Se não é a canção nacional, para lá caminha: a presentificação da nação na construção do samba e do

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como “os cantadô do lugá”, “mestres de canturia”, como havia feito Cícero de Almeida em Conselhos de amigo, uma das composições que publicou por ocasião da contenda.206 A polêmica entre Sinhô e Baiano coloca, assim, a “maternidade” do samba como baliza do conflito de identidades entre os sambistas cariocas e baianos. Nesse confronto, a postura ambígua de Sinhô, defendendo os primeiros ao mesmo tempo em que reivindica a cultura e os conhecimentos musicais dos negros da “Pequena África”, apropriando-se da linguagem e de temas sertanejos e do candomblé, torna-se ilustrativa daquela passagem do samba de uma fase “folclórica” a outra “popular”. Sinhô encontra-se, assim, entre o mundo das tradições rurais e religiosas e o das formas urbanas, fortemente marcadas pela figura do músico popular como autor de suas composições, a principal marca da moderna indústria fonográfica. Através dessas características, vai se delineando a forma híbrida que assumirá o samba de “novo estilo”, situado por Carlos Sandroni na passagem da década de 1920 aos anos 1930. Quando Sinhô deflagra a polêmica com Heitor dos Prazeres em 1929, esse “novo samba” produzido no Estácio já está em curso e alguns intérpretes já começam a constituir carreiras de sucesso. Nesse processo, os compositores vão tomando consciência da noção de direito autoral. É o que veremos agora.

1.1.3. O Rei dos meus sambas: Sinhô “enroscado” com Heitor dos Prazeres207

No depoimento que Heitor dos Prazeres prestou ao Museu da Imagem e do Som (MIS), em 1966, e a Muniz Sodré, na década de 1960, ele conta que os versos de um samba seu, que

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Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 12 de dezembro de 1926, p. 12. A definição desta polêmica orientou-se pela bibliografia, pelo levantamento realizado nas edições do Jornal do Brasil disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional e pelo depoimento que o próprio Heitor dos Prazeres prestou ao Museu da Imagem e do Som (MIS) e a Muniz Sodré nos anos 1960 (https://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/; PRAZERES, Heitor dos. Depoimentos para a posteridade. Rio de Janeiro: Fundação Museu da Imagem e do Som (MIS), 1º de setembro de 1966, 1h06m, 1 CD – (Coleção Depoimentos); SODRÉ, Muniz. Samba, o dono do corpo. Rio de Janeiro: Mauad, 1998). As letras das composições foram transcritas a partir de audições disponíveis nos acervos sonoros digitais do Instituto Moreira Salles (http://www.acervo.ims.com.br/) e da Biblioteca Nacional (http://acervo.bn.br/sophia_web/), com o auxílio das obras: ALENCAR, Edigar de. Nosso Sinhô do samba. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; ALENCAR, Edigar de. O Carnaval carioca através da música. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos, 1965, 2 v. A definição das datas de gravação contaram com a orientação de: SANTOS, Alcino [et. al.]. Discografia brasileira 78 rpm (1902-1964). Rio de Janeiro: Funarte, 1982, 5 v. 207

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