Ocupados

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Rovena Rosa | Agência Brasil

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Ocupados

Alunos na Escola Estadual Caetano de Campos, São Paulo

JOVENS Os jovens assumem cada vez mais um papel de protagonismo na sociedade. Eles encabeçam manifestações por passe livre no transporte coletivo urbano ou contra o baixo nível da representatividade política do país, nos últimos tempos. Exemplo recente é a ocupação de escolas públicas do ensino médio no Estado de São Paulo

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ma cozinha repleta de baratas circulando por paredes, utensílios e alimentos. Essa foi uma das cenas iniciais da ocupação da Escola Estadual Caetano de Campos, localizada no centro de São Paulo. Divididos por funções, que incluíram segurança, comunicação, limpeza e alimentação, parte dos alunos dedetizou e limpou o local onde a merenda escolar é preparada diariamente. “A gente quer entregar a escola melhor do que recebeu”, resume Pedro Fernandes, 17 anos, aluno do 2º ano do ensino médio, enquanto mostra salas e corredores mantidos em ordem pelos estudantes. Outra descoberta foi um teatro cuja entrada está concretada. “Tem

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um piano lá dentro, mas não dá para entrar. A gente quer muito ter acesso a esse espaço”, comenta Lua Marques, da mesma idade. “Quem sabe a ocupação dê mais força para a abertura acontecer”, vislumbra. A Caetano de Campos é uma das 196 escolas que foram ocupadas por alunos contra o plano de reorganização escolar do governo estadual paulista entre novembro e dezembro do ano passado. O projeto previa o fechamento de 92 escolas e a transferência compulsória de mais de 300 mil estudantes. Além de exigir a suspensão do projeto, as ocupações levantaram questões como a precarização da estrutura das escolas, a subutilização

de espaços, a falta de participação estudantil na gestão escolar e um modelo de ensino ultrapassado. Mais do que sentar em carteiras para ter aulas, eles querem voz ativa para mudar um modelo educacional incompatível com as expectativas e necessidades.

Saindo das baias Inspirados na “Revolta dos Pinguins” do Chile, onde 700 escolas foram ocupadas por secundaristas em 2011, os alunos brasileiros passaram a decidir em assembleias diárias sobre questões cotidianas e rumos do movimento. “Aqui a gente faz o que a democracia não con-


seguiu fazer. Todo mundo tem voz e decide junto”, compara o aluno Felipe Ary de Souza, 18, cursando o 1º ano do ensino médio. As ocupações reúnem membros do grêmio estudantil, a galera do fundão e até mesmo os ditos CDFs. São jovens de diversas origens sociais, formações culturais e preferências políticas. Mesmo os mais desiludidos e alheios ao sistema político têm espaço. Por isso, o movimento se denomina como apartidário e horizontal, ou seja, sem líderes. O contato direto e mais humanizado com essa grande diversidade de colegas deu margem a reflexões sobre a rigidez da estrutura escolar. “O jovem não olha somente para frente. Nós também olhamos para o lado. Sentar enfileirados, como cavalos com viseira, nos impediu de enxergar os nossos próprios colegas. Deve ser por isso que existe tanto bullying”, deduz Felipe. Para Lua, a ocupação permitiu aproximar alunos que nem sequer se conheciam. “Nos tornamos uma família”, diz.

Tesouros Pouco atraídos pelo modo de aprendizado atual, um em cada dez estudantes do ensino médio abandona as aulas antes de acabar o ano letivo, segundo dados de 2010 divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). É a maior taxa de evasão escolar da América do Sul. De acordo com especialistas ouvidos por Cidade Nova, os principais motivos do abandono são o fracasso escolar e o desinteresse pelo conteúdo. Para satisfazer a demanda dos jovens por assuntos nunca tratados em sala de aula, profissionais de diversas áreas foram às escolas ocupadas dar aulas e ministrar palestras. Os estudantes tiveram oficinas de

música, estêncil, grafite, capoeira, ioga e fotojornalismo, além de aulas públicas sobre temas atuais como machismo, racismo e crise hídrica. “Muitas dessas coisas são superimportantes, mas nunca teríamos na escola em dia letivo”, diz Pedro. “O que a gente aprendeu, vamos poder usar no futuro. A oficina de fotojornalismo, por exemplo, nos dá uma base mais crítica para olhar a História.” Durante as ocupações, aumentou­ também a participação da comunidade nas escolas. Muitos curiosos passaram a visitá-las e conversar com os estudantes sobre a situação, além de doar alimentos, produtos de limpeza e de higiene para eles se manterem na escola. Alguns pais, geralmente criticados pela ausência no cotidiano escolar dos filhos, apoiaram a iniciativa e acabaram exercendo diferentes funções para ajudar na ocupação. “O jovem mostrou que está com vontade de estudar. O Estado e os professores, agora, têm que responder à altura, oferecendo educação de qualidade e de interesse”, diz Betisaida de Souza, 58. Mãe de Felipe, ela passou na escola num domingo para perguntar ao filho se poderia usar sua experiência como promotora de eventos para ajudar na ocupação. “Na minha época, eu fui impedida de estudar porque fiquei órfã. Eu sinto que agora eles estão fazendo algo pela educação, algo que eu não pude fazer.” Betisaida conta que o filho estava desinteressado pela escola, passou um ano afastado, mas se animou após a ocupação trazer a esperança de melhorar a educação. “Depois de tudo isso, não dá para aceitar que a escola continue a mesma. Se alguém fizer bagunça na aula, eu mesmo vou impedir”, atesta Felipe, carregando um exemplar do Diário de Anne Frank, fruto de uma doação aos ocupantes. “O método

