Você é o que você planta

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Exemplar 598 Ano LVIII Nยบ 2 Fevereiro de 2016 www.cidadenova.org.br

f r at e r n i d a d e e m r e v i s ta


FRATERNIDADE EM AÇÃO: atitude que transforma é uma campanha promovida pelo Movimento dos Focolares no Brasil com o propósito de contribuir para a transformação social do país por meio da educação integral de crianças, adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade social, no contexto familiar e comunitário, ampliando suas oportunidades de vida digna e trabalho decente.

Apostar nas novas gerações é construir uma sociedade mais justa e fraterna. Junte-se a nós!


fraternidade em revista

Edição 598 • Ano LVIII • nº 2 • Fevereiro de 2016

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brasil Com taxas de homicídios de países em guerra, o Brasil vê uma geração ser dizimada diante de um silêncio cúmplice. Eles são jovens e, sobretudo, negros

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entrevista – Romano Prodi O ex-presidente da comissão europeia e ex-premiê da Itália fala sobre a conjuntura internacional, seus impasses e desafios

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internacional Na Venezuela, Maduro e seus aliados agem para impugnar candidaturas opositoras após governo ser massacrado nas eleições

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família em foco Com a chegada à puberdade, os jovens se abrem à sexualidade. A orientação dos pais é tão necessária como difícil de ser transmitida

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chave de leitura A guerra no Iraque e na Síria provocou uma situação caótica na região. Em meio ao conflito o povo curdo ainda sonha com um Curdistão independente

Arquivo PNUD

Tomaz Silva | Agência Brasil

Sossô Parma | CCSP

Coletivas e públicas, as hortas se espalham pelas cidade estimulando uma alimentação saudável e consciente, além de fortalecer a economia local

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cn em série – Desafios do milênio Na segunda reportagem da série, o desafio da transição dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável seções 4 5 10 11 15 16 21 27 31 32 36

Cartas Ponto de vista Economia de Comunhão Sustentabilidade Periferias existenciais Outro olhar Tecnologia Radar América Latina Bem-estar Imagem Palavra de vida

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Espiritualidade em ato Abre aspas Esporte Psicologia Na ponta do lápis Crônica Artefatos Teen Na estante Som na caixa Claquete Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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cartas

cartas@cidadenova.org.br

Centelha de luz

editora-chefe Fernanda Pompermayer Conselho editorial Adriana Rocha, Darlene P. Bomfim, Emanuel Bomfim, Gilvan David de Sousa, Mariele Prévidi, Munir Cury, Sérgio Prévidi repórteres Ana Carolina Wolfe, Daniel Fassa, Thiago Borges Diagramação Giceli Valadares da Silva revisão Rafael Varela capa Giceli Valadares da Silva foto da capa Matheus Cavaliere | Cidades Sem Fome Impressão Divisão Gráfica da Editora Abril S.A. Este número foi impresso em 23/01/2016 Número avulso: R$ 12,50 Revista mensal • Ano LVIII • Tiragem: 16.000 ISSN 0103-2518 • São Paulo • Brasil

fale com cidade nova Assinaturas assinaturas@cidadenova.org.br 0800.724.2252 (horário comercial) Fax: (11) 4158.8890 r 242 Licenciamento de conteúdo Os artigos desta revista podem ser reproduzidos parcial ou totalmente desde que sejam citados a fonte e o autor. Fotos e ilustrações: só com autorização escrita da Editora Cidade Nova. anúncios publicidade@cidadenova.org.br Editora cidade nova Rua José Ernesto Tozzi, 198 • Mariápolis Ginetta 06730-000 • Vargem Grande Paulista • SP • Brasil Tel: (11) 4158.8890 • www.cidadenova.org.br CNPJ 05059650/0001-26 • Publicação registrada no 4º Re­gistro de Títulos e Documentos de São Paulo sob o nº 5.334/76 A revista Cidade Nova pertence a uma rede mundial de 36 edições publicadas em 22 idiomas vendas Brasília: (61) 9982.2253; (61) 8231.1589 São Paulo: (11) 97589.8550; (11) 4158.8898 (11) 99822.1930; (11) 98342.8299 (11) 99875.2267

Sem desmerecer os outros temas importantes abordados por Cidade Nova na edição de dezembro de 2015, o que mais despertou a minha atenção foi o depoimento de dom Fernando Saburido, arcebispo de Olinda e Recife. Tocou-me de modo especial a sua bênção de pastor sobre os responsáveis e colaboradores de Cidade Nova, entre os quais eu humildemente me incluo. A mensagem de dom Fernando me estimula a perseverar em meu apostolado de divulgador da revista. Quanto tempo diário eu investi nos meses de novembro e dezembro para contatar – através de visitas, telefonemas e e-mails – e renovar as quase três dezenas de assinaturas pelas quais sou responsável? Recebo a bênção do metropolita como uma injeção de graça que sublima todas as dificuldades que permearam a Ação Cidade Nova deste ano. Entristeço-me quando a revista perde um assinante, pois é uma pessoa e, muitas vezes, uma família que deixa de ser iluminada pela “centelha de luz” a que se refere o arcebispo. A alegação de que é por motivo econômico é mais fácil de acatar do que aquela de que a leitura é difícil. “É verdade”, explico eu para o assinante. “Cidade Nova exige de nós um crescimento como leitor, para entender a chave de leitura que ela faz dos acontecimentos. Ela questiona, deixa lacunas para o leitor pensar e elaborar o seu senso crítico. Não entrega tudo prontinho, como fazem muitas publicações que tratam o leitor como simples “depositário” do conhecimento, a que alude a pedagogia paulofreiriana.” O fato de dom Fernando afirmar que a revista o “enriquece espiritualmente” é a confirmação de que Cidade Nova está no caminho certo. Essa afirmação, por ser de autoria de um representante da Igreja,

de um lado nos deixa alegres, mas de outro aumenta a responsabilidade de todos os envolvidos na produção e divulgação desse veículo de comunicação: dos redatores aos funcionários, passando também pelos inúmeros divulgadores. Porém, o mais beneficiado é o leitor, que a cada mês se enriquece com os diversos assuntos tratados por uma revista confiável, atual, imparcial e sintonizada com a caminhada da Igreja. José Lucas da Silva | por e-mail

Novidades Fui surpreendida pela edição de janeiro de Cidade Nova. Gostei muito da ideia de usar os quadros em vermelho para iniciativas e testemunhos positivos. E principalmente da página “Abre aspas”, com reflexões de Chiara Lubich. Estou ainda mais unida e comprometida na difusão da revista. Maria Elizabeth Maluf | por e-mail

ERRAMOS

Na edição de janeiro o título da seção “Crônica” (p. 44) deveria ter sido “Feliz 2015!” – e não “Feliz 2016!”.

Fale conosco cnonline cidadenova.org.br e-mail cartas@cidadenova.org.br twitter (@edcidadenova) facebook (edcidadenova)


Ponto de vista

fernanda pompermayer fernanda@cidadenova.org.br

Boas notícias

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m tempos de recessão econômica, desemprego e inflação alta, muitos brasileiros têm empenhado toda a sua capacidade criativa para fazer frente aos problemas financeiros. Está valendo tudo: economizar no consumo de energia elétrica, no uso do carro, na rotina doméstica e até no caixa do supermercado. É nessas horas que muitas inovações surgem e o que era motivo de preocupação pode virar um grande passo à frente. Com crise ou sem ela, a qualidade da alimentação continua sendo essencial. Na matéria de capa desta edição (Você é o que você planta, pp. 22-26), Cidade Nova ouviu especialistas em meio ambiente, nutrição, ONGs e associações de bairro e descobriu um universo desconhecido no coração de grandes metrópoles brasileiras: o das hortas comunitárias. Essas hortas urbanas, que cultivam plantas não convencionais, são algumas das ações desenvolvidas por coletivos interessados em mudar nossa relação com o espaço público, a economia e a alimentação. Além do alto valor nutritivo de hortaliças pouco conhecidas e, portanto, descartadas, seu cultivo contribui para o enriquecimento do solo e a manutenção da biodiversidade. Apesar de já existirem políticas públicas de agricultura urbana, falta pressão da população para que sejam tratadas como prioridade, a exemplo de outros países. É aí que os cidadãos conscientes podem entrar em cena para pleitear incentivo. Outra boa notícia, desta vez em nível internacional, foi anunciada quando fechávamos esta edição: a revogação do embargo econômico dos Estados Unidos e da União Europeia ao Irã. Desde 1979, quando os aiatolás (líderes religiosos) tomaram o poder e transformaram o Irã numa República Islâmica, os países ocidentais decretaram o embargo ao país ­persa. A Revolução Iraniana liderada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini foi acompanhada de atos que atentavam contra os direitos humanos e violavam os direitos democráticos. As sanções envolveram principalmente o setor petrolífero e o mercado financeiro. A decisão de levantar o embargo que durou quase quatro décadas foi consequência do histórico tratado nuclear firmado em novembro passado após anos de esforços diplomáticos. O Irã se comprometeu a não desenvolver pesquisas nucleares com fins bélicos, sob monitoramento da Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) das Nações Unidas, em troca de uma nova fase de relações comerciais com o Ocidente. O presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, comemorou o acordo como um dos legados da sua administração. O que é verdade. Mas os motivos para comemorar são muito mais profundos, pois envolvem literalmente “meio mundo”. É um passo à frente nas relações internacionais, prova de que o diálogo continua sendo o caminho por excelência para superar divergências e diferenças, aproximando povos e culturas. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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entrevista

michele zanzucchi e fernanda pompermayer revista@cidadenova.org.br

“Uma nova relação entre Europa, EUA e Rússia é indispensável para a paz mundial” VISÃO GLOBAL Em conversa com Cidade Nova, o ex-presidente da Comissão Europeia, Romano Prodi, fala sobre a conjuntura internacional, seus impasses e desafios

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oucos estadistas da história recente se comparam ao italiano Romano Prodi. Advogado e economista, teve brilhante carreira acadêmica e escreveu vários livros. No final dos anos 1970 entrou na vida pública como ministro da Indústria e presidente do Istituto per la Ricostruzione Industriale. Foi primeiro-ministro da Itália por dois mandatos (1996-1998 e 2006-2008) pela coalizão de centro-esquerda L’Ulivo. Durante seu governo priorizou o saneamento da economia italiana, dada a necessidade de ajuste orçamentário do país para ingressar na União Europeia.

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Em 1999 assumiu a presidência da Comissão Europeia. Durante ­o seu mandato o euro tornou-se moeda única do bloco e se ampliou com a participação de 25 paí-­ ses-membros. Desde 2008 Romano Prodi preside o Grupo de Trabalho da ONU-União Africana sobre as missões de pacificação na África. Em 2009 voltou ao mundo acadêmico, como professor na Brown University (EUA). Em 2010 foi nomeado professor da China Europe International Business School (CEIBS) de Xangai.

Cidade Nova – Em 1989 passamos de um mundo bipolar a

um mundo com uma única referência, os Estados Unidos. E agora? Romano Prodi – As mudanças são profundas e muito rápidas. Não creio que se trate de um mundo novo e de um mundo velho. Estamos sofrendo uma constante fibrilação. O papa Francisco fala de um Terceira Guerra Mundial em fragmentos: é uma análise correta. Não há um único e grande conflito, mas muitas guerras em lugares diferentes, como na Líbia, na Síria e na Ucrânia. São causadas só aparentemente por problemas locais. Na verdade estão ligadas ao novo equilíbrio mundial. E nenhuma grande


Arquivo pessoal

potência terá condições de enfrentar a complexidade dos problemas planetários sozinha. A crise é, efetivamente, uma grande transmissão de poder: 20 anos atrás [Francis] Fukuyama teorizava o “fim da história” e via o século XXI como um período de paz dominado pelos Estados Unidos. No entanto constatamos que, mesmo sendo os Estados Unidos a maior potência mundial, detentora de 50% do orçamento militar e de uma evidente supremacia tecnológica, não podem mais exercer seu poder sozinhos, pois ao longo dos últimos anos outros países entraram em cena.

Pensemos na situação da Síria: não dá mais para imaginar uma intervenção militar dos Estados Unidos da forma como aconteceu no passado. As várias guerras travadas no exterior, como no Afeganistão e no Iraque, provaram duramente a sociedade estadunidense, que não tolera mais receber de volta os corpos dos próprios soldados. Portanto, para não serem excluídos dessa região estratégica do mundo, os EUA precisam dialogar com a menos potente Rússia, que colocou o seu exército em campo na Síria. Além disso, mesmo se os Estados Unidos têm um crescimento econômico anual superior a 2%, não faltam

questionamentos sobre problemas salariais e sobre a sustentabilidade de seu desenvolvimento.

O poder da China hoje está fora de discussão. O que dizer de um país agressivo no mercado, mas frágil em direitos humanos, bem-estar e coesão social? A China ainda vive um grande crescimento, mas está no meio do caminho, numa transição. Metade da sua população, isto é, 700 milhões de pessoas, vive no século XXI. A outra metade ainda está no passado. Até agora o crescimento foi de dois dígitos, mas o esforço de Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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entrevista

michele zanzucchi e fernanda pompermayer revista@cidadenova.org.br

transformação que a China está fazendo tem custos crescentes. Outros países próximos estão concorrendo com o gigante asiático, que deve fazer um esforço rápido e avassalador para aumentar o próprio nível: não pode continuar sendo só um país exportador, mas fomentar o consumo interno. Como fazer isso sem um sistema de saúde e de previdência social? Depois de realizar um feito histórico gigantesco, ao sair do grupo de países pobres, a China tem diante de si outro grande desafio: a segurança e o bem-estar de sua população.

O que o senhor tem a dizer sobre o expansionismo político e econômico da China? A China detém 7% das terras aráveis do planeta e 20% da população mundial para alimentar. A sua política externa é condicionada por esses dados. Ela tem apostado muito na África, por exemplo, porque precisa importar de lá alimentos, matérias-primas e energia.

Como os EUA e a Europa têm reagido a essa avassaladora intrusão nos mercados mundiais? Os Estados Unidos estão empenhados numa espécie de cerco às pequenas guerras por procuração, mobilizando, por exemplo, o Japão­e as Filipinas contra Pequim. A China contra-ataca de maneira diplomática, rebelando-se contra a organização econômica que gira ao redor da ONU. Improvisamente a China criou um banco de investimentos e desenvolvimento [o AIIB] que parece poder concorrer com o Banco Mundial e com o Banco Asiático de Desenvolvimento. A nova instituição recebeu a adesão não só de 21 países da Ásia, mas também da Grã-Bretanha e dos maiores paí­ ses da Europa. É uma grande novidade, pois Londres nunca adotou 8

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uma política de independência em relação aos Estados Unidos num campo tão importante. A praça de negociação da moeda chinesa vai se tornar o principal centro financeiro global: Wall Street e a City [londrina] disputam a futura supremacia. Além disso, a China está propondo uma nova “Rota da Seda”, com a intenção de retomar as relações com a Europa e de promover uma grande reaproximação com a Rússia.

O poder de fogo da China parece quase ilimitado… Como economista devo dizer que existem algumas coisas um pouco difíceis de entender. Como eu ressaltei antes, um país como a China não pode crescer infinitamente­ no ritmo que manteve no passado. O governo estabeleceu uma meta de 7% ao ano e os dados oficiais confirmam isso. Mas vários aspectos precisam ser esclarecidos. Não é fácil crescer 7% quando o consumo de energia não cresce, quando a balança comercial cai e quando alguns setores, como o da indústria automotiva, se retraem. Mesmo assim eu sou muito otimista sobre o desenvolvimento futuro da China.

Os Brics estão numa fase de retração… Acabou o grande efeito de tracionamento dos países do grupo que chamamos de Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), com exceção da Índia, que ainda mantém o nível de crescimento. A Rússia diminui a marcha, devido à baixa do preço do petróleo e das sanções que sucederam a crise da Ucrânia. O Brasil atravessa uma crise política muito profunda e a sua economia sofre as consequências. Neste ano a previsão é de redução do crescimento dos países emergentes e de aceleração nos paí-

ses desenvolvidos. Ainda é positivo, mesmo se menor, o crescimento dos países africanos.

Que, porém, representam apenas 3,5% da economia mun-­ dial… É um crescimento que parte de um nível muito baixo, mesmo se as expectativas são maiores do que as de dez anos atrás. Apesar do progresso dos últimos anos, a África tinha, em 2014 o mesmo índice de riqueza da década de 1980. Seus problemas são imensos: 54 países fragmentados. Há uma grande incerteza quanto à demografia. Enquanto o resto da humanidade passará de 7,5 bilhões a 9 bilhões de pessoas até a metade deste século, a África passará de um bilhão a dois bilhões. A África subsaariana, especificamente, dentro de 18 anos, terá o dobro da população que tem hoje! Isso será um incentivo enorme às migrações para países mais desenvolvidos, principalmente para a Europa. As pessoas só ficam onde estão quando começam a ter esperança no futuro.

O senhor acha que a Europa ainda tem fôlego para os novos desafios mundiais? A Europa está dividida. Ela ainda é um prodígio da economia, mas o seu peso nas decisões políticas mundiais é nulo. Porque ela está sempre dividida. Inclusive sobre a questão migratória. Chegamos ao paradoxo de criar barreiras entre dois países da União Europeia! Vamos considerar a crise na Ucrânia, na Síria e na Líbia. A Europa avança como um vassalo ou como um vagão de segurança de decisões que são tomadas em outros lugares do mundo. Percebe-se um modesto crescimento econômico, mas quanto a política internacional a Europa está ausente.


Em nível global o que se observa é um aumento de desigualdade e de injustiça… Com Ronald Reagan e Margaret Thatcher o mundo se encaminhou para um liberalismo desenfreado. Desde os anos 1980 quem fala de impostos perde as eleições. A economia se financeirizou e o Estado parou de agir como árbitro da economia. As raízes da falta de equidade devem ser identificadas seja na globalização, que reduziu os salários em muitos países, seja nessas transformações da doutrina econômica já enraizadas até mesmo em países acima de qualquer suspeita, como a China. Alguma coisa finalmente está começando a acontecer também no campo teórico – eu me refiro ao livro sobre o capital [O capital no século XXI, Intrínseca, 2014], de [Thomas] Piketty – mas ainda não se transformou em práticas políticas. Na véspera da sua viagem aos Estados Unidos, o papa disse a Fidel Castro que é preciso governar considerando as pessoas, não as doutrinas. Ele disse isso a Fidel, mas também aos Estados Unidos, onde estava para entrar. Não podemos continuar ignorando a pobreza crescente. É vital para o nosso f­uturo que retomemos o debate sobre esses temas.

