“Não há canais efetivos de participação” - Revista Cidade Nova

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

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“Não há canais efetivos de participação” ATIVISMO Fundador da rede Meu Rio, Miguel Lago fala sobre a importância da tecnologia para mobilizações e explica porque 20% de vitórias se transformam em 100% no debate social

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m tempos de efervescência política na internet e nas ruas, a Meu Rio procura ajudar cidadãos a usar os meios virtuais e presenciais para influenciar as decisões políticas da cidade. Cofundador da rede criada há pouco mais de dois anos, Miguel Lago fala sobre as conquistas e as dificuldades dessa iniciativa. Ele defende a importância de cobrar os gestores públicos de forma permanente e ressalta a necessidade de descentralização. “Se o governo local, que decide sobre o orçamento da cidade, puder realizar o orçamento participativo, já muda muita coisa”, propõe.

Cidade Nova – Um sintoma da política atual é a descrença nos políticos e em suas ações. De que maneira a rede Meu Rio pretende engajar esse cidadão desconfiado? Miguel Lago – A pior coisa­para mudar a realidade é não acreditar que ela possa ser alterada. Como cidadãos, temos poucos canais para participar efetivamente­da vida da nossa cidade. O que mais funciona, evidentemente, é o voto, que só acontece de quatro em quatro anos. Há ainda as audiências públicas, que não têm poder real de mudança. A rede Meu Rio tenta constantemente­

ser um canal através do qual o cidadão possa influenciar e mudar políticas públicas na sociedade de maneira direta. Nós desenvolvemos uma série de aplicativos nesse sentindo e pensamos nas estratégias de mobilização, auxiliando os cidadãos que querem mudar a realidade do seu bairro e da sua cidade.

Qual o índice de vitórias das mo­ bilizações criadas na Meu Rio? O índice é de 20%, o que é muito se você pensar que não eram demandas da vontade do gestor público, mas que se transformaram em necessidade a partir de uma mobilização. Por exemplo, um cidadão de Vargem Grande (bairro do Rio de Janeiro) reclamou sobre a coleta de lixo e pediu que a Comlurb [Companhia Municipal de Limpeza Urbana] desenvolvesse um planejamento. Ele conseguiu essa mudança através do Panela de Pressão, um aplicativo criado pela rede no qual podem ser criadas mobilizações e pressionados os gestores públicos. Em outros tipos de mobilizações, a demanda não foi atendida diretamente, mas houve um avanço na discussão. Por exemplo, a campanha de 100% de saneamento básico no Rio existe há quase dois anos e é uma demanda muito difícil de ser atendida rapidamente. Apesar de não ter sido cumprida, houve muito

avanço na mídia e no discurso político em relação ao tema, que virou um mantra.

Você se lembra de alguma história que marcou esses dois anos da criação da rede? Teve uma história engraçada. Em meio a uma campanha longa, eu recebo uma ligação, na sexta-feira à noite, de um coordenador de Meio Ambiente do Ministério Público. Ele estava desesperado porque o governo­do Estado havia acabado de passar um Projeto de Lei que deixava o Código Ambiental do Rio ainda mais flexível do que já era, em regime de urgência para ser votado na terça-feira­pelos parlamentares. O Ministério Público teria todo o poder de, caso o projeto fosse aprovado, condená-lo através de um processo judicial gigantesco, mas não: eles acreditaram que a mobilização impediria a aprovação do projeto e evitaria essa briga judicial. Analisamos bem esse projeto e lançamos a mobilização na própria terça-feira de manhã. Cerca de 7 mil pessoas pressionaram diretamente e ligaram para os deputados esta­duais para que eles não votassem no projeto e os parlamentares fizeram algo raríssimo: deram as costas ao governador e não votaram. O governador teve que tirar o projeto da pauta e admitiu os erros. Foi uma mobiliCidade Nova • Junho 2014 • nº 6

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zação super-rápida e intensa, que durou cinco dias e resultou em uma grande vitória.

Vocês sofrem muita pressão de políticos e outras entidades? Sim, mas a nossa questão de sempre é: pouco importa de onde vem a mobilização, o que nos interessa é ela estar embasada, fazer sentido e ser criteriosa. O fato de o Ministério Público ter me ligado não foi determinante, foi determinante a importância do projeto de lei. O que nos protege sempre é esse embasamento técnico. Não temos nenhuma dificuldade em dizer que quando há interesses políticos em uma causa, não abraçamos, pois somos apartidários.

