Se não é a canção nacional, para lá caminha: a presentificação da nação na construção do samba e do

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PARTE I A MÚSICA COMO EXPRESSÃO DO POPULAR

Capítulo 1. O samba é como passarinho, é de quem pegar

1.1. A Bahia não dá mais coco: Sinhô entre o folclórico e o popular

Do final dos anos 1910 até, pelo menos, o início da década de 1930, a disputa pela “origem/autenticidade/maternidade” do samba alimentou controvérsias apaixonadas entre cariocas e baianos. Figuras consagradas debateram-se em polêmicas musicais que discutiam quem eram os “donos do samba”, na expressão do Tenente Hilário Jovino, um dos mais importantes nomes ligado à tradição musical da “Pequena África”.75 Mas ninguém mais do que José Barbosa da Silva, o famoso Sinhô, esteve tantas vezes envolvido nesse tipo de contenda.

De acordo com Roberto Moura, Heitor dos Prazeres foi o responsável pela denominação de “Pequena África” à região “que se estendia da zona do cais do porto até a Cidade Nova, em torno da Praça Onze”. Ali localizava-se a colônia baiana reunida em torno das chamadas “tias”, onde se preservava a cultura do Recôncavo Baiano, região de origem daquela população de ex-escravos. A casa da Tia Ciata (ou Aceata), Hilária Batista de Almeida, babalaô-mirim, torna-se, no início do século XX, “a capital dessa Pequena África no Rio de Janeiro”. Numa época em que o samba e o candomblé eram alvo de perseguição, ela se consolida como figura respeitada por amplos setores da sociedade, vendendo doces e fabricando e alugando roupas para o carnaval das grandes sociedades carnavalescas, além de ser casada com um funcionário público, que mais tarde ocuparia um posto no gabinete do Chefe da polícia. Por conta dessas particularidades, “se torna folclórico para alguns assistir um pagode na casa da baiana, onde encontravam algum reconhecimento. Do mesmo modo passa a interessar à alta sociedade da época a consulta com os feiticeiros africanos e mesmo a frequência aos candomblés bem mais fechados à curiosidade de estranhos” (MOURA, Roberto. Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1983, p. 62-67). No que diz respeito especificamente às expressões musicais presentes em torno da Tia Ciata, Muniz Sodré define o que chama de “economia semiótica da casa, isto é, suas disposições e táticas de funcionamento”. Baseado em relatos de seus frequentadores, o autor mapeia a habitação: “na sala de visitas, realizavam-se bailes (polcas, lundus, etc.); na parte dos fundos, samba de partido-alto ou samba-raiado; no terreiro, batucada. Metáfora viva das posições de resistência adotadas pela comunidade negra, a casa continha os elementos ideologicamente necessários ao contato com a sociedade global: “responsabilidade” pequeno-burguesa aos donos (o marido era profissional liberal valorizado e a esposa, uma mulata bonita e de porte gracioso), os bailes na frente da casa (já que ali se executavam músicas e danças mais conhecidas, mais “respeitáveis), os sambas (onde atuava a elite negra da ginga e do sapateado) nos fundos; também nos fundos, a batucada – terrenos próprio dos negros mais velhos, onde se fazia presente o elemento religioso – bem protegida por seus “biombos” culturais da sala de visitas”. Para o autor, a “economia semiótica da casa [...] fazia dela um campo dinâmico de reelaboração de elementos da tradição cultural africana” e colocava o samba como “um instrumento efetivo de luta para afirmação da etnia negra no quadro da vida urbana brasileira” (SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998, p. 1516). Para José Miguel Wisnik, “a riqueza da metáfora [de Sodré] admite a tentativa de tomá-la como base de um mapa da vida musical da capital do Brasil no começo do século, pois a tensão entre o salão e o terreiro, entre o que se mostra e o que se oculta, separados por biombos que vazam sinais nas duas direções, é significativa do próprio processo de interpenetração de culturas que vinha ocorrendo” (WISNIK, José Miguel. “Getúlio da paixão cearense 75

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