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O bumerangue do kirchnerismo
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epois de 12 anos sob o pro jeto kirchnerista, a Argen tina finalmente terá um novo líder. A próxima elei ção, que acontece em 25 de outubro e tem nomes populares e distantes do kirchnerismo na disputa, possui o potencial de transformar o modo de governar no país vizinho. A saída de Cristina Kirchner do governo está marcada para o dia 10
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ELEIÇÕES Cristina Kirchner não será candidata nas eleições presidenciais da Argentina em outubro, mas o kirchnerismo pode continuar influenciando o governo
de dezembro, quando o novo gover nante assumirá o poder. Além de eleger o novo presidente, os argen tinos renovarão as vagas de 130 de putados e 24 senadores. Segundo especialistas ouvidos por Cidade Nova, mesmo sem se can didatar a um novo cargo, Cristina continua sendo elemento-chave deste pleito e já sinalizou uma nova tentativa de se eleger em 2019.
Candidatos à presidência da Argentina (a partir da esq.): Daniel Scioli, Mauricio Macri e Sergio Massa
Cristina não conseguiu a maio ria necessária no Congresso para mudar a Constituição e garantir sua terceira reeleição. O projeto kirchne
rista consistia no revezamento en tre ela e seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. Mas ele morreu em 2010, e sua mulher, à frente de um governo centralizador, não pre parou um nome suficientemente forte para substituí-la. Daniel Scioli, o candidato gover nista, é visto com desconfiança pela presidente, mas passou a contar com seu apoio depois que candidatos kirchneristas registraram baixo de sempenho nas pesquisas. Para dei xar sua marca na chapa presiden cial, Cristina indicou como vice o ultrakirchnerista Carlos Zannini. Na Argentina, o vice também se torna presidente do Senado e tem poder de definir a agenda do Legis lativo. Porém, como aconteceno Brasil, apesar de ter acesso a infor mações privilegiadas, o vice tem po der decisório limitado pelas ações do presidente no Executivo. Ainda assim, a indicação é simbolicamen te relevante para a permanência do kirchnerismo no poder em caso da vitória governista. Os especialistas apostam que Cristina deva ter uma participação menos marcante nos próximos qua tro anos, mas lembram do aviso dado publicamente por ela em abril: “É melhor que o presidente que ve nha governe bem, porque senão se rei obrigada a voltar em 2019”. “Independentemente de quem ganhar, o problema político central será o mesmo: o poder que Cristina reterá e o uso que fará dele em fun ção de sua estratégia de retornar em 2019”, opina o jornalista, advogado e analista político, Rosendo Fraga, que dirige o Centro de Estudios Unión para la Nueva Mayoría (Cen tro de Estudos União para a Nova Maioria), na Argentina. “Talvez Scio li, ao pertencer ao peronismo, tenha mais possibilidades de lidar com essa situação. Mas qualquer um que vencer deve tentar a reeleição em
2019, como permite a Constituição, e então se chocará com a intenção de Cristina de voltar.”
Três candidatos Em agosto, nas eleições Primá rias Abertas Simultâneas e Obriga tórias (Paso) na Argentina, uma es pécie de termômetro para o pleito presidencial, foram confirmados os três nomes que disputarão as eleições. O peronista Daniel Scioli, na coligação Frente para a Vitória (FPV), liderou com 38% dos votos. Em segundo lugar, representan do a centro-direita, aparece a frente política “Cambiemos” (Mudemos), do empresário e prefeitode Buenos Aires, Mauricio Macri, com 30%. Em seguida, está a União Alternativa (UNA), com o peronista Sergio Mas sa, que obteve 20%. No país, para evitar o segundo turno, o candidato tem duas op ções: obter mais de 45% dos votos válidos ou mais de 40%, desde que, neste caso, conte com uma dife rença de dez pontos em relação ao segundo candidato. O cenário, por tanto, continua incerto e desenha -se um provável segundo turno entre Scioli e Macri. Os votos do terceiro candidato prometem ser bastante disputados.
Perfis Para Fraga, a disputa é ainda mais incerta na medida em que as seme lhanças entre os candidatos é maior que as suas diferenças. “Nas primá rias de 2013, eles estiveram a ponto de criar uma coalizão eleitoral entre si na província de Buenos Aires con tra o kirchnerismo”, relembra. Scioli já foi vice-presidente de Néstor Kirchner e está no segundo mandato à frente do governo de Buenos Aires, a maior zona eleito ral do país, com cerca de 40% do
eleitorado, o que é considerado pe los especialistas como uma grande vantagem. Foi também presidente do Partido Judicialista, popular mente conhecido como Peronista, em 2009 e de 2010 a 2014. “Ele tem certa legitimidade dentro do parti do, conhece sua dinâmica, mas não é o coração kirchnerista”, pondera Andrés del Rio, professor de Ciên cia Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Esportista, em 1989, Scioli per deu o braço direito em competição de motonáutica. Com uma prótese, foi campeão mundial do esporte oito vezes, tornando-se um ídolo nacional e exemplo de superação. Já Macri é um grande nome da maior paixão nacional: o futebol. De 1995 a 2007, ele foi presidente do Boca Juniors, atualmente é prefeito de Buenos Aires. “Ele tem a seu fa vor o fato de representar a mudança no momento em que a classe média argentina, após mais de 12 anos de kirchnerismo, quer uma renovação política, além de passar a imagem de ser um bom gestor”, afirma Fraga. Macri é apoiado pelo empresa riado e pelo mercado financeiro, já que promete retomar a relação com os credores internacionais. No entanto, ele não tem apoio de nenhum movimento de represen tação nacional e não faz parte do maior deles, o Partido Judicialista, o que pode limitar seu resultado nas urnas, segundo Andrés. Enquanto os dois primeiros se conheceram há 30 anos e chegaram à política através do esporte, Sergio Massa é militante político desde sua juventude e é 12 anos mais jovem que seus opositores, o que faz dele uma aposta para eleições futuras. Massa foi chefe de gabinete de Cris tina – cargo corresponde ao desem penhado pelo ministro da Casa Ci vil no Brasil –, mas rompeu com o kirchnerismo. Cidade Nova • Outubro 2015 • nº 10
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internacional A máxima argentina segundo a qual o Peronismo admite apenas um líder, e que os seus aliados de vem formar uma fila atrás dele para apoiá-lo, foi por terra nestas eleições com a disputa entre Scioli e Massa. Para firmar sua insatisfação com o governo atual, Massa deve apoiar Macri em um eventual segundo turno. No entanto, seus eleitores tendem a votar em Scioli, o único peronista além de Massa no pleito. Para Andrés, a divisão do pero nismo tende a beneficiar o kirch nerismo. “Ideologicamente, os vo tantes de Massa estão mais próximo de Scioli, já que Macri está mais à direita. Por isso Macri está mu dando o discurso e começa a falar que manterá algumas políticas do k irchnerismo, o que é contrário ao seu núcleo ideológico, uma conti nuação do pensamento neoliberal de Menem [Carlos Saúl Menem, presidente da Argentina de 1989 a 1999]”, diz.
