Pode apostar?

Page 1

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

Pode apostar?

Città Nuova

Brasil

LEGISLAÇÃO Os jogos de azar são alvo de debate na Câmara dos Deputados e podem voltar a ser permitidos no país após 70 anos de proibição. A decisão coloca em jogo o destino de milhões de pessoas e de bilhões de reais

P

roibidos desde a década de 1940, os jogos de azar podem voltar a ser legalizados no Brasil. No final de 2015, a Comissão Especial de Desenvolvimento Nacional, da Câmara dos Deputados, aprovou um projeto que estabelece o funcionamento de cassinos e bingos, além de regularizar o jogo do bicho. O texto prevê o funcionamento de cassinos em complexos integrados de lazer, como hotéis e restaurantes – uma maneira de ligar os jogos ao turismo e potencializar os lucros da atividade. A ideia do governo é aumentar a arrecadação de impostos. Os ganhos são estimados entre R$ 15 bilhões a R$ 20 bilhões por ano, o equivalente a mais da metade dos R$ 32 bilhões que poderiam ser ob-

12

Cidade Nova • Março 2016 • nº 3

tidos com o impopular retorno da Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF). Entre as nações turísticas, apenas Brasil e Cuba não permitem apostas, e, à primeira vista, perdem muito dinheiro com isso. No entanto, por trás da atividade bilionária, estão o risco do vício ao indivíduo e as consequên­ cias do comportamento compulsivo às famílias e suas finanças. Além disso, os jogos são de difícil fiscalização, podendo estar associados à lavagem de dinheiro e à criminalidade. Deveríamos atualizar nossa legislação, liberando os jogos de vez e lucrando com isso, ou essas ameaças são suficientes para impedir a regulamentação? Quais seriam as consequências da legalização para a sociedade brasileira? Para esclarecer

essas questões, Cidade Nova entrevistou parlamentares e especialistas sobre os benefícios e os malefícios da prática no país.

Roleta russa Um ano e meio. Esse era o tempo de espera para um apostador viciado iniciar um tratamento no Hospital das Clínicas (HC), em São Paulo, quando o jogo era liberado. Hoje, o paciente com ludopatia – vício compulsivo ou patológico em jogar – passa apenas um mês na fila até ser atendido. A proibição acabou com a demora porque o número de viciados diminuiu, observa Henrique Bottura, psiquiatra do Ambulatório do Jogo Patológico do IPq (Instituto de Psiquia-


tria do HC). Segundo ele, com a regulamentação, a fila voltará a crescer. “Estudos mostram que sempre que o jogo está disponível, a prevalência de jogadores patológicos é maior. Além disso, pessoas que estão mais expostas a cassinos e bingos acabam desenvolvendo um quadro de patologia com mais frequência”, explica Bottura.

Parece cocaína Interessados em experimentar emoções intensas e correr riscos, os viciados em jogos têm comportamento parecido a adictos a drogas. Eles podem mentir, roubar e colocar em risco seus relacionamentos só para manter a atividade. Raphaela Assis, carioca que trabalha no Uruguai atendendo jogadores brasileiros pela internet, já cansou de receber mensagens ásperas de clientes desesperados pela liberação de créditos para a próxima partida. “Eles ficam muito ansiosos. Se o sistema atrasa dois minutos para liberar, já reclamam”, diz. “Muitas vezes, também notamos pagamentos muito altos e seguidos de uma mesma pessoa, mas não podemos fazer nada”, explica Assis. No entanto, para um ludopata, admitir o vício pode ser tão difícil quanto para um dependente químico. Assim como os entorpecentes, o vício em jogo provoca alterações cerebrais e chega a causar crises de abstinência, como irritabilidade, desconforto físico, depressão, ansiedade e até mesmo tentativas de suicídio. O psiquiatra Bottura explica a semelhança entre os dois vícios: “Segundo um estudo feito pela Universidade de Harvard com ressonância magnética em tempo real, as áreas do cérebro ativadas quando uma pessoa está jogando são muito semelhantes às de uma pessoa que consome cocaína”.

