momento do gol. Lá vem Neymar de novo, e o adversário quase corta sua coxa com a trava da chuteira. O juiz não fala nada; quem continua rosnando é Abel, o mais revoltado. “Segura! Apara! Desce devagar! Agora, isso!”, era o comando para terminar logo com a cerimônia. E assim se fez. Depois de terem rebocado três vezes a mesma parede, além de um túmulo que não tinha nada a ver com a história, terminou o enterro do velho Pedro, falecido num dia de jogo do Brasil pela Copa do Mundo. Só tem um detalhe: o corpo que é bom ficou pra fora, pois, quando Neymar fez o gol que o juiz anulou, o caixão se abriu e nosso herói foi arremessado, rolando jardim abaixo. Ou seja, enterraram o caixão vazio e, claro, nem perceberam. Curiosa mesmo foi a manchete de um jornal, no dia seguinte: ‘VITÓRIA BRASILEIRA NA COPA MATA DE EMOÇÃO TORCEDOR DENTRO DE CEMITÉRIO, EM SÃO PAULO”.
Literatura e Vida Eu amo Tarsila, a modernista II
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Sonia Fernandez
Amar Tarsila, a modernista, vai além de apreciar os autorretratos (1923, 1924, 1926), os retratos dos amigos Mário e Oswald (1922) o de Luís Martins (1933), além de anônimos como os da tela ”Operários” (1933), cuja característica construtivista contribuiu tanto para a expansão da representatividade das características brasileiras na pintura como também para a representação das várias identidades brasileiras, nas artes plásticas. Nesse quesito o quadro “A negra” (1923) é o exemplo paradigmático, ainda que apontem, hoje, traços de racismo, por arte da pintora. Não vou entrar nessa seara, uma vez que os quadros “Antropofagia” e “Abapuru”, ambos de 1928, são o salvo conduto de Tarsila e o conjunto da obra fala por si. Amar Tarsila vai além de apreciar sua liberdade de viver e deixar viver, que culmina com a benevolência, seguida de camaradagem com seus ex-maridos. Utilizo de propósito palavras do campo semântico próximo à generosidade para contrapor esses valores aos valores alardeados pela religião como lugar de contenda, como se vê atualmente. Se meus conhecimentos históricos estiverem em dia, não se viam eventos desse teor, desde o século XVII, quando as guerras entre católicos e protestantes dominavam a ribalta da Europa ocidental, com repercussões na América. Dissensos extremos, que põem em cena um show patético, estimulado pelas redes sociais, envolvendo católicos e evangélicos de todas as tendências, confundidos numa guerra de comunicação fratricida e ridícula, em que a ignorância (sempre ela) e a má fé são as molas propulsoras. Imaginem o que pensaria Tarsila disso tudo. Eu, só consigo pensar no seu sorriso maroto e na sua dedicação incondicional à pintura. Porém, ainda que a arte possa ser mais coTarsila - 1925 - Wikipédia
Tarsila - 1925 - Wikipédia erente e bem aceita pelo público, aprovada pelos críticos e bem remunerada, a vida sempre reserva obstáculos a serem ultrapassados. A de Tarsila não foi diferente, pois, apesar de sua separação de Luís Martins ter sido consensual e aparentemente tranquila, na verdade, foi repleta de complicações, tanto para a própria como para o casal Anna Maria e Luís, causa da separação. Isso lá nos idos de 1952, quando a festa modernista ia longe. Foram tempos bordados de desconfiança, acusação mútua e sofrimento. Um imbróglio típico dos dramalhões venezuelanos, com fofocas das parentes e mal entendidos, em contraste com a postura serena de Tarsila. Foi, então, que lendo as cartas de Tarsila para Luís Martins, o último dos traidores, as dele para ela e as de Anna Maria para ele, pude verificar que o trio passou poucas e boas e que, ao final, venceu a consideração e o amor. O respeito e cuidados de Luís para com Tarsila foram compatíveis com a nobreza de seu caráter, que mereceu cada tarde de