IIsrael e Estados Unidos: parceria histórica por um fio

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Amos Ben Gershom | GPO

internacional

Israel e Estados Unidos:

parceria histórica por um fio GEOPOLÍTICA Divergências sobre a criação do Estado Palestino e o acordo nuclear firmado com o Irã compõem o cenário mais crítico enfrentado pelos dois países nos últimos anos

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o dia 2 de abril centenas de iranianos saíram às ruas para comemorar o pré-acor­ do nuclear assinado com seis potências ocidentais, entre elas os Estados Unidos, país com o qual o Irã não mantém relações diplo­ máticas desde 1979. O anúncio foi recebido com buzinaço em Teerã e elogiado por líderes das nações de­ senvolvidas pela esperança de aca­ bar com as sanções econômicas e de diminuir os riscos da produção de bombas nucleares. Se, por um lado, o pacto rompe barreiras erguidas durante décadas entre inimigos históricos, por ou­ tro, arruinou a tradicional aliança

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entre o governo norte-americano e Israel, um severo crítico do acordo. O caso agrava um dos momentos mais críticos enfrentados pelos dois países em anos. O clima começou a esquentar du­ rante a campanha eleitoral israelen­ se, em março deste ano. Foi quando o premiê Benjamin Netanyahu esteve no Congresso americano – a convite dos republicanos e sem avisar a Casa Branca – para criticar o acordo nu­ clear com o Irã, até então ainda em fase de negociação. Em busca de seu quarto mandato, Netanyahu decla­ rou também, um dia antes do pleito, que não permitiria a criação de um Estado palestino caso fosse eleito.

A atitude irritou Barack Obama, defensor da solução de dois Estados para o conflito árabe-israelense, e parece isolar cada vez mais Isra­ el num cenário onde tem prevalecido o diálogo entre Ocidente e Oriente Médio. Apesar das desavenças, a alian­ ça estratégica entre Washington e Jerusalém não corre o risco de aca­ bar por completo. Segundo especia­ listas ouvidos por Cidade Nova, os países, que já enfrentaram outros problemas ao longo de sua história, devem superar mais esse impasse. Mas não vão sair sem cicatrizes e arranhões: a campanha por um boicote mundial a Israel só tem aumen­


tado, assim como os casos de antis­ semitismo nos Estados Unidos.

Acordo nuclear O pacto assinado com o Irã procu­ ra reduzir significativamente a capa­ cidade de o país utilizar seu progra­ ma nuclear para a criação de bombas em troca de acesso aos mercados e aos ativos que foram bloqueados por sanções internacionais. Se as exigên­ cias forem descumpridas, porém, as sanções serão restabelecidas. Entre os compromissos firmados­, estão a redução do número de centrí­ fugas, que passarão de 19 mil a seis mil, o não enriquecimento de urâ­ nio durante 15 anos no complexo nuclear de Fordo, além do acesso de inspetores da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) às plan­ tas nucleares do país por 25 anos. Apesar de não eliminar o enri­ quecimento de urânio pelo Irã, o pacto é uma maneira de as nações desenvolvidas ganharem tempo na delicada questão diplomática com o país, que já se arrasta por 12 anos. A resposta do premiê israelense à notícia foi irredutível. “Israel não vai aceitar um acordo que permita a um país que deseja nos aniquilar desenvolver armas nucleares”, rea­ giu Netanyahu, exigindo aumento de pressão sobre o Irã para obter um resultado mais favorável. Para ele, em um pacto perfeito­ não poderiam faltar a proibição to­ tal ao enriquecimento de urânio e o reconhecimento ao direito de existência de Israel, um pedido tido como impossível, já que os dois paí­ ses são inimigos. Obama tentou acalmar os âni­ mos do aliado reafirmando que os Estados Unidos jamais assinariam um acordo que pudesse representar uma ameaça a Israel. “Se alguém mexer com Israel, os EUA estarão lá”, garantiu. Netanyahu, porém,

insiste que “ainda há tempo para conseguir um melhor acordo”. O assunto promete se desenro­ lar em mais desentendimentos até o fechamento do pacto definitivo, previsto para acontecer antes de 1º de julho.

