Se não é a canção nacional, para lá caminha: a presentificação da nação na construção do samba e do

Page 212

Embora o rigor científico que apregoa escape muitas vezes de sua análise, visto que adota uma postura de combate ao gênero musical, a abordagem antropológica que Ribeiro Fortes apresenta n’O Fado faz dela, sustentada em grande volume de informações extraídas de documentos e obras, um índice das discussões em torno da canção popular portuguesa nas primeiras décadas do século XX. Passemos, então, a dar conta desse cenário.

5.1.1. Esta imperdoável inconsciência do nosso cancioneiro: o fado na crítica ao desconhecimento da canção popular portuguesa

Nos ensaios críticos publicados a partir da década de 1940 por Fernando Lopes Graça, um dos mais destacados maestros e compositores portugueses dedicados à musicologia, ele reclama do descompasso da música portuguesa em relação aos avanços de outros domínios das artes nacionais. Na poesia, desde “os primeiros passos [...] na senda do modernismo”, dados por autores das últimas décadas do século XIX, afirma, “só a música continuava no seu ramerame confortável de nada ter que agitar nem propor de novo”.712 No contexto do movimento da Renascença Portuguesa, cujo legado abriria caminho para o modernismo em Portugal nas páginas da revista A Águia, a partir de 1910, ou na reunião de poetas e pintores em torno de Orpheu em 1915, “no campo da música”, afirma Lopes Graça, “não topamos figura alguma que com a sua arte tenha dado corpo aos ideais ou doutrinas dos escritores” ditos modernistas.713 Com lamento, acrescenta que a história musical portuguesa

GRAÇA, Fernando Lopes. “Luis de Freitas Branco e o inicio do modernismo musical português”, In: ______. A música portuguesa e os seus problemas: ensaios. v. 2. Lisboa: Ed. do Autor; Coimbra: Atlântida, 1959, p. 80. 713 GRAÇA, Fernando Lopes. “A música portuguesa nas suas relações com a cultura nacional”, In: ______. A música portuguesa e os seus problemas: ensaios. v. 2. Lisboa: Ed. do Autor; Coimbra: Atlântida, 1959, p. 28. Para Rui Ramos, a Renascença Portuguesa foi o “grandioso projecto com que, em 1912, intelectuais de Lisboa, Porto e Coimbra resolveram contribuir para a obra de ressureição nacional da República”. Idealizada por Jaime Cortesão, então professor do liceu no Porto, e Raúl Brandão, funcionário da Biblioteca Nacional de Lisboa, foi “das mais ambiciosas tentativas de organizar a classe intelectual portuguesa, como porque acabou por vir a ser a incubadora donde saíram a maior parte dos outros movimentos intelectuais desta época. Basta dizer que alguns Integralistas, a gente da Seara Nova, ou Fernando Pessoa começaram por ser Renascentistas [...]. Sediada no Porto, manteve duas revistas, a mensal A Águia (com uma tiragem média de 1800 exemplares para os 120 números publicados entre 1912 e 1921) e o quinzenário Vida Portuguesa (39 números publicados entre 1912 e 1915) [...]. O destino da Renascença foi selado no fim do Verão de 1911, quando Proença, em Lisboa, e Cortesão, no Porto, trataram de arranjar colaboradores”. Assim, a partir de 1912, Teixeira de Pascoaes, que tomava conta da Renascença no Porto, anunciou n’A Águia, em 1912, “que vinham para ‘criar um novo Portugal, ou, melhor, ressuscitar a Pátria Portuguesa, através da ‘criação, na Alma do Povo, dum ideal religioso, que lhe provoque os sentimentos de heroísmo e sacrifício, sem os quais nenhuma nação poderá viver’”. Procurando uma forma nacional para o sentido 712

212


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.