Gol contra a corrupção

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Gol contra a corru

FUTEBOL O escândalo da Fifa atingiu diversos dirigentes da entidade, mas resta uma questão: o caso conseguirá fomentar a democratização e a transparência na gestão internacional do esporte mais popular do mundo?

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aio de 2015 foi um mês incomum para a Suíça e promete ser um divisor de águas na gestão do futebol. Sete dirigentes da Fifa foram presos no país-sede da entidade internacio­ nal de futebol e outros sete foram acusados de corrupção pelo Departa­ mento de Justiça dos Estados Unidos. Eles são suspeitos de suborno, fraude e lavagem de dinheiro, envolvendo um montante de US$ 150 milhões num período de 24 anos. Entre eles está José Maria Marin, ex-presidente e atual vice-presidente da Confedera­ ção Brasileira de Futebol (CBF).

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Um processo de extradição da Suíça para os EUA está em curso. Caso sejam extraditados, enfrenta­ rão processo judicial e podem pas­ sar até 20 anos atrás das grades. O escândalo que sacudiu o fu­ tebol mundial motivou também o anúncio de renúncia do presidente da Fifa, Joseph Blatter, desde 1998 no cargo. As prisões e a investiga­ ção também lançam dúvida sobre a transparência e idoneidade dos úl­ timos processos de escolha da sede da Copa do Mundo. Um processo aberto pela Suíça investiga se houve compra de votos na eleição da Rús­

sia e do Catar para receber os Mun­ diais de 2018 e 2022. Para alguns especialistas, o es­ cândalo pode ser benéfico ao tornar mais transparente e democrática a gestão da Fifa e de outras entidades esportivas. Outros, porém, acredi­ tam que o caso trará poucos resul­ tados no curto prazo.

Geopolítica O FBI (polícia federal norte-ame­ ricana) vem investigando a Fifa há três anos. As investigações come­ çaram para verificar o processo­de


REUTERS | Arnd Wiegmann

pção

esco­lha de Rússia e Catar, mas fo­ ram expandidas para analisar os acordos da entidade desde 1991. A intervenção norte-americana pro­ vocou um clima de tensão e depen­ dendo do desfecho pode até resultar em uma crise internacional. O presidente russo Vladimir Pu­ tin, que viu a Copa que organiza entrar em perigo após as investiga­ ções, afirmou que os Estados Unidos abusaram de seu poder no caso. Ao ser escolhida como sede do evento, a Rússia desbancou a candidatura americana. Para alguns, o despeito teria motivado a investigação por parte dos EUA. “Associa-se a investida do depar­ tamento dos EUA a uma retaliação ou uma disputa geopolítica entre americanos e russos. Nada pode ser descartado, mas creio que há ­outras

ferramentas de política externa mais contundentes que a simples prisão de dirigentes da Fifa”, afir­ ma Renato Xavier, professor de Re­ lações Internacionais do Programa de pós-graduação San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp e PUC-SP). “Além disso, empresas norte-americanas são grandes patrocinadoras da Copa da Rússia. O interesse econô­ mico envolve o próprio interesse de Estado, eles se misturam”, com­ pleta o professor. As autoridades americanas ale­ gam que as transações ilícitas foram acertadas utilizando bancos dos EUA e planejadas no país, mesmo quando a corrupção era efetuada em outros locais, por isso a inves­ tigação partiu da Justiça ameri­ cana. Os líderes do país também defendem ter jurisdição pelo fato de as empresas de mídia norte­ -americanas pagarem o maior va­ lor de direitos de transmissão da Copa do Mundo. Para Pedro Fernando Avalone, professor da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Política Social, o esporte tem relação muito próxima com a política, sendo a Guerra Fria o período histórico no qual essa li­ gação ficou mais clara. “Enquanto os EUA e a Inglaterra, derrotados nas votações para as próximas Copas, estão apurando as investigações, os países que receberam o direito de ­sediar os próximos Mundiais estão se solidarizando com a Fifa, o que gera impactos geopolíticos”, analisa.

Países em desenvolvimento Quase toda a renda da Fifa vem da Copa do Mundo, o evento es­ portivo mais lucrativo do mundo. A simples concorrência para sediar a Copa já tem um custo exorbitan­ te: a federação inglesa gastou 21

milhões de libras (R$ 103 milhões) para concorrer à Copa de 2018. A Copa do ano passado custou ao Brasil cerca de US$ 4 bilhões. A Fifa lucrou mais de US$ 2 bilhões. O custo das duas próximas Copas deve ser ainda maior – no Catar, a previsão é que os gastos superem US$ 6 bilhões. A escolha de países em desenvol­ vimento para sediar o evento, desde a Copa na África do Sul, em 2010, é analisada criticamente pelos espe­ cialistas. “Quando o presidente da Fifa anunciou, na década passada, o início da rotatividade para sediar a Copa, o que se verificou foi uma tentativa de acomodar os desejos do capital em países emergentes, cujas instituições democráticas ainda es­ tão em fase de formação. Transfere­ -se para o país sede a politização do evento esportivo já com regras de­ terminadas a priori. Não é a socie­ dade quem decide e sim a cartilha da FIFA”, critica Renato Xavier. Pedro Avalone destaca a existên­ cia de governos autoritários em al­ guns dos países em desenvolvimen­ to escolhidos para sediar o evento. “Na Copa, sempre há manifestações contrárias até pela grande repercus­ são que o evento tem na mídia. A questão é a relação que o governo estabelece com essas manifestações. No Brasil, a repressão foi dura. Na Rússia e no Catar, não surpreende­ ria que se a repressão fosse ainda maior”, afirma. “Jérôme [Valcke, secretário-geral da Fifa] chegou a declarar que era mais tranquilo para a Fifa realizar o evento em países menos democrá­ ticos. Não é um critério único para a escolha desses países, mas, sem dúvida, é um dos critérios”, apon­ ta Avalone. Segundo ele, também existe uma explicação econômica para a escolha dos emergentes: “A Copa é um evento lucrativo. Mas a questão é: para quem? Nesses Cidade Nova • Agosto 2015 • nº 8

