Poderá a Venezuela transformar o caos em dança?

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

REUTERS | Marco Bello

internacional

Homem grita durante um protesto contra a falta de alimentos e contra o governo da Venezuela, em Caracas

Poderá a Venezuela

transformar o caos em dança? CRISE Afundado em grave crise político-econômica, o país caribenho se isola cada vez mais. Será que governo e oposição aceitariam dançar juntos para tirar a nação do buraco?

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uas a três horas é o tempo que o artesão Juan Lopez, 40 anos, costuma enfrentar de fila para comprar 1 kg de arroz nos mercados de Valência, na Venezuela. Mesmo depois de tanta espera muitas vezes ele deixa o local com as mãos abanando. “É uma angústia terrível. Nunca sabemos se vamos conseguir comprar o que

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precisamos, seja remédio, alimento ou papel higiênico”, afirma. A crise enfrentada pelo país nos últimos anos atingiu uma dimensão catastrófica neste ano. Segundo o Instituto Datanálisis, o nível de escassez de produtos nos mercados chega a 82,6%. Além do desabastecimento de itens básicos, a inflação de 180% já é considerada a maior

do mundo e pode superar 700% neste ano, de acordo com projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI). Já o Produto Interno Bruto (PIB) deve encolher 18%. A Venezuela também sofre com cortes diários de eletricidade e de água, além de altos índices de criminalidade. Nesse cenário de insatisfação social, são cada vez mais


frequentes os protestos que pedem a saída do presidente Nicolás Maduro. Segundo especialistas consultados por Cidade Nova, a crise é uma combinação da queda nos preços do petróleo – produto do qual a Venezuela é extremamente dependente –, escassa produção nacional e desgaste político após 17 anos de chavismo.

Trabalho de formiguinha Quando Lopez e seus compatriotas não conseguem comprar os itens desejados, das duas, uma: ou ficam sem ou acabam nas mãos de revendedores que chegam a cobrar cem vezes mais pelo produto. “Quando a pasta de dente custa 35 bolívares (R$ 12), os bachanqueros a vendem a 1500 (R$ 520)”, exemplifica Gloribeth Melendez, 40 anos, que trabalha com comidas rápidas na cidade de Barquisimeto. A lei limita a compra de produtos racionados a poucos dias da semana e a partir de identificação. Mas os bachaqueros burlam as regras e compram sua cota diária, além de uma extra. O nome faz referência a bachaco, uma formiga típica da região, caracterizada por carregar muita comida e trabalhar em grupo. Esses revendedores informais representam 70% das pessoas que estão nas filas, segundo pesquisa do Datanálisis. O levantamento concluiu que um quarto da população aderiu à prática no ano passado, aumentando a escassez de produtos básicos aos demais cidadãos.

Cabeça quente A situação revolta alguns venezuelanos, que chegam a partir para a agressão. “Na semana passada, arrancaram a roupa de uma mulher que tentava furar a fila”, conta­ Gloribeth. “O clima de incerteza ­

afeta o humor das pessoas, que se tornam mais agressivas em uma sociedade que já é tradicionalmente violenta”, observa Lopez. Com taxa de homicídios de 90 para cada cem mil habitantes, o país tornou-se o mais violento do mundo em 2015. A capital Caracas ocupa o primeiro lugar do pódio, com 14 assassinatos por dia. Para driblar a escassez e os preços altos, a troca e a solidariedade entre os venezuelanos é uma alternativa à violência, segundo Gloribeth. “Eu já troquei farinha por pasta de dente, por exemplo”, diz. Ainda assim, a fome aumenta a cada dia e muita gente pede comida de porta em porta. “O salário mínimo está em 350 bolívares (R$ 121) por semana. Isso não dá para nada. Um quilo de arroz custa mil (R$ 347)”, calcula. De acordo com pesquisa da agência Reuters feita com 1.500 famílias, 12% delas não conseguem fazer três refeições diárias, desabafa Gloribeth. O cenário é agravado pela seca causada pelo fenômeno El Niño, que impactou o frágil sistema energético do país. Para economizar energia, repartições públicas só abrem dois meios períodos por semana. A educação também é afetada, já que as escolas deixaram de funcionar às sextas-feiras. Diariamente falta­ energia durante quatro horas. A escuridão aumenta o descontentamento social e os crimes.

Chavismo em baixa Em um país aparentemente sem saída, os venezuelanos buscam oportunidades nas nações vizinhas. O marido e a filha de Gloribeth foram trabalhar no Panamá para sustentar a família que continua na Venezuela. “Como eles, muitos venezuelanos estão migrando para outros países, como Chile e Argentina”, diz.

Para os que ficam, criticar o governo é uma constante. Segundo pesquisa da Datanálisis, sete em cada dez venezuelanos defendem mudança de poder no país e 86% da população culpa Maduro pela crise. “Chávez, no seu tempo, fez bem. Já este presidente é uma marionete que só conta mentiras. Nós não estamos bem com Maduro. E isso vemos nós mesmos, que estamos passando necessidade”, diz Gloribeth­. Ela torce pela aprovação do referendo revogatório que pode tirar Maduro do poder. “As pessoas estão cansadas desse governo, mas o presidente não quer aceitar.” A coalizão Mesa de Unidade Democrática (MUD), de oposição, diz ter recolhido 1,3 milhão de assinaturas para iniciar o processo – seis vezes mais do que o necessário. No entanto, o governo alega que muitas assinaturas são falsas, 10 mil seriam de pessoas que já morreram. O objetivo dos governistas é adiar a consulta. Se o referendo acontecer após 10 de janeiro de 2017 e Ma­duro for derrotado, o vice-presidente, designado pelo próprio chefe de Estado, fica mais dois anos no poder. Já no caso de o referendo acontecer este ano e o chavismo perder, novas eleições serão convocadas ainda em 2016. Quando Chávez enfrentou o mesmo referendo em 2004, foi confirmado como presidente da Venezuela com 59% dos votos. Onze anos depois, o cenário é bem diferente. Com 71,5% de reprovação dos venezuelanos, Maduro facilmen­ te ganhará o título de ex-presidente em um possível referendo. “Mesmo os trabalhadores pobres­, que sempre apoiaram Chávez, agora estão contra Maduro. O mais provável é que ele perca esse referendo, que é um instrumento democrático do país e tem que ser cumprido”, afirma Gilberto Maringoni, c Cidade Nova • Julho 2016 • nº 7