E a revolução tecnológica? Ela eliminou a classe média, desapareceram centenas de milhares de postos de trabalho sem nenhuma greve sequer. A tecnologia é fantástica, mas do ponto de vista distributivo contribui para uma nova situação de injustiça entre ricos e pobres. É possível um futuro sem trabalho? Essa pergunta, hoje, é fundamental.

Para completar, nesse cenário globalizado irrompeu o terror

Crescimento econômico da China em 2014: 7%

Crescimento econômico mundial em 2014: 2,8%

Crescimento populacional da África em 2050: 100%

População russa em 2050: 106 milhões

do Estado Islâmico. Como o senhor vê esse fenômeno? O que tornou possível a expansão do Estado Islâmico [EI] foi o conflito entre as grandes potências. O EI se sustenta com os recursos do petróleo, da droga e do tráfico de imigrantes. Na Síria a situação está paralisada: [Bashar al-]Assad é um ditador, mas tem o único exército em terra que está combatendo o Estado Islâmico. Ninguém está disposto a mandar soldados, apenas drones e aviões. A Rússia se encontra em condições privilegiadas, pois é amiga de Assad e, ao mesmo tempo, contrária aos terroristas. Um acordo entre as grandes potências mundiais para deter o EI seria uma solução possível, porque todos temem o terrorismo: os chineses por conta dos uigures da região de Xinjiang, os russos por causa dos tchetchenos, os norte-

-americanos e europeus pela ameaça do terrorismo de matriz islâmica. No entanto a nova guerra fria entre EUA e Rússia compromete muito a possibilidade de um verdadeiro acordo.

A Rússia finalmente voltou a brilhar no cenário político internacional… Moscou é fraca internamente, mas segue uma política externa sem preconceitos e inteligente: se apossou da Crimeia, tornou indispensável o acordo nuclear com os aliados do Irã e agora surge como uma força em território sírio. A Rússia é um grande país. Mas conta com 145 milhões de habitantes que, em 2050, estarão reduzidos a 106 milhões. Além disso o preço do petróleo e do gás despencou… Uma nova relação entre Europa, Estados Unidos e Rússia é indispensável para a paz mundial. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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economia de comunhão

thiago borges thiagoborges@cidadenova.org.br

Sinergia e comunhão

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© Binkski | Fotolia.com

esde o início, o projeto de Economia de Comunhão foi caracterizado pela gratuidade nas relações e nas trocas de experiências, de bens e de serviços. Esse novo paradigma de relações entre os agentes do mercado tem sem mostrado um bem em si mesmo, mas também um meio para produzir outros bens, materiais e relacionais. É essa a constatação de um grupo de empresários de Londrina (PR) que se reúne mensalmente há quase um ano. Liderado pelo empresário Marcelo Cassa, varejista do segmento de óticas na região, o grupo encontrou uma maneira inovadora de criar um espaço de convivência e compartilhamento entre empresários de diferentes atividades da cidade. Como o próprio Marcelo conta, tudo começou em 2011, quando um grupo de amigos começou a se reunir informalmente em uma padaria da cidade paranaense toda semana. A proximidade que aquelas ocasiões propiciavam despertou em Marcelo a ideia de iniciar algo um pouco mais elaborado e aberto a todos aqueles que querem “fazer o bem”. A proposta tomou corpo depois que o empresário retornou de uma convenção internacional de Economia de Comunhão, em Nairóbi (Quênia), no ano passado. “A gente já estava há vários anos pensando em um modelo de reunir com qualidade os empresários e depois que retornamos tivemos a ideia de fazer reuniões mensais. Através da minha rede de contatos fui selecionando empresários que tinham esse perfil, que já faziam alguma coisa relacionada à EdC. E criamos um grupo de WhatsApp. Escolhemos uma data, que é sempre a última quinta-feira de cada mês. O local é sempre uma empresa. Nunca pode ser uma entidade, uma igreja, uma associação. Tem que ser uma empresa em que caibam umas 20 ou 30 cadeiras. O empresário que recebe exercita a acolhida, a gratuidade. Ele prepara o coffe

break ou oferece alguma coisa para nós. Teve um que ofereceu até jantar, mas é livre e espontâneo. “A gente não fica cobrando mensalidade, fazendo rateio”, conta Cassa. Com ajuda de alguns colegas do grupo da padaria o empresário também desenvolveu um método que une agilidade, descontração, mas também seriedade para o bate-papo ser produtivo. “Eu escolho três empresários para falar dez minutos. Troco uma ideia com eles e a gente aborda um aspecto. Tem uma empresa que trata muito bem a questão da comunicação interna com funcionários, ou como trata o cliente, então ele fala disso. Outro tem um projeto social vinculado à empresa, então ele fala disso. O terceiro compartilha sobre uma necessidade que tem por ter acabado de abrir uma empresa. Temos sempre três situações bem distintas que são o pano de fundo”, explica. Marcelo conta que a iniciativa propicia momentos de “desabafo” das dificuldades, e também estreita relacionamentos entre os empresários, além de criar um espaço de inovação por conta da troca de experiências. A diversidade das atividades produtivas é uma das virtudes do grupo. Há empresários do ramo da medicina, da música, da alimentação e até do mercado de tratores. Mas além da sinergia interna, as reuniões em Londrina também suscitaram projetos sociais e até o fomento a pequenas empresas. “Um empresário de Arapongas (PR) foi convidado por e-mail e acabou vindo. Ele tem um superprojeto social lá de escola integral com um turno esportivo e cultural, que nós já integramos com a escola de música de um dos empresários daqui e ele emprestou dinheiro para o pessoal viajar para fazer essa turnê”, relata Marcelo. “A gente quer mostrar a potencialidade da EdC para criar redes: no fundo o que nós criamos com os empresários foi uma rede de desenvolvimento”.


ana carolina wolfe anawolfe@cidadenova.org.br

© Kletr | Fotolia.com

sustentabilidade

Voo verde O

s drones (veículos aéreos não tripulados, guiados à distância) se popularizaram tanto nos últimos tempos que em breve a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac) deve estabelecer as principais diretrizes da legislação que regulamenta o seu uso. E a popularização trouxe também a diversificação de usos, entre eles, diagnósticos, mapeamentos e fiscalização ambiental. Em geral, o uso dos ecodrones pode baratear a obtenção de imagens aéreas, utilizadas para mapeamentos de áreas urbanas e rurais, já que é mais barato um sobrevoo com o aparelho do que com um bimotor. Outra vantagem é a

agilidade com que uma imagem pode ser atualizada, pois a qualquer hora é possível fazer o drone captar uma nova imagem aérea. Já existem empresas brasileiras especializadas na utilização de drones para áreas ambientais. Mas o emprego deles na defesa do meio ambiente é bem mais difundido em países da África e da Ásia, onde já foram implantados projetos de proteção animal com o uso do equipamento. A autora também escreve sobre meio ambiente para o blog Ambientado no site de Cidade Nova www.cidadenova.org.br/editorial/instiga

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Brasil

Tomaz Silva | Agência Brasil

daniel fassa daniel@cidadenova.org.br

A cor do Brasil

que perece

Rio de Janeiro, 09/05/2015 – Anistia Internacional realiza companha “Jovem Negro Vivo” no Complexo da Maré

VIOLÊNCIA Com taxas de homicídios de países em guerra, o Brasil vê toda uma geração de filhos seus ser dizimada diante do nosso silêncio cúmplice. Eles são jovens e, sobretudo, negros

G

enocídio. Palavra forte, que os brasileiros geralmente atribuem aos livros de história ou ao noticiário sobre países longínquos. Mas com que outra palavra definir o ciclo de violência que, todos os anos, tira a vida de 30 mil jovens no Brasil? É como se, a cada dois dias, um avião cheio de jovens caísse em nossas terras. Com um “detalhe” importante: dentre as vítimas, 77% são homens negros. Os dados são do Mapa da Violência 2014 e da Anistia Internacional. Nos últimos anos, essa realidade, que equipara o Brasil a zonas de guerra, tem suscitado a mobilização da sociedade civil organizada e do

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poder público. Pesquisadores de diversas universidades, além de organizações como o Fórum Nacional de Segurança Pública, a Pastoral da Juventude e a Anistia Internacional, trabalham para gerar dados e despertar a sociedade brasileira de um silêncio cúmplice. Na Câmara e no Senado, Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) envolvendo políticos, pesquisadores, familiares de vítimas e representantes de diversos setores da sociedade buscam compreender as raízes do fenômeno e elaborar projetos de lei para combatê-lo. No âmbito do Governo Federal, o programa Juventude Viva tenta dar os

primeiros passos no enfrentamento à questão. Mas o problema está longe de ser resolvido.

Raízes A violência que atinge principalmente a juventude negra brasileira tem raízes históricas que remontam à escravidão colonial, à marginalização pós-abolição e à persistência de um racismo camuflado em nossa cultura supostamente cordial e democrática. “Não tendo acesso aos melhores postos de trabalho, aos locais dignos de moradia e à formação educacional de qualidade, a juventude negra e pobre encerrou-se numa


armadilha sistêmica. Do alçapão, são jogados para a marginalidade, e, não raro, para as garras do crime organizado”, lê-se em um trecho do relatório da CPI da Câmara sobre o tema, publicado em julho do ano passado. Um processo que, segundo a antropóloga Haydée Caruso, da Universidade de Brasília (UnB), acentuou-se sobretudo a partir da década de 1980, com o aumento do tráfico de drogas e de armas no Brasil, e o estabelecimento de uma política de segurança pública que militarizou as periferias, “colocando em maior vulnerabilidade a população pobre, que é, em geral, preta e parda”. “Quem são aqueles que a gente deve combater? Aqueles que estão na periferia, que são entendidos como os inimigos da segurança pública. Essa é uma falácia que a gente precisa romper, porque, na verdade, quando se fala do mercado de drogas e de armas, a gente fala de grandes investimentos, grandes empresários das drogas, que não são necessariamente aqueles que aparecem na esquina com o fuzil”, afirma a pesquisadora. “É óbvio que existem jovens violentos, é óbvio que vários jovens pretos e pardos estão no crime, mas não só. O que faz com que haja exclusivamente uma seletividade no olhar policial para que ele só focalize aquele de pele escura como possível bandido?”, questiona. Para Renata Neder, assessora de direitos humanos da Anistia Internacional, o silêncio da população brasileira demonstra que o racismo persiste no país: “Quando a gente observa que o jovem negro é a principal vítima de homicídio em geral, que ele é também a principal vítima de homicídio da polícia – como o relatório da Anistia Internacional demonstrou aqui no Rio de Janeiro –, que a taxa de homicídios entre jovens negros vem subindo, enquanto a taxa entre jovens brancos vem

diminuindo, e que isso não provoca a indignação nem das autoridades nem da sociedade brasileira em geral, a gente precisa, sim, falar do racismo e de todos os estereótipos negativos que estão associados à juventude negra no Brasil”.

Na pele O assistente social Júlio Lisboa conhece bem essa realidade. Recém-formado pela UnB, ele conta que, além do racismo cotidiano, que experimentou desde a infância, já passou por inúmeras abordagens policiais nitidamente discriminatórias. E só aprendeu a se defender delas depois que ingressou na universidade e passou a militar no movimento negro. A partir daquele momento, “quando as autoridades policiais me abordavam, eu já tinha o que falar e questionar, porque eu sabia do meu direito de saber o porquê de estar sendo abordado”, relata Lisboa. “Existe um padrão dentro da corporação que é enviesado pelo racismo. O racismo mata. Ele carrega um estigma desumanizador. Quando uma pessoa não é humana para você, o desprezo por ela é natural. Isso faz com que o suspeito negro possa ser torturado, morto, passe por situações que alguém com uma pele mais clara não passaria”, argumenta o jovem assistente social. Mas como explicar esse comportamento se boa parte dos policiais militares são pretos e pardos? Essa é uma das questões que Caruso, da UnB, considera importante investigar e compreender melhor. “A Polícia Militar, sobretudo, é um espaço de ascensão da classe trabalhadora. Muitos jovens oriundos da periferia, pretos e pardos, prestam concursos para as polícias e compõem a massa dos praças, que são os soldados, os cabos, os sargentos e os subtenentes. Que fenômeno é esse

no Brasil em que nós temos jovens policiais negros policiando negros e matando esses negros?”, questiona a professora, para quem também é fundamental rever os protocolos de atuação policial no país. Nesse sentido, uma das principais bandeiras levantadas por diversas organizações da sociedade civil é o fim dos autos de resistência, que são registros administrativos de ocorrência que, de antemão, classificam homicídios cometidos pela polícia como decorrentes de legítima defesa. “Essa figura jurídica remonta à época da ditadura militar (1964-1985), quando as torturas, execuções extrajudiciais, desaparecimentos forçados, ocultações de cadáveres e prisões ilegais eram instrumentos de uma estratégia de Estado voltada para a supressão da dissidência política”, explica o relatório “Você matou meu filho”, em que a Anistia Internacional faz um diagnóstico da questão no Rio de Janeiro. Para a ONG, são necessárias investigações mais criteriosas e transparentes quando há esse tipo de ocorrência. Não se pode atribuir, no entanto, o elevado número de assassinatos de jovens negros apenas à atuação da polícia. De acordo com Renata Neder, as forças da ordem são responsáveis por 16% do total de homicídios na cidade do Rio de Janeiro. A inexistência de dados padronizados e confiáveis não permite uma quantificação precisa em nível estadual e nacional. Além disso, a falta de investigação também dificulta um diagnóstico que possibilite identificar os responsáveis. “Apenas entre 5% a 8% do total de homicídios no Brasil são investigados e responsabilizados. É muito pouco. Então fica difícil de fato fazer uma política pública ou intervenções informadas sobre o contexto desses homicídios”, explica a assessora de direitos humanos da Anistia Internacional. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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Brasil

daniel fassa daniel@cidadenova.org.br

Perspectivas Com vistas a tentar lidar com o problema de maneira multidimensional, o Governo Federal adotou em 2012 o Plano Juventude Viva, após um amplo processo de debates que envolveu diversas organizações da sociedade civil. Implementado por uma articulação interministerial coordenada pela Secretaria Nacional da Juventude, o plano busca reduzir a vulnerabilidade de jovens negros por meio da criação de oportunidades de inclusão social, da transformação de territórios atingidos por altos índices de homicídios e do enfrentamento ao racismo institucional, com sensibilização de agentes públicos para o problema. Os impactos do plano ainda são incipientes, mas para Aline Ogliari­, secretária nacional da Pastoral da Juventude – que fez do combate ao extermínio da juventude negra no país uma de suas principais bandeiras nos últimos anos – ainda que precise ser aprimorado, ele representa um avanço no combate a todo tipo de violência enfrentada pela juventude negra. “A violência­não é só física, mas institucional, estrutural, simbólica e cultural também. Então abre-se uma gama muito grande de ações que podem ser realizadas”, afirma a jovem. Outra iniciativa em andamento é o projeto de lei 2438/2015, que emergiu como um dos encaminhamentos da CPI da Câmara para criar o Plano Nacional de Enfrentamento ao Homicídio de Jovens. Caso seja aprovado, o projeto deverá viabilizar ações que promovam: a redução do índice de homicídios para o padrão de um dígito por 100 mil habitantes; a redução da letalidade policial; o aumento da elucidação de crimes contra a vida para 80% dos casos; e a implementação de políticas públicas afirmativas nas localidades com altas taxas de violência juvenil. 14

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Diálogo e reflexões que transformam Uma iniciativa interessante, promovida pela Secretaria Nacional de Segurança Pública do Ministério da Justiça, contribui para a necessária mudança de mentalidade entre as forças policiais. Trata-se da Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública (Renaesp), um projeto de educação permanente voltado aos profissionais de segurança pública. Por meio de parcerias com universidades de todo o país, eles têm acesso gratuito a cursos de pós-graduação lato sensu relacionados à sua área de atuação. “A grande vantagem dessa política pública, que tem mais de dez anos e tem rendido importantes frutos, é fazer com que os policiais possam voltar ao ambiente universitário para estudar de uma outra perspectiva, com outra abordagem”, afirma a professora Haydée Caruso, atual coordenadora do “Curso de Especialização em Segurança Pública e Cidadania”, oferecido pela UnB. Para além do estudo de ciências humanas aplicadas à segurança pública e da produção de um conhecimento mais reflexivo e menos dogmático, Caruso destaca a metodologia dialógica dos cursos, que contam com a participação também de civis. “Como as instituições brasileiras estão muito marcadas por um viés militarista, por uma ideologia militarista que impede muitas vezes esse profissional de escutar o outro e entender a perspectiva do outro, e inclusive de falar das suas questões, o espaço da sala de aula, que mistura membros de várias instituições policiais com níveis hierárquicos diferentes, permite que eles conversem, falem entre si.”

