O bumerangue do kirchnerismo

Page 1

internacional

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

O bumerangue do kirchnerismo

D

epois de 12 anos sob o pro­ jeto kirchnerista, a Argen­ tina finalmente terá um novo líder. A próxima elei­ ção, que acontece em 25 de outubro e tem nomes populares e distantes do kirchnerismo na disputa, possui o potencial de transformar o modo de governar no país vizinho. A saída de Cristina Kirchner do governo está marcada para o dia 10

28

Cidade Nova • Outubro 2015 • nº 10

REUTERS | Marcos Brindicci

REUTERS | Martin Acosta

REUTERS | Enrique Marcarian

ELEIÇÕES Cristina Kirchner não será candidata nas eleições presidenciais da Argentina em outubro, mas o kirchnerismo pode continuar influenciando o governo

de dezembro, quando o novo gover­ nante assumirá o poder. Além de eleger o novo presidente, os argen­ tinos renovarão as vagas de 130 de­ putados e 24 senadores. Segundo especialistas ouvidos por Cidade Nova, mesmo sem se can­ didatar a um novo cargo, Cristina­ continua sendo elemento-chave deste pleito e já sinalizou uma nova tentativa de se eleger em 2019.

Candidatos à presidência da Argentina (a partir da esq.): Daniel Scioli, Mauricio Macri e Sergio Massa

Cristina não conseguiu a maio­ ria necessária no Congresso para mudar a Constituição e garantir sua terceira reeleição. O projeto kirchne­


rista consistia no revezamento en­ tre ela e seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner. Mas ele morreu em 2010, e sua mulher, à frente de um governo centralizador, não pre­ parou um nome suficientemente forte para substituí-la. Daniel Scioli, o candidato gover­ nista, é visto com desconfiança pela presidente, mas passou a contar com seu apoio depois que candidatos kirchneristas registraram baixo de­ sempenho nas pesquisas. Para dei­ xar sua marca na chapa presiden­ cial, Cristina indicou como vice o ultrakirchnerista Carlos Zannini. Na Argentina, o vice também se torna presidente do Senado e tem ­poder de definir a agenda do Legis­ lativo. Porém, como acontece­no Brasil, apesar de ter acesso a infor­ mações privilegiadas, o vice tem po­ der decisório limitado pelas ações do presidente no Executivo. Ainda assim, a indicação é simbolicamen­ te relevante para a permanência do kirchnerismo no poder em caso da vitória governista. Os especialistas apostam que Cristina deva ter uma participação­ menos marcante nos próximos qua­ tro anos, mas lembram do aviso dado publicamente por ela em abril: “É melhor que o presidente que ve­ nha governe bem, porque senão se­ rei obrigada a voltar em 2019”. “Independentemente de quem ganhar, o problema político central será o mesmo: o poder que Cristina reterá e o uso que fará dele em fun­ ção de sua estratégia de retornar em 2019”, opina o jornalista, advogado e analista político, Rosendo Fraga, que dirige o Centro de Estudios ­Unión para la Nueva Mayoría (Cen­ tro de Estudos União para a Nova Maioria), na Argentina. “Talvez Scio­ li, ao pertencer ao peronismo, tenha mais possibilidades de lidar com essa situação. Mas qualquer um que vencer deve tentar a reeleição em

2019, como permite a Constituição, e então se chocará com a intenção de Cristina de voltar.”

Três candidatos Em agosto, nas eleições Primá­ rias Abertas Simultâneas e Obriga­ tórias (Paso) na Argentina, uma es­ pécie de termômetro para o pleito presidencial, foram confirmados os três nomes que disputarão as eleições. O peronista Daniel Scioli, na coligação Frente para a Vitória (FPV), liderou com 38% dos votos. Em segundo lugar, representan­ do a centro-direita, aparece a frente política “Cambiemos” (Mudemos), do empresário e prefeito­de Buenos Aires, Mauricio Macri, com 30%. Em seguida, está a União Alternativa (UNA), com o peronista Sergio Mas­ sa, que obteve 20%. No país, para evitar o segundo turno, o candidato tem duas op­ ções: obter mais de 45% dos votos válidos ou mais de 40%, desde que, neste caso, conte com uma dife­ rença de dez pontos em relação ao segundo candidato. O cenário, por­ tanto, continua incerto e desenha­ -se um provável segundo turno entre Scioli e Macri. Os votos do terceiro candidato prometem ser bastante disputados.

