Reunidos na América

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martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Reunidos na América

U

m presidente dos Estados Unidos dançando tango na Argentina e jogando dominó em Cuba: há algumas décadas cenas como essas não passariam de piada ou de mero devaneio. Mas o que antes era impensável se materializou em março deste ano, quando Barack Obama fez uma visita histórica aos dois países. A viagem coroa o processo de diluição da rispidez diplomática entre os Estados Unidos e dois de seus maiores inimigos na América Latina e deve ser o pontapé inicial de mais mudanças. Obama foi o primeiro presidente dos EUA a tocar o solo do país caribenho em 88 anos – o último foi Calvin Coolidge, em 1928. O distanciamento vem dos tempos da Guerra Fria, na década de 1960,

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Casa Rosada | Gobierno de Argentina

Cuba Debate

RELAÇÕES INTERNACIONAIS A reaproximação entre EUA e América Latina acontece após anos de distanciamento político-econômico e brigas diplomáticas, abrindo novas perspectivas para o continente

quando Cuba se tornou socialista e se aliou à antiga União Soviética, enfrentando um bloqueio econômico por parte dos Estados Unidos que dura até hoje. O objetivo era “castigar” economicamente o país pela escolha e evitar que os vizinhos seguissem o mesmo caminho. Na Argentina, um governante da América do Norte não aparecia desde 2005, quando George W. Bush enfrentou as 36 horas diplomáticas mais constrangedoras de seu governo. Na ocasião, o então presidente argentino Néstor Kirchner, o jogador de futebol Diego Maradona e o venezuelano Hugo Chávez aproveitaram a presença de Bush para bradar contra o imperialismo norte-americano e a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), tra-

Obama protagonizou a primeira visita oficial de um presidente dos EUA a Cuba em 88 anos. Em seguida, foi à Argentina, onde se reuniu com Mauricio Macri

tado que os EUA tentavam aprovar no continente. A inédita reaproximação expressa mudanças em curso na política e na economia desses países. Hoje Cuba aceita a entrada de turistas norte-americanos e negociações com dólar. Na Argentina, após 12 anos no poder, o kirchnerismo perdeu, dando lugar ao governo do empresário educado nos EUA Mauricio Macri e as suas medidas pró-mercado.


A viagem de Obama possui mais efeitos simbólicos do que práticos, mas promete trazer consequências à geopolítica latino-americana no longo prazo. Segundo especialistas ouvidos por Cidade Nova, a visita é importante para compreender a atual conjuntura do continente e saber o que esperar no futuro.

Divisor de águas A reunião de Havana é a terceira entre os dois mandatários. Em 2015, Obama e Castro se encontram no Panamá, durante a Cúpula das Américas, e em Nova York, durante a Assembleia Geral da ONU. Mas essa foi a primeira reunião em território cubano, o que pode ser interpretado como um passo histórico, segundo Antonio Jorge Ramalho, professor do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB). “Trata-se do encaminhamento de uma solução duradoura para um problema de política doméstica que há décadas impõe um custo enorme à política externa dos EUA”, afirma. A rixa com Cuba sempre foi criticada pelos países vizinhos e alimentou rancor, desconfiança e um sentimento antiamericano na região, que pode começar a ser suavizado agora. A viagem é realmente um divisor de águas, mas é preciso lembrar que vem em conjunto com outras mudanças já aplicadas pelos países, de acordo com a especialista em Integração da América Latina e professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Regiane Bressan. A reaproximação entre EUA e Cuba tem acontecido aos poucos. Em 2008, Raúl Castro começou a implementar reformas para abrir a economia cubana, criando um pequeno setor privado. No ano seguinte Obama ganhou as eleições

e colocou como metas o fechamento da prisão em Guantánamo, em Cuba, e o fim do embargo econômico ao país. Os alvos não foram atingidos, já que dependem de aprovação no Congresso norte-americano, controlado pela oposição, mas seguem na agenda e contam com o apoio da maioria da sociedade dos EUA. Mesmo com esses entraves a diplomacia se fortaleceu. Em dezembro de 2015 houve um anúncio simultâneo de normalização das re­ lações diplomáticas, seguido de medidas como a reabertura das embaixadas, a volta do uso do dólar, a flexibilização de viagens de americanos e maior intercâmbio comercial.

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Os EUA compreenderam que há um custo em dar as costas para a região, como fizeram no pós-11 de Setembro

Democracias

Já a abertura política engatinha. Por parte de Cuba, houve a liberação de mais de 50 presos políticos exigida pelos EUA, que, por sua vez, retirou o país da lista de nações terroristas. Em Cuba, Obama disse que a falta de respeito aos direitos humanos é um dos obstáculos para a normalização plena das relações, mas reiterou que cabe aos cubanos decidir sobre o futuro do país. Já Castro defendeu a saúde pública e a educação gratuita como um direito humano, garantias inexistentes nos EUA. “Todos os países vivem uma democracia que não é ideal. Enquanto

