cn em série Conflito no campo
martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br
Terra em movimento Marcelo Camargo | Agência Brasil
Em 2014, cerca de 50 famílias do Movimento dos Sem Terra (MST) ocuparam a Fazenda Três Pinheiros, uma propriedade privada localizada na DF-110, em Planaltina – DF
CONFLITOS NO CAMPO O Brasil rural vive entre a prosperidade econômica do agronegócio e a crescente concentração de terra que gera exclusão; o cenário se mostra ainda mais complexo devido à violência de grandes fazendeiros e a ocupações controversas do MST
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arenise de Jesus Oliveira, 40 anos, nasceu em uma família camponesa de 17 irmãos. Seu pai, o trabalhador rural Djalma, sem ter onde plantar e enfrentando dificuldades para sustentar os filhos, passou a lutar pelo direito à terra como militante do sindicato dos trabalhadores rurais de Santaluz, na Bahia, e da Igreja Católica, em plena efervescência da Teologia da Libertação. Após alguns anos, seu Djalma foi seguido pela prole em sua busca. “Assim que o mais velho ficou ‘de maior’ foi buscando alternativa de permanecer no campo e a saída foi a reforma agrária”, conta Marenise, mais conhecida como Nise. Há dez anos, a atuação na Coordenação Estadual dos Trabalhadores Acampados e Assentados (Ceta) deu resultado e sua família conquis-
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tou um pedaço de terra em Nova Canaã, no município de Pindobaçu, oeste baiano. “Minha maior alegria é ver minha família biológica toda camponesa, com dignidade, e somada a milhares de famílias que tenho orgulho de acompanhar usufruindo o direito à terra, educação no campo, moradia digna, alimentação saudável e produzindo de forma agroecológica para alimentar a família e a nação”, vibra a militante. Ao todo, 81 famílias foram assentadas em 2006 na propriedade, antes improdutiva. “Hoje, dez anos depois, temos 95 famílias, uma vez que filhos de assentados optam por permanecer no assentamento”, c onta Nise.
Falta de infraestrutura Mas nem tudo são flores, frutas, grãos ou vegetais nessa terra. Loca-
lizado no polígono da seca, sem dispor de suficiente água e de incentivo financeiro para a produção, o assentamento ainda não alcançou o índice de produtividade exigido pelo governo. “Ainda estamos em processo de consolidação”, explica Nise. “Buscamos produzir para o consumo interno e o excedente da produção escoamos na feira livre do município.” A má localização das terras disponibilizadas é um dos aspectos críticos da política agrária praticada desde o regime militar (1964-1985). O modelo buscava ocupar terras remotas para distribuir a população pelo país e incentivar a estratégica integração do território. Assim, muitas das famílias assentadas acabaram isoladas e destinadas a cultivar terras impróprias à agricultura. “A distância dificulta o
sustentodas famílias, reféns de intermediários que chegam com caminhões e impõem os preços que querem aos produtos dos camponeses”, afirma Jeane Bellini, membro da Coordenação Nacional Executiva da Comissão Pastoral da Terra (CPT). Por essa questão, além de problemas familiares, ambientais e econômicos, algumas famílias acabam abandonando o espaço conquistado, gerando um novo êxodo rural e engrossando a fila por nova assistência. O índice de desistência dos assentados é de 18%, segundo o Relatório Dataluta, produzido pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Bellini defende que a reforma agrária não seja entendida apenas como a repartição da terra. Para viabilizar os assentamentos, muitas vezes distantes e precários, seria preciso fornecer infraestrutura básica, incluindo água, luz, pavimentação e pontes, além de concessão de crédito para incentivar a produção. Em resposta à reportagem, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) admite que é preciso melhorar a infraestrutura e que planeja investir R$ 20 bilhões para garantir melhorias onde foram identificados problemas estruturais. “Nos últimos cinco anos, o Incra tem destinado um percentual maior de recursos para implementar a infraestrutura básica dos assentamentos: água, energia e estradas”, afirma Jorge Tadeu Jatobá Correia, assessor da presidência do instituto. A previsão de investimento inclui ainda a construção de 175 mil moradias nos assentamentos.