dedicação, autorizada por Anna Maria, é bom deixar claro. Também, Pagu (aquela com quem Oswald de Andrade traiu Tarsila) referiu-se uma vez ao ”sorriso bom e acolhedor” de Tarsila, o que dá a medida da singularidade dessa mulher. Essa repetida atitude de Tarsila sempre me impressionou Fato comum tratado com atitude incomum. Deste modo, conhecer melhor essa passagem da vida da pintora me ajudou a compreender o grau de sabedoria que permeou toda sua história, coisa que sua obra não ilustra. Foi preciso garimpar textos que trouxessem luz à questão, muitas vezes referida, porém, pouco elucidada. Viro a página, porque a pintora modernista, tem muito a nos ensinar. Em momentos em preto e marrom, bem ao gosto europeu do século XIX, contra o qual a obra da artista se impôs, tempos sisudos como a rainha Vitória queria e o pobre D. Pedro II se auto impunha, por não ter tido infância não deixam dúvida sobre a noção de colorido em relação à paisagem humana e ambiental brasileira que a pintora escolheu/ousou expressar. Observar os quadros “EFCB” e “São Paulo/135831”, de 1924 ou “O ovo” e “Floresta”, ambos de 1928. Parênteses: Tenho carinho por Pedro II. A vida foi mais ou menos com ele. A cena em que a criança, já órfã de mãe, é deixada aqui pelo pai que vai disputar outro trono em Portugal, me comove tanto quanto a situação referida na obra “A boba” de Anita Malfatti (1916). Só não lhe perdoo a Guerra do Paraguai. De modo que a infância retratada por Tarsila na obra “O mamoeiro” (1925) é um belo testemunho da diferença que faz ter tido uma infância co-
lorida ou de memória colorida: crianças vestidas de rosa e vermelho, tão saltitantes, ou crianças comportadas como na obra “Nossa Senhora e três meninas”, s/d. Essas vestidas de azul, com laço de fita na cintura, uma delas e, de cabelos cacheados, a outra. Muitas flores, pássaros e Nossas Senhoras com o menino Jesus e sem ele, a Nossa Senhora Aparecida, de rosto negro, a figurar por primeira vez em uma obra não popular, referendando a coragem e a consciência dessa artista inovadora e preparada, sensível e dedicada a sua arte. Qualidades das mais valiosas, no meu modo de entender. Essa Tarsila dos tempos coloridos me remete, ainda, ao poema de Drumond “Brasil/Tarsila”, mais especificamente à última estrofe do poema.
“...Tarsila
Nome Brasil, musa radiante que não queima, dália sobrevivente no jardim desfolhado, mas constante em serena presença nacional
fixada com doçura, Tarsila
Amora amorável d´amaral
Prazer dos olhos meus onde te encontres
Azul e rosa e verde para sempre.” Concordo com o poeta, no que diz respeito à serenidade e à doçura da pintora e da mulher. Azul, rosa e verde – puro contraste – com preto e marrom explicam a Tarsila modernista que pratica a independência, a autonomia, a liberdade (relativa) em pleno início do século XX. Precursora da vontade feminina que leva a aprender, a realizar, ao envolvimento, ao engajamento, à militância. A simplicidade nos modos combinada com o modelo “Paris”. Modo e modelo caracterizavam a mulher crescida numa fazenda de café entre rochas e cactos e a artista que, apesar de tímida, não abriu mão da técnica para marcar a preferência pela arte humanizada. Vanguardismo na arte e no papel da mulher na sociedade. Pensar que conviveu com a nata artística parisiense, brindando-a com pinga, feijoada, cigarro de palha e café cheiroso, enquanto estudavam (ela e eles) seriamente o cubismo. Naquelas alturas (1923) cruzam gentes do mundo da dança, da escultura, da pintura, da literatura, da alta costura nos salões cerimoniosos, sob o diapasão da “elegância espiritual”. A expressão é de Sergio Milliet. O frenesi era tal que Tarsila, em carta de 1923, convida Mário de Andrade para ir se juntar aos modernisTarsila do Amaral O Lago, 1928