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Mário Rui Araújo, higienista oral e orador do XX

Se os higienistas orais conseguirem ampliar a sua representação social e saírem do lugar-comum, a importância será cada vez mais real e fundamental

Partilha da opinião de que a classe dos higienistas orais continua a ser encarada como o “parente mais pobre” no contexto global dos profissionais do setor da saúde oral?

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Para algumas pessoas que olham para a saúde oral de uma forma antiquada e que pararam no tempo, acredito que olhem dessa maneira. Quando se juntam equipas de bons profissionais, sabemos que o sucesso é garantido. Hoje em dia, aposta-se muito no mesmo modelo, e a própria diferenciação é muitas vezes pouco pensada. Numa área onde há cada vez menos espaço para crescer, as clínicas, os consultórios (falando do privado) deveriam procurar caminhos para encontrar novos formatos, com atores capazes de mostrar serviços e benefícios para os pacientes de forma a desfrutarem de uma participação de mercado incontestada. A forma como os higienistas olham para a comunicação do paciente, como são capazes de individualizar os problemas de cada um enquadrando-os na sua realidade social, podem criar formas cada vez mais individualizadas de intervir, aumentado as perceções para o universo da saúde oral, a satisfação, os resultados, enfim, um conjunto de detalhes que podem marcar a diferença. Os higienistas orais estão preparados para atuarem dessa forma, mas para isso precisam abandonar as ideias de sorte, acaso e injustiças. Não se agarrem a isso, o caminho para o nosso desenvolvimento e sucesso depende mais das nossas próprias ações do que dos fatores externos.

Em que aspetos considera que estamos ao nível, abaixo e/ou acima da média europeia em matéria de hábitos de higiene oral?

Acho que Portugal tem nichos. Alguns ainda precisam de melhorar muito e outros registam hábitos que já se aproximam das boas médias europeias. Atenção que na Europa há muitos países onde os hábitos de higiene oral são muito deficientes. As disparidades são muito grandes. Há outro facto que tenho presenciado, até porque já trabalhei em diversas zonas do país: quando fazemos um bom diagnóstico comportamental do paciente, quando percebemos as suas necessidades e capacidades, quando levamos em conta as suas especificidades culturais e sociais, as pessoas demonstram uma enorme capacidade de aprender e mudar. Basta acreditar e trabalhar eficazmente com eles, isso traz-nos, a nós profissionais, uma enorme responsabilidade. O que é que interessa andar sempre a dizer que os portugueses têm uma má higiene oral, das piores da europa? Está nas nossas mãos alterar esse processo. Muitos dos que estão sempre a dizer que a higiene oral dos portugueses é má, nunca fizeram nada realmente eficaz para a mudar. É preciso atuar bem, comunicar bem! Comunicar bem não é dar ordens, é saber fazer o processo comunicacional de forma eficiente! Há que trabalhar no sentido de mudar essa situação. É preciso entender que mudar uma atitude, um hábito, não se baseia em dar ordens aos pacientes para escovarem os dentes ou usarem um escovilhão. É preciso criar esses comportamentos, percebendo os hábitos, as razões, a vida das pessoas e depois criar uma estratégia baseada em fatores comportamentais, sociais e psicológicos. Quando isso funciona, conseguimos ser eficazes na mudança de comportamentos.

Mário Rui Araújo é licenciado pela Universidade de Washington (EUA), Mestre em Psicologia da Saúde pelo Instituto Superior de Psicologia Aplicada e Doutorando em Psicologia na Universidade de Lisboa. Em 2018, foi distinguido com o prémio de “Melhor Higienista Oral do Ano”, atribuído pela APHO com o patrocínio da MAXILLARIS.

O XX congresso da Associação Portuguesa de Higienistas Orais (APHO) tinha data prevista para 17 a 19 de abril passado, mas devido ao surto de COVID-19 foi, entretanto, adiado para os dias 29 e 30 de janeiro de 2021.

Mas deixe-me referir ainda outro facto: nos últimos 30 anos tem-se trabalhado muito bem a saúde oral a nível público. Quando se diz que não havia intervenções em saúde oral no Serviço Nacional de Saúde (SNS) é uma grande mentira e uma grande injustiça. Se olharmos para os resultados dos estudos nacionais das últimas décadas, há resultados muito positivos. Reduzimos os índices de cárie dentária e a literacia de saúde oral é hoje muito melhor. Podemos melhorar? Há nichos com elevados problemas de saúde oral? Sim, claro, mas não podemos só criticar, já fizemos muito e as equipas que nos centros de saúde têm trabalhado a saúde oral nestas últimas décadas têm feito um excelente trabalho de base. Nesse aspeto, convido a ler o artigo publicado sobre os resultados do último estudo nacional, onde os rastreiros foram realizados por médicos dentistas. É muito claro ver que nas zonas do país onde se investiu em higienistas orais, os resultados são os mais positivos na prevenção da cárie dentária (doi:10.1922/CDH_4016Calado05). É claro que há sempre coisas a fazer e a melhorar, que a área do tratamento é deficitária para muitos portugueses, mas vamos olhar para o que foi feito e pensar. Às vezes parece que nos esquecemos do básico das medidas de saúde pública e avançamos para novas medidas não olhando para o histórico, começando novas estratégias do zero. Acho um pouco irresponsável e um gasto irreal de recursos.

Tem também larga experiência de ensino neste domínio. Que lacunas existem à escala nacional na licenciatura em Higiene Oral?

