Desperdício Olímpico

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Renato Sette Câmara | Prefeitura do Rio

Brasil

Desperdício olímpico OLIMPÍADAS Com custo superior a R$ 40 bilhões, a Rio-2016 desperdiça um possível legado de melhorias sociais e deixa lições para a realização de futuros megaeventos mais sustentáveis e democráticos

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odeado por crises, o Rio receberá as primeiras Olimpíadas da América do Sul, entre 5 e 21 deste mês. Para garantir o sucesso do espetáculo, foram investidos aproximadamente R$ 38 bilhões no megaevento, socorrido de última hora pelo governo federal com o aporte de mais R$ 2,9 bilhões após o Estado carioca declarar calamidade pública a 49 dias dos Jogos. Com a queda do preço internacional do petróleo, a perda na arrecadação do ICMS e a recessão econômica, as contas do estado do Rio de Janeiro apresentaram déficit de R$ 19 bilhões. Para reduzir os gastos, o governo atrasou o pagamento de servidores públicos e terceirizados, provocando caos em áreas essenciais, como saúde, segurança e educação. A despeito do estado crítico da prestação de serviços públicos e

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do corte de salários, o aporte federal será destinado às despesas com segurança pública decorrentes da realização dos Jogos. O objetivo é promover a boa imagem do país no exterior custe o que custar. A Rio2016 espera receber 10 mil atletas, 30 mil jornalistas, centenas de líderes políticos e ter bilhões de espectadores em todo o mundo. O orçamento dos Jogos do Rio supera em mais de 40% o que foi gasto para organizar a Copa do Mundo em 12 cidades. O governo justifica a alta pelo fato de a maior parte desse dinheiro (63%) estar destinada a melhorar a infraestrutura da cidade. Porém, mesmo esses investimentos se concentram nas regiões mais ricas, criticam especialistas. Segundo eles, a desigualdade também deu as caras nas remoções forçadas da população mais carente para a cons-

trução de estruturas esportivas, favorecendo a especulação imobiliária e a exclusão. Após os Jogos Pan-Americanos de 2007 e a Copa do Mundo de 2014, mais uma vez perdeu-se a oportunidade de avançar nos aspectos esportivo e social com a realização de um grande evento esportivo, avaliam especialistas ouvidos por Cidade Nova. O que nos resta é aprender com os erros e fortalecer a torcida para não repeti-los.

Caos carioca Sem dinheiro em caixa para pagar os vencimentos de maio, o estado do Rio quitou apenas 70% da folha de pagamento de seus aposentados e funcionários. O atraso de salários atingiu quase 400 mil servidores. A crise financeira já resultou no fechamento de algumas Unidades


de Pronto Atendimento (UPAs), na suspensão da coleta de sangue no Hemorio (banco de sangue esta­ dual) em abril e na paralisação das atividades do Instituto Médico Legal (IML) em 7 de junho por falta de condições de trabalho. Já as escolas estaduais estão em greve desde 2 de março. A Polícia Civil foi atingida com corte diário de abastecimento de um terço das viaturas e também cruzou os braços em protesto. Os agentes ameaçam entrar em greve durante os Jogos, o que seria um desastre para a segurança durante o evento. Apesar de criado justamente para ajudar, o decreto de estado de calamidade pública pode agravar a crise e suas consequências para os cidadãos ao priorizar investimentos nas Olimpíadas. “Ficam as autoridades competentes autorizadas a adotar medidas excepcionais necessárias à racionalização de todos os serviços públicos essenciais, com vistas à realização dos Jogos Olím­

Fernando Frazão |Agencia Brasil

Antiga Vila Autódromo é o símbolo do lado perverso das Olimpíadas do Rio, após a remoção de 400 famílias

picos e Paralímpicos Rio-2016”, diz o texto do decreto. Para Alberto de Oliveira, professor de planejamento urbano na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisador do impacto dos megaeventos esportivos, essas cerimônias não podem ser consideradas oportunidades econômicas ou sociais para países de médio desenvolvimento como o Brasil. “Europa e Estados Unidos já têm estrutura pronta, então não precisam construir quase nada. Já países como o Brasil gastam volume muito grande de recursos que acabam desviados de áreas essenciais, como saúde e educação, para construir estádios e demais estruturas que são subaproveitadas quando o evento termina”, diz. Pedro Fernando Avalone, professor da Faculdade de Educação Física da Universidade de Brasília (UnB) e doutor em Política Social, lembra que também houve aporte emergencial durante o Pan, em 2007. Segundo ele, o decreto e outros instrumentos acabam concedendo justificativa legal e jurídica para a superinflação das obras, além de deixar impunes os responsáveis pela falta de planejamento.