em Cuba se garante serviços básicos e alimento para todos os cidadãos, nos EUA há desigualdade econômica, mas é garantida a liberdade de expressão”, explica Bressan. Ainda assim, segundo ela, começam a aparecer os primeiros pobres em Cuba e o desejo dos jovens pelo consumo aumenta, tornando insustentável a economia nos moldes atuais. “Cuba pode ser mais um mercado para os EUA. A proximidade é evidente: são apenas 100 km de distância entre o país e a ilha”, afirma a especialista. “Além disso, o comunismo dos anos de 1960 perdeu força e a geração ­atual em Cuba é ávida por consumo. As mudanças estão só começando.” A expectativa de Obama é de que a abertura econômica seja mais eficaz do que o isolamento e impulsione maior flexibilização do regime político cubano. A ideia é que, quanto mais estrangeiros visitarem a ilha e negociarem com os cubanos, mais próximos estarão da democratização política. Em 2015, houve um incremento de 77% no número de turistas dos Estados Unidos em Cuba. Como a visita aconteceu no último ano do mandato de Obama, analistas questionam a manutenção dessas intenções no longo prazo. “Os grupos contrários à reaproximação entre os dois países são muito organizados e capazes de reverter esse processo, especialmente se os republicanos lograrem eleger o próximo presidente dos EUA”, opina Ramalho. Já o argentino Andrés del Rio, professor de Ciência Política da Universidade Federal Fluminense (UFF), acredita que “a retomada das relações na América Latina é mais política de Estado do que de Obama­, então deve ser seguida”.

Guinada à direita Mauricio Macri tomou posse como presidente da Argentina proCidade Nova • Maio 2016 • nº 5

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internacional metendo reparar as relações do país com o mercado e a diplomacia internacionais. Dito e feito: em apenas cem dias de governo, recebeu três mandatários estrangeiros – o primeiro-ministro da Itália, Matteo Renzi, o presidente da França, François Hollande e, finalmente, Obama. “Estou impressionado porque ele [Macri] fez rapidamente muitas das reformas que prometeu para gerar um crescimento econômico sustentável e inclusivo, para reconectar a Argentina com a economia e a comunidade globais”, discursou Obama sobre a gestão macrista, caracterizada pela guinada à direita após a “Era K”, quando prevalecia uma retórica anti-neoliberal e anti-EUA. Entre as reformas econômicas feitas por Macri estão a anulação dos controles de capital e câmbio, a retomada de negociação com os credores internacionais e o pedido de novos empréstimos. Para apoiar o colega argentino na missão de atrair investimentos estrangeiros, Obama chegou acompanhado de 400 empresários. Porém o apoio político que Obama ofereceu a Macri deixa de fora o sentimento de metade dos mais de 40 milhões de argentinos, que não votaram nele. Alguns dos seus anúncios são impopulares, como a demissão de 100 mil funcionários públicos. Para enxugar os gastos, o governo também deixou de subsidiar a energia, resultando em aumento de até 300% nas contas de luz. Obama chegou a dizer que o governo de Macri deve ser visto como “um exemplo aos outros países desse hemisfério”, demonstrando o incentivo dos EUA a medidas pró-mercado em toda a América Latina. Para del Rio, o fato de a Argentina ter eleito um presidente de direita legitima um efeito dominó em outro países. “Nas manifestações no Brasil, vários cartazes traziam escri30

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to ‘Troco Dilma por Macri’. Há uma reverberância pela ideia de gestão e eficiência, representada por Macri, na América Latina”, diz. Obama chegou à Argentina em uma data delicada: 24 de março, exatamente 40 anos após o golpe militar de 1976. Mesmo sem pedir desculpas às vítimas da ditadura, que contou com o apoio dos Estados Unidos, o norte-americano homenageou as vítimas e anunciou a abertura de arquivos militares e de inteligência.

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A retomada das relações na América Latina é mais política de Estado do que de Obama, então deve ser seguida mesmo depois dele

“O presidente Obama quis com isso simbolizar que o país mudou sua orientação e já não se comportaria da mesma maneira”, afirma Ramalho. Ainda assim, grupos de direitos humanos viram a visita com desconfiança e não aceitaram a participação do norte-americano nas principais homenagens às vítimas desse momento obscuro da história latino-americana.

Reunidos Desde 2011, concentrado na luta contra o terrorismo no Oriente Médio, Washington se afastou da região vizinha. Nesse período chegou ao poder uma grande safra de líderes de esquerda na América Latina, alimentando um forte sen-

timento antiamericano e de aproximação com a China, ávida por produtos como minérios, alimentos e combustíveis. Mas a roda voltou a girar: a economia dos EUA se reergueu, enquanto a crise passou a infectar os governos ao Sul e o crescimento chinês se retraiu, deixando espaços por preencher. “Estamos procurando novos parceiros comerciais, então o mercado dos EUA acaba sendo muito atraente”, observa Bressan. A crise política veio no pacote, resultando no avanço da oposição na Venezuela e na Bolívia, nos protestos anti-PT e pró-impeachment no Brasil e na vitória de Macri. Mais um ponto para os Estados Unidos. “Os EUA compreenderam que há um custo em dar as costas para a região, como fizeram no pós-11 de Setembro por cerca de uma década. Começam, agora, a tentar restabelecer uma posição de influência na região, em prol de uma agenda política e econômica mais favorável a seus interesses”, diz Ramalho. Segundo ele, o contexto é favorável para que os EUA voltem a desempenhar um papel mais influente na região. Ao mesmo tempo, considera que a aliança com os EUA pode provocar um enfraquecimento da relação entre os países latino-americanos, que nos últimos anos fortaleceram seus laços. “O aumento da influência dos EUA na região e seu empenho em convencer vários países a estabelecer relações bilaterais privilegiadas pode desviá-los do consenso em prol do adensamento da cooperação regional, o que seria um erro estratégico no longo prazo”, alerta Ramalho. Até que a roda da História dê outra volta, a geopolítica e a geoeconomia da América Latina prometem sustentar valores aliados ao governo norte-americano nas próximas décadas. Esperemos pelas próximas páginas.


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