Perfis Para Fraga, a disputa é ainda mais incerta na medida em que as seme­ lhanças entre os candidatos é maior que as suas diferenças. “Nas primá­ rias de 2013, eles estiveram a ponto de criar uma coalizão eleitoral entre si na província de Buenos Aires con­ tra o kirchnerismo”, relembra. Scioli já foi vice-presidente de Néstor Kirchner e está no segundo mandato à frente do governo de Buenos Aires, a maior zona eleito­ ral do país, com cerca de 40% do

eleitorado, o que é considerado pe­ los especialistas como uma grande vantagem. Foi também presidente do Partido Judicialista, popular­ mente conhecido como Peronista, em 2009 e de 2010 a 2014. “Ele tem certa legitimidade dentro do parti­ do, conhece sua dinâmica, mas não é o coração kirchnerista”, pondera Andrés del Rio, professor de Ciên­ cia Política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Esportista, em 1989, Scioli per­ deu o braço direito em competição de motonáutica. Com uma prótese, foi campeão mundial do esporte oito vezes, tornando-se um ídolo nacional e exemplo de superação. Já Macri é um grande nome da maior paixão nacional: o futebol. De 1995 a 2007, ele foi presidente do Boca Juniors, atualmente é prefeito de Buenos Aires. “Ele tem a seu fa­ vor o fato de representar a mudança no momento em que a classe média argentina, após mais de 12 anos de kirchnerismo, quer uma renovação política, além de passar a imagem de ser um bom gestor”, afirma Fraga. Macri é apoiado pelo empresa­ riado e pelo mercado financeiro, já que promete retomar a relação com os credores internacionais. No entanto, ele não tem apoio de nenhum movimento de represen­ tação nacional e não faz parte do maior deles, o Partido Judicialista, o que pode limitar seu resultado nas urnas­, segundo Andrés. Enquanto os dois primeiros se conheceram há 30 anos e chegaram à política através do esporte, Sergio Massa é militante político desde sua juventude e é 12 anos mais jovem que seus opositores, o que faz dele uma aposta para eleições futuras. Massa foi chefe de gabinete de Cris­ tina – cargo corresponde ao desem­ penhado pelo ministro da Casa Ci­ vil no Brasil –, mas rompeu com o kirchnerismo. Cidade Nova • Outubro 2015 • nº 10

c 29


internacional A máxima argentina segundo a qual o Peronismo admite apenas um líder, e que os seus aliados de­ vem formar uma fila atrás dele para apoiá-lo, foi por terra nestas eleições com a disputa entre Scioli e Massa. Para firmar sua insatisfação com o governo atual, Massa deve apoiar Macri em um eventual segundo turno. No entanto, seus eleitores tendem a votar em Scioli, o único peronista além de Massa no pleito. Para Andrés, a divisão do pero­ nismo tende a beneficiar o kirch­ nerismo. “Ideologicamente, os vo­ tantes de Massa estão mais próximo de Scioli, já que Macri está mais à direita. Por isso Macri está mu­ dando o discurso e começa a falar que manterá algumas políticas do ­k irchnerismo, o que é contrário ao seu núcleo ideológico, uma conti­ nuação do pensamento neoliberal de Menem [Carlos Saúl Menem, presidente da Argentina de 1989 a 1999]”, diz.