Patologia A inclusão oficial do vício em apostar no rol das patologias ocorreu em 1992, quando a Organização Mundial de Saúde citou o jogo compulsivo no Código Internacional de Doenças. No mundo, estima-se que de 1% a 3% da população sofra desse mal. No Brasil, 4 milhões de pessoas têm problemas graves com apostas, segundo estudo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). No total, 2,3% da população é afetada – 1% é formado por jogadores compulsivos e 1,3% por apostadores prestes a desenvolver a doença. Entre os entrevistados por Cidade Nova, é unânime a opinião de que o jogo pode viciar. Os defensores da regulamentação, por sua vez, argumentam que o índice é baixo diante do universo total de jogadores, que não deveriam ter a liberdade cerceada por um problema isolado. “Se a pessoa quer jogar, ela joga pela internet, vai a um bingo clandestino ou a um cassino no Uruguai. Não cabe ao Estado dizer o que devo fazer da minha vida”, defende o deputado João Carlos Bacelar (PTN-BA). “O índice de viciados em álcool é de 10% a 15%, muito maior. Mesmo assim, nunca ninguém defendeu o fechamento dos bares. Há outras maneiras de resolver a questão”, opina. Para Bottura, o número de casos graves é subestimado pelos defensores dos jogos. Segundo o psiquiatra, deve-se levar em conta que o vício não afeta apenas a vida dos jogadores, mas também a de seus familiares. “Considerando uma família de quatro pessoas, são 8 milhões de brasileiros que sofrem por causa do jogo”, calcula.

Crime A regulamentação representa o risco de termos novamente instru-

mentos poderosos de lavagem de dinheiro, como eram os bingos antigamente, apontam os contrários à nova lei. Para o deputado José Carlos Hauly (PSDB-PR), a fiscalização é a principal dificuldade. “O governo não consegue controlar os grupos que regem os jogos. Eles são muito mais fortes e ágeis do que o Fisco”, afirma. Contrário à medida, o parlamentar é autor de um projeto de lei pela proibição do uso de cartões de crédito em jogos na internet, reprovado por seus pares. Na teoria, lavar dinheiro em apostas é fácil. Isso porque as casas de jogos lidam com muito dinheiro em espécie, o que facilitaria truques de contabilidade. Basta combinar com o dono da casa e simular um prêmio. O dinheiro, mesmo que proveniente de corrupção e de outros crimes, sai limpo. Na prática, porém, a façanha pode ser mais difícil do que aparenta. “Existe a regra de que prêmios acima de R$ 10 mil têm de ser informados ao Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras]. Ninguém vai lavar mil reais, e, sim, milhões. À medida que a casa de jogo notifica o Coaf dizendo que um indivíduo ganhou cinco prêmios, o órgão vai desconfiar e fiscalizar”, contrapõe Magno José, jornalista especializado em apostas e presidente do Instituto Brasileiro Jogo Legal (IJL). O desincentivo é ainda maior se levarmos em conta a taxação de 27% sobre o prêmio no Imposto de Renda. “Lavagem de dinheiro no jogo é caro e arriscado. Há prestadoras de serviço que fazem isso de maneira muito mais eficaz e barata”, afirma o jornalista. Magno José defende ainda que a máfia no jogo é coisa do passado. “Dizer que o jogo é ambiente propício ao crime é conversa fiada. Hoje, as empresas dos cassinos têm ações Cidade Nova • Março 2016 • nº 3

c 13


Brasil

martina cavalcanti revista@cidadenova.org.br

em bolsas de valores, são companhias sérias”, argumenta. Para ele, basta haver uma legislação forte, prevendo controle e fiscalização, além de uma agência reguladora dos jogos, para deixar toda a operação às claras.

