A nova cara do Reino Unido

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Tom Evans/Crown Copyright

internacional

Theresa May, eleita primeira-ministra do Reino Unido, sucedendo David Cameron

A nova cara do Reino Unido BREXIT Em resultado apertado o Reino Unido optou por sair da União Europeia, revelando uma divisão interna generacional, econômica e social

O

Reino Unido votou pela saída da União Europeia (UE) em uma decisão histórica e inédita, que deve mudar a relação do país com seus vizinhos e com o mundo de uma maneira ainda incerta. A votação por plebiscito deu vitória ao Brexit (saída britânica) por uma margem apertada (51,9% a

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48,1%), o que revelou uma nação dividida justamente no momento em que a união seria importante para construir um novo futuro. A decisão levou à renúncia do primeiro-ministro, David Cameron­. Partidário da permanência do Reino Unido, ele argumentou ser incapaz de conduzir o país “ao novo desti-

no”. Foi substituído pela deputada do Partido Conservador, Theresa May, defensora da saída britânica. O processo deve levar mais de dois anos para se concretizar, dando margem a muitas surpresas. O Reino Unido pertenceu ao bloco desde 1973, alguns anos após a fundação da Comunidade Econô-


mica Europeia, em 1957. Idealizada após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945) como forma de pacificar a Europa, a legislação da UE não previa a saída de nenhum país. A flexibilidade veio em 2007, com o artigo 50 do Tratado de Lisboa. Mas até hoje nenhuma nação havia ­deixado o bloco. Devido ao seu ineditismo, as consequências da decisão britânica ainda são imensuráveis e a incerteza ronda o horizonte cinzento da nação. Cidade Nova conversou com especialistas de Relações Internacionais para entender as razões da saída e o que esperar de possíveis cenários futuros.

Não é de hoje Apesar de surpreender pela radicalidade, a saída britânica já poderia ser prevista pelas atitudes do país diante do bloco. Ao longo de quatro décadas o Reino Unido demonstrou oposição a uma integração mais intensa da UE, em luta entre união e autonomia. Para ter ideia, dois anos após aderir à Comunidade Econômica Europeia, o país realizou um referendo sobre a sua permanência. A integração foi aprovada por 67% dos eleitores, convencidos de que o projeto europeu seria benéfico para a economia do país que, à época, enfrentava forte inflação e declínio industrial. Mesmo integrando o mercado único e a livre circulação de bens e pessoas o Reino Unido optou por não adotar o euro, mantendo sua própria moeda, a libra esterlina. “A posição contrária a uma integração mais profunda foi mantida desde a entrada do país na UE. É uma questão que sempre esteve na agenda”, explica Carolina Pavese, coordenadora do curso de Relações Internacionais da PUC-Minas. “As crises do euro e migratória abala-

ram o processo de integração. Isso gerou argumentos para uma visão mais nacionalista no Reino Unido e para sustentar sua saída da UE.”

Imigração e identidade A campanha a favor do Brexit focou a questão de identidade e imigração. O argumento central era de que o Reino Unido não poderia controlar o número de pessoas entrando no país enquanto seguisse no bloco. Seria necessário sair para retomar o controle das fronteiras e garantir a soberania nacional. A justificativa convenceu o eleitorado, majoritariamente formado por pessoas mais velhas, com menos anos de educação formal, de menor poder aquisitivo, do sexo masculino e moradores de pequenas e médias cidades, onde prevalecem trabalhos menos sofisticados. “Essas pessoas sofrem maior concorrência de estrangeiros por empregos de baixa remuneração e têm menor capacidade para entender que simplesmente impedir a imigração de europeus não vai promover prosperidade do Reino Unido”, esclarece Carlos Pio, professor no curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). Kai Enno Lehman, especialista em União Europeia e professor de Relações Internacionais na Universidade de São Paulo (USP), complementa dizendo que a única cidade inglesa na qual a globalização parece ser positiva para seus moradores é Londres. “Em grande parte do país, onde estão antigas áreas industriais, há forte resistência à UE e o que ela representa em relação à interdependência, mercado aberto e livre circulação de pessoas”, diz. Já a geração mais jovem é vista como a mais favorável ao bloco pelos especialistas. “Os jovens se sentem muito mais europeus. Eles são

mais globalizados, viajam por toda Europa”, explica Pavese. “Eles são os mais prejudicados porque a vida deles vai ser fora desse projeto.” Como resultado, espera-se um governo mais conservador e nacionalista, tendência que cresce em toda Europa.