Semelhanças Ainda assim, as distinções ideo­ lógicas entre os três candidatos estão num zona extremamente cinzenta quando se trata de cam­ panha eleitoral e até mesmo de pla­ nos de governo. De acordo com os especialistas, a tendência é que as três forças em disputa se unam in­ dependente do resultado eleitoral para realizar mudanças tidas como urgentes no país, que se arrasta há anos em uma forte crise econômica. “Os três candidatos, em termos de perfil político e econômico, têm relação com a plataforma política e econômica do ex-presidente Carlos Menem, peronista ligado à liberali­ zação comercial, como mote para a reforma na atual política econômi­ ca argentina”, diz o professor de Re­ lações Internacionais da UnB (Uni­ versidade de Brasília) e coordenador 30

Cidade Nova • Outubro 2015 • nº 10

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

de Estudos Latino-Americanos, Ro­ berto Goulart Menezes. Segundo ele, os candidatos têm apresentado propostas semelhantes para combater os principais proble­ mas do país: desemprego, pobreza, queda dos salários e aumento da in­ flação. Os postulantes defendem o aumento da produtividade, a dimi­ nuição do protecionismo econômi­ co, que muitas vezes limita a presen­ ça de produtos do país em mercados estrangeiros, e a retomada da rela­ ção com os credores internacionais, que bloquearam as contas argenti­ nas durante o governo Kircher. No entanto, com o desejo de atrair os eleitores de Massa, o centro-­ -direitista Macri deve deixar de lado durante a campanha eleitoral o dis­ curso sobre a reaproximação com os credores e com os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, Scioli também amenizará sua fala nesse sentido para não afastar os kirchneristas. Mas, na prática, a retomada dessas relações deve mesmo acontecer, de acordo com os analistas.

Diferenças Quanto à economia, a principal diferença é a tendência de Scioli a se concentrar na diversificação de ex­ portações e na melhoria da indús­ tria interna, enquanto Macri, ligado aos agroexportadores, deve benefi­ ciar esse setor com suas políticas, acredita Roberto Menezes. “Macri vai ter a vantagem de 24% de direita que existe na Argentina, como setores empresariais, latifun­ diários e financeiro”, ilustra Andrés. Para o analista, se ganhar o pleito, ele deve perpetuar a redução do Es­ tado, e gerir a coisa pública como se fosse uma empresa. Já se o ganhador for Scioli, o go­ vernista deve dar certa continuida­ de ao kirchnerismo, mas com estilo próprio e se aproximar mais do cen­

tro do que da esquerda. Seu gran­ de desafio será encontrar a própria identidade e se diferenciar da popu­ lar antecessora, como teve de fazer Dilma Rousseff depois de assumir a presidência comandada durante oito anos por Luiz Inácio Lula da Silva, compara o cientista político. Com dificuldades, o governista não deve contar com a força da novidade nas políticas sociais que ajudaram a au­ mentar a popularidade de Cristina, que chega a 40% ao fim do mandato, coincidentemente o mesmo percen­ tual que Scioli atingiu nas primárias. “Provavelmente Scioli será o novo líder do Peronismo se conse­ g uir até metade do mandato se impor sobre seus adversários dentro do próprio governismo”, opina Rosen­ do. Se Scioli for bem-sucedido nessa missão, pode repetir a história de Néstor Kirchner, sustenta o analis­ ta. Apoiado pelo então presidente interino Eduardo Alberto Duhalde – mais por necessidade que por prefe­ rência, como agora faz Cristina com Scioli –, ele se elegeu em 2003 e foi reeleito em 2005. Se a história realmente se repe­ tir, uma nova corrente “sciolista” poderá ameaçar o kirchnerismo e as intenções de Cristina de retornar em 2019. “Será criado o sciolismo e o kirchnerismo vai existir como uma linha interna dentro do pe­ ronismo, movimento para o qual a figura de um líder é muito impor­ tante”, ­explica Andrés. Mas a líder argentina ainda guar­ da algumas cartas na manga. Além de estar de olho nas eleições de 2019, ela sinaliza ser candidata ao Senado em 2017. Enquanto isso, montou uma lista de candidatos a deputado federal que inclui aliados políticos e seu próprio filho, Máximo Kirchner. Aos 38 anos e sem nunca ter sido eleito para cargos públicos, ele é vis­ to como uma promessa de continui­ dade kirchnerista.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.