Concentração A concentração de terra no Brasil segue aumentando. Segundo dados do Relatório Dataluta 2014, 113 milhões de hectares estão distribuí dos em 5,3 milhões de imóveis de
até 100 hectares, enquanto apenas 365 imóveis concentram 138,64 milhões de hectares. Já o índice de Gini, que, quanto mais alto, maior é a desigualdade de distribuição de terra, passou de 0,83, em 2012, para 0,86, dois anos depois. A transformação da agricultura brasileira tornou ainda mais difícil a distribuição da terra, de acordo com Leonilde de Medeiros, professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e membro do Núcleo de Pesquisa, Documentação e Referência sobre Movimentos Sociais e Políticas Públicas no Campo. “O agronegócio é uma estrutura moderna e voltada para a exportação. A terra é especulada na bolsa de valores. Há um poderoso interesse econômico envolvido”, afirma. Além da barreira econômica, há também a política. “Todas as iniciativas de distribuição de terras foram politicamente derrotadas”, diz Medeiros. O motivo? Pelo menos 2,03 milhões de hectares pertencem a políticos, segundo dados do livro “Partido da Terra”, do jornalista Alceu Castilho, resultado de três anos de investigação sobre mais de 13 mil declarações de bens de políticos eleitos em 2008 e 2010. Possuidores de um enorme patrimônio fundiário, muitos deles legislam em favor dos próprios interesses.
Em movimento A luta pela terra já atingiu resultados importantes. De acordo com o Dataluta, de 1988 a 2014, para as mais de 9 mil ocupações realizadas por 1,2 milhão de famílias sem-terra, um total de 1,1 milhão de famílias foram atendidas com 9 mil assentamentos. De acordo com o Incra, 120 mil pessoas seguem na fila por um pedaço de terra hoje, número que não chega a 15% da quantidade de
assentados. “Há ainda demanda por terra, mas hoje temos demanda maior pela própria consolidação dos assentamentos e das políticas agrárias”, afirma Correia. “Temos o Plano Safra com R$ 30 bilhões para 2017, o que permite avançar na questão das políticas públicas.”
Ocupações Os movimentos campesinos são alvo de uma série de controvérsias. Um dos pontos mais polêmicos são as próprias ocupações, que são vistas pelos militantes como um instrumento essencial e legítimo para a obtenção de terras. No entanto, elas são ilegais e contam com a antipatia do governo, da oposição e de parte da sociedade brasileira. Muitas vezes elas ocorrem de forma violenta e causam grandes prejuízos econômicos. Em março deste ano, cerca de 5 mil integrantes do MST invadiram uma área de reflorestamento da Araupel e incendiaram os viveiros da propriedade, destruindo cerca de 1,2 milhão de mudas de pinus que estavam sendo preparadas para plantio em área de reflorestamento, causando prejuízo de R$ 5 milhões. Atos assim se repetem todos os anos e preocupam os proprietários, que cobram respostas das autoridades. “Além de colocar em risco a integridade física das pessoas e causar danos à propriedade privada, fatos como esse afetam duramente a atividade econômica”, criticou a Confederação Nacional de Agricultura (CNA) em nota oficial. “É mais um atentado insensato ao segmento produtivo que ainda apresenta resultados positivos, gera emprego, renda e mantém o equilíbrio das nossas contas externas.” O agronegócio é o maior setor econômico do Brasil, sendo responsável por mais de 20% do Produto Interno Bruto (PIB). O país é um dos Cidade Nova • Outubro 2016 • nº 10
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cn em série Conflito no campo maiores exportadores de itens como açúcar, soja, milho e suco de laranja. “Num cenário econômico já carregado de dificuldades e incertezas, a última coisa de que o nosso país precisa é de uma escalada da violência e da ilegalidade que destrua de vez a segurança de quem trabalha e produz”, declarou a CNA. Segundo Correia, do Incra, além de causar prejuízo às empresas, as ocupações podem atrasar em até dois anos o processo de desapropriação, prejudicando os próprios assentados. “As ocupações, geralmente, têm impacto negativo quando se dão sobre imóveis para os quais a gente tem processo administrativo que visa a obtenção dessas terras através da desapropriação para fins de assen tamentos de reforma agrária”, diz. Correia pondera que ambas agriculturas – a de grande porte e a familiar – são importantes para a evolução do país. A primeira, do ponto de vista da balança comercial e a segunda para a produção de alimentos. “O valor de produção da agricultura familiar cresceu para 40% do valor bruto para a agropecuária e é um setor que emprega mais 12 milhões de pessoas”, calcula. “A familiar tem um papel relevante e não entra em choque com a grande agricultura nesse aspecto.”