Portugal tem dos melhores higienistas orais do mundo. E olhe que eu não sou nada nacionalista; sou até bem crítico deste país. Mas orgulho-me imenso do que temos feito ao longo dos anos na formação de higienistas orais. Se pensarmos na sua génese — início dos anos 80 — os higienistas orais eram um curso de formação profissional, e numa época em que esses cursos proliferavam por aí e em que, provavelmente, 99,9% nunca deram em nada, esta profissão cresceu, e de que maneira. O trabalho feito pela equipa de professores da então Escola Superior de Medicina Dentária foi fantástico. Hoje somos uma licenciatura, temos dos maiores rácios de doutorados a nível mundial e uma forma de olhar para a saúde oral diferente, contemporânea, adaptativa, humanizada e altamente científica. É um orgulho!

Do seu ponto de vista, a necessidade de limitar o volume de estudantes (numerus clausus) nas licenciaturas em Medicina Dentária também se aplica aos cursos de Higiene Oral?

São situações diferentes, no que diz respeito aos higienistas orais eu acho que na realidade precisávamos de mais profissionais, é essa a tendência nos principais países da Europa. E atenção, esses profissionais não estão nem nunca irão competir com os médicos dentistas, na realidade, eles trabalham com os médicos dentistas de forma a potenciar as capacidades técnicas dos médicos, a qualidade e longevidade dos tratamentos, a hermenêutica dos planos de tratamento e a literacia dos pacientes. Não é competição, é entreajuda. Se quiséssemos apostar nos vencedores deste processo, eu diria que é uma quádrupla, ganhamos todos: pacientes, médicos, higienistas e a saúde oral.

Que importância atribui à formação pós-graduada dos higienistas orais e qual é o cenário atual que se vive neste âmbito?

A formação pós-graduada é fundamental para a constante evolução dos profissionais. Uma formação pós-graduada de qualidade é um pilar fundamental para um constante desenvolvimento das profissões. Infelizmente, algumas formações são muito básicas e a oferta ainda tem imensa margem para melhorar. Temos um conjunto de profissionais de qualidade e hoje é muito fácil trazer a Portugal pessoas de todo o mundo, capazes de aumentar a qualidade dos nossos profissionais. É uma área com grande capacidade de evolução.

É um dos oradores do XX congresso da APHO, com o tema “Mudança de comportamentos em saúde oral: teorias, tecnologias e outras manias”. Pode adiantar-nos os contornos da sua intervenção?

Fui convidado para falar no congresso sobre o meu percurso do Doutoramento em Psicologia. Para mim a saúde oral tem muito a ver com a gestão de comportamentos, quer os comportamentos que geram doença, quer aqueles que nos ajudam a ficar saudáveis. A forma como podemos gerir esses comportamentos é algo que me fascina e é uma área à qual tenho dedicado muitos anos da minha carreira. O meu trabalho tem sido nesta área, criar estratégias de intervenção em saúde oral que sejam individualizadas e que melhorem os resultados de saúde, quer ao nível da redução das doenças, da melhoria dos tratamentos efetuados e da perceção dos pacientes sobre os seus problemas e formas de manter o estado de saúde. O sucesso da psicologia adaptada à saúde oral é algo que me fascina. O que vou tentar apresentar é um pouco desse fascínio e dos resultados que obtivemos quando misturamos estratégias de mudança de comportamento baseadas na evidência, e não no senso comum, e a ajuda de algumas tecnologias de comunicação ao serviço da consulta de saúde oral.

Na sua opinião, qual é a estratégia mais adequada em termos de prevenção das principais patologias orais.

Portugal às vezes é estranho. Nos últimos 30 anos trabalhou- -se muito bem na prevenção das doenças orais, os números estão lá. De repente, sem olhar para esses números, que representam uma avaliação bem feita, quer-se mudar tudo, apostar em estratégias de contraciclo, muito mais dispendiosas, diria mesmo propagandísticas. É uma pena, numa altura que deveríamos trabalhar baseados na evidência, parece que trabalhamos baseados na política, na opinião pessoal, na defesa dos nossos nichos pessoais e profissionais. Não há que inventar, temos de exigir e avaliar melhor e sim, claro, teremos de melhorar onde é preciso. Esta é uma conversa muito séria e provavelmente longa, mas uma intervenção em saúde oral através dos centros de saúde com higienistas orais preparados para a triagem prevenção e educação em saúde

O nosso papel enquanto profissionais é criar políticas de comunicação que sejam eficazes para uma grande maioria de pessoas e depois atuar individualmente

oral, monitorizando muito bem estas atividades, parece-me fundamental e tem dados bons resultados em todo o mundo e em Portugal. Depois, já temos uma cadeia enorme de médicos dentistas, bem preparados, bem equipados e que já trabalhavam para o SNS. Não sei se os espaços de Medicina Dentária nos centros de saúde serão a solução. Para as urgências talvez, mas a utilização da rede privada, com auditorias eficazes (e isto é fundamental), potenciando assim o trabalho dos bons profissionais, com o aumento dos tratamentos contratualizados, o alargamento a outras populações, uma boa comunicação e políticas de referenciação eficazes, tudo junto seria provavelmente uma forma mais eficaz de atuar com vantagens para todos: profissionais, utentes e erário público. Aliás, toda esta situação pandémica que vivemos vai exigir novas respostas, vai exigir uma ginástica mental séria e ética para não deixarmos cair a saúde oral e os resultados que obtivemos ao longo destes anos. Nada será como dantes do ponto de vista de estratégia de intervenção, mas tudo terá de ser como dantes, e até melhor, no que diz respeito ao sucesso da prevenção e tratamento das doenças orais. É da nossa responsabilidade não ficarmos só a queixar-nos, mas sim apresentar soluções para o novo e impensável futuro que aí vem.

Que papel cabe ao cidadão/paciente em todo este processo?

O papel do paciente/cidadão é o mesmo que o seu e o meu em todas as áreas da saúde. É tomar decisões baseadas na nossa vida, na nossa