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Tem saída?
Marlene Bergamo | Folhapress
cn em série Saúde
SAÚDE PÚBLICA Na segunda reportagem da série, os olhares se voltam para o SUS, que desde sua criação expandiu a rede de saúde. Mas o sistema ainda está distante de garantir qualidade a todos os cidadãos. Que medidas tomar para garantir a universalização do sistema público?
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ais de um quarto de século depois de sua instituição, o Sistema Único de Saúde (SUS) acumula avanços e insatisfações. As melhorias mais difundidas são a diminuição da mortalidade infantil e o aumento da expectativa de vida. O Brasil passou de uma taxa de 69,1% de mortes entre crianças com menos de um ano, em 1980, para 16,7%, em 2010, uma queda de 75,8% – de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geo-
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grafia e Estatística (IBGE). Já a expectativa de vida aumentou 11,3 anos, passando de 62,5 para 73,8 anos.
Acesso Antes de criação do SUS, 30 mi lhões de pessoas utilizavam os serviços públicos hospitalares. Em 2008, esse número saltou para 140 milhões. Mesmo com o aumento, o alcance ainda está longe da tão sonhada universalidade: em 2008,
apenas 58% da população se declarava usuária regular, de acordo com o estudo “20 anos de Construção do Sistema de Saúde no Brasil”, do Banco Mundial. Para Libânia Rangel de Alvarenga, especialista em Administração Hospitalar e Sistemas de Saúde pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-SP), a dificuldade está justamente na universalização, que ela qualifica como insustentável em um país tão grande como o nosso. “A causa prin-
cipal do longo tempo de espera é o desalinhamento entre oferta e demanda. O Brasil cresceu muito nos últimos anos, a população vem envelhecendo e isso acaba impactando no número de serviços demandados ao sistema, que não consegue acompanhar essa crescente procura por ter como um dos pilares a universalidade”, afirma. “Esse talvez seja um grande problema, porque prometemos tudo para todos. Um imigrante ou uma pessoa a passeio no Brasil tem direito a todo atendimento.” Segundo levantamento do Conselho Federal de Medicina (CFM), em parceria com o Ministério Público e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), 47% dos pacientes aguardam de um a seis meses por serviços como agendamento de con sultas e exames; 29% esperam mais de seis meses. A especialista defende que o acesso seja limitado aos mais necessitados ou por meio da cobrança de uma coparticipação do cidadão nos gastos. Era assim que a saúde pública funcionava antes da criação do SUS: o sistema atendia quem contribuía com a Previdência Social. Quem não podia arcar com os custos era recebido por instituições de caridade, como as Santas Casas, que hoje passam por uma séria crise devido ao alto grau de endividamento. Em julho deste ano, a Santa Casa da Misericórdia de São Paulo fechou as portas do atendimento de emergência por falta de recursos para aquisição de materiais e medicamentos. Tida como o maior centro médico filantrópico da América Latina, a instituição possui uma dívida estimada em R$ 400 milhões. “As Santas Casas acabaram sendo oneradas após a criação do SUS porque, além dos carentes, passaram a atender a parte pública, ou seja, todo mundo. A medicina foi ficando mais cara, a população foi
crescendo e o dinheiro ficou parado. A tabela de custos está defasada: a sessão de fisioterapia custa R$ 8, o que não paga a hora do fisioterapeuta, quanto mais o resto dos custos do hospital”, critica. Além disso, diz Libânia, o sistema público é ainda onerado pelo atendimento de pessoas que já possuem planos de saúde privados. A saúde privada atende 38 milhões de pessoas no país, mas é o SUS quem realiza 75% de todos os procedimentos de alta complexidade, segundo informações do Ministério da Saúde. “Muitos planos não conseguem dar ao usuário todo o atendimento. Ele usa o plano para coisas mais básicas e vai para o público para conseguir realizar atividades mais complexas e mais caras, como cirurgias de grande porte”, exemplifica. A sociedade brasileira ainda está dividida sobre a necessidade de um sistema público de saúde para todos. De acordo com pesquisa Datafolha, 47% preferem pagar menos impostos e usar planos privados, enquanto 43% são a favor de dar mais aos cofres públicos e manter o serviço gratuito e universalizado.
Concentração Para Fernando Facury Skaff, professor de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a universalidade do sistema é louvável e deve ser mantida: “Se houver essa atuação mista, o governo consegue reservar seus recursos para atender as demandas de uma parte da população”, defende. Um dos grandes destaques nesses 26 anos de SUS foi o aumento da participação dos municípios na gestão da saúde. Nos serviços ambulatoriais, passou de 20% para 100%. Porém, metade dos leitos hospitalares continua sob responsabilidade dos Estados e da União, situação ainda mais preocupante no Acre, Amapá e
Amazonas, que dependem quase exclusivamente de leitos estaduais. A concentração de médicos segue a mesma lógica. O Brasil tem até mais médicos que o mínimo recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) – um médico a cada mil habitantes – mas distribuídos de forma desordenada. Dados do Conselho Paulista de Medicina mostram que apenas a região Sudeste supera a meta, com índice de 2,5. A pior situação é, novamente, registrada no Norte. Para Laura Macruz, professora do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública da USP, mesmo com planos de descentralização oferecidos pelo SUS, os profissionais preferem permanecer nos grandes centros, onde podem atuar tanto em hospitais públicos quanto nos privados. A especialista concorda que seria um retrocesso abrir mão da universalização, conquista inquestionável para a população brasileira, mas defende mudanças no sistema. Segundo a professora, a longa espera para a realização de cirurgias poderia ser resolvida com mais comunicação. Ela cita o exemplo da redução do tempo de espera de um ano e meio para seis meses na realização de um procedimento em certo hospital de São Paulo. Após uma reunião de conselho, os pacientes foram distribuídos entre outras unidades de saúde que estavam quase vazias. “O desenho do sistema é tradicional, muito separado. Os atendimentos básico e especializado deveriam funcionar em rede. Mas se existe preconceito e falta de comunicação, a possibilidade de existir uma rede é muito menor”, explica. O inchaço nos prontos-socorros também entra nessa equação. Segundo a professora, a falta de vínculo entre o médico especializado e o paciente deixa o usuário sem Cidade Nova • Novembro 2014 • nº 11
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cn em série Saúde lternativa se não passar pelo clía nico geral para depois ser encaminhado a um especialista. “Não temos histórico de construir relação de vínculo com o médico, então vai para o pronto-socorro. Dessa forma acaba-se pedindo mais exames do que o necessário e um monte de gente que está na fila não precisaria estar”, completa Macruz.