Assassinato e impunidade A maior tristeza de Nise em sua história de luta pela terra foi o assassinato de Leonardo Leite, em 6 de setembro de 2011. Morto na frente de sua esposa, ele deixou órfãos seus filhos gêmeos de 7 anos. “Este, como tantos outros casos, continua impune enquanto o Judiciário e toda a comunidade tem certeza de quem são os assassinos”, protesta. Desde 2011, o país é campeão de homicídios em casos de disputa por terra no mundo, de acordo com 20
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Saída ecológica A atenção pela ecologia promete abrandar os conflitos na terra. Cresce cada vez mais o interesse dos movimentos campesinos pela produção agroecológica, que usa métodos naturais para combater pragas e cultiva diversas espécies em um só terreno. A postura atende a uma demanda crescente da sociedade por produtos orgânicos e saudáveis, o que pode voltar a fomentar a reforma agrária, segundo especialistas. “A tendência mundial é aumentar a produção agroecológica e diminuir a agrotóxica”, sustenta Bernardo Fernandes, professor de Geografia da Unesp e um dos criadores do Dataluta. Para ele, falta que os movimentos proponham um projeto de agricultura no Brasil para priorizar a produção de alimentos ecologicamente corretos para consumo interno. “Nos lugares onde as famílias se animaram com combinação de agrofloresta e agroecologia, se interessaram em um nicho de mercado e em uma organização social necessária para alcançar aquilo, houve uma grande diferença”, diz Bellini. “É o encontro entre o que o poder público oferece, a criatividade e a organização dos próprios camponeses que leva ao êxito.” A policultura presente na agroecologia ajuda também no autossustento das comunidades rurais. “Antigamente, os camponeses plantavam grande variedade de produtos para o próprio sustento. Depois, só fizeram plantar o que valia vender. A agroecologia retoma o modo de vida que sustenta a família toda”, diz Bellini. Segundo ela, apenas o interesse econômico é insuficiente para manter o camponês no assentamento. Diante de dificuldades financeiras, o amor pela terra incentivado pela agroecologia pode falar mais alto antes que eles optem por deixar o terreno. “O capricho e o cuidado com a terra traz satisfação, o que sustenta a família quando as coisas vão mal.”
a ONG Global Witness. Segundo levantamento da CPT, 49 pessoas foram assassinadas em 2015 no Brasil em decorrência de conflitos no campo. O número é o maior dos últimos 12 anos e supera em 39% os registros de 2014. Em 2016, essas mortes poderão ainda aumentar, já que os cálculos indicam 43 homicídios até o mês de agosto. “O grau de brutalidade é impactante. Parece execução: dos 43 mortos este ano, 12 são lideranças”, diz Bellini. Com 20 assassinatos, Rondônia é o estado com o maior número de mortes no campo em 2015, seguido do Pará, com 19 ocorrências. “De um lado, há o Brasil moderno, que exporta. Do outro, práticas seculares de violência impressionantes. Só se prende quem executou o crime, não o mandante. Isso é um estímu-
lo para que os assassinatos continuem”, observa Medeiros. De 1985 a 2015, a CPT calcula 1.280 assassinatos no campo, dos quais apenas 121 foram levados a julgamento. Enquanto dos 96 autores julgados, 58 foram condenados, somente 14 mandantes foram levados à Corte e metade sofreu condenação. Em nota à reportagem, a Secretaria Especial de Agricultura Familiar e Desenvolvimento Agrário informa que, através da Ouvidoria Agrária Nacional, desenvolve atividades com finalidade de mediação de conflitos agrários. “Essas ações resultaram, por exemplo, em mais de 110 operações policiais no exercício de 2015 realizadas especificamente para combater a violência no campo, sendo a maioria delas nos Estados de Rondônia, Pará, Tocantins e Maranhão.”