A professora Haydeé Caruso chama a atenção para o Pacto Nacional pela Redução de Homicídios, proposto pelo Ministério da Justiça com subsídios do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que foi anunciado no ano passado mas ainda não saiu do papel. Durante a CPI do Senado sobre o genocídio da juventude negra, que deve ser concluída em março deste ano, ela defendeu a iniciativa como um caminho para abordar o problema da violência de maneira global. “Não adianta a gente fazer belos desenhos de políticas públicas se não se parte para a execução. 2016 é um ano crucial para que o pacto possa ir adiante. A gente sabe que a questão econômica no Brasil é complicada, mas não existe a menor

possibilidade de se manter taxas de homicídio tão altas. Isso tem impacto também na economia, na previdência, na saúde pública”, argumenta Caruso. Por fim, neste ano de Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, a Anistia Internacional – que em 2015 promoveu a campanha “Jovem Negro Vivo” – promete fiscalizar as políticas de segurança pública antes e durante o evento. “A gente viu em 2014, que foi um ano de Copa do Mundo, que o número de homicídios decorrentes de intervenções policiais subiu 40% no Rio de Janeiro e pelo menos 80% em São Paulo­. É muito preocupante que num ano de megaevento as operações policiais tenham maior letalidade”, afirma Renata Neder.


periferias existenciais

daniel fassa daniel@cidadenova.org.br

“Estou, não sou desempregado”

B

aixa autoestima, desorientação, sensação de rejei- tir o próprio sustento, até conseguir outro emprego formal ção, adiamento de planos, desalento, depressão. e completar os anos que lhe faltavam para a aposentadoria. Esses são alguns dos obstáculos enfrentados por Para Silvana Gonçalves de Santana, 34 anos, que enfrenquem já teve que encarar o desemprego, realidade tou um ano inteiro sem trabalho, o importante é compreque está voltando a fazer parte da vida de milhões de brasi- ender que o desemprego é uma condição momentânea. leiros. Pesquisa publicada pelo IBGE em janeiro indica que “Você está desempregado, não é um desempregado”, 9% da população economicamente ativa está sem trabalho. afirma a profissional, lembrando-se de uma das lições que Uma experiência cujas consequências vão além do as- aprendeu nos cursos promovidos pelo GAP. Segundo ela, pecto financeiro. Como afirma o ecoque também atua na área adminisnomista Luigino Bruni no livro “Fontrativa, uma das maiores dificuldades dati sul lavoro” (“Fundados sobre daquele período foi lidar com o julA gente fica desanimada, trabalho”), trabalhar é também uma gamento de pessoas, inclusive famiexperiência ética e espiritual que perliares, que achavam que ela não conacha que não consegue mite ao homem colocar-se a serviço seguia trabalho por falta de esforço. porque não é capaz e isso “A gente fica desanimada, acha que de toda a socie­dade e, dessa forma, desenvolver-se dignamente. não consegue porque não é capaz e pode fazer a situação “Sair, ter contato com outras isso pode fazer a situação ficar ainda pessoas, sentir-se útil, isso é muito pior”, explica. ficar ainda pior importante”, afirma a auxiliar admiJá o motorista Jairo da Silva, 55 nistrativa Célia Regina Ribeiro Butkanos, afirma que foi justamente o cowsky, 61 anos. Hoje aposentada, apoio de irmãos e amigos o que o ela lembra que chegou a entrar em depressão quando foi ajudou a lidar com a pressão de não ter dinheiro para pagar demitida pela empresa em que trabalhara durante mais de as contas, que não paravam de chegar durante o tempo em 15 anos. Com a ajuda do Grupo de Apoio Psicoprofissio- que esteve desempregado. “O importante é não desanimar nal (GAP) de Guarulhos-SP e o apoio de dois filhos – com e procurar um apoio para tocar a vida”, afirma Jairo, que, asquem teve que morar um período devido aos problemas sim como Célia e Silvana, atua hoje como voluntário no GAP. financeiros acarretados pelo desemprego – reencontrou o Uma das coordenadoras da instituição, a psicóloga ânimo necessário para seguir adiante. Assim, seis meses de- Solange Moncia explica que o grupo procura demonstrar pois conseguiu retornar ao mercado de trabalho, na mes- para as pessoas que “emprego é uma coisa e trabalho é ma área de atuação. outra”, estimulando-as a usar a criatividade para buscar No entanto, após um período de estabilidade, Célia ocupações alternativas, mesmo que informais. O objetivo perdeu o emprego novamente. Apesar do desalento pro- é que os profissionais “busquem conhecimento, criem uma vocado pela discriminação em decorrência de sua idade, rede de relacionamentos e não fiquem em casa se sentindo ela continuou lutando e se reinventou: colocou em prática coitados”, afirma a psicóloga. “Nosso trabalho é fazer com os conhecimentos adquiridos em um curso oferecido pelo que essa pessoa entenda que ela é um ser humano e não GAP e começou a fabricar e vender pães de mel para garan- um objeto a mais”.

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outro olhar

ana carolina wolfe anawolfe@cidadenova.org.br

Londres foi eleita a capital europeia do voluntariado em 2016. O título, concedido pelo Centro Europeu de Voluntariado, é uma tentativa de estimular ações altruístas e reconhecer os trabalhos locais que fortalecem a formação e engajamento de voluntários.

Crianças e idosos convivendo no mesmo espaço. A proposta

© Ana Blazic Pavlovic | Fotolia.com

do centro de saúde Providence Mount St. Vincent, de Washington, era integrar os dois extremos da vida, já que 43% dos idosos têm uma experiência social de isolamento que pode levar a problemas mentais e físicos. Por isso, eles lançaram um programa de convivência intergeracional que prevê que todas as atividades das crianças de zero a 5 anos da creche sejam desenvolvidas no mesmo prédio da casa de repouso, que conta com 400 idosos. As atividades dos pequenos são feitas em conjunto com os idosos e supervisionadas pelos professores.

US$ 300. Esse é o preço da incubadora neonatal desenvolvida pelo engenheiro espanhol Alejandro

Escario Méndez. O custo é bem abaixo dos US$ 6.000 das incubadoras tradicionais. Além disso, o equipamento é fácil de instalar e usar. Feita em madeira e plástico, a incubadora já está sendo utilizada em uma maternidade de Benin, na África, desde setembro de 2015. O projeto deu ao engenheiro o prêmio Best Medical Project, do Global Fab Awards 2015, organizado pelo MIT (Massachusetts Institute of Technology).

Divulgação

Márcio de Andrade Batista é o único brasileiro entre os 50 finalistas do Global Teacher Prize, o Oscar do ensino. O professor da Universidade Federal de Mato Grosso foi indicado pelo seu trabalho em escolas públicas de ensino médio. Ele também criou o programa de iniciação científica júnior e uma metodologia para aplicar conceitos científicos e técnicos no cotidiano dos estudantes.

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Divulgação

Viajar pode proporcionar prazer, ajudar os outros, felicidade. Pensando nisso um grupo de amigos brasileiros criou a Vivalá,

uma plataforma que reúne pessoas apaixonadas por viagens que desejam dedicar parte do tempo durante o passeio ajudando as pessoas do local. O foco da Vivalá é o Brasil, portanto, todos os roteiros, dicas de hospedagem e de organizações que precisam de ajuda são de regiões brasileiras. Para entrar na plataforma recém-lançada, basta acessar www.vivala.com.br

“Se não precisa, deixe. Se precisa, pegue!” A frase

Creative Commons

tem se multiplicado pelos muros do Irã. Escrita em persa, a língua local, serve para identificar uma iniciativa anônima, mas que tem se multiplicado pelo país, o Muro da Gentileza. São paredes pintadas e decoradas pelos moradores, nas quais são afixados roupas e outros objetos para quem precisar.

Caçadores de bons exemplos já foram mencionados nesta seção. Depois de cinco anos de estrada, mais de 1.150 projetos visitados e a coragem de largarem tudo para ir em busca de pessoas inspiradoras, eles acabaram influenciando Zorello e Viviane Noda, que lançaram o projeto “Por que não?”. Os dois paulistas viajam pelo Brasil coletando dados sobre práticas, técnicas e tecnologias nas várias áreas de conhecimento, da educação à produção de energia, e compartilham tudo no site. A ideia vai além de divulgar pessoas e iniciativas que trabalham em prol da sustentabilidade. Procura uni-los de alguma forma para o desenvolvimento de um ambiente mais sustentável e inteligente.

Aproximadamente 50 restaurantes brasileiros diminuíram o tamanho da porção, mas continuam cobrando o mesmo valor. E seus clientes não reclamam por isso. É que os restaurantes fazem parte do Movimento Satisfeito, que propõe algumas opções dos cardápios dos restaurantes servidas em porções menores, mas pelo mesmo preço. O lucro não é embolsado pelos estabelecimentos, mas doado a instituições que combatem a desnutrição infantil. De quebra, o restaurante também combate o desperdício de comida. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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cn em série Desafios do Milênio

ana carolina wolfe anawolfe@cidadenova.org.br

O milênio da sustentabilidade

Arquivo PNUD

SOCIEDADE Na segunda reportagem da série, a transição dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, um desafio ainda maior e mais amplo para gestores públicos e sociedade civil

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ustentabilidade já se tornou a palavra do milênio. Empregado em quase todas as situações (muitas vezes erroneamente), o conceito começou a ser discutido em uma famosa conferência das Nações Unidas, a de Estocolmo, na Suécia (1972), considerada uma das primeiras reuniões para tratar das atividades humanas em relação ao meio ambiente e um dos

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marcos da busca de elementos de mitigação dos efeitos das mudanças climáticas. A Declaração sobre o meio ambiente humano, também conhecida como Declaração de Estocolmo, resultado da conferência, estipulava ações para que as nações estabelecessem planos de resolução de conflitos entre as óticas e práticas de preservação ambiental e de desenvolvimento.

Apesar de ter ocorrido há mais de 40 anos, a conferência ainda hoje traz à tona discussões importantes e atuais sobre a condição humana. Tanto que os objetivos que marcaram a promoção do desenvolvimento humano ao longo dos últimos 15 anos, chamados Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM), incorporaram o termo sustentabilidade nos novos desafios propostos


para os próximos 15, transformando-se nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS). “Um [objetivo] não substitui o outro, mas o conjunto fica mais completo”, destaca Ieva Lazareviciute, representante do Programa da ONU para o Desenvolvimento (PNUD). Segundo Ieva, os ODM surgiram como um jeito de ter, de um lado, um acordo global, um consenso entre as lideranças, e, do outro, como ferramenta para gestores públicos, para que as suas ações sejam focadas em questões essenciais para o desenvolvimento das pessoas. Na verdade, a proposta das metas é funcionar como um auxílio ou orientação para que os governantes trabalhem pelo bem-estar. Para Diva da Paz, coordenadora do Portal ODM do Sesi Paraná, “todas as regiões brasileiras apresentaram avanços, o que reforça a importância de se trabalhar apoiados em informações e orientados por metas claras. Esse é o grande mérito dos ODM: uma agenda com metas claras e prazos definidos, aplicável a todas as localidades”. “O foco dos ODM foi altamente social”, lembra a representante do PNUD, o que reforça, como resultado das reflexões em torno dos objetivos, a percepção de que as questões sociais eram resolvidas, mas pouco se fazia pelo contexto, pelo meio onde as pessoas vivem. E mudanças ambientais têm um impacto negativo na vida das pessoas, a começar pelo bem-estar. De fato, pesquisas científicas indicam que os efeitos das mudanças climáticas serão mais sentidos nos países em desenvolvimento por serem fortemente dependentes de atividades econômicas ligadas à natureza. No caso do Brasil, as regiões mais sensíveis às alterações do clima são o Nordeste e a Amazônia. Segundo o relatório do Banco­

Mundial sobre desenvolvimento e mudança climática “Visão geral antecipada, a Mudança do Clima para o Desenvolvimento”, de 2010, entre 75% e 80% dos prejuízos causados pela mudança climática recaem sobre os países em desenvolvimento. Até mesmo um acréscimo de 2°C na temperatura média do planeta poderia resultar em reduções permanentes do PIB de 4% a 5% para a África e o Sudeste Asiático. Além disso, a maioria dos países em desenvolvimento carece de suficientes capacidades financeiras e técnicas para gerenciar riscos climáticos.

A transição A construção da nova agenda começou na Rio+20, mas a reflexão foi muito anterior a isso, como destaca Ieva Lazareviciute, que participou do processo. Como a cada cinco anos se fazia a avaliação dos ODM, foram identificados os progressos, as lições aprendidas, as estratégias que ajudam a implementação da agenda etc. E foram apontadas naturalmente, lembra Ieva, as necessidades de se ampliar a agenda, de envolver não somente os gestores públicos, mas outros segmentos, como o setor privado e as lideranças comunitárias. Além disso, foram introduzidas também as questões de territorialização e de participação. “Até que se chegou à Rio+20, que já contou com grande participação da sociedade civil e do setor privado. As conclusões dessa conferência serviram de diretrizes para a construção da nova agenda”, diz. Além disso, Diva chama a atenção para as particularidades da nova agenda, entre elas o envolvimento de todos os países, já que os ODS são mais amplos. Para ela, o mote principal é “não deixar ninguém para trás”. “Com a participação da sociedade, o engajamento das em-

presas e o compromisso dos governos, ficará bem mais fácil”, ressalta. As contribuições para a agenda de desenvolvimento pós-2015 foram inúmeras, a começar por propostas de um grupo de trabalho da Assembleia Geral da ONU, passando por um processo aberto e inclusivo, e uma “conversa global” sobre a agenda de desenvolvimento pós2015, da qual fez parte, por exemplo, a pesquisa “Meu Mundo”, uma das ferramentas criadas para ouvir os cidadãos. Também houve a participação dos estados-membros das Nações Unidas, que forneceram ajuda baseada em evidências, análises contextuais e experiência de campo. Após esse percurso, o relatório “O Caminho para a Dignidade em 2030” apresentou um mapa com o objetivo de alcançar a dignidade nos próximos 15 anos. E, em setembro do ano passado, durante a Cúpula de Desenvolvimento Sustentável, foi lançada a agenda, com 17 objetivos e suas metas.

A voz da sociedade A representante do PNUD destaca a importância da participação da sociedade civil continuar forte no monitoramento e na cobrança aos gestores, mas também nas proposições, em um verdadeiro protagonismo social. Já para o setor privado Ieva ressalta que o modo de participar será diferente. Enquanto com os ODM o setor privado investia, mas não participava maciçamente, “com os ODS não bastará mais só implementar ou financiar projetos. As empresas terão que repensar o jeito de fazer negócios. O próprio modelo de negócios tem que mudar. E ninguém fará isso pelas empresas. Elas têm que refletir e ir aprimorando”. De fato, Odilon Faccio, secretário-executivo adjunto do Movimento Nacional pela Cidadania e Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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cn em série Desafios do Milênio Solidariedade, destaca que os desafios agora são: dar continuidade aos avanços conquistados com os ODM, enfrentar com mais energia os efeitos do aquecimento global e repensar o modelo de produção e consumo atual. Já em relação ao Brasil, as expectativas são bem claras, como descre-

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ve Ieva: que o país continue investindo fortemente nas linhas de ação que deram certo e que continue sendo destaque e avançando. No Brasil, algumas metas estabelecidas pelos ODS já foram alcançadas com os ODM, como, por exemplo, em relação à fome. “O Brasil saiu do corredor da fome”, diz. Porém,

“enquanto a fome foi reduzida em muitos países, a sustentabilidade e o desenvolvimento sustentável, apesar de vários avanços, não foram alcançados em sua totalidade por nenhum país, nem mesmo pela Noruega”, continua. Com isso, “todos os países ainda têm esse desafio pela frente”.

Empreender não é uma tarefa fácil, ainda mais quando a empresa trabalha com reciclagem de resíduos em uma região considerada “terra dos fogos” devido a suas fogueiras de resíduos tóxicos. É exatamente esta a situação de Antônio Diana, presidente da Erreplast, empresa de reciclagem de resíduos de Caserta, cidade do sul da Itália. Abaixo, uma breve entrevista com o empresário.

Como o senhor entrou para esse ramo? Em junho de 1985, meu pai, Mário Diana, empresário, caiu nas mãos da camorra [máfia napolitana], deixando a nossa família numa encruzilhada: construir um futuro em terras mais tranquilas ou continuar testemunhando que o renascimento social, moral e cultural dessa terra é possível. Pode-se montar realmente uma empresa de modo ético num contexto tão problemático e, ainda mais, num setor crítico como o dos resíduos? É possível, desde que você não se adapte ao habitual e esteja no mercado sem trair os próprios princípios. Mesmo se o risco de parecer um doido for concreto. Hoje o grupo é constituí­ do por cinco empresas, envolve mais de 160 pessoas, com um volume de negócios em torno de 40 milhões de euros. São cinco instalações indus20

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triais para a recuperação e a reciclagem de mais de 80 mil toneladas/ano de resíduos de embalagens e da coleta seletiva de lixo.

Além das contínuas inovações do processo de trabalho, há uma atenção especial ao meio ambiente, à sustentabilidade e ao social… Em junho de 2013, paralelamente às atividades industriais, criamos uma Fundação, com o nome de meu pai, com o objetivo de promover ações orientadas à tutela do meio ambiente e do território, à valorização do patrimônio cultural, histórico e artístico nacional e local, à formação dos jovens com projetos de colaboração com as universidades. Deve ser difícil sobreviver com tanta competitividade… A chamada “economia paralela”, a falsificação, os empréstimos usurários, a corrupção, interferem nos mecanismos da economia de mercado alterando a concorrência. Quem pratica a ilegalidade certamente tem vantagens em matéria de competitividade, mas elas não geram um sistema industrial sadio, que é a estrutura de sustentação de um país avançado. No entanto, enquanto a ação ilegal a longo prazo torna opaca a capacidade de aumentar competências e criatividades, as boas práticas da legalidade

Sergio Siano

Uma aposta vencedora

levam à flexibilidade, à eficiência no melhoramento da qualidade dos processos e produtos, à contínua busca da redução dos custos. Elaborar projetos de longo prazo, assumir e retribuir regularmente, evitar os desperdícios, descartar corretamente os próprios resíduos, são comportamentos que colaboram para o desenvolvimento global e que, paradoxalmente, permitem à empresa concorrer numa verdadeira economia de mercado.