Mudança de visão Depois das ocupações militares caras e malsucedidas no Iraque e no Afeganistão, os Estados Unidos se­ riam incapazes de abrir fogo contra o Irã, como parece desejar Israel ao se opor a uma solução diplomática. Além disso, na atual missão norte­ -americana de destruir o Estado Is­ lâmico no Iraque e na Síria (ISIS), a cooperação com o regime iraniano é indispensável. “O acordo nuclear ajuda o com­ bate contra o ISIS e promove a paz regional para a qual o Irã era o gran­ de obstáculo com a preocupação de que esse país estava se tornando uma potência atômica”, analisa Ar­ gemiro Procópio Filho, professor ti­ tular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). O crescimento do Estado Islâmi­ co no Oriente Médio motivou uma nova forma de encarar os proble­ mas na região, com mais diálogo e menos armas, acredita o professor Adriano de Freixo, coordenador da Graduação em Relações Internacio­ nais da Universidade Federal Flumi­ nense (UFF). “Os conflitos armados criam um vazio de poder que é ocupado por grupos extremistas. Então, Estados Unidos e o Ocidente passaram a pensar melhor na forma de intervir no Oriente Médio. É mais vantajo­ so chegar a um acordo do que gerar uma instabilidade que permita exis­ tir um governo mais extremo do que existe hoje”, conclui. O pensamento tem predominado na condução da diplomacia pelo Ocidente hoje.

Assentamentos No centro das desavenças entre Estados Unidos e Israel também está o histórico de Netanyahu sobre as­ sentamentos israelenses em territó­ rios ocupados por palestinos, agra­ vado por sua declaração anti-Estado palestino no Congresso americano. Em 2012, Obama se indignou quando o premiê israelense autori­ zou mais de mil novas moradias na Cisjordânia em retaliação à decisão da ONU de reconhecer a Palestina como Estado observador. Durante os dois últimos mandatos de Ne­ tanyahu, a população nos assen­ tamentos cresceu 5% por ano, so­ mando 70 mil novos colonos entre 2009 e 2013. Ainda assim o governo norte­ -americano continuou financiando a política agressiva de Israel, para a qual destinou US$ 20 bilhões. Os EUA também trabalham firme para proteger o aliado das consequências das suas ações nos territórios ocu­ pados, como atestam os cerca de 40 vetos dos Estados Unidos no Conse­ lho de Segurança da ONU para pro­ teger Israel e impedir a autonomia da Palestina. No entanto, a retórica eleitoral de Netanyahu, contrária à criação de um Estado Palestino, provocou um endurecimento no discurso dos Estados Unidos, que pela primeira vez considerou punir o aliado em votações da ONU. “As medidas que os Estados Uni­ dos tomaram na ONU haviam se baseado nessa ideia de que a solução com dois Estados é o melhor resulta­ do”, disse o porta-voz da Casa Bran­ ca, John Earnest, apesar de o premiê israelense ter amenizado a posição após vencer as eleições. “Agora nosso aliado nesse diálogo disse que já não está mais comprometido com essa solução. Isso significa que teremos de reavaliar nossa posição a respeito Cidade Nova • Maio 2015 • nº 5

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internacional desse assunto, e é isso o que vamos fazer de agora em diante.” Um menor apoio norte-america­ no na ONU resultaria em um maior isolamento diplomático de Israel, num momento em que cresce tam­ bém na Europa a oposição à amplia­ ção de assentamentos israelenses. No Oriente Médio, Israel também é de poucos amigos, já que só man­ tém relações com o Egito e a Jordâ­ nia, enquanto seu principal parceiro, os Estados Unidos, amplia cada vez mais sua gama de parceiros da re­ gião. “Israel não pode se isolar tanto. O país tem que chegar a um denomi­ nador comum”, opina Procópio.