Mais Médicos Para Libânia, concentração de infraestrutura e de médicos são fatores que caminham lado a lado. “Não adianta botar um bonito tomógrafo numa cidade se não tem médico lá. O que acontece é um sucateamento muito rápido dessa estrutura porque não há quem a opere. E por que não tem médicos espalhados uniformemente pelo país? Justamente por falta de infraestrutura. O médico sabe que, se for colocado num lugar no meio do nada, vai poder fazer muito pouco”, afirma. A solução, portanto, seria investir em infraestrutura em todos os rincões do país, garantindo a proximidade dos centros médicos a universidades que formam profissionais de saúde. “O médico vai trazer mais recursos, que vai trazer mais infraestrutura, que traz mais médicos. É um ciclo virtuoso”, resume. Macruz concorda com a interiorização de cursos de medicina e acrescenta que seu acesso deveria ser diversificado através das cotas sociais, como a reserva de 50% das vagas para estudantes provenientes do ensino público e moradores daquela região. “É necessário garantir parte das vagas aos locais e interiorizar as residências médicas”, propõe. Para o vice-presidente do CFM, Mauro Ribeiro, somente um plano de carreira do Estado descentralizaria os profissionais de saúde. Ribeiro defende a realização de concursos 16
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pelo Ministério da Saúde, o que transformaria os profissionais em servidores públicos com dedicação exclusiva de 40 horas semanais, plano de carreira e salários melhores. O Conselho é contrário ao Mais Médicos, programa federal que traz profissionais estrangeiros para atuar no país. Apesar de contar com a aprovação de 67% dos brasileiros, segundo pesquisa do Datafolha, “o programa não resultou na melhoria de índices de saúde, nem no atendimento em áreas mais distantes”, diz Ribeiro. “Os médicos cubanos estão sendo colocados em locais que não tem infraestrutura suficiente. Além disso, alertamos que o Mais Médicos é eleitoreiro. Não existe outro país que traga médicos estrangeiros sem que eles passem por exames, como o Revalida. Como autarquia federal, pedimos que normas do Estado brasileiro sejam cumpridas”, defende. Procurado pela reportagem, o Ministério da Saúde não respondeu às críticas até o fechamento desta edição.
Gestão A infraestrutura do sistema de saúde também sofreu expansão desde que o SUS foi criado. Em 1981, eram 22 mil estabelecimentos de saúde, número que chegou a 75 mil em 2009. Mas enquanto o número de unidades de serviços ambulatoriais triplicou, a quantidade de hospitais permaneceu estável e o de leitos hospitalares sofreu uma redução de 10,5%. Para os especialistas, a falta de recursos e a má gestão da verba pública são fatores limitantes à expansão uniforme do sistema. Dos R$ 47,3 bilhões gastos com investimentos pelo Governo Federal em 2013, o Ministério da Saúde foi responsável por apenas 8% dessa quan-
tia. Dos R$ 9,4 bilhões disponíveis para investimentos em unidades de saúde em 2013, o governo desembolsou somente R$ 3,9 bilhões. Nos últimos 13 anos (2001 a 2013), foram autorizados R$ 80,5 bilhões, mas apenas R$ 33 bilhões foram efetivamente gastos. Com os R$ 47 bilhões que não foram investidos, o CFM calcula que seria possível comprar 386 mil ambulâncias, garantindo 69 veículos para cada município brasileiro, ou 237 mil unidades básicas de saúde de porte 1 (43 por cidade), ou então 34 mil Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) – seis por município – ou, ainda, 936 hospitais públicos de médio porte, o que acrescentaria de 200 a 250 leitos em todo o país. É unânime entre os especialistas a opinião de que as unidades de alta complexidade no país representam o grande trunfo do sistema público de saúde brasileiro. Com tecnologia de última geração, procedimentos como transplantes, cirurgias, tratamento contra o câncer e hemodiálise são hoje acessíveis a cidadãos de todas as faixas de renda, concretizando a universalidade ainda tão distante no atendimento básico. “Temos que inverter a pirâmide, porque na base, o acesso à atenção básica, a exames e especialistas, é muito difícil para 150 milhões de cidadãos. Precisamos remunerar melhor a pequena e a média complexidades e continuar remunerando bem a alta”, defende Ribeiro, do CFM. “Se funciona nos procedimentos complexos, pode funcionar no básico.” A lista de remédios para sanar a saúde pública é grande: mais recursos, melhor gestão, integração do sistema em rede e descentralização de infraestrutura e de profissionais. Um longo tratamento pelo qual o sistema terá que passar para chegar em plena forma ao seu cinquentenário.