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internacional professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do ABC (UFABC) e autor de dois livros sobre a Venezuela. Ainda assim o especialista não é otimista em relação ao futuro do país no caso de vitória da oposição. “A direita provavelmente vai retirar os direitos sociais conquistados durante esses anos”, aposta Maringoni­. “A população debita a crise na conta do governo. Mas, se chegar ao poder, a oposição enfrentará a mesma crise econômica, porque é uma crise estrutural, não conjuntural.”

Banho de petróleo O petróleo corresponde a 96% da pauta de exportação da Venezuela. Com a queda do preço da commodity em menos da metade, o caos se instalou na economia do país. “Quando­ o preço sobe, o país conhece a prosperidade. Quando desce, vive muitas crises”, diz Maringoni. Com a dependência, a Venezuela não desenvolveu uma indústria diversificada e importa praticamente tudo o que consome, inclusive alimentos. “Ao ter esse peso, o petróleo inibe a instalação de outro tipo de empreendimento econômico”, analisa o especialista. A venda do petróleo ao mercado internacional financia o Estado venezuelano, onde apenas 12% do PIB advém da carga tributária – no Brasil essa fatia corresponde a 35%. Quando o preço do petróleo, remunerado em dólar, cai, diminui também a quantidade da moeda norte-americana em circulação no país, dando vazão à especulação. Enquanto o governo estabelece que cada dólar equivale a 6,3 bolívares, o câmbio praticado nas ruas corresponde a 1.000 bolívares – quase 158 vezes mais que o oficial. A especulação do dólar acarreta inflação interna, além de inibir em30

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préstimos e negócios com empresas internacionais. “A defasagem entre o câmbio oficial e o câmbio paralelo inviabiliza a comercialização de itens que têm grande número de componentes importados, principalmente os produtos industrializados”, diz Maringoni. Pelo mesmo motivo, Latam e Lufthansa pararam de operar voos com escalas na Venezuela ou com destino ao país. Empreiteiras e refinarias também se retiraram. Com a inflação galopante e sem poder converter bolívares em dólares, os lucros tendem a desaparecer. “A defasagem cambial é o principal problema da Venezuela. Enquanto isso não se resolve, não se resolve nada”, diz Maringoni. Como solução, o especialista sugere o aumento da taxa de juros e a tomada de medidas ortodoxas para realinhar o câmbio.

América desunida Sem poder honrar compromissos financeiros e com pouco diálogo, a Venezuela tem se isolado diplomaticamente. Antigos e importante aliados na América Latina, como Argentina e Brasil, atualmente são governados por políticos de centro-direita, o que dificulta as relações com o país. “Brasil e Argentina não têm nenhuma identidade com Maduro ou com o chavismo sob os governos Temer e Macri”, diz Maringoni. “Além disso, deixou de ser interessante comercializar com um país que não paga e não cumpre acordos.” Mesmo a Bolívia, governada pelo bolivariano Evo Morales, tem silenciado sobre a crise no país vizinho. José Mujica, ex-presidente do Uruguai, chegou a afirmar que Maduro está “doido como uma cabra”. Todo o continente é afetado pela queda internacional no preço de

commodities, de cuja exportação é muito dependente. Com as crises econômicas, os governos de esquerda dos anos 2000 também enfrentam resistência da população e tendem a ser substituídos por gestões mais conservadoras, o que Maringoni vê com reservas. “O governo de Maduro é desastroso, mas a mudança para um governo mais conservador pode agravar essa situa­ção e devolver à Venezuela o papel subordinado que teve na maior parte do século 20, de mero fornecedor de petróleo aos países ricos”, alerta. Para Javier Vadell, professor de Relações Internacionais da PUC-Minas, uma guinada brusca à direita deve prejudicar os mais pobres. “Se abrir totalmente a economia, liberalizá-la, vai disparar ainda mais inflação e a população carente perderá o poder de compra”, avalia.

Preparar para dançar Em um país tão dividido politicamente, a única forma de solucionar a crise seria uma transição de governo controlada mediante um pacto social, sugere Vadelli. “A única solução é um acordo sociopolítico entre as forças sociais, um pacto de governabilidade entre governo e forças oposição”, diz o especialista. Segundo ele, países africanos já saíram de guerras civis com acordos desse tipo. Para Lopez, não se deve perder de vista a evolução que o país pode conquistar após a crise. “Como diz o ditado: bote o sapato que o que vem é joropo”, cita, em referência a uma típica dança venezuelana. “Tudo tem um ciclo. O que vem pode ser melhor ou pior, então temos que nos preparar. A Venezuela vai sair dessa”, diz, esperançoso. Toda América Latina espera que o caos possa se transformar em dança no país. Enquanto isso, acompanhemos os passos desse complexo baile.


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