Entre tapas e beijos As identidades políticas opostas dos líderes israelense e americano são outro fator complicador da re­ lação, segundo o especialista da UnB. Netanyahu lidera um governo de direita ligado aos falcões repu­ blicanos, opositores ao democrata Obama, mais à esquerda na política­ norte-americana. “Falam até de cri­ se de espionagem, o que tem desa­ gradado o presidente americano”, alerta Procópio. A postura radical israelense tem incomodado bastante Obama e ou­ tros líderes ocidentais. “Israel é vis­ to como baluarte da civilização oci­ dental no meio do Oriente Médio, mas por conta dessas violações su­ cessivas está sendo gerado um forte desgaste com os Estados Unidos”, afirma Freixo. Apesar das diferenças, o presi­ dente norte-americano voltou a de­ clarar recentemente sua fidelida­ de ao parceiro do Oriente Médio. “Mesmo em meio às discordâncias que eu tive com o primeiro-minis­ tro Netanyahu, tanto sobre o Irã quanto sobre a questão palestina, eu tenho enfatizado que a nossa de­ fesa de Israel é inabalável”, afirmou. 30

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Netanyahu, antes de criticar o colega norte-americano, fez ques­ tão de elogiá-lo por seu permanente apoio a Israel e ressaltar os laços que os unem. “A notável aliança entre Israel e Estados Unidos sempre es­ teve acima da política, e deve per­ manecer sempre acima da política”, discursou ao Congresso dos EUA. Os conflitos políticos entre os dois países não são de hoje. Os exem­ plos de rixas históricas vão desde a declaração do Estado judaico, em 1948, por David Ben-Gurion, até a

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Apesar das desavenças, a aliança estratégica entre Washington e Jerusalém não corre o risco de acabar por completo. Mas não vão sair sem cicatrizes e arranhões

continuidade da Operação Escudo Defensivo, por Ariel Sharon, em 2002, à qual George Bush era publi­ camente contra. Ainda assim, nenhum deles afe­ tou permanentemente essa forte relação que faz de Israel o maior beneficiário no total da assistência econômica e militar direta dos Esta­ dos Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, com o financiamento de 20% a 25% do orçamento israelense de defesa por contribuintes norte­ -americanos. “É um casal que ain­ da não está falando em divórcio”, ­resume Procópio.

Cicatrizes Além da interdependência tecno­ lógica e militar entre os dois países, a forte presença da colônia judaica nos Estados Unidos estreita os laços. “Essa comunidade é influente, tem poder econômico e muita representativi­ dade no Congresso. As pressões desse grupo são importantes para o quadro político norte-americano”, diz Freixo. Porém, a inimizade provocada na sociedade estadunidense pelas recentes declarações de Netanyahu tem afetado a numerosa colônia judaica nos Estados Unidos. Prova disso é o surgimento de casos de an­ tissemitismo em algumas universi­ dades norte-americanas, como rela­ tado pelo jornal The New York Times. De acordo com a publicação, houve um esforço para impedir uma estudante de participar do conselho de uma governança estudantil da Universidade de Califórnia, no mês passado, só por ser judia.

Solução Para o professor Adriano Freixo, a necessidade de afirmação do Es­ tado de Israel a todo momento está no cerne de quase todos os conflitos entre os dois países ao longo da his­ tória. “São muito mais divergências pontuais, mas que não ameaçam a aliança construída historicamente. Os conflitos são superados pela im­ portância de Israel no Oriente Mé­ dio”, pondera o especialista. Segundo ele, a solução dos dois Estados é a única maneira de se ten­ tar construir a paz na região e evitar mais conflitos com os Estados Uni­ dos: “Para isso os radicais dos dois lados têm de ser isolados”. Está aí uma reflexão para que eleitores israelenses e norte-ameri­ canos tentem inaugurar um novo capítulo dessa histórica e complica­ da amizade.


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