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internacional ­ aíses, aumentam as possibilidades p de lucro para as empreiteiras e toda a área de construção civil, já que há pouca infraestrutura pré-existente, diferentemente da Europa. Para o estádio Mané Garrincha, em Brasí­ lia, por exemplo, foram gastos quase­ R$ 1,5 bilhão. Justifica-se a cons­ trução nesse valor para um espaço subutilizado?”, indaga. Segundo o especialista, os casos se repetem na China (em Pequim), que sediou as Olimpíadas em 2008, e na África do Sul (Copa do Mundo de futebol, em 2010). “Hoje, esses países querem demolir a estrutura construída porque mantê-la é mui­ to caro, ainda mais quando não há uma utilização constante daqueles espaços que justifique os gastos.” Para Renato Xavier, “os escânda­ los de corrupção devem ser investi­ gados e a única forma de evitá-los é aumentar o escopo democrático da Fifa. Maior transparência na es­ colha das sedes é o primeiro passo”. Já Pedro Avalone considera ne­ cessário adequar não apenas a le­ gislação da Fifa, como também os acordos entre a entidade e seus prin­ cipais parceiros comerciais. “Seria possível aumentar a arrecadação tributária não apenas sobre os con­ sumidores, mas sobre empresas que vêm aqui e lucram muito, mas a Fifa exige isenção fiscal. As companhias parceiras da Fifa não são taxadas em relação ao que vendem nem em relação ao que compram nos países­ -sede, que deixam de arrecadar re­ cursos que poderiam ser investidos em educação, saúde, habitação e outras áreas de interesse social”, diz. Segundo dados oficiais da Fifa, entre 2011 e 2014 a entidade inves­ tiu US$ 454 milhões em programas de desenvolvimento e gastou mais do que o dobro, US$ 995 milhões, para alimentar sua máquina através de sa­ lários, pensões e diversos pagamen­ tos às federações dos países membros. 30

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A Fifa não pode ser acusada pe­ los gastos vultosos, já que os países sabem, desde o momento da candi­ datura, das contrapartidas e regras que devem cumprir para participar do evento, defende Pedro Fida, espe­ cialista em direito desportivo pela Fundação Getúlio Vargas. “Cabe aos governos fazer as adaptações exigi­ das pela Fifa para receber um even­ to desse porte. A Fifa coloca padrões mínimos de estádio e esse processo de adaptação é custoso, mas os paí­ ses têm liberdade de investir onde quiserem”, afirma.

Reformas Para Pedro Fida, caso as suspeitas sejam confirmadas e haja condena­ ção dos responsáveis, o escândalo pode trazer benefícios para o es­ porte. “O futebol é organizado por entidades privadas. Esse escândalo força essas instituições a se adequa­ rem não apenas à legislação nacio­ nal, mas a compliance e à transpa­ rência. Essa gestão como empresa visa atender não só as instituições, mas a todos os stakeholders envolvi­ dos, dirigentes, treinadores, atletas e consumidores, para que a estru­ tura continue existindo da maneira mais saudável possível”, afirma. No entanto, segundo ele, há muito trabalho pela frente, já que o esporte segue uma estrutura gi­ gantesca e piramidal, tendo a Fifa no topo, seguida por confederações continentais, associações nacionais e federações estaduais. “As investi­ gações vão influenciar o modo de gerir toda essa estrutura, inclusive com a revisão de todo o processo de escolha para a Copa. Uma reforma deve ser inevitável a médio e longo prazo, até pela grandeza da estrutu­ ra do futebol”, sugere. Segundo Renato Xavier, há es­ perança de que as entidades se tor­ nem mais democráticas, porém o

processo promete ser lento e a re­ forma corre o risco de ser limitada por falta de vontade política. “As confederações nacionais, que são os tentáculos da Fifa, também não dão sinais de mudança. A CBF, por exemplo, propôs pouca mudança regimental”, recorda. Xavier concorda que o futebol não está dissociado das outras ati­ vidades da sociedade e, portanto, é preciso que os recursos emprega­ dos no esporte passem por rigorosa análise com regras mais claras. “É preciso haver mudanças, diminuir custos, ter mais transparência e, principalmente, tornar a Fifa uma entidade democrática”, declara. Avalone considera que se a re­ núncia de Blatter realmente acon­ tecer, esse pode ser o primeiro impacto do escândalo em uma or­ ganização desacostumada à alter­ nância de poder. Segundo ele, as mudanças só serão aprofundadas na medida que os mecanismos de eleição à presidência da Fifa per­ mitirem mais atores concorrendo. “Regras rígidas, como a que exige que o candidato tenha tantos anos a frente de uma federação nacional, limitam que pessoas novas e com novas ideias ingressem e deem mais transparência e cara nova a essas entidades”, critica. “Para que essas mudanças acon­ teçam, não basta esperar um movi­ mento interno, É fundamental a cria­ ção de uma fundação de atletas que pressione essas entidades”, sugere Avalone. Segundo ele, os jogadores, apesar da grande influência pública que possuem, costumam fugir de as­ suntos políticos, mas essa realidade já está mudando, com a organização de atletas em novos movimentos. Avalone também defende que, além dos atletas, a própria sociedade tenha mais voz na instituição, exi­ gindo mais transparência sobre a for­ ma que a Fifa gere seus recursos.


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