E como o senhor procura conduzir a empresa? Sempre procurei criar um contexto empresarial (desde a busca dos colaboradores à estrutura de governança) que conjugasse os resultados financeiros com a promoção social. Tenho a convicção de que uma empresa precisa, antes de tudo, redescobrir dentro dela e em todos os níveis, como ser essencialmente uma comunidade de homens de carne e osso, de pessoas que dão um sentido ao que fazem, que reconhecem a contribuição que estão dando à coletividade. E isso se alcança valorizando a dignidade do trabalho de cada um, na transparência e na partilha dos projetos.


tecnologia

cibele lana cibele@cidadenova.org.br

A aposta de 2016

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o início de janeiro, Las Vegas (EUA) foi palco da Consumer Eletronic Show (CES, na sigla em inglês), uma das maiores feiras de tecnologia e inovação do mundo. Diante de muitas novidades, mais uma vez a realidade virtual foi destaque e promete ser a tendência de 2016. Grandes empresas já colocam no mercado dispositivos capazes de criar ambientes de simulação que permitam aos usuários interação quase real com eles. É como se você estivesse lá, sem estar. Nessas feiras, e mesmo em algumas situações do cotidiano, alguns usos úteis e curiosos já começam a aparecer. O fone HTC Vive VR, da HTC, por exemplo, é capaz de simular ambientes como elevadores – o que está ajudando pessoas a tratar certos tipos de fobia. Após ter a sensação de entrar em vários deles, em diversas situações diferentes, as pessoas demonstraram ter menos ansiedade em situações reais. Outro uso muito interessante aconteceu com o Cardboard VR do Google, uma pequena caixa de papelão que se transforma em óculos e custa menos de US$ 20. O dispositivo de realidade virtual permitiu que crianças internadas no hospital King’s College, em Londres, fizessem um passeio imaginário pelo museu Dulwich Picture, proporcionando momentos de descontração e lazer para muitos deles sem sair do hospital. E por falar em hospital, o cirurgião Redmond Burke utilizou o mesmo Card­board do Google e inovou ao salvar a vida de uma recém-nascida. Conectado a um smartphone, o Cardboard permitiu a Burke visualizar imagens tridimensionais e com muitos detalhes do coração, em realidade vir-

tual, o que possibilitou planejar uma operação correta para o tratamento. Após o sucesso da cirurgia, Teegan passou a respirar sem aparelhos. O Samsung VR e o Oculus Rift, do Facebook, devem compor o time para outros experimentos como esses e também para os promissores games, que devem levar jogadores a participar realisticamente do ambiente de jogo. Em entrevista ao Tecnoblog, Ronald Azuma, chefe do departamento de realidade virtual da Intel, no entanto, fala sobre um dos problemas, ainda sem solução dessa nova tendência: o lapso de convicção. “O lapso de convicção descreve o conflito entre ter a sensação real de estar voando ou se movendo dentro de um jogo com visão em primeira pessoa, enquanto o cérebro sabe que o corpo está parado.

É um conflito entre o que nossos sensores de equilíbrio nos dizem e o que nossos olhos veem”, afirma. Essa sensação pode provocar algumas reações físicas, como enjoos. Vencidos esse e alguns outros obstáculos, como o preço do Oculus Rift do Facebook, que ultrapassa os US$ 500, podemos imaginar como serão nossas sessões de cinema dentro de casa. Com o uso dos óculos e outras tecnologias de movimento acopladas em sofás, poderemos não só assistir, como viver e sentir as cenas de um filme. É quase certo que a tecnologia ganhará terreno primeiro com os jogos, mas vamos torcer para em pouco tempo termos mais exemplos de realidade virtual utilizada para salvar vidas e tratar doenças. Então, que essa seja mesmo a tendência de 2016. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Você é o que

você planta


AGRICULTURA ALTERNATIVA Coletivas e públicas, as hortas se espalham por várias cidades do mundo, estimulando uma alimentação mais saudável e consciente, além de fortalecer a economia local. Mas ainda falta investimento público no Brasil para que a agricultura urbana mate a fome de fazer diferente em poucas regiões do planeta devido ao seu difícil cultivo, 60% do trigo consumido no Brasil é importado – o restante vem de plantações no sul do país. Enquanto isso, há espécies nativas e ricas em nutrientes brotando no seu quintal e em hortas comunitárias na vizinhança – e talvez você nem saiba! Em São Paulo, hortas urbanas e cultivo de plantas não convencionais são algumas das ações desenvolvidas por coletivos interessados em mudar nossa relação com o espaço público, a economia e a alimentação.

É de comer? Curiosidade é o ingrediente principal para descobrir novas espécies de PANCs. Foi no quintal de casa que Guilherme Ranieri, 25, começou a identificar as primeiras plantas. E não é que a Major Gomes, espécie com a qual brincava desde pequeno, era comida? “O gosto lembrava uma mistura de folha de beterraba com espinafre”, Guilherme recorda. A surpresa alimentou a vontade de desvendar novos sabores. Desde então, a lista só cresceu: “Eu descobri o picão, a tansagem e mais um monte de plantas”. Como gestor ambiental, Ranieri aprofundou seus estudos ao ter acesso ao trabalho “PANC no Brasil”, dos biólogos Valdely Kinupp e Harri Lorenzi, no qual são identificadas e catalogadas mais de 300 espécies da Região Metropolitana de Porto Alegre. Além da descrição da planta e de suas propriedades, três receitas são indicadas para cada espécie. Encantado pela diversidade e pela potencialidade delas, Ranieri se tornou um grande entusiasta da popularização das PANCs, com as quais desenvolve inúmeros pratos como cozinheiro. No site Matos de Comer, Ranieri divulga espécies comestíveis ainda pouco conhecidas e suas receitas. O pesquisador compara seus sabores a gostos que quase todo mundo já experimentou um dia. As semelhanças são, no mínimo, inusitadas. “O botão da flor do Hemerocallis, quando frito ou grelhado, solta um cheiro forte de cebola, alho e carne. É impressionante: o sabor lembra muito bife acebolado”, explica. “Já o broto da tansagem lembra o leite de castanha, surpreendente para uma verdura.”

Sossô Parma | CCSP

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eldroega, esparguta, losna, ora-pro-nobis, serralha, tanchagem, trapoeraba e taioba. Seus nomes podem parecer trava-línguas, mas certamente você já deve ter topado com essas plantas por aí. Muitas delas espalhadas por praças, canteiros, calçadas, beiras de estrada, terrenos baldios e hortas – de onde são frequentemente eliminadas por serem vistas como ervas daninhas ou simples mato. As Plantas Alimentícias Não Convencionais, identificadas pela ressoante sigla PANC, têm o potencial de enriquecer em nutrientes a dieta do brasileiro e barateá-la, mas sua função alimentar ainda é desconhecida por grande parcela da população. Popular em outras culturas e épocas, o consumo dessas espécies foi se perdendo após as colonizações e o progresso das monoculturas, em que apenas um tipo de alimento é produzido em larga escala. Para se ter ideia, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) estima que 7 mil espécies já foram cultivadas para fins alimentícios ao longo da história. No entanto, 75% da diversidade genética das plantas foi perdida desde os anos 1990, na medida em que os fazendeiros deixavam de lado as variedades locais para concentrar o cultivo nas poucas espécies de alto rendimento. De acordo com a organização, das cerca de 20 mil a 50 mil plantas comestíveis conhecidas, só 200 chegam à mesa. Do total, apenas 12 espécies dão conta de três quartos da alimentação mundial, sendo que somente três (arroz, trigo e milho) suprem quase 60% do consumo global de calorias e proteínas de origem vegetal. Foram os colonizadores os responsáveis por trazer espécies que se popularizaram às custas da desvalorização dos alimentos consumidos por povos nativos. Mais de 500 anos depois, a produção de plantas asiáticas e europeias depende de agrotóxicos e sementes transgênicas para se adaptar aos ecossistemas estrangeiros. Entre as consequências estão a degradação do solo, a perda de biodiversidade e o consumo de alimentos contaminados. Mesmo comprar um simples pãozinho na padaria resulta em altos gastos e impactos ambientais. Produzido

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Resistentes e nutritivas As plantas ruderais, PANCs que se viram para crescer mesmo em condições extremas, são resistentes e podem substituir com vantagem nutricional produtos convencionais, além de serem mais fáceis de cultivar. A serralha é um exemplo. Sem exigências de climas ou solos específicos, ela se propaga facilmente e sua colheita é feita em qualquer época do ano. As folhas, amargas, podem ser usadas em saladas ou refogados e têm mais vitaminas que alface, compara Ranieri. “As PANCs possuem nutrientes importantes que a gente consome pouco, já que são poucos os produtos disponíveis nos mercados”, afirma. “Além de alimentar, elas previnem doenças como o câncer, melhoram a digestão, protegem a pele e combatem o envelhecimento precoce.”

Popularizar x Gourmetizar Além da falta de conhecimento, o preconceito é outro motivo de as PANCs não saírem facilmente do anonimato. “A batata doce possui folhas comestíveis cujo gosto é muito superior ao do espinafre. É fácil de produzir e saborosa”, exemplifica o pesquisador. Renomados chefs de cozinha têm usado as plantas como base de seus pratos, o que ajuda a desmistificá-las. Alex Atala, do restaurante D.O.M., considerado o melhor da América do Sul, usa a ora-pro-nóbis no prato chibé, que também leva farinha de mandioca e frutos do mar. A espécie é conhecida como “carne dos pobres”, o que revela sua grande quantidade de proteínas assim como o estigma social por trás dela. Ranieri aprova a iniciativa de disseminar as plantas através da alta gastronomia, mas alerta para que os alimentos não sejam “gourmetizados” e acabem se tornando caros e inacessíveis. “O objetivo é popularizar ao máximo, não elitizar”, diz. Um sonho do gestor ambiental é, daqui a 20 anos, entrar numa feira onde se venda tupinambor e flores de astromélia ao lado de beterrabas e bananas. “As pessoas pensam que PANC é uma categoria, mas, na verdade, é um estado transitório. Meu objetivo é que as PANCs passem a ser consumidas e deixem de ser não convencionais”, diz. Mesmo com tantos pontos positivos, é preciso ter cuidado na hora de experimentar. Para evitar consumir plantas tóxicas, é importante conhecer as plantas e ter 100% de certeza de que são comestíveis. Pesquise em livros, na internet, e pergunte para pessoas mais velhas. Se elas tiveram contato com essas plantas, provavelmente vão adorar falar da experiência. Outra recomendação é evitar colhê-las em locais próximos a postos de gasolina, calçadas e esgotos. Mas 24

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não precisa passar vontade, avisa Ranieri. Basta retirar uma semente ou uma muda da PANC desejada e plantar em casa ou em hortas coletivas para ter um alimento próprio para o consumo.

Entre hortas e PANCs As PANCs podem ser um grande estímulo para os que desejam ter uma hortinha em casa, além de impulsionar hortas comunitárias. Elas não precisam de poda nem de muita água para se desenvolver, demandando pouco trabalho. Resistentes e fáceis de cultivar, elas também levam benefícios à terra e às espécies plantadas próximas a elas. Foram essas vantagens que ajudaram Mariana Ferreira, bióloga e educadora ambiental, e Beatriz de Campos, estudante de Permacultura e Ciências Ambientais, a revitalizar a praça Joanópolis, localizada na Zona Oeste de São Paulo. Amigas de infância e vizinhas de porta, elas são parceiras na empresa Terra Viva, de paisagismo ecológico, e deram início ao projeto onde as PANCs são protagonistas. “A capuchinha, por exemplo, além de ser comestível e atrair polinizadores, tem função repelente, afastando os vermes do solo que atacam as raízes de outras plantas. Isso ajuda o manjericão, a sálvia, o tomilho…”, exemplifica Ferreira. Todo mês a dupla organiza um mutirão para cuidar da horta. Como atrai outros moradores e curiosos, o evento também é uma oportunidade de trocar informações. “Tem muita gente que fica impressionada: ‘Isso é de comer? Não acredito!’. Elas experimentam, gostam e pedem referências para saber mais”, diz Ferreira. “Já teve uma senhorinha que reconheceu o feijão guandu e disse que sabia fazer uma farofa maravilhosa com ele, coisa que eu não sabia”, conta.


Horta coletiva do Centro Cultural São Paulo (CCSP), na região central da capital paulista

A produção das hortas paulistanas ainda é insuficiente para alimentar a cidade toda, mas o potencial é gigantesco. Segundo a FAO, elas são 15 vezes mais produtivas que grandes propriedades rurais. Um metro quadrado de cultivo pode render 20 kg de comida por ano.

Sossô Parma | CCSP

A cidade no prato

As duas também transformam hortas ornamentais de condomínios em espaços funcionais. Além de plantas comestíveis, os locais param de receber agrotóxicos e começam a atrair beija-flores, tatus, pássaros, abelhas e gente. “Cria-se um convívio e uma renovação de energia no lugar. Assim, surge uma cidade onde a gente tem mais vontade de ficar”, diz Campos.

“Que bagunça!” “Cadê as fileiras de alface?” Essa é uma indagação comum de quem passa desavisado pela horta do Centro Cultural São Paulo (CCSP). Assim como a maior parte das cerca de 20 hortas comunitárias da capital paulista, o espaço se baseia na agroecologia. A ideia é privilegiar a biodiversidade e respeitar os processos da natureza sem usar insumos químicos. Na prática, diferentes espécies ficam bem próximas umas das outras, dando a impressão de desordem. Mas a aparente confusão tem um porquê. Os hortelões seguem a lógica da biodinâmica na hora de combinar as plantas, o que permite afastar invasores e estimular o crescimento de forma natural. O “mato” se avoluma, já que as PANCs não são eliminadas. Ninguém varre as folhas que caem no solo, que é protegido e ganha matéria orgânica com os restos. E não é que dá certo? A horta já rendeu muitas colheitas, inclusive de mandioquinha, e banquetes públicos no espaço cultural. “A gente ouve de todos os lados: ‘a agricultura tradicional alimenta o mundo e o transgênico é a única possibilidade’ – mas tem um monte de gente passando fome. Na horta, mostramos na prática que é possível produzir alimentos orgânicos na cidade”, diz o comunicador Guilherme Borducchi, que deu início ao projeto ao lado de dois amigos do grupo Hortelões Urbanos.

Com objetivo de facilitar a expansão das hortas nos espaços públicos, o educador ambiental André Bia­ zoti, outro fundador da horta do CCSP, desenvolveu o aplicativo “Cidades Comestíveis”. “A plataforma surgiu para mapear terrenos ociosos e pessoas a fim de começar uma horta comunitária e trocar itens como sementes, composto e ferramentas”, explica. Através do app, disponível para Android e iOS, os usuários podem marcar terrenos propícios para receber hortas, além de pedir e oferecer ajuda para iniciar uma no seu bairro. Desde sua criação, em 2015, o dispositivo atraiu muita gente, mas ainda não há notícia de nenhuma horta criada através dele. Para Biazoti, falta um “empurrãozinho” para que as pessoas interajam e façam suas hortas. A gestão pública da ferramenta seria grande impulso para uma mudança duradoura, acredita ele. “Imagino que em algum momento a prefeitura poderia assumi-lo, indicar quais das áreas apontadas podem de fato virar hortas, fazer o meio de campo com o proprietário do terreno e os interessados e promover ativamente a ocupação da cidade pelos cidadãos”, sugere. Biazoti diz que já existem políticas públicas de agricultura urbana, mas, por outro lado, falta a pressão dos cidadãos para que elas sejam tratadas como prioridade.

De volta à terra Defendida por ONGs, pesquisadores e ativistas da alimentação saudável, a agricultura urbana esbanja vantagens para quem vive na cidade. “Cuidar da terra tem outro tempo, totalmente diferente do tempo instantâneo da cidade. É só entrar ali na Horta do Ciclista, no meio da Avenida Paulista, e parece que você não está mais naquela avenida barulhenta”, descreve Biazoti. Além de acalmar, a horta também dá o prazer de descobrir novas plantas e sabores, o que incentiva uma alimentação mais saudável e consciente. Investir no alimento local também diminui os impactos ambientais com embalagem, estocagem e transporte. Outros pontos positivos são o acesso a produtos mais frescos, a movimentação da economia regional e a valorização do produtor local. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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capa

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“Se conseguirmos a criação de um programa efetivo de agricultura urbana no município, podemos até criar uma política de abastecimento voltado à produção local de alimentos orgânicos em todos os bairros da cidade, influenciando diretamente no zoneamento da cidade e na geração de renda local”, diz. Mas a agricultura urbana também tem seus riscos. É preciso verificar bem o tipo de terreno que será ocupado, avaliando o histórico do local, para evitar cultivar alimentos em solos contaminados.