O projeto Meu Rio venceu o Desafio de Impacto Social Google neste ano. Como vocês avaliam essa conquista e de que maneira pretendem colocar o projeto em prática? É muito mais do que o aporte financeiro, considerável, de R$ 1 milhão. Ter o reconhecimento de uma empresa tecnológica desse porte e contar com o apoio contínuo que esse prêmio implica é muito importante para nós. Esse dinheiro vai ser exclusivamente investido na replicação do modelo da Meu Rio em 20 cidades. Em dois anos, nós pensamos em selecionar jovens empreendedores nesses municípios através de um concurso transparente. Depois, treinar os selecionados no Rio por dois meses. Por outro lado, haveria também a adaptação da tecnologia da Meu Rio para outras cidades.

Que erros e acertos da Meu Rio são importantes para levar um projeto mais maduro às outras cidades? O conhecimento que conseguimos integrar ao longo desses dois 8

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anos e pouco de trabalho foi muito grande. Embora pareça pouco tempo, aconteceu muita coisa. Houve erros superimportantes para aprender e fazer melhor. Vamos fazer de tudo para que os empreendedores não os cometam.

Quais foram esses erros? De muito sério houve apenas um. Foi feita uma mobilização que pedia a criação de uma linha de transporte público para as Paineiras, um espaço de lazer incrível no meio da Floresta da Tijuca, mas de difícil acesso. No argumento, o carioca que criou a mobilização citou um jornal grande, segundo o qual não havia acesso a carros no local. Rapidamente fomos avisados que essa informação era equivocada. Aprendemos a fazer sempre o double check, ainda que as fontes sejam confiáveis. Pedimos desculpas pelo engano e a mobilização continuou. Mas erros no cotidiano acontecem muito. Existe uma certa ingenuidade quanto ao poder público. Tem que saber exatamente como pressionar porque, mesmo se a causa é boa, não necessariamente ela será atendida. Todos somos muito idealistas, mas as coisas são mais complicadas do que parecem às vezes.

O que falta ao cidadão brasileiro para que aumentem as mobilizações e as vitórias sobre problemas sociais? Falta esperança. O desafio de mobilizar as pessoas é mostrar que esse canal é efetivo e tem vitórias. Se a gente não tivesse alterado a Constituição do Estado, talvez os pais dos alunos da Friedenreich [escola próxima do Maracanã, que foi ameaçada de demolição durante a reforma do estádio] não teriam a mobilização da Meu Rio para salvar a escola deles. E se esses pais não ti-

vessem alcançado a vitória, talvez o Leandro Neres, do Cantagalo, não teria conseguido manter seu programa de reciclagem no morro. É de vitória em vitória que as pessoas vão ganhando esperança. O desafio vai ser sempre esse: como conseguir a primeira vitória. Depois da primeira, tudo fica mais fácil, porque as pessoas começam a se mobilizar mais. Tudo o que o poder público não quer é dar a vitória para a sociedade. Vimos isso nos protestos de junho de 2013: o governo não arredou o pé em nada e não foram criados canais efetivos de comunicação.

Como a rede avalia as mani­ festações de junho e suas reivindicações? Junho de 2013 foi um despertar maravilhoso: a multidão na rua com demandas totalmente diferentes. A sociedade não é homogênea, ela é antagônica, mas o que importa é que as pessoas estavam lá, na rua, juntas. E se estavam nas ruas é porque não há canais de participação efetivos. Por exemplo, muita gente demandava educação padrão Fifa. Se, em algum momento, os governos tivessem permitido no Rio escolher entre uma reforma bilionária do Maracanã e o investimento de metade desse dinheiro nas escolas, onde os professores estão ­ em greve pelas péssimas condições dos salários, o cidadão certamente não precisaria estar na rua, ele estaria tomando essa decisão efetiva na escolha do orçamento. Houve movimentos que radicalizaram. Como as demandas não foram devidamente atendidas, isso desestimula, cria desesperança e ra­dicalismo também. Em todos os países do mundo é assim. E se você comparar o nível de violência dos protestos lá fora, acredito que aqui seja muito menos violento.