Semelhanças Ainda assim, as distinções ideo lógicas entre os três candidatos estão num zona extremamente cinzenta quando se trata de cam panha eleitoral e até mesmo de pla nos de governo. De acordo com os especialistas, a tendência é que as três forças em disputa se unam in dependente do resultado eleitoral para realizar mudanças tidas como urgentes no país, que se arrasta há anos em uma forte crise econômica. “Os três candidatos, em termos de perfil político e econômico, têm relação com a plataforma política e econômica do ex-presidente Carlos Menem, peronista ligado à liberali zação comercial, como mote para a reforma na atual política econômi ca argentina”, diz o professor de Re lações Internacionais da UnB (Uni versidade de Brasília) e coordenador 30
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de Estudos Latino-Americanos, Ro berto Goulart Menezes. Segundo ele, os candidatos têm apresentado propostas semelhantes para combater os principais proble mas do país: desemprego, pobreza, queda dos salários e aumento da in flação. Os postulantes defendem o aumento da produtividade, a dimi nuição do protecionismo econômi co, que muitas vezes limita a presen ça de produtos do país em mercados estrangeiros, e a retomada da rela ção com os credores internacionais, que bloquearam as contas argenti nas durante o governo Kircher. No entanto, com o desejo de atrair os eleitores de Massa, o centro- -direitista Macri deve deixar de lado durante a campanha eleitoral o dis curso sobre a reaproximação com os credores e com os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Scioli também amenizará sua fala nesse sentido para não afastar os kirchneristas. Mas, na prática, a retomada dessas relações deve mesmo acontecer, de acordo com os analistas.
Diferenças Quanto à economia, a principal diferença é a tendência de Scioli a se concentrar na diversificação de ex portações e na melhoria da indús tria interna, enquanto Macri, ligado aos agroexportadores, deve benefi ciar esse setor com suas políticas, acredita Roberto Menezes. “Macri vai ter a vantagem de 24% de direita que existe na Argentina, como setores empresariais, latifun diários e financeiro”, ilustra Andrés. Para o analista, se ganhar o pleito, ele deve perpetuar a redução do Es tado, e gerir a coisa pública como se fosse uma empresa. Já se o ganhador for Scioli, o go vernista deve dar certa continuida de ao kirchnerismo, mas com estilo próprio e se aproximar mais do cen
tro do que da esquerda. Seu gran de desafio será encontrar a própria identidade e se diferenciar da popu lar antecessora, como teve de fazer Dilma Rousseff depois de assumir a presidência comandada durante oito anos por Luiz Inácio Lula da Silva, compara o cientista político. Com dificuldades, o governista não deve contar com a força da novidade nas políticas sociais que ajudaram a au mentar a popularidade de Cristina, que chega a 40% ao fim do mandato, coincidentemente o mesmo percen tual que Scioli atingiu nas primárias. “Provavelmente Scioli será o novo líder do Peronismo se conse g uir até metade do mandato se impor sobre seus adversários dentro do próprio governismo”, opina Rosen do. Se Scioli for bem-sucedido nessa missão, pode repetir a história de Néstor Kirchner, sustenta o analis ta. Apoiado pelo então presidente interino Eduardo Alberto Duhalde – mais por necessidade que por prefe rência, como agora faz Cristina com Scioli –, ele se elegeu em 2003 e foi reeleito em 2005. Se a história realmente se repe tir, uma nova corrente “sciolista” poderá ameaçar o kirchnerismo e as intenções de Cristina de retornar em 2019. “Será criado o sciolismo e o kirchnerismo vai existir como uma linha interna dentro do pe ronismo, movimento para o qual a figura de um líder é muito impor tante”, explica Andrés. Mas a líder argentina ainda guar da algumas cartas na manga. Além de estar de olho nas eleições de 2019, ela sinaliza ser candidata ao Senado em 2017. Enquanto isso, montou uma lista de candidatos a deputado federal que inclui aliados políticos e seu próprio filho, Máximo Kirchner. Aos 38 anos e sem nunca ter sido eleito para cargos públicos, ele é vis to como uma promessa de continui dade kirchnerista.