Periferia sem fome Na periferia, outro projeto incentiva os cidadãos a produzir seu próprio alimento – e ganhar dinheiro com isso. A proposta do Cidades Sem Fome é ocupar legalmente espaços ociosos com hortas, gerando renda aos moradores que as cultivam. A ONG já fomentou 21 hortas comunitárias, a maioria na zona leste da capital paulista, além das hortas presentes em 32 escolas públicas. No total, 115 trabalhadores são contemplados com a geração média de um salário mínimo e de alimentos para consumo próprio e de sua família. Os maiores beneficiados são mulheres, crianças, aposentados e desempregados. Tudo começou quando o administrador de empresas Hans Dieter Temp foi à Alemanha fazer um curso de Agropecuária e Políticas Ambientais. Quando voltou ao Brasil, ficou espantado com a quantidade de espaços vazios, já que no país europeu havia visto ocupações de áreas semelhantes com flores, vegetais, frutas e áreas de lazer. “O projeto de ocupar espaços ociosos com hortas pareceu ideal para incluir pessoas desempregadas e com problemas de insegurança alimentar”, explica. Com a arrecadação de recursos públicos e privados, a organização ocupa terrenos com diversas espécies comestíveis e muitos braços. Os moradores interessados passam por capacitação sobre o cultivo e a comercialização dos produtos. Depois de 12 meses, com a horta já desenvolvida, os participantes dão continuidade ao projeto com as próprias pernas. Os alimentos são orgânicos e vendidos a preços acessíveis aos moradores da própria comunidade, enriquecendo a economia local. Além de gerar renda, o projeto promove mudanças alimentares no bairro, influenciando na qualidade de vida de quem planta e de quem consome os produtos. Apesar de se concentrar em espécies tradicionais, a horta tem dado mais espaço às PANCs, que caíram no gosto dos agricultores e de seus clientes. “Dez anos 26

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Hortas pelo mundo Aproximadamente metade da população mundial vive em cidades. Segundo a ONU, dois terços das pessoas devem ocupar o espaço urbano até 2050. Enquanto o campo continua focado nas commodities para alimentar o gado e promover energia, as cidades podem sofrer com a falta de alimentos. Segundo seus defensores, a agricultura urbana é uma das saídas. Já são 800 milhões de pessoas cultivando nas cidades, de acordo com a FAO. Acumulam-se exemplos globais da expansão de hortas coletivas, nos quais o investimento público tem papel crucial. Nossos vizinhos argentinos de Rosário são a referência mais próxima. Um plano municipal bilionário destinado a alimentar hortas urbanas contribuiu para o surgimento de cinco parques-hortas. Já em uma cidade americana no estado da Califórnia, o racionamento de água aliado à crise econômica levou muitos cidadãos a cultivarem seus alimentos no quintal de casa e em espaços públicos. Tudo com o incentivo do governo. Em Montreal, no Canadá, 40% do que é consumido provém da agricultura urbana. As hortas também ajudaram a resolver a questão da imigração no país ao integrar estrangeiros e cidadãos locais. O programa, subsidiado pelo poder público, distribui bolsas a todos os participantes e aulas de inglês aos imigrantes. A experiência poderia servir de inspiração para promover a integração de haitianos na cultura brasileira.

atrás, a gente arrancava pensando que era mato. Hoje, o pé de serralha é disputado a tapas!”, brinca Temp. Em tempos de crise hídrica, a manutenção da horta exige pouca água. Um cultivo de 300 m² tem consumo inferior ao de uma família de três a quatro pessoas em um apartamento, calcula o especialista. O fato de absorver água da chuva também faz das hortas uma maneira de prevenir enchentes, um problema crônico em muitas cidades brasileiras. A ocupação de terrenos ociosos traz ainda mais segurança à comunidade. Temp alerta que a maioria desses benefícios só apresentará um impacto real na vida urbana se as hortas tomarem a cidade em larga escala. “Se tivermos 3 mil hortas, elas vão impactar de maneira muito significativa o meio ambiente e a vida social”, diz. Para ele, a expansão depende diretamente de políticas públicas para se tornar realidade.


radar américa latina

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Na Argentina, crianças

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abandonam hábito de assistir TV

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uem foi criança entre as décadas de 1990 e 2000 provavelmente se lembra das broncas que levou dos pais por passar tempo demais na frente da televisão. Assim como hoje, naquela época atrações infantis não faltavam e a quantidade de horas vidrados na telinha era motivo de discussão entre pais e filhos em muitos lares. Foi assim no Brasil. Foi assim também na Argentina. Mas, ao menos por lá, as TVs parecem estar perdendo adeptos entre os mais jovens. É o que revelou um estudo da Universidade de Buenos Aires (UBA) realizado com jovens da região metropolitana da capital argentina.

Segundo o levantamento, 18% dos adolescentes sequer assistem televisão, enquanto 22% passam apenas uma hora por dia entretidos com ela. No total, mais de 60% dos jovens dedicam menos de duas horas às atrações televisivas. Isso não significa, porém, que os jovens estão consumindo menos produtos audiovisuais ou que estejam substituindo desenho animado e programação teen por leituras, estudo ou até a prática de atividades físicas. A internet é a principal responsável por ocupar a lacuna deixada pelo entretenimento televisivo. Cerca de 65% dos jovens de Buenos Aires afirmam passar entre duas e 12 horas conectados à rede.

“A comunicação passa pelo celular: os jovens navegam, utilizam redes sociais e chats. Eles se relacionam de outra maneira”, afirmou Sergio Abrevaya, presidente do Conselho Econômico e Social da capital argentina, coautor do estudo. Ainda segundo Abrevaya, isso não precisa ser visto como algo ruim, mas como uma oportunidade de potencializar até mesmo a educação dos jovens: “As escolas não devem ir contra essa tendência, mas incorporar a tecnologia ao aprendizado”. O autor também escreve sobre política para o blog Entre Fronteiras no site de Cidade Nova www.cidadenova.org.br/editorial/instiga Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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Caracas, 05/01/2016 – Defensores da coligação da oposição se reúnem perto da Assembleia Nacional

Democracia na UTI VENEZUELA Em duas semanas, aliados de Maduro elegeram 13 magistrados da Suprema Corte para impugnar candidaturas opositoras após governo ser massacrado em eleições legislativas

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Brasil entrou em 2016 com a barba de molho, receoso em relação ao futuro da economia e apreensivo com os possíveis desdobramentos da crise política nacional, com processo de impeachment e Operação Lava Jato dominando a pauta política. O cenário parece desastroso, sobretudo se pensarmos nas expectativas de crescimento que tínhamos alguns anos atrás. No entanto, o que vivemos é descrito como um verdadeiro éden se comparado à si-

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tuação de um de nossos vizinhos: a Venezuela. O país, que celebrou eleições legislativas em dezembro do ano passado para renovar a Assembleia Nacional – correspondente ao nosso Congresso Nacional –, precipitou em uma crise política de dimensões avassaladoras. Isso porque a coalizão opositora Mesa de Unidade Democrática (MUD) obteve uma vitória acachapante, arrebatando 112 dos 167 mandatos em votação. Com isso, a oposição se viu com mais de

dois terços dos assentos, o que lhe permite ter amplos poderes para reformar a legislação do país. Em um primeiro momento, o presidente Nicolás Maduro garantiu que respeitaria o resultado das urnas. No entanto, poucos dias depois mudou a retórica e passou a denunciar um suposto “golpe eleitoral”, assegurando que a derrota governista seria fruto de conspiração. Após qualificar o resultado do pleito como “ameaça do desmantelamento da pátria”, Maduro iniciou

Anadolu Agency

internacional


uma tentativa de impedir que três parlamentares eleitos assumissem seus mandatos, o que seria suficiente para barrar a maioria qualificada da oposição. Cidade Nova conversou com organizações de defesa dos Direitos Humanos que foram unânimes em expressar sua preocupação com as violações aos princípios democráticos no país. “A tentativa do governo Maduro de impedir a posse de deputados eleitos para a Assembleia Nacional não é uma surpresa. As condições desiguais para o partido no poder e a oposição que se apresentavam previamente às eleições de dezembro já indicavam a postura de um governo que não respeita o jogo democrático. Previamente às eleições, as autoridades venezuelanas já haviam desabilitado politicamente candidatos da oposição, mesmo sem esses terem sido condenados criminalmente, como exigido pelas normas internacionais”, acusou Maria Laura

Anadolu Agency

Caracas, 13/01/2014 – Prateleiras vazias durante longo período de escassez que atingiu a Venezuela

Carnineu, diretora da Humam Rights Watch (HRW) no Brasil. A estratégia de Caracas para limitar a quantidade de assentos destinados aos opositores foi a de solicitar ao Supremo Tribunal de Justiça (TSJ, na sigla em espanhol) a impugnação da candidatura de três opositores do estado venezuelano de Amazonas. A Corte deu parecer favorável aos governistas no dia 2 de janeiro, mas, três dias depois, os parlamentares fizeram o juramento e assumiram seus mandatos à revelia da decisão judicial. O episódio marcou o início de um conflito entre poderes que deve se prorrogar ao menos pelos próximos meses. Em resposta, o TSJ declarou nulas quaisquer votações do Legislativo feitas após a posse dos deputados impugnados. A sentença do Judiciário, no entanto, está longe de ser técnica, e se baseia em razões ideológicas, uma vez que parte de seus magistrados foram nomeados às pressas no dia 23 de dezembro pela antiga composição da Assembleia Nacional, ainda com maioria chavista, poucos dias antes da posse dos novos deputados. A manobra foi duramente condenada por Marino Alvarado

Betancourt, ativista venezuelano e ex-coordenador geral da organização de defesa dos direitos humanos Provea. Em conversa por e-mail com Cidade Nova, ele qualificou a ação do governo como inconstitucional: “Conscientes da derrota, prepararam o cenário institucional. Por isso elegeram, violando a Constituição, novos magistrados para o Supremo­ Tribunal de Justiça e, de modo particular, asseguraram a presença do chavismo duro na Sala Constitucional, que se converteu em uma instância com superpoderes e, desde 2000, favorece qualquer medida ou política do governo”. Betancourt classificou como “descarada” a violação constitucional feita às pressas pelo governo poucos dias antes de perder a maioria no Legislativo.

Menos vizinho Não é novidade que o Brasil sempre fez vistas grossas às violações aos princípios democráticos na Venezuela desde os tempos de Hugo Chávez lá e de Lula aqui. Na última década e meia, o Itamaraty adotou o discurso de não intervenção nos assuntos internos da Venezuela sempre que vinham à tona denúncias de cerceamento das liberdades individuais no país vizinho. A posição brasileira se sustentava em uma constatação simples: Caracas respeita os resultados eleitorais, seus governantes foram eleitos pelo povo e, portanto, o Brasil não tem o direito de contestar a legitimidade do governo em exercício. Mesmo duramente criticada em algumas ocasiões, a diplomacia brasileira não arredava pé da sua posição. A fidelidade que parecia incondicional, no entanto, ruiu após Ma­ duro tentar barrar a posse dos deputados opositores. Em nota divulgada no dia 5 de janeiro, o Brasil cobrou respeito ao resultado eleitoral­. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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“O governo brasileiro confia que será plenamente respeitada a vontade soberana do povo venezuelano, expressada de forma livre e democrática nas urnas. Confia, igualmente, que serão preservadas e respeitadas as atribuições e prerrogativas constitucionais da nova Assembleia Nacional venezuelana e de seus membros, eleitos naquele pleito”, afirmou o documento publicado pelo Itamaraty. Em tom ainda mais duro, a Chancelaria lembrou que “não há lugar, na América do Sul do século XXI, para soluções políticas fora da institucionalidade e do mais absoluto respeito à democracia e ao Estado de Direito”. Apesar de considerada tardia, a mudança de tom brasileira na relação com o vizinho foi celebrada por organismos de defesa dos direitos humanos. Ao se distanciar de Maduro, Dilma Rousseff agrava ainda mais o isolamento venezuelano no Mercosul, iniciado meses atrás com a posse do novo presidente argentino Mauricio Macri, que nunca escondeu suas reservas em relação ao andamento da democracia venezuelana. “É muito bem-vinda, ainda que demorada, uma atitude mais proa­ tiva do governo brasileiro em cobrar do governo Maduro que respeite as regras democráticas e, agora, os resultados das eleições. Todos os países membros do Mercosul têm reconhecido nos acordos regionais que a proteção dos direitos humanos e da ‘plena vigência das instituições democráticas’ são fundamentais para a integração regional”, afirmou a diretora da HRW.

E agora, Caracas? A crise política é acompanhada também por uma crise econômica sem precedentes, com gastos públicos fora do controle e com o preço do barril do petróleo – principal 30

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Cidadãos vigilantes

Atlas Network

internacional

Os venezuelanos não estão de braços cruzados. Apesar das dificuldades que a população enfrenta, para ter acesso até mesmo a produtos de primeira necessidade em decorrência da enorme crise econômica que assola o país, muitas pessoas não se dão por vencidas e procuram uma atuação cidadã e política intensa na busca por reverter o quadro político do país. Diversas associações e organizações da sociedade civil se mobilizam para fiscalizar, cobrar e denunciar o governo quando comete abusos. Dentre as iniciativas destaca-se o projeto Watchdog pela Liberdade e Democracia na Venezuela, que reúne três observatórios: Econômico-Legislativo, de Gasto Público e de Direito à Propriedade. O projeto monitora e conscientiza a população a respeito de políticas que atentam contra as liberdades civis e aumentam o poder do Estado enquanto diminuem a autonomia das pessoas. A iniciativa é do Centro de Divulgação do Conhecimento Econômico para a Liberdade (Cedice) e ganha destaque internacional por sua atuação de fiscalização dos desmandos do governo de Maduro. “O Cedice trabalha para empoderar os cidadãos, um conceito que se perdeu nesses anos de socialismo”, afirmou Rocío Guijarro­, diretora-executiva do organismo. “Quanto mais uma pessoa sabe sobre os direitos civis e econômicos, sobre as responsabilidades do Parlamento e quais são seus impostos, e acompanha o processo de aprovação das leis nos país, mais poderá, com seu próprio critério, analisar a situação e provocar mudanças no processo político”, complementa Guijarro. No final do ano passado, o projeto do Cedice foi nomeado como um dos finalistas do prestigiado prêmio Templeton Freedom, da Atlas Network.

fonte de receitas do país – despencando no mercado internacional. O ano de 2015 registrou na Venezuela o maior índice de inflação do mundo: 141%. Para se ter uma ideia, a nossa inflação, considerada fora de controle até mesmo pelo governo Dilma, está na casa dos 10%. A Venezuela se encontra em uma situação calamitosa e não parece haver solução fácil. Betancourt acredita que o fiel da balança será o comportamento da população, que “ainda tem uma combinação de angústia e esperança de que mudanças positivas podem ocorrer”. “Porém, se as respostas não forem rápidas e ade-

quadas, a decepção crescerá com muita rapidez e teremos um ano com muitos conflitos. Se o governo responder com repressão, então teremos cenários de violência importante”, prevê o ativista. Betancourt defende que a melhor saída para a crise entre poderes que se instaurou seria a promoção de um referendo constitucional para permitir que os eleitores decidam pela permanência ou pela saída do presidente. Ele acredita que essa seria “uma válvula para diminuir as tensões”. A proposta do referendo, aliás, foi feita pelo próprio Maduro, em tom de desafio, no início de janeiro.


bem-estar

darlene Ponciano bomfim bemestar@cidadenova.org.br

Mastigar faz bem… muito bem!

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ida saudável não é questão de moda, é um estilo de vida, por isso requer conhecimento, informação e decisão. Um aspecto normalmente deixado de lado é a mastigação. Mastigar é a ação de morder, triturar os alimentos dentro da cavidade oral, em partículas cada vez menores, preparando-os para a deglutição e para a digestão, no estômago e no intestino. A mastigação é o primeiro processo da alimentação e da digestão dos alimentos. Estudos revelam que o ideal é mastigar o alimento 30 vezes antes de engolir. Se quisermos ser menos exigentes, no mínimo 20 vezes. Mas a realidade mostra que muitas vezes esse ato não passa de míseras cinco vezes. Mastigar é um ato fisiologicamente complexo que envolve atividades neuromusculares e digestivas. Sem falar nos músculos e ligamentos! Participam, ainda, o sistema vascular, linfático, nervoso e, obviamente, os dentes. A atriz coadjuvante nesse processo é a saliva; envolve o alimento, molha e forma o bolo alimentar. Na saliva está presente a primeira enzima da digestão: a ptialina. Essa enzima inicia a digestão dos amidos. A produção adequada de saliva depende do tempo de mastigação. Portanto quando mastigamos mal, não formamos saliva suficiente. Muitas vezes é este o motivo de ingerirmos grande quantidade de líquido durante as refeições. Na verdade não precisaríamos de líquidos: com boa e eficiente mastigação a saliva dá conta do recado. A saliva ajuda também na etapa seguinte, no intestino, na renovação das células do epitélio. A trituração acontece na boca. Cada dente tem função específica: prender, rasgar, macerar, triturar. Por isso é importante cuidar dos dentes. Mastigação incorreta pode ter também várias causas que devem ser observadas: problemas com os dentes (má oclusão, mordida cruzada), fraqueza na musculatura, problemas de articulação, alteração na respiração (rinites, desvio de septo etc.).

A boca deve ser usada por igual durante a mastigação, ou seja, não mantenha o alimento apenas de um lado, ele deve circular em toda cavidade oral, o que dá qualidade à mastigação. Quem colabora em toda a “dança” do alimento dentro da boca é a língua. Nela encontram-se as papilas gustativas, importantíssimas para a digestão como um todo. São essas papilas que identificam o alimento e avisam o cérebro. Trocamos de papilas a cada 14 dias. Elas avisam se estamos ingerindo proteína, gordura, açúcar, amido e também em que quantidade. A partir dessa informação o cérebro “avisa” os demais órgãos sobre o que será necessário para a digestão. O cérebro leva de 15 a 20 minutos para ativar o mecanismo da saciedade. Portanto é verdade que comer devagar ajuda a emagrecer! Muitas vezes nos alimentamos em dez minutos, com mastigação ineficiente, empurrando o alimento com líquidos. Isso sobrecarrega o sistema digestivo e gera desconfortos gastrointestinais, digestão difícil, gases, azia, arrotos etc. Sem falar que a propaganda de medicamentos para nos ajudar cria na nossa cabeça o automático: “Digestão difícil? Tome ‘x’ e viva feliz! “. Além disso, alimento bem digerido e bem processado ajuda na absorção dos nutrientes. Uma boa dica para criar hábitos saudáveis é começar por estabelecer pequenas metas e ir avançando. Por exemplo, faça as refeições somente à mesa, sentado; coloque uma música e se esforce para comer dentro desse tempo; se não for muito estressante, conte o número de vezes de sua mastigação; inicie a refeição pelos alimentos crus e inclua maior número deles em sua dieta alimentar; evite beber líquidos durante as refeições. Peça ajuda aos familiares e amigos, afinal sozinho é sempre mais difícil. Proibido mesmo é comer na frente da TV ou usando o celular.

A autora é farmacêutica e educadora em saúde pública


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foto: afp revista@cidadenova.org.br


Ghouta, nos arredores de Damasco, Síria. A região ficou famosa em 2013 pelos atentados realizados com gás sarin. Estima-se que entre 350 e 1500 pessoas tenham morrido na ocasião


família em foco

thiago borges familiaemfoco@cidadenova.org.br

De repente, sexo COMPORTAMENTO Ao chegar à puberdade os filhos experimentam novas sensações e se abrem à sexualidade. A orientação dos pais nessa fase é tão necessária como difícil de ser transmitida

É

inevitável. Alguns pais até torcem para não chegar, mas sabem que não poderão escapar dela. Cedo ou tarde a adolescência dos filhos bate à porta e, com isso, potenciais conflitos de relacionamento. De repente os jovens pedem passagem e exigem autonomia, independência, mas ainda não têm maturidade para geri-la. Os hormônios afloram e a sexualidade se desenvolve rapidamente. Antes, os pais eram vistos como heróis, agora parecem obstáculos no caminho. Em meio a todas essas mudanças, uma preocupação cresce a cada dia em quem tem a responsabilidade de educar: o sexo. Por um lado, é consenso entre especialistas que o adolescente ainda não tem maturidade emocional para lidar com o sexo nessa fase da vida. Além disso, também não está pronto para encarar possíveis consequências de um ingresso precoce na vida ­sexual, como possível gravidez e o risco de contrair doenças sexualmente transmissíveis. Por outro lado, o avanço da tecnologia, sobretudo a da informação, torna cada vez mais complexa a tarefa dos pais de pro­ piciar uma educação sexual adequada aos filhos. Não são raros os casos de pais que se perdem no difícil equilíbrio entre exagerar na autoridade e relaxar demais nas regras, com medo de perder a confiança do filho.