Economia As previsões catastróficas sobre a situação econômica britânica no caso da saída da UE não foram suficientes para convencer a maior parte do eleitorado pela permanência. Instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) afirmaram que a decisão prejudicaria o crescimento econômico, aumentaria o desemprego, desvalorizaria a libra esterlina e forçaria uma debandada de empresas do país. Parte da previsão se confirmou, ao menos a curto prazo, já que o resultado do plebiscito foi o suficiente para derrubar a cotação da libra a seu menor valor em relação ao dólar desde 1985. Outros prognósticos estão acontecendo, como empresas que decidiram mudar sua sede para outros países, entre elas instituições bancárias. “Setores importantes como o au­ tomobilístico devem ser abalados porque vão perder isenção de impostos para comercializar com o bloco e serão substituídos por outros países que produzem o bem, como Alemanha”, alerta Pavese. A especialista lembra que 45% do comércio da Grã-Bretanha destina-se à União Europeia e, com a saída, o país deve perder mais da metade desse mercado, enquanto a UE fica sem uma fatia de 25%. “Até que se estabeleça um novo padrão de relação entre UE e Reino Unido, o país deixa de representar 28 ­estados Cidade Nova • Agosto 2016 • nº 8

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internacional e passa a representar só o seu mercado”, declara. “Pode-se esperar uma mudança nas relações econômicas da Grã-Bretanha com o mundo, com os países da Europa e uma mudança no perfil econômico da Grã-Bretanha em si. O país deve ficar economicamente mais liberal, o que dinamiza a economia, mas coloca em risco os direitos trabalhistas”, avalia a professora. Além disso, o Reino Unido possui baixa produção industrial e é dependente de serviços financeiros. “Uma das coisas que deixava a economia britânica mais atraente aos investidores era fazer parte de um mercado gigante como o da UE. Agora, o país fica menos atraente e dificulta a possibilidade da economia se diversificar”, ressalta Lehman.

Independência e separatismo Outra preocupação é que a decisão britânica estimule a independência da Escócia e da Irlanda do Norte, onde 66% e 56% dos eleitores, respectivamente, votaram pela permanência na UE. Em 2014, a Escócia realizou um plebiscito de independência em que 55% da população defendeu a manutenção da união estabelecida em 1707. “A Escócia votou há menos de dois anos pela permanência no Reino Unido e durante os debates que precederam aquele plebiscito os que argumentavam pela permanência argumentavam que sair do Reino Unido implicaria sair da UE”, lembra Pio. “Agora o problema se inverteu radicalmente. Permanecer no Reino Unido significará sair da UE. Não parece haver outra saída para a primeira-ministra escocesa se não convocar novo plebiscito para definir o que a população deseja em relação à escolha entre ser parte do Reino Unido ou da UE.” 30

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Já Pavese acredita que é especulativo falar em uma saída da Escócia por conta da dificuldade de negociar um novo referendo em um momento de instabilidade política. “Há resistência de líderes ­europeus à independência desses paí­ ses, já que apoiar esse movimento na Grã-Bretanha é incentivar que isso aconteça também na casa deles, como no caso da Catalunha, na Espanha”, analisa. Outra questão é que a saída da UE possa estimular deserções de outros países do bloco. “O que vai determinar como a decisão vai repercutir na integração é o sucesso ou não da Grã-Bretanha na saída”, afirma Pavese. “Se conseguir ter economia e política fortes e criar boas integrações exteriores, o Reino Unido vai criar precedente para outros países da UE. Caso contrário, vai reforçar integração do bloco e a tentativa de sair de outros países vai ser menor.”

Incertezas A ausência de um projeto claro de saída é a maior preocupação entre os especialistas. “Ninguém disse como a Grã-Bretanha estabeleceria uma nova identidade. Não tinha um plano B claro e agora precisam definir isso”, sugere Pavese. Segundo Lehman, vários debates dentro do país mostram uma divisão profunda sobre o seu futuro. “O que eu quero fazer uma vez fora? Essa questão não foi respondida e para respondê-la teria que tentar criar alguma sensação de união entre os vários grupos: idosos e jovens, classe de trabalhadores e média-alta”, diz o especialista. “Esse processo de reconciliação está em curso há muito tempo, mas nenhum partido ou governo tem se mostrado capaz de enfrentar. O futuro próximo é mais marcado por incerteza do que certeza.”

Além do Reino Unido, a União Europeia também está perdida sobre o que acontecerá depois do Brexit, de acordo com o professor. “A instituição não tem a menor ideia do que quer daqui para frente”, reforça Lehman. “As consequências desta saída vão se mostrar em duas ou três gerações, não nos próximos dois anos.”

Futuro Para alguns especialistas, o Reino Unido pode aderir aos acordos de livre comércio, como acontece atualmente com a Noruega e a Suí­ ça, que não fazem parte da União Europeia. “Não parece ser uma opção palatável para o eleitorado que votou pela saída, uma vez que a Noruega paga custos de funcionamento da UE e aceita imigrantes europeus – pontos que esse eleitorado rejeita. Pior, mesmo pagando e recebendo imigrantes, a Noruega não participa das decisões da UE. Parece ser um mundo pior do que o Reino Unido tem hoje”, diz Pio. Ainda assim, um novo e forte contato com a União Europeia parece ser inevitável, acredita o acadêmico: “Mesmo os parlamentares conservadores mais favoráveis à saída da UE não têm interesse em eliminar todos os vínculos do Reino Unido com a Europa”. Para Pavese, “o país sempre se destacou dos outros membros, mas ficava preso ao bloco e era puxado um pouco para baixo. Agora poderá estabelecer relações com outros países como quiser.” Já para a União Europeia a vantagem pode ser o aumento de integração entre os países que permanecem no bloco. “A saída do Reino Unido tira uma pedra do sapato da UE”, destaca Pavese. “É possível que tenha aprofundamento da integração com outra cara. A economia pode se tornar menos liberal e a agenda social pode voltar com mais força.”


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