A rede Meu Rio sofreu alguma influência dessa efervescência política durante os protestos? Na semana daquela marcha dos cem mil e a outra de um milhão, a quantidade de mobilizações que entrou no Panela de Pressão foi uma coisa de louco. Desde educação, regulação dos ônibus, mobilização para cassar licitação de empresas de transporte público e fazer uma nova… A população estava nas ruas vocalizando o que elas queriam, mas também estavam usando a rede para concretizar essas demandas.

a escala, a proporção e a conectividade, mas não é ela que cria.

Uma crítica recorrente ao ativismo on-line é sua pouca eficácia em termos práticos. Como a rede responde a essa questão? Não acho que o ativismo tenha pouca eficácia, a prova é a Meu Rio ter 20% de vitórias, muito mais do que qualquer oposição tem no Brasil ou do que qualquer deputado aprova em projetos de lei. O fato de um carioca poder reverter uma decisão do governador não é algo que acontece

Se os governos tivessem permitido escolher entre uma reforma bilionária do Maracanã e o investimento de metade desse dinheiro nas escolas, onde os professores estão em greve pelas péssimas condições dos salários, o cidadão não estaria na rua

Qual a importância da internet para fomentar manifestações e influenciar nas decisões do poder público? A internet é o meio. Em si, ela não muda as coisas, mas facilita tudo: da viralização de um tema – várias pessoas falando de um mesmo assunto ao mesmo tempo – até a realização de ações coletivas de pessoas que não se conhecem. Seja através dos aplicativos da Meu Rio, em que milhares de pes­ soas pressionam o mesmo tomador de decisão pela mesma causa, seja no caso das pessoas que organizaram o primeiro evento de protesto contra o aumento das passagens, que no início tinha 800 pessoas e depois virou uma marcha de 100 mil pessoas. Nada disso seria possível sem a internet, porque ela muda

a todo momento. O ativismo permite isso, mas você tem que fazer direito. Se você é muito vago na sua demanda, fica difícil saber se ela foi atendida ou não. Se eu peço que a corrupção acabe no Brasil, é uma demanda válida, todo mundo quer isso, mas como você vai fazer isso? Tem que colocar algo mais concreto, como proibir que empresas financiem as eleições, por exemplo. O ativismo consegue reunir um número gigantesco de pessoas, quem é ineficaz é o governo que não consegue responder a ele.

Num mundo globalizado como o nosso, qual o papel das mobilizações regionais, como as propostas pela Meu Rio? É um movimento duplo: os mercados, a circulação das pessoas e os

problemas são cada vez mais globais. Ao mesmo tempo as cidades ganharam muito mais força do que tinham há 50 anos. O movimento de globalização não enfraquece a importância do local, mas sim, a importância do nacional. Os presidentes daqui a pouco vão ser como um rei da Inglaterra, porque as decisões mais importantes são tomadas em nível continental ou em nível local. Nós estamos habituados com a governança nacional há mais de 200 anos. Agora, nas cidades, você tem uma multiplicidade de coisas para fazer. Não se governa uma cidade como se governa um país. E no Brasil, as prefeituras são organizadas como o governo federal. A cidade só será boa, justa e sustentável se ela pertencer de fato às pessoas. Nesse caso eu acho que nós contribuímos muito para mudar a governança das cidades. É uma pequena semente ainda, mas fun­ damental.

Qual seria a organização política ideal para o Brasil? Deveriam ser feitas coisas simples: criar canais para participação efetiva e descentralizar decisões. Se o governo local, que decide sobre­o orçamento da cidade, puder realizar o orçamento participativo, já mudaria muita coisa. Se a população da Rocinha pudesse escolher entre teleférico ou saneamento básico mediante voto e essa decisão fosse respeitada, tenho certeza de que a população estaria se sentindo muito mais envolvida na execução posterior das obras de saneamento básico. Isso é importante para que uma política pública possa funcionar bem. Se a Argentina ameaçar o Brasil de guerra, não tem como fazer plebiscito, a presidente vai ter que decidir. Mas tem tanta coisa que dá para descentralizar, principalmente em nível municipal. Então, por que não fazer? Cidade Nova • Junho 2014 • nº 6

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