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Afinal, qual a melhor abordagem para o assunto? Por onde começar? O médico e sexólogo Raimondo Scotto responde: “É preciso começar por nós mesmos, ter um conceito positivo da sexualidade, porque os filhos, para além das palavras, percebem o valor que os pais atribuem a ela. Em seguida, pelo exemplo do relacionamento a dois. Isso é fundamental, porque como adultos eles tenderão a modelar suas relações sentimentais com base no exemplo dos pais”. Abertura ao diálogo e muita paciência foram os ingredientes encontrados por Márcia Cristina G. Barros e José Roberto de Barros na educação dos filhos. Casados há 29 anos eles têm três filhos, duas meninas e um rapaz. Todos já passaram pela adolescência e têm hoje idades entre 20 e 30 anos. A mais velha é casada, enquanto os dois mais novos ainda namoram. Apesar de passarem pelas atribulações normais da adolescência, o trio encontrou nos pais um paradigma de relacionamento afetivo. “A gente viveu bem cada fase deles, agiu sempre na verdade. Eles viam a manifestação de carinho entre eu e o José. Isso era natural e ao mesmo tempo uma coisa sacra. Eles cresceram vendo a sexualidade como um dom para o outro”, conta Márcia. Ao aliar experiência própria com conselhos de pessoas próximas – como um amigo psicólogo da fa-

mília, que deu a dica de que o estado de organização do quarto do adolescente reflete como ele está por dentro –, Márcia e José Roberto conduziram com tranquilidade esse período da vida dos filhos. Como em toda família, houve momentos de maior preocupação, por exemplo, quando uma das filhas, aos 12 anos, apresentou aos pais o novo namorado. “Ele frequentava a nossa casa. Nós falamos para a nossa filha que aquela não deveria ser a prioridade dela naquele momento. Não proibimos, o menino vinha à nossa casa como amigo dela. A gente disse: ‘acho que você precisa viver bem essas coisas, ter mais maturidade, você ainda não está pronta. Assim como tem idade para aprender a dirigir, para aprender a ler, tudo vai chegar no seu tempo’. Foi o primeiro namoradinho dela, mas depois ela entendeu. Foi à base de muito diálogo, liberdade, mas sempre com uma postura clara”, relembra a mãe. Essa atitude de não bater de frente, mas de se apresentar como alguém em quem o filho pode confiar, sem, no entanto, ceder nas próprias convicções, mostrou-se uma das chaves para ajudar os ­filhos a atravessar a adolescência sem maiores transtornos. Outra “estratégia” de Márcia e José Roberto foi não apressar os tempos com grandes lições de sexualidade cada vez que o assunto vinha à tona. “Fomos levando uma


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“ ”

É importante ter presente a verdadeira dimensão da sexualidade e o significado mais profundo por trás do ato sexual

coisa de cada vez. A gente sempre satisfazia a curiosidade deles, desde pequenininhos, dando só a resposta ao que eles perguntavam. Respondíamos à curiosidade do momento, não dávamos uma aula. Cada coisa a seu tempo”, conta Márcia. Ela ressalta ainda que ajudar os filhos a entender as consequências dos próprios atos também os ajuda a adquirir responsabilidade nos relacionamentos. Márcia lembra do caso da amiga de uma das filhas que engravidou ainda na adolescência. “A gente dizia: ‘é uma decisão, é uma escolha e agora veja o que aconteceu. Olhe ao redor. Você tem

liberdade de fazer as escolhas que quiser, mas cada escolha tem uma consequência’”, conta. Apesar das técnicas de abordagem serem sempre uma ajuda a mais na hora de tratar um assunto tão sério e delicado, o fiel da balança está em outro fator. É importante ter presente a verdadeira dimensão da sexualidade e o significado mais profundo por trás do ato sexual. Como ressalta Scotto, “temos presente que a educação sexual não é só informação, mas também educação ao amor, porque é o amor que humaniza a sexualidade, fazendo-a ir além da simples necessidade de

satisfação de um desejo e adquirindo o caráter de doação”. “Até mesmo a educação da vontade, por meio do respeito a algumas regras, torna-se educação sexual, porque pode ajudar desde a adolescência a administrar as próprias pulsões”, esclarece o sexólogo. Passada a fase mais atribulada, Márcia e José Roberto colhem hoje os frutos de uma relação saudável com filhos que amadureceram seguindo o exemplo de casa. “Antes de fazermos esta entrevista”, confidencia ela, “eu liguei para os meus filhos para perguntar o que eles achavam [da educação que receberam]. A minha filha comentou: ‘a gente percebeu que sexo era uma coisa boa, que vocês não banalizaram e conseguiram que a gente também não banalizasse, mas que a gente também vivesse como um dom”, conta a mãe sem esconder o orgulho pelos filhos. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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palavra de vida

Fabio Ciardi

“Qual mãe que consola os filhos, assim vou dar-vos meu consolo.” (Is 66,13)

Q

uem nunca viu uma criança chorar e lançar-se nos braços da mãe? Qualquer que seja a razão da preocupação, grande ou pequena, a mãe enxuga suas lágrimas, cobre-a de carinhos e pouco depois a criança volta a sorrir. Basta-lhe sentir a presença e o afeto da mãe. É isso que Deus faz conosco, comparando-se Ele mesmo a uma mãe. É com estas palavras que Deus se dirige ao seu povo que retorna do exílio da Babilônia. Depois de ver destruídas suas casas e arrasado o Templo, depois de ter sido deportado para uma terra estranha onde teve de amargar desilusões e desconforto, o povo volta à própria pátria, tendo de recomeçar tudo a partir das ruínas da destruição sofrida. A tragédia vivida por Israel é a mesma que se repete ainda hoje para tantos povos em guerra, vítimas de atos terroristas ou de exploração desumana. Casas e ruas devastadas, marcos simbólicos da própria identidade arrasados, bens depredados, lugares de culto destruídos. Quantas pessoas sequestradas, milhões de fugitivos, milhares que encontram a morte nos desertos ou pelas rotas do mar. Parece um apocalipse. Esta Palavra de Vida é um convite a acreditar na ação amorosa de Deus, mesmo lá onde não se percebe a sua presença. É um anúncio de esperança. Ele está ao lado de quem sofre perseguições, injustiças, exílio. Está conosco, com a nossa família, com o nosso povo. Ele conhece a nossa dor pessoal e a dor de toda a humanidade. Ele se fez um de nós, até o ponto de morrer na cruz. Por isso Ele sabe compreender-nos e consolar-nos. Exatamente como uma mãe que toma a criança ao colo e a consola.

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É necessário abrir os olhos e o coração para “vê-Lo”. Na medida em que experimentarmos a ternura do seu amor, conseguiremos transmiti-la a todos os que vivem na dor e na provação e nos tornaremos instrumentos de consolação. O apóstolo Paulo sugere isto também aos coríntios: “… para que, com a consolação que nós mesmos recebemos de Deus, possamos consolar os que se acham em toda e qualquer aflição” (2Cor 1,4). Isso é também a experiência íntima, concreta de Chiara Lubich: “Senhor, dá-me todos os que estão sós… Senti em meu coração a paixão que invade o teu, por todo o abandono em que o mundo inteiro está imerso. Amo todo ser doente e só. Quem consola o seu pranto? Quem tem pena de sua morte lenta? E quem estreita ao próprio coração o coração desesperado? Meu Deus, faze que seja no mundo o sacramento tangível do teu Amor: que eu seja os braços teus que estreitam a si e consomem no amor toda a solidão do mundo.”1

Juntamente com muitos irmãos e irmãs de diversas Igrejas, queremos viver esta Palavra de Vida, escolhida por um grupo ecumênico na Alemanha, para que essa promessa de Deus nos acompanhe ao longo de todo o ano.

O autor é sacerdote, escritor e professor de Teologia da vida consagrada 1

Chiara Lubich, Ideal e Luz, São Paulo : Cidade Nova 2003, p. 123.


espiritualidade em ato

saad zogheib saadzogheib@cidadenova.org.br

Novas bases para a ética

F

© Kamaga | Fotolia.com

ui convidado a fazer uma palestra sobre o momento que estamos vivendo. Ignorar a gravidade seria ingênuo e inoportuno. Do mesmo modo, reduzir tudo a um desfecho apocalíptico, sem volta, seria ir contra a minha fé. O que dizer? Arrisquei uma leitura possível. Embora com as devidas variações, a raiz da violência global tem a mesma origem das pequenas violências urbanas ou domésticas. Por isso, a não violência vivida no cotidiano tem implicações diretas na conflituosidade crescente no plano estrutural. Não se trata de medo ou de covardia, mas de postura racional e elevada de pessoas e povos que optam e constroem processos pacíficos de convivência, garantindo liberdade e justiça social, segurança e educação. Os cristãos, juntamente com toda a humanidade, cresceram em muitos aspectos, mas perderam a força testemunhal e profética ao ser engolidos pela permissividade da sociedade hiperconsumista. O materialismo consumista e liberal se instila com refinada inteligência, solapando resistências ou posições críticas. Com vestes indolores e oferecendo bem-estar, causa a fragmentação no tecido social, violentado pela obsessão de consumir sem pensar no bem comum. Temeu-se, talvez excessivamente, os riscos do materialismo ateu, histórico, e engoliu-se um sistema capaz de esvaziar completamente pessoas e populações, com fantasias e quimeras de bem-estar passageiro. Nas últimas décadas, com a assombrosa conquista científica, o povo sem bases religiosas e cristãs mais enraizadas, ficou a deriva da confusão misturada com uma falsa liberdade e a facilidade de acesso aos bens. Retornaram os bezerros de ouro e outros ídolos sofisticados com as novas tecnologias e a forte máquina de persuasão e formação de opinião, com um aparato publicitário quase irresistível. Quando não somos fiéis nas pequenas coisas é bem possível que não o sejamos nos processos estruturais, como podem ser a vida das instituições, a política, a economia, a vida das igrejas, a gestão dos bens públicos.

O político que não é fiel à própria esposa e aos seus filhos, terá escrúpulo em roubar dinheiro público e trair a causa do bem comum? Seria uma questão interessante de ser averiguada… Apesar da boa intenção em delimitar o âmbito da ética pessoal e da ética social, houve equívocos fundamentais de interpretação. Privadamente posso ser um corrupto, desde que não lese ninguém. No âmbito público, visto a máscara de falso pudor e represento o ridículo papel político de homem de bem. A unidade substancial da personalidade humana não permite variações no desempenho de papéis públicos ou privados. Estamos, sim, em construção, podemos e devemos ter a oportunidade de recomeçar, mas a má-fé premeditada deve ser tratada com clareza e determinação. Urge criar uma consciência pessoal e pública capaz de colocar novas bases para a ética da pessoa e da comunidade, para a ética da economia, como para a ética das instituições. Tudo isso traz segurança e esperança de que o bem tem futuro, e o mal, pela sua própria lógica, se deteriora. Mas se ficamos inertes, o estrago é de grande monta. Há muitos fragmentos de possibilidades ao alcance de cada um de nós. Se iniciarmos, nas pequenas coisas de cada dia, a darmo-nos conta de quanto podemos ser e fazer, crescerá a convicção de que, na difusão capilar de atos de amor, vamos semeando desde a base novos vínculos na comunidade humana. A família se redescobre e se potencia, os vizinhos se olham e se ajudam, o bairro se dá conta de que, unido e organizado, pode fazer muito, as comunidades paroquiais voltam a ser um oásis festivo e sério de convivência e de esperança, muita gente será contagiada por ter a possibilidade de dar o melhor de si, o tempo será melhor aproveitado. E nos daremos conta de que, se vivido, o bem vence o mal.

O autor é bacharel em Direito e Pedagogia


chave de leitura

alberto barlocci revista@cidadenova.org.br

Mapa de um conflito ORIENTE MÉDIO A guerra no Iraque e na Síria provocou uma situação caótica na região. Estão em jogo interesses que exacerbam as diferenças étnicas, políticas e religiosas. Em meio ao conflito o povo curdo ainda sonha com um Curdistão independente

O

s conflitos na Síria e no Iraque, definidos por alguns especialistas como “Siraq”, evidenciaram a existência de situações complexas, cuja história é pouco conhecida no mundo Ocidental. Normalmente ignora-se que se trata de países com uma enorme diversidade étnica e religiosa que a existência de um Estado unitário mantinha sob controle, garantindo, assim, um certo nível de proteção das minorias. Orientados por interesses externos, os conflitos que se instalaram nesses territórios comprometeram equilíbrios por si só muito frágeis.

nos Estados etnorreligiosos, concentrando territorialmente sunitas, xiitas, curdos e cristãos. Estabelecer aliados e adversários nesses conflitos não é simples. Ante a necessidade de deter o Estado Islâmico é preciso muita força num terreno em que as democracias ocidentais não estão dispostas a desembarcar. Por isso recorrem aos curdos, que também estão longe de representar uma realidade social homogênea.

Caixa de Pandora

Após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, as potências europeias se esqueceram da promessa feita durante o conflito: a de fundar o Curdistão. Como consequência, a nação curda ficou distribuída entre a Turquia, a Síria, o Iraque e o Irã. Embora os curdos sejam majoritariamente sunitas, politicamente têm ideias divergentes. Os curdos da Turquia são tradicionais adversários do regime de Ancara. Grande parte deles aderem ao Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), uma agremiação comunista liderada por Abdullah Öcalan. Até meados da década passada, o PKK recorreu às armas para enfrentar o exército turco, deixando um saldo de 30 mil mortos. Atualmente o ideário de Öcalan se distanciou do marxismo-leninismo e se pautou pela defesa do meio ambiente e pelo federalismo municipalista. Freadas na Turquia, essas ideias se desenvolveram em Rojava, região limítrofe da Síria com a Turquia, também conhecida como Curdistão Sírio ou Curdistão Ocidental. Lá está concentrada a minoria curda da Síria, aglutinada principalmente pelo Partido da União Democrática (PYD). O território se divide em províncias e municípios confederados, com autonomia política e econômica. Todo o povo está armado. Suas milícias (YPG) obedecem a um subcomandante feminino e a um masculino. A convivência social compreende yazidis e assírios. Não existe aspiração à independência nem a se tornar um Estado, por conta de um ideário semianarquista. O YPG lutou tanto ao lado como

A Síria seguia esse esquema de convivência religiosa e étnica: os quase 23 milhões de sírios se dividem entre uma grande maioria árabe e sunita, cristãos (10%), xiitas de várias correntes (12%) e drusos (3%). Há ainda os curdos, que representam 9%, seguidos por outros grupos como assírios, yazidis e turcomanos. No Iraque, o governo de Saddam Hussein evitou que a maioria xiita (60% da população) se impusesse sobre sunitas, curdos, cristãos e demais minorias. Algo parecido ocorreu na Líbia antes de 2011, país amigo dos mesmos franceses e italianos que em seguida a atacaram sem remorsos. A intervenção dos Estados Unidos no Iraque em 2003 abriu a tampa de uma verdadeira caixa de Pandora, desestabilizando a região. Em seguida foi a vez da Líbia e da Síria, onde se aplicou o mesmo roteiro. Com o agravante de favorecer os interesses da Arábia Saudita e do Qatar – os verdadeiros patrocinadores do terrorismo –, dedicados à dupla tarefa de impor a própria visão do Islã (salafita) e de conter o seu adversário religioso e geopolítico: o Irã. Desse erro surgiu o que Wesley Clark, ex-comandante da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), definiu como “um Frankenstein”: o Estado Islâmico (EI). O grupo extremista, junto com outras milícias, é utilizado como uma ferramenta num conflito destinado a desenhar um novo mapa do Oriente Médio, dividido em vários peque38

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Uma nação sem Estado


MAR NEGRO

RÚSSIA

GEORGIA

IEREVAN

ANKARA

TURQUIA

TASHKENT

BACU

AZERBAIJÃO

TURCOMENISTÃO

MAR CÁSPIO

CURDISTÃO SÍRIA LÍBANO BEIRUTE

DAMASCO

QUIRGUISTÃO

TBLISI

ARMÊNIA

CHIPRE

CAZAQUISTÃO

UZBEQUISTÃO

ASJABAD

TEERÃ

IRAQUE

HERAT

MAR MEDITERRÂNEO

PALESTINA

BAGDÁ

IRÃ

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AFEGANISTÃO

JORDÂNIA

CAIRO

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PAQUISTÃO

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CIDADE DO KUWAIT

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© frizio | Fotolia.com

ISRAEL JERUSALEM

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contra o exército de Bashar al-Assad, quando o Estado Islâmico (com a cumplicidade da Turquia) invadiu seu território. No final os jihadistas foram derrotados também graças à cobertura aérea dada pelo Pentágono. O exército turco atacou os curdos tanto em seu território como na Síria. Respaldados pelos Estados Unidos, os curdos do Iraque combatem o EI em terra (os membros de seu exército são conhecidos como peshmerga: “aqueles que enfrentam a morte”). Washington deu total autonomia aos curdos iraquenos e enviou representantes diplomáticos à capital do território curdo, Erbil. O líder curdo, Mas’ud Barzani tem uma visão conservadora e nacionalista, aliada à da Casa Branca. Além disso, controlam parte da produção do petróleo. Nesse sentido, são também aliados da Turquia, que respiraria aliviada se o Curdistão fosse estabelecido no norte do Iraque, bem longe de suas fronteiras. Mas não falta um componente curdo nem mesmo no EI. Bingöl e Adiyaman, cidades curdas localizadas no sudeste da Turquia, são centros de recrutamento do EI. No Iraque se alistaram pelo menos 500 curdos. Outros se uniram à Frente al-Nusra, grupo oponente ao governo de Damasco e que se define como a sucursal síria da Al Qaeda. Na verdade cada grupo curdo combate a sua própria guerra dentro de suas fronteiras. O mesmo acontece com as várias organizações jihadistas, milícias e exércitos de dezenas de países que se enfrentam no Siraq (incluindo libaneses do Hezbolah, pasdaran – milicianos guardiões da revolução –, iranianos, russos e ocidentais), cada um com seus objetivos, que complicam ainda mais esse cenário. A guerra nunca é um bom remédio, muito menos para questões complexas.