Mobilidade para quem pode Indiretamente, o repasse federal pode garantir a conclusão das obras de ligação da linha 4 do metrô entre as estações de Ipanema e Barra da Tijuca, onde se concentra a maior parte das instalações esportivas. Inicialmente o metrô olímpico funcionará apenas de forma limitada, já que somente atletas, delegações e torcedores com ingressos poderão usá-lo. Além disso, será necessário concluir o trajeto ao Parque Olímpico, localizado a 15 km da estação de metrô, por meio do corredor de ônibus conhecido como BRT (Bus Rapid Transit, em inglês). “Os investimentos maciços que estão sendo feitos em mobilidade vão deixar um legado na área de transportes esperado há décadas, conectando todas as regiões com sistemas de alta capacidade, acessíveis e que permitem a integração de modais, a fim de oferecer melhores condições de transportes no dia a dia de milhões de pessoas”, declarou à reportagem o governo carioca através de sua Assessoria de Comunicação. Avalone discorda: “O serviço é de alto custo e não vai chegar à maior parte da população”. O chamado Riocard olímpico, que será a única forma de pagamento para o metrô e o BRT olímpicos, custará R$ 25 para uso ilimitado por 24 horas, ainda que o usuário faça apenas duas viagens. Para comparar, uma passagem comum de metrô é R$ 4,10, enquanto o ônibus custa R$ 3,80. “É possível ter legado social, como aconteceu nas Olimpíadas de 1992, em Barcelona (Espanha), com a melhoria no transporte público. Mas esse não é o norte da reforma urbana no Rio”, critica o especialista. Para Oliveira, os lugares onde foram feitos os maiores investimentos em transporte ficam na área nobre Cidade Nova • Agosto 2016 • nº 8

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da cidade, limitando o acesso da população em geral. “Os gastos se concentram justamente nas áreas onde há gente mais rica, enquanto a parte mais pobre continua desassistida”, afirma.

Remoções e desigualdade O BRT Transcarioca atravessa 37 bairros ao fazer a ligação entre a Barra da Tijuca e o Aeroporto Internacional Tom Jobim. Para implementar o serviço, quatro comunidades foram demolidas, segundo dados do Comitê Popular Rio Copa e Olimpía­ das. No contexto de preparação da cidade para os Jogos, um total de 22 mil famílias sofreram remoções, de acordo com a instituição. Além de desfazer comunidades, as Olimpíadas não incentivarão a construção de moradias populares, em um antiexemplo do que aconteceu durante os Jogos em Londres, em 2012. Por ser construída inteiramente pela iniciativa privada, em terrenos particulares, a Vila dos Atletas será convertida em empreendimento residencial de alto padrão, assim como 75% da área do Parque Olímpico, de onde foram removidas 400 famílias da Vila Autódromo. Para Oliveira, da UFRJ, as remoções são um processo indireto de transferência de renda das famílias pobres para as ricas, contribuindo para aumentar a já grande desigualdade social existente no país. “Os grandes eventos são usados como justificativa para remoção de pessoas de baixa renda de áreas nobres, o que contribui para a elevação dos preços de terrenos dessas áreas e aumenta o patrimônio das pessoas de renda mais alta que aí moram”, explica Oliveira. “Ao mesmo tempo, afastam pessoas mais pobres das áreas de onde trabalham, fazendo com que gastem mais dinheiro com transporte, diminuindo sua renda.” 14

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Sobrevivência sustentável Depois dos Jogos do Rio, as Olimpíadas sofrerão uma grande mudança – para melhor. A partir de 2020, as competições devem ser sediadas por várias cidades e até países, além de primar pela sustentabilidade, evitando a construção de novas instalações. As propostas de inovação surgiram após os Jogos de Inverno de Sochi, na Rússia, em 2014, os mais caros da história (US$ 51 bilhões), e da desistência de oito cidades à candidatura dos Jogos de Inverno de 2022. A novidade pretende tornar o evento menos caro e mais atraente, na tentativa de manter viva a maior competição esportiva do planeta.

Ganhos temporários Quando o Rio de Janeiro competia com Madri, Tóquio e Chicago para sediar os Jogos, um estudo feito pela Fundação Instituto de Administração, sob encomenda do Ministério do Esporte, estimava a movimentação de US$ 51 bilhões em recursos e a geração de 120 mil empregos com a competição. Só depois da conclusão do evento haverá dados sobre os ganhos, mas os especialistas acreditam que os números foram superestimados à época da disputa. “A realização de grandes eventos foi anunciada como estratégia de desenvolvimento econômico e social, mas nunca foi uma boa estratégia em nenhum lugar do mundo”, lamenta Oliveira. “De fato, há aumento de empregos, mas é temporário, porque estão ligados a obras do evento. Há aquecimento do consumo, mas restrito ao período dos Jogos”, observa Avalone. “As grandes construtoras são as que mais se beneficiam, não a economia como um todo.”

Voz e voto Diante do cenário crítico, será difícil promover um “clima de festa” ou o “espírito olímpico” entre os brasileiros. A euforia de 2009,

quando o Rio foi escolhido como sede dos Jogos e o Brasil registrava crescimento de 5% do PIB contrasta com uma das mais graves recessões da história do país. Estão encalhados mais de 1,5 milhão de ingressos para os Jogos. Para as Paralimpíadas a situação é ainda mais dramática: menos de 30% da carga total foi vendida. A situação é bem diferente da Copa do Mundo de 2014, quando as entradas esgotaram meses antes. Diante de tanto desânimo, será que, se fosse questionada, a popu­ lação brasileira aceitaria sediar as Olimpíadas? A pesquisa “Jogos Olím­picos – percepção e engajamento”, da Hello Research, conclui que 82% dos brasileiros preferiria que os recursos fossem investidos de outra forma. Segundo Avalone, o clima de festa vai surgir durante os Jogos, mas a questão é: “o que será depois que a festa passar?”. O aprendizado de não se deixar seduzir por promessas é um dos legados que o especialista espera ver. O outro seria a aplicação de um plebiscito. “Se essa consulta popular fosse realizada, seria bem possível que a decisão fosse por não repetir os erros do passado, o que significaria não haver uma próxima vez, ou seja, um novo Megaevento”, afirma.


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