Economia Outro argumento a favor da regulamentação é a necessidade de retirar a atividade da clandestinidade, formalizar empregos e gerar receita. Já que muita gente joga no Brasil ou vai a outros países para apostar, não seria melhor liberar de vez a atividade no país e reverter esse dinheiro para o Estado e para a sociedade? Para Magno José, a resposta é sim. “O Brasil tem que encarar a questão do jogo como atividade econômica que gera dividendos para serem aplicados em projetos sociais do governo”, enfatiza. Segundo ele, apenas com a atividade clandestina atual, os cofres públicos estariam deixando de arrecadar R$ 6 bilhões por ano. Após a regulamentação e com a criação de cassinos, o potencial de arrecadação seria de R$ 17 bilhões e a criação de empregos chegaria a 500 mil, de acordo com o especialista. Como estariam em centros de entretenimento, os cassinos poderiam movimentar áreas subutiliza-

Tem volta A taxa de melhora de pacientes com ludopatia felizmente é significativa. De dez pacientes que iniciam tratamento no HC, somente três desistem. Dos sete que permanecem, cinco melhoram e param de jogar. Segundo o psiquiatra Henrique Bottura, o tratamento é gratuito e se baseia em medicamentos, acompanhamento psicoterapêutico e na inserção de atividades novas na vida do paciente. “Com o jogo, eles perdem o prazer de socializar. Incentivamos a prática de esportes e de outras atividades”, explica Bottura. Para participar, é necessário ligar para (11) 3069-7805 e agendar um horário para realizar uma entrevista que seleciona pacientes patológicos.

das do ponto de vista turístico. “Las Vegas, nos Estados Unidos, mundialmente conhecida pelos jogos, não sobrevive mais de cassinos. A cidade tem o maior número de convenções e o maior parque hoteleiro do mundo. Uma coisa puxa a outra”, exemplifica.

Concentração Contrário ao projeto, o senador Cristovam Buarque (PDT-DF) diz que os jogos não criam riqueza e ainda concentram renda. “Essas pessoas estão supervalorizando a renda gerada pelo jogo. Além disso, é uma renda que já está aí, circulando na economia familiar”, afirma. “O jogo é simples transferência de dinheiro de quem joga e perde para

Você é contra a legalização dos jogos de azar? Para além de fatores econômicos e de Saúde Pública, há ainda uma questão fundamental a ser respondida, a de caráter ético. Digamos que fosse possível arrecadar volumosos impostos com os jogos e limitar ao máximo o risco do vício. Ainda assim seria desejável a liberação da atividade ou a prática desses jogos é ruim em si mesma, independentemente das consequências econômicas? Em outras palavras, que sociedade desejamos criar e que tipo de práticas queremos incentivar? Com base nessa reflexão, a ­Associação Nacional por uma Economia de Comunhão (Anpecom) e a Civitas, Associação Cultural e de Cidadania promoveram uma petição, por abaixo-assinado, para pressionar o Congresso Nacional a rejeitar a legalização dos jogos de azar. Para assinar, acesse: https://goo.gl/vubPJb 14

Cidade Nova • Março 2016 • nº 3

quem ganha, aos funcionários e ao empresariado”, opina. Hauly também desconfia das vultosas cifras citadas pelos defensores dos jogos. “Os cassinos tomariam espaço da loteria federal, que movimenta R$ 15 bilhões por ano e comporta 12 mil empregos no Brasil inteiro”, calcula. “Não há tanto espaço assim para mais negócios.” Segundo ele, se o projeto for aprovado, operadores de cassino do sudeste asiático e dos Estados Unidos ficariam com o grosso do lucro, atual­mente captado pela Caixa Econômica Federal. “Só a rede lotérica dá um lucro extraordinário de R$ 8 bilhões para o governo aplicar na área social”, cita o deputado. Apesar de ser tributariamente atraente para o governo no atual momento, a volta do jogo não compensa os estragos financeiros do vício, declara o psiquiatra Bottura. “A pessoa não consegue se controlar. O que ganha num mês de trabalho, gasta numa madrugada”, afirma. “Estamos em crise, quando cada centavo economizado é importante. Imagina para uma família de jogador.” Os fatores econômicos, sociais, médicos e legais são as cartas na mesa para avaliar o tema. A discussão, que coloca em jogo o destino de milhões de pessoas e de bilhões de reais, continuará este ano no Congresso brasileiro. Qual é a sua aposta?


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.