A região ocupada pelos curdos, que compreende parte da Turquia, da Síria, do Iraque e do Irã, está sinalizada em vermelho no mapa

Quem é quem Xiitas – Facção do Islamismo que considera a legitimidade da sucessão do profeta Maomé a partir das ligações de sangue. Os xiitas consideram Ali, primo e genro do profeta, sucessor legítimo da autoridade islâmica. Dessa compreensão surgiram também divergências doutrinais em relação aos sunitas. Sunitas – Facção do Islamismo que atribui ao consenso (por eleição) a legitimidade da sucessão de Maomé. Salafitas – Movimento ultraconservador e fundamen­talista dentro do islamismo sunita. Yazidis – comunidade étnico-religiosa curda, cujos membros praticam uma antiga religião sincrética, o iazidismo, ligada ao zoroastrismo e a antigas religiões da Mesopotâmia. Drusos – Comunidade religiosa autônoma. Não são considerados muçulmanos pela maioria dos muçulmanos, apesar de alguns drusos dizerem que a sua religião é islâmica. Assírios – Grupo étnico com origem no Crescente Fértil (região que compreende os atuais estados da Palestina, Israel, Jordânia, Kuwait, Líbano e Chipre, além de partes da Síria, Iraque, Egito, Turquia e Irã). O povo assírio não desapareceu após a queda do Império Assírio (612 a.C.), mas passou a constituir minorias étnicas sob o domínio de outros grupos.

O autor é jornalista, editor de Internacional. Mora no Chile Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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abre aspas

chiara lubich revista@cidadenova.org.br

A raiz do terrorismo Num texto de dezembro de 2003, Chiara Lubich aponta uma estratégia para fazer frente ao terrorismo com a qual todos podem contribuir

N

estes últimos anos o terrorismo – uma expressão dade dos homens-bomba, que os leva a uma decisão tão das “forças do mal” – ganhou força e tornou-se terrível, que os move a viverem pelos próprios ideais até uma ameaça à segurança do planeta. “Precisamos o suicídio? Nós também deveríamos ser capazes de dar a nos defender”, afirma-se em toda a parte, no Oci- vida, não para matar nossos semelhantes, mas pelo grande dente. Devem ser tomadas todas as medidas cabíveis para ideal do amor a Deus e aos irmãos. Infelizmente o Ocidenevitar novas tragédias, mas sem cair no erro de provocar te cristão, que venera um Deus feito homem e morto na guerras “preventivas”, numa espiral de violência que colo- cruz por amor aos homens, muitas vezes esqueceu isso. E caria em risco a sobrevivência da humanidade, já duramen- essa negação de Deus é vista no mundo muçulmano como te provada, hoje, por diálogos interrompidos, tratados não uma ameaça. concluídos, muros intransponíveis. Se os países que têm raízes cristãs fossem unidos – pois Todavia o principal objetivo não é militar, e sim políti- Deus é “Um” e deseja a unidade – em vista do bem comum, co: drenar a água na qual nadam os terroristas. Isso pode se manifestassem uma unidade­de intenções para resolver ser feito com a “bomba hidráulica” os problemas da humanidade, talvez­ da paz, em vários níveis: revigorando houvesse uma mudança também organismos internacionais, trabalhannas relações com o islamismo. Sem Nós também deveríamos do pela justa distribuição de riquezas a unidade dos cristãos, Jesus Cristo, ser capazes de dar a vida, de certa forma, não nasce entre nós e e promovendo uma nova primavera espiritual. É necessário, antes de mais por meio de nós, mas continua sendo não para matar nossos nada, resgatar a devida credibilidade uma “promessa” distante para muitas das instâncias internacionais, muitas pessoas. Nós, cristãos, somos quase semelhantes, mas pelo vezes reduzidas à impotência. (…) dois bilhões: que testemunho damos grande ideal do amor Em segundo lugar, parece-me neao mundo? (…) cessária uma obra de justiça planeO aspecto mais visível da unidade a Deus e aos irmãos tária. Os chefes de Estado deveriam é a fraternidade. Este, com certeza, trabalhar por uma real equidade ecoé o caminho certo para ir contra a nômica. Coisa que todos eles, sem corrente, para sanar chagas purulenexceção, afirmam querer buscar quando apresentam seus tas e para alcançar mais plenamente também a liberdade respectivos programas eleitorais. (…) É preciso começar, e a igualdade: a fraternidade que Jesus trouxe à Terra ao mesmo paulatinamente, para não colocar em risco a esta- se tornar nosso irmão e tornando-nos todos irmãos. É um bilidade econômica internacional. Mas deve ser feito todo e caminho válido para quem tem nas mãos o destino da huqualquer esforço para eliminar o escândalo insuportável da manidade, mas também para mães de família, para quem pobreza no mundo, investindo simultaneamente no desen- busca construir a solidariedade, para quem coloca à dispovolvimento de economias locais. E em educação e cultura, sição parte do lucro da própria empresa para eliminar zosem as quais nenhum progresso se sustenta em longo prazo. nas de pobreza, para quem não se rende à guerra… Assim Há um nível talvez ainda mais profundo que exige ação. a fraternidade que vem “do alto” e a que vem “de baixo” se Todos, um dia, nos perguntamos: qual é a raiz da radicali- encontrarão na paz.

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esporte

emanuel bomfim emanuelbomfim@cidadenova.org.br

Participação de Cielo na Olimpíada ainda é incógnita RIO 2016 – natação

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C

hega a parecer anedota, mas não é: um dos heróis do esporte brasileiro em atividade, Cesar Cielo, ainda não tem vaga garantida para os Jogos do Rio. Campeão mundial e olímpico, o nadador sofre com má fase, preocupa dirigentes e torcida e, agora, tenta restabelecer o caminho das vitórias longe daqui. O destino escolhido por ele é a piscina do Phoenix Swim Club, no Arizona (EUA). Cielo está sendo treinado por Scott Goodrich, com quem já trabalhou logo após a Olimpíada de Londres. “Foi o lugar em que treinei e obtive sucesso tanto para o Mundial de Barcelona quanto para o de Doha. Voltar a treinar com o técnico com quem eu ganhei o meu terceiro título mundial (nos 50m livre) faz sentido”, explicou o atleta paulista de 29 anos. Seu treinador no Brasil, Arilson Silva, não foi para os EUA, mas manterá o vínculo com o velocista. A última temporada de César Cielo foi muito abaixo da média. A pior desde 2007, quando conquistou o título no Pan do Rio, seu primeiro triunfo de expressão internacional. No último ano, a frequência de pódios foi trocada por lesões e desistências. A começar pelo Mundial de Kazan, em agosto, na Rússia, quando deixou a competição alegando problemas no ombro esquerdo. Disputou apenas uma prova. Depois ficou afastado das piscinas até outubro, para se recuperar da contusão. Em

dezembro, na seletiva olímpica disputada em Palhoça (SC), seu fraco desempenho (11º lugar nos 100m livre) o levou a abdicar dos 50m livre, sua especialidade. Cielo terminou o ano passado sem conseguir bater os índices para a Olimpíada do Rio em nenhuma prova. Quem o viu em ação recentemente percebeu também um Cesar Cielo mais magro, além de certo abatimento, como se a confiança de anos anteriores tivesse sido abalada. Desde 2012 ele trocou de técnico quatro vezes. Com o nascimento do filho, Thomaz, em setembro, houve queda no ritmo de treinamentos. O que é natural, mas traz consequências imediatas para atletas de alta performance do calibre dele – e acostumado a grandes resultados.

Dono dos recordes mundiais dos 50m livre e 100m livre, Cielo terá mais uma chance de classificação entre os dias 15 e 20 de abril, quando será disputado o Troféu Maria Lenk, no Rio. O evento é a seletiva final para os Jogos do Rio. O atleta espera conquistar as vagas e, ainda, fazer parte da equipe dos 4x100m livre. Esperança de medalha na competição, o desafio que tem pela frente não será nada fácil. Na história, apenas um nadador acima dos 28 anos (Gary Hall Jr.) conquistou um ouro olímpico dos 50m livre. A Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA) trabalha com a meta de três medalhas na modalidade. Se vai poder contar com Cesar Cielo para alcançar o objetivo, ainda é incógnita. Só o tempo dirá. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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psicologia

adnaldo cardoso psicologia@cidadenova.org.br

Projetos de vida

na velhice A

aposentadoria é um acontecimento marcante, podendo ser vivido como uma exclusão do mercado de trabalho e diminuição da renda – gerando problemas de saúde sérios, como o alcoolismo e a depressão – ou como possibilidade de cuidar melhor da saúde e de investir em projetos pessoais engavetados ao longo da vida. Algumas empresas disponibilizam aos funcionários, próximos da aposentadoria, um curso denominado Programa de Preparação para Aposentadoria (PPA). Nesse curso o funcionário tem acesso a conteúdos que poderão ajudá-lo na administração do tempo livre e de projetos de vida pessoal, para que a aposentadoria não se transforme em um vazio desmotivador. George Vaillant, psiquiatra norte-americano, afirma que há, na velhice, um estágio chamado de “mantenedor de sentido”, no qual a manutenção de um sentido na vida contribui para a capacidade de aprendizado, auxiliando os idosos em comportamentos de mudança, ajudando-os a viver melhor. Várias são as fontes de sentido encontradas pelos cientistas Gary Reker, Paul Wong e Edward Prager: relacionamento pessoal, atividades de lazer, preservação de valores e ideais humanos, realização pessoal e altruísmo. No Brasil, uma pesquisa realizada pela terapeuta ocupacional Cecília Xavier apontou que as ocupações e o estilo de vida da juventude e da idade adulta interferem nos projetos de vida na velhice, mas há espaço para novas experiências. Optamos por evidenciar três pontos que consideramos centrais na abordagem dos projetos de vida: viver de forma equilibrada com a realização de atividades diversificadas, identificar a atividade de interesse e concretizá-la, e a vivência do “tempo” nessa etapa da vida. É necessário investir em um estilo de vida equilibrado que contemple diferentes tipos de atividades para manter a saúde física, mental e social. Nesse sentido poderíamos

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destacar os hobbies (atividades manuais, intelectuais ou criativas), as atividades educacionais (cultura, língua estrangeira, música, universidade aberta à terceira idade), as atividades recreacionais (jogos, esporte, dança, espetáculos, viagens) e atividades ideológicas (política, religião, voluntariado). Em seguida, identificar uma atividade de interesse na qual a pessoa se sinta particularmente motivada e que, para ela, tenha relevância social. Ou seja, um objetivo de vida que pode oferecer um sentido de direção, de viver para algo. Uma vez identificado o objetivo, é preciso torná-lo ­realidade. Deve-se passar à ação e colocá-lo em prática! O terceiro ponto é o tempo. Hoje vivemos o tempo da velocidade vertiginosa! Tudo passa rápido, deixando-nos, às vezes, com a sensação de “mãos vazias” e incompletude. O psicanalista Gilberto Safra afirma que somos “carentes de sermos embalados pelo tempo que cura”! Para ele, um tempo de encontro, de conviver, de estar, de esperar. E sinaliza a importância de viver o tempo existencial, marcado pela nossa ação criativa no mundo. Segundo ele, “um gesto criativo que ocorre com ou frente ao outro ser humano ou divino”. Por fim, proponho três pensamentos de diferentes áreas do conhecimento, mas em perfeita sintonia com o tema: “A felicidade é feita de projetos e afetos”, Eliane Pellegrino (psicóloga). “Tudo é autobiografia. A vida de cada um de nós a estamos contando em tudo quanto fazemos”, José Saramago (escritor). “O ser verdadeiro é ato, o ato verdadeiro é amor”, Maurice Nédoncelle (filósofo).

O autor é terapeuta ocupacional, mestre em Ciências da Reabilitação – Saúde do Idoso, titulado em Gerontologia pela Sociedade Brasileira de Geriatria e Gerontologia e membro do grupo de estudos Psicologia e Comunhão.


na ponta do lápis

magnus de carvalho napontadolapis@cidadenova.org.br

Empréstimos

e índices de correção Fiz um empréstimo no banco e pretendo tomar outro para quitar o anterior. Mas quando fiz a simulação, recebi a informação de que esse empréstimo específico seria corrigido pelo INCC (Índice Nacional de Custo da Construção). Gostaria de saber se a correção pelo INCC vai ser maior do que os que envolvem apenas índices como CET, Taxa Selic e TR? Gostaria de ter uma orientação sua sobre quais os índices de correção mais caros e quais os mais confortáveis. Flávia Gonçalves, Brasília

© Minerva Studio | Fotolia.com

Trocar um empréstimo por outro em condições melhores é uma boa alternativa para reduzir o endividamento. Mas para isso será preciso tomar alguns cuidados e o principal é com a Taxa Efetiva, mais conhecida como CET, cobrada pela instituição financeira. CET é Custo Efetivo Total, cobrado na operação financeira. Imaginemos uma cesta de frutas: o CET é a cesta e cada fruta seria representada pelos diversos componentes da operação financeira, desde o indicador financeiro utilizado (INCC, IGPM, INPC, IPCA etc.) à taxa de administração, taxa de inadimplência e o ganho esperado pela instituição. Dentro desse cenário, pode acontecer de uma determinada instituição utilizar um indicador mais favorável que outra e, no entanto, o montante cobrado ser maior. Recordando a analogia com a cesta de frutas, apesar da fruta (indicador) ser melhor, a cesta de frutas (CET) tem um valor final maior. O Índice Nacional de Custo da Construção – Dis-

ponibilidade Interna (INCC-DI) variou nos últimos 12 meses em torno de 7,50%. Já o Índice Nacional de Preço (INPC), no mesmo período, em torno de 11,28%, portanto bem maior. Contudo, é arriscado dizer que este indicador seja melhor que aquele sem conhecer o CET praticado. E o que fazer para saber de forma simples e rápida o CET que a instituição pratica? Apesar de existir uma exigência legal para essa taxa constar de forma clara no contrato do empréstimo ou financiamento, infelizmente há uma prática de, na negociação, não se falar do CET, mas sim que “a minha ‘taxa’ é a menor do mercado”. Na assinatura, no entanto, quando se lê a Taxa Efetiva/CET cobrado, tem-se a surpresa de ver que é maior que a taxa mencionada na negociação. Para não incorrer em tal desconhecimento, o importante é deixar claro que você quer saber o CET da operação. Em caso de prestação fixa, basta acessar de seu celular a Calculadora do Cidadão do Banco Central (www. bcb.gov.br/?calculadora), clicar no item “financiamento com prestações fixas” e preencher os dados. Após essas considerações sobre empréstimos, vale acrescentar uma reflexão: Por que eu precisei do empréstimo? Como anda minha vida financeira? Este empréstimo resolve meu problema? Envie suas perguntas para: napontadolapis@cidadenova.org.br

O autor é cientista contábil, perito, auditor e professor


crônica

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flávia savary revista@cidadenova.org.br

Um dia a mais

016 é ano bissexto – fevereiro surge em todo o esplendor de seus 29 dias! Conheço alguém que aniversaria nessa data quase inexistente. Deve ser curioso celebrar festa tão importante em dias móveis. Ou seja, nos três anos subsequentes, à escolha do freguês, opta-se por apagar as velinhas em 28 de fevereiro ou 1º de março. Boa metáfora da condição humana, já que a mutabilidade lhe é intrínseca. Só que os hábitos nos impelem à estabilidade e a alma imortal anseia o infinito. Já a mente, sempre inquieta, não pode ver uma porta fechada para logo querer abri-la, e o corpo se divide entre essa gritaria toda. Entre tantas forças conflitantes, qual escolher? São Tiago nos esclarece: “De onde vêm as guerras? De onde vêm as lutas entre vós? Não vêm daqui: dos prazeres que guerreiam nos vossos membros?”. Vale a pena ler a epístola de sucintos cinco capítulos, um primor, tanto em termos literários quanto sapienciais. Há algo de novo nessa citação? Não, se a consciência está desperta. Goya, pintor espanhol, alerta que “o sono da razão produz monstros”. E o dito popular acrescenta que “quando o corpo nada no prazer, a consciência morreu afogada há muito tempo”. Sabemos o que evitar, não somos bestas que careçam de rédeas. Será? A gente que não vigie… sob a pátina da civilização, respira uma fera sem freios – basta ver o jornal nosso de cada dia. Viver sob pressão virou desculpa para tudo, de excessos a crimes. Se a bela equação de vida comunitária proposta por Deus, família e trabalho, transformou-se em fórmula explosiva, arrebentar a boca do balão, sobretudo no Carnaval, não apenas é lícito como estimulado. Por quem? Por um sistema que empurra você para fora de si mesmo. Não somos cigarras que, cantando, livram-se da casca antiga para adaptar-se à nova, bem mais a seu gosto. Mas sabemos, de fato, sabemos quem habita nossa pele? De forma positiva ou negativa, volta e meia nos surpreendemos com palavras e atitudes que adotamos. O ato de crescer não traz, embutido no pacote, amadurecer. Assim como outras coisas que ainda há quem acredite cair do céu, amadurecer é questão de escolha. Exige busca, luta, foco, bem como manter a consciência

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desperta, talvez o mais custoso, pois, não raro, isso nos exigirá seguir na contramão. Quem se arrisca a tanto, em um mundo onde são bem-vindos os que aceitam o carimbo de “cópia”? Na contramão, segue quem se arrisca ao encontro consigo mesmo. E o caminho de quem busca o próprio rosto tangencia o sagrado, outro risco. Infelizmente, muitos preferirão trilhas paralelas, deixando o encontro com Deus para depois ou até para sempre. O livre-arbítrio cobra seu preço – podemos aprofundar a relação com Deus ou dar-lhe as costas. O que equivale a dar as costas à imagem, sem retoques, que nos revela tal qual somos. Bela, sinistra ou meio a meio, essa imagem, sob a ótica divina, virá sempre emoldurada pela Misericórdia, virtude que o Jubileu instaurado por Francisco sublinha, em tempos sombrios, de forma luminosa.