de ensino está ultrapassado, assim como os livros. Isto aqui é um tesouro”, diz sobre o relato escrito por uma menina de 12 anos que denuncia as atrocidades do antissemitismo durante a Segunda Guerra Mundial. A movimentação dos alunos resultou na queda do secretário de Educação, Herman Voorwald, e na suspensão do plano pelo governador Geraldo Alckmin, que definiu 2016 como um ano de debates com pais, alunos e professores sobre a proposta. “Os estudantes não imaginavam que tinham tanto poder”, diz Pedro. Mesmo assim, eles admitem que ganharam apenas uma batalha. A luta por uma educação pública de qualidade continua.

Eles querem mais O interesse por temas que não são tratados em sala de aula também mexeu com Jéssica, de 16 anos, estudante do 2º ano na E.E. Joaquim Alvarez Cruz, em Parelheiros, no extremo sul da capital paulista. Em outubro, através da iniciativa­ “Quero na Escola”, a aluna pediu palestras sobre feminismo e racismo e foi atendida. “Sobre feminismo, os professores nunca falaram nada. Racismo é até comentado, mas não o suficiente para saber o que causa isso e como se defender”, explica a garota. Segundo ela, as palestras desper­ taram maior interesse pelos assuntos, que foram tema de rodas de conversas em outros eventos da esco­la. Animada com o resultado, a estudante já planeja um novo pedido: uma aula sobre maioridade penal. “O público-alvo desse assunto somos nós, adolescentes. É um tema importante, mas os professores fogem.” O projeto foi criado por quatro jornalistas para dar conta dos interesses cada vez mais diversos da juventude. Através do site www. queronaescola.com.br, alunos da rede Cidade Nova • Janeiro 2016 • nº 1

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pública de todo o país podem cadastrar sua escola e pedir aulas que fogem ao currículo obrigatório. As solicitações são atendidas por voluntários da sociedade civil. Segundo os organizadores, as ocupações nas escolas paulistas comprovam que os estudantes têm muitos interesses além do currículo tradicional e reforçam a importância da iniciativa. “Acreditamos que muitas das integrações com a comunidade que passaram a ocorrer apenas neste momento são uma peça-chave para melhorar a educação do país”, declararam no site do projeto cujo objetivo é aproximar a escola pública da sociedade. Em três meses, 11 voluntários também deram aulas de artesanato, cerâmica, contação de história, fotografia e mágica. No total, 370 estudantes participaram das atividades realizadas em São Paulo. Mas a lista de desejos é grande: são mais de 150 pedidos de cem escolas de todo o país esperando por voluntários. Para atendê-los, foi criada uma campanha de financiamento coletivo. Para melhorar o projeto e aproximar ainda mais a comunidade da escola, Jéssica sugere que as palestras sejam abertas para não alunos e que os estudantes também façam excursões para conhecer coletivos e participar de eventos externos. “Ia ser legal tirar um dia na semana para fazer uma roda de conversa para os alunos expressarem sua opinião sobre como melhorar a escola e sobre outros assuntos sem ser das aulas de português e de matemática”, sugere.

Atenção, é hora da revisão A maioria dos alunos, seja de escolas particulares ou do ensino público, critica a distância entre o conteúdo oficial das escolas e as discussões cada vez mais presentes na 14

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sociedade. Mais do que passar no vestibular e ter uma profissão garantida, eles querem deixar as instituições de ensino como cidadão críticos. Jéssica, do colégio público de Parelheiros, acredita que os temas e as pessoas que circundam a escola deveriam ser recebidos de portas abertas. “Tem muito adolescente no bairro que não estuda. Se tivesse atividade aos sábados para a comunidade, eles podiam sentir vontade de estudar”, afirma. Um jovem mais consciente de seus direitos pode melhorar a escola e a sociedade, acredita a estudante. A escola permanece muito indiferente às famílias e à vida comunitária do entorno, opina o professor Elie Ghanem, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). “Em geral, os corpos de profissionais das escolas ignoram muito do mundo familiar e comunitário e se concentram nos saberes que julgam dever ‘transmitir aos alunos’. Essa tradição é que precisa ser invertida por completo”, sugere. Para Luana, que estuda no particular Etapa, mesmo passar no vestibular é uma tarefa difícil. Ela deseja prestar Artes Cênicas, mas como o

colégio se concentra nas profissões e disciplinas mais tradicionais, nunca aprendeu nada sobre a carreira pela qual optou. “Se você quer virar médico ou engenheiro, ótimo. Se fizer outra escolha, é complicado”, opina. A estudante defende que temas como política e feminismo deveriam, sim, fazer parte do currículo obrigatório, pois a escola “é um local de formação de seres humanos e não de máquinas”. Segundo o professor Ghanem, as escolas nunca conseguiram se converter em espaços de debate aberto sobre assuntos de interesse comum e, nesse contexto, as ocupações e outras iniciativas dos estudantes surgem como exemplos do exercício da cidadania. “É preciso interromper a rotina escolar para debater educação, política, ou temas que estão confinados ao mundo privado, tais como a afetividade e o preconceito”, analisa. No entanto, para ele, ainda resta muito a se fazer. “Após as ocupações, o desafio permanecerá o mesmo de antes: rever profundamente o que costumamos entender por aula, escola e educação.”


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