“ ” O ato de crescer não traz, embutido no pacote, amadurecer. Amadurecer é questão de escolha

O percurso não é fácil, mas quem disse que a vida era moleza? São de Jesus a advertência e a consolação: “No mundo tereis tribulações, mas tende coragem: eu venci o mundo!”. Na forja do dia a dia, formam-se caráter, personalidade e, quem sabe, santidade. Encontrar a si próprio, encontrar a Deus, encontrar. Mas só encontra quem sacode o comodismo e deixa o acampamento. Igual ao povo hebreu que vagou 40 anos pelo deserto, mas alcançou a Terra Prometida. Aventure-se na senda do autoconhecimento, coragem: em 2016 temos um dia a mais para empreender a viagem!

A autora é escritora, ilustradora e dramaturga. Pela Editora Cidade Nova publicou A roupa nova do arco-da-velha, Prêmio Jabuti 2015


artefatos

Curadoria: adriana rocha e luciano sepúlveda artefatos@cidadenova.org.br

Síntese

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Para representar e festejar a chegada da primavera, Sandro Botticelli (Itália, 1445-1510) criou uma obra-prima de puro lirismo. Através dela ofereceu uma belíssima síntese entre a mitologia clássica e o Cristianismo.

A Primavera (cerca de 1478/1480) Botticelli


luiza vilela teen@cidadenova.org.br

Público ou privado? Alessandra Coelho | PMRJ

teen

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qualidade do ensino fundamental e médio é alvo de grandes discussões: cada um que discorre sobre o assunto lança um dardo. É evidente que a rede pública vem decaindo ao longo dos anos. Oferece aos alunos formação rasa e com percentual cada vez menor de aprovação em faculdades públicas, estaduais e federais. Mesmo com o sistema de cotas, a maioria dos estudantes vindos da escola pública abandona os cursos no primeiro ano acadêmico. E o motivo para este cenário desolador é vergonhoso: o investimento aplicado na educação é insuficiente e mal gerido, na maior parte dos casos. As reclamações cobrem aspectos distintos, como a falta de “pressão” da escola, de comprometimento dos professores – que se ausentam em boa parte da semana ou não demonstram interesse durante as aulas –, atraso da disciplina, descaso de alunos desinteressados em aprender e falta de manutenção de prédios, carteiras e lousas. Um efeito dominó que contribui para a distância em relação ao ensino privado. 46

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É claro que, como tudo na vida, existem exceções. Há escolas públicas que, muitas vezes, demonstram maior desenvolvimento e produtividade que escolas particulares, mas são casos raros. Em geral, a escola particular oferece ao aluno maior comprometimento, tanto com ele quanto com os estudos. Embora a escola pública tenha elevado índice de reclamações, a maior parte dos estudantes reconhece que a questão da solidariedade e da fraternidade é melhor em relação às escolas particulares. Você acaba tendo mais facilidade para arrumar amigos. Grande parte dos alunos que migram do ensino público para o privado afirma que teve dificuldades para sociabilizar com a classe, que é menos unida. As famosas “panelinhas” são seletivas e não se misturam ao resto da turma. Mas quem melhor pode falar é quem vive (ou viveu) nesse meio. Por isso resolvemos ouvir a partir de entrevistas, o que os alunos pensam sobre as escolas públicas


e particulares, as diferenças e semelhanças, e o que sentem a respeito. Gabriela Cataluña Gusmão, 16 anos. Estudou tanto em escolas públicas quanto em particulares. Eu preferi, com certeza, a escola particular. As maiores diferenças que senti foram na questão da “pressão”, pois nas escolas particulares, se você deixa de fazer um dever, você leva ao menos uma advertência. Você precisa pedir licença ao professor para sair de sala, precisa estar devidamente uniformizado, precisa estudar, porque paga para fazer uma prova de recuperação. Nas escolas públicas não, os alunos são mais “livres”, despreocupados. Não há uma cobrança para estudar. Se você não faz o dever de casa, tudo bem. Se tomou recuperação, tudo bem, apenas faça! E eu tive problemas com isso, porque, assim como vários outros, não consegui administrar. Por não ter pressão para estudar, eu apenas não fazia e me dava mal nas provas, porque o professor cobrava tudo o que deu (ou o que deveria ter dado, porque muitos faltam ou simplesmente não dão aula). Raquel Nami, 20 anos. Estudou a maior parte da vida em escola pública. Primeiramente, no ensino, demorei bastante para me adaptar ao colégio particular. Descobri que eu estava quase duas séries atrasada na matéria, mas também me senti­ excluída por esse mesmo motivo. Quando fiz essa mu­ dança, eu era a burrinha da sala. Carlos Eduardo Capeline, 14 anos. Sempre estudou em escola pública. O ensino hoje está muito devastado. Se o aluno quer aprender, ele é impedido por aquele outro aluno que não está nem aí com nada. Dessa forma, o professor pega certo “ódio” pela sala e também não coloca muita fé naqueles que são alunos excelentes… Acho que eu teria um ensino melhor do que eu tenho na pública e mais chances de passar em um vestibular importante se eu estudasse em escola particular. Elizabeth Santos, 17 anos. Sempre estudou em escola pública. Acho que o ensino público poderia ser melhor. Há professores que nem se importam com os alunos, acho que se eles nos dessem uma atenção maior, já ajudariam muito.

Sinais de uma transformação Em São Paulo, muitas escolas públicas foram ocupadas, a princípio, em protesto pela reorganização dos alunos nos colégios. De acordo com a Secretaria da Educação do Esta-

Com base em nossas entrevistas e pesquisas sobre o assunto, elencamos as vantagens e desvantagens de estudar na escola pública ou particular. Confira:

ESCOLA PÚBLICA Contras: P Ensino atrasado em relação à particular P Falta de pressão e incentivo para estudar P Descaso de alguns professores e alunos P Desrespeito entre alunos e professores é mais frequente P Falta de manutenção de carteiras, lousa e do prédio Prós: P Maior entrosamento entre os alunos P Em geral, não é necessário utilizar uniforme P Oferta de merenda gratuita – muitas vezes, saborosíssima! P Oferta de materiais de uso pessoal para estudar P Entrar nas cotas dos vestibulares

ESCOLA PARTICULAR Contras: P Muita pressão para estudar P Dificuldade de socialização P Em geral, obrigatoriedade de uniforme P Visão meramente mercadológica do ensino Prós: P Ensino forte e aplicado P Professores interessados e dispostos a ajudar P Carteiras, lousas e prédios sempre em ordem e limpos P Diretoria mais disposta P Às vezes o respeito entre o aluno e professor é menor

do, chegaram a ter 195 unidades tomadas e, diante dos protestos, o governador Geraldo Alckmin suspendeu a reestruturação, que afetaria mais de 300 mil alunos. Mas isso não os deteve. Uma nova manifestação ocorreu em dezembro passado, na capital, na avenida Paulista, contra o ensino público de má qualidade, exigindo melhorias no sistema. Esse é o espírito da coisa: manifestar-se! Enquanto a nossa voz for ouvida, as coisas mudarão e isso será benéfico para toda a sociedade. Já basta de adolescente mal-educado… Em todos os sentidos! Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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na estante

fernanda pompermayer fernanda@cidadenova.org.br

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“O passado precisa passar”

Livro: Tempos extremos Autor: Miriam Leitão Editora: Intrínseca, Rio de Janeiro, 2014 Páginas: 272 Preço: R$ 26,90 e-book: R$ 11,20 Miriam Leitão é uma consagrada jornalista, de competência inquestionável. Detentora de importantes prêmios – é a terceira jornalista mais premiada do Brasil –, Miriam é também autora de obras ligadas principalmente à sua principal atividade – jornalismo econômico –, que já lhe renderam inclusive dois prêmios Jabutis. Já se embrenhou, ainda, pela seara da não ficção na literatura infantil. Tempos extremos é sua primeira obra ficcional adulta, a realização de “um sonho inconfessado”, em suas próprias palavras. 48

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Os “tempos extremos” a que Miriam se refere são duas chagas que marcaram a história brasileira, ambas ainda abertas, apesar do tempo e da distância entre elas: a escravidão negra do Brasil-Colônia e os negros anos da ditadura militar (1964-1985). Minas Gerais, com seus casarões e vastas fazendas, traz impregnadas as marcas da exploração humana, que a custa de muito suor e sangue transformou terra em riqueza, barro em ouro. A origem mineira da autora, seu interesse pelo tema e vastas pesquisas não tardaram a lhe oferecer os elementos necessários para criar uma trama impecável. O outro extremo, o da ditadura, foi vivido na pele por Miriam. Militante de esquerda, foi “hóspede” dos porões do regime em Vila Velha (ES); torturada como tantos outros, apesar de grávida de seu filho mais velho, Vladimir Netto, hoje também jornalista. Juntar esses dois dramas e criar um enredo atraente não deve ter sido fácil. Miriam apelou inclusive para o realismo fantástico. E conseguiu. Numa fazenda de Minas, ilhada por longos dias de tempestades e longas noites sem lua, dois mundos se encontram. Nas vicissitudes de uma família com vários irmãos as feridas se abrem em busca de explicações e de cicatrização. Fica no leitor a vontade de não perder nenhuma migalha dessa história – da História, a que vivemos como brasileiros. E que continua.

Ela se entregava como se voasse para longe, muito longe – livre, afinal. O talento decide onde nasce. Anárquico e misterioso. O talento não socorria Antonietta [a senhora] e cercava [a escrava] Paulina com sua força. No porão de uma fazenda de Minas, no meio da noite, uma menina escrava sonhava música. Os espíritos dos grandes gênios pareciam estar ali para aliviar seu sofrimento, afagando-a.

Ela tocava o teclado mudo, mas em sua mente a música ressoava soberana.

A autora também escreve sobre literatura para o blog LiterAtos no site de Cidade Nova www.cidadenova.org.br/editorial/instiga

(…) em noites escuras a mente aberta de um homem planeja os caminhos de sua liberdade. Eles serão de luta, risco, violência e fuga. Seus sonhos foram lapidados com a frieza da faca na pedra. Numa fazenda de Minas, um homem sonha com sua liberdade com esperança e desolação, com alegria e dor. Sonha e sofre. Não se engana. Sabe dos perigos, porém busca o destino de risco e chance. Na quinta-feira à noite, eu fiz a mais difícil viagem da minha vida. Tive que chegar até uma fazenda que estava isolada pelas barreiras que caíram nos temporais dos últimos dias em Minas Gerais. A dificuldade maior, no entanto, não era física. Eu fui lá para mostrar à filha de um desaparecido político a foto do pai morto, e outra foto do seu pai torturado no DOI-Codi. Ao lado, o tio dela assistia ao interrogatório. É preciso deixar decantar a dor para entendê-la, mas não espere demais. O passado precisa passar.


som na caixa

emanuel bomfim emanuelbomfim@cidadenova.org.br

Blackstar é o retrato da alma

de David Bowie Artista: David Bowie Álbum: Blackstar Lançamento: Columbia/2016

Por mais que as pistas sobre sua despedida estejam evidentes entre as sete canções de Blackstar, não há quem cogitasse uma morte tão próxima. Ou melhor, que o disco representava um testamento de David Bowie. Até porque a morte metafórica ou ficcional sempre foi um recurso utilizado nas produções do cantor, em especial com os personagens criados ao longo da carreira, como Major Tom. Assim que o álbum saiu, em 8 de janeiro, aniversário de 69 anos do artista, as primeiras impressões (da crítica, inclusive) foram na direção de reafirmar a capacidade de Bowie nunca ser o mesmo. É ainda uma obra enigmática e um tanto estranha – o que, no caso dele, é sempre algo positivo. Três dias depois, com a confirmação da morte do artista (que foi no dia 10), a ficha, então, caiu. Blackstar era mesmo o último capítulo de uma história única na música pop. Um desfecho meticulosamente planejado, mas que permaneceu resguardado apenas pelo seu criador e por aqueles poucos músicos que participaram das gravações. Publicamente ninguém soube da condição de saúde de Bowie até o anúncio oficial publicado por familiares em sua página no Facebook. É possível afirmar, portanto, que ele não quis nosso olhar contaminado pelo prenúncio do fim, durante a difícil batalha contra um câncer. Mesmo em seu momento mais frágil, diante do mistério da morte, Bowie se manteve firme, ciente de que sua música cumpria mais uma vez a missão de provocar.

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em seu fim Ora, feliz então é aquele que degustou o disco antes da comoção generalizada. Que pôde ouvi-lo em estado bruto, com os signos todos em suspensão, sem atalhos concretos para a compreensão do estado atormentado da alma de seu autor. Naqueles poucos dias foi possível projetar uma sensação de esperança sobre alguém que, mais uma vez, escolhia o caminho menos óbvio para se comunicar com as multidões. “Será que ele vai definitivamente voltar à estrada?”, chegou a cogitar este repórter deslumbrado. Segunda-feira, 11 de janeiro. Ouvir Blackstar já não tem mais o sabor do inesperado. Pior: já não tem sequer o sabor da nostalgia. O gosto é amargo. É um luto quase indesejado, pois, agora, está tudo ali. “Estou morrendo para esquecer”, diz, por exemplo, em Dollar Days. “Não tenho mais nada a perder”, afirma em Lazarus, que ganhou um clipe não menos sufocante. Bowie está preso a uma cama de hospital. Tenta se soltar; seu corpo chega a levitar. “Oh, eu estarei livre/ como aquele pássaro/ eu estarei livre”, canta ao final da canção, uma balada de congelar o coração. David Bowie raramente foi tão autobiográfico como nesse disco. Seu lirismo, mesmo quando falava sobre si, vinha travestido em narrativas fabulares ou em observações sobre o entorno. A obra esteve sempre à frente (e acima) de seu autor/intérprete. Talvez por isso ele jamais tenha tentado se repetir. Para criar o novo, era preciso antes implodir a si mesmo. Em sua linguagem, Blackstar soa totalmente original, tendo o jazz como ferramenta para este pop libertário. Mas, em seu conteúdo – e agora sabemos –, Bowie retrata o próprio abismo. Difícil ouvir sem pensar no drama da existência. Cidade Nova • Fevereiro 2016 • nº 2

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claquete

emanuel bomfim emanuelbomfim@cidadenova.org.br

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Sóbrio, filme mostra investigação que denunciou padres pedófilos

Título Original: Spotlight Direção: Tom McCarthy Produção: EUA, 2015 Com: Michael Keaton, Mark Ruffalo, Rachel McAdams A primeira indagação que você, caro leitor, pode estar fazendo – e justificável, por sinal – é: por que Cidade Nova abre espaço para avaliar um filme que aborda a pedofilia dentro da Igreja Católica? Não seria um contrassenso? A melhor resposta, por incrível que pareça, está contida no sentido do título do próprio longa em questão: “Spotlight”. Ou seja, “holofote”. Jogar luz sobre certos fatos, por mais doloridos e indesejáveis que sejam, é o único caminho para reconhecer os desvios, curar as feridas e amadurecer. Assim funciona 50

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na sociedade como um todo, em especial em instituições que exercem poder e influência. E a Igreja não está imune a crises, mesmo que elas representem um arcabouço moral e religioso perante todos. Por mais que o mérito esteja latente e desperte maior interesse ao longo da projeção, não é necessariamente a denúncia o objeto central da produção dirigida por Tom McCarthy. Este thriller se debruça no trabalho realizado por uma equipe de jornalistas investigativos do Boston Globe (batizada Spotlight), no começo dos anos 2000. Os casos de abusos cometidos por padres na cidade eram de conhecimento de muita gente na época, inclusive da imprensa. O desafio não era mais denunciá-los, mas entender e explicar por que, após mais de três décadas de relatos de estupro e de crimes desse tipo, eles continuavam impunes. Essa foi a missão dada ao grupo de repórteres do jornal. Mais do que provar os abusos, era preciso mostrar a estrutura que fazia com que eles fossem acobertados. O “inimigo” não era muito claro, por estar diluído pelos círculos de poder de Boston. Até mesmo dentro do jornal havia quem desconfiasse e desencorajasse tamanho afronte. O maior mérito do filme está justamente em evitar qualquer romantismo em torno da profissão. Não há carga alguma de heroísmo e glamour aplicada àqueles jornalistas, interpretados por Michael Keaton (chefe da equipe), Mark Ruffalo, Rachel McAdams e Brian d’Arcy

James. Eles “simplesmente” fazem o que deve ser feito, respeitando os caminhos da apuração. Que, na maior parte das vezes, pode ser entediante e maçante. A condução é sóbria e não se furta de mostrar os conflitos que mexem com os próprios jornalistas no aprofundamento de uma denúncia. O resultado da cobertura, em suas primeiras reportagens publicadas, implicou no envolvimento de 70 padres só na região. Com a repercussão, centenas de outros casos vieram à tona nos EUA e no resto do planeta (incluindo o Brasil), exigindo uma nova postura da Igreja e de seus representantes hierárquicos. O trabalho da Spotlight rendeu um prêmio Pulitzer, entregue em 2003. Além de lidar de maneira brilhante com um tema espinhoso e de ampla repercussão, Spotlight – Segredos Revelados ainda traz embutido uma reflexão séria sobre os rumos do jornalismo atual, ainda mais no contexto digital. Equipes como essa do Boston Globe são exceções nas empresas de comunicação. E por um motivo simples: porque elas custam caro e não dão retorno imediato. Afinal, as investigações levam meses de trabalho e nem sempre dão resultado. A lógica que impera atualmente é investir no que é rápido e, fatalmente, superficial. A geração de hoje se acostumou a consumir notícia de graça. Isso se reflete na queda de faturamento. E, sem dinheiro, não há Spotlights. E, sem Spotlights por aí, como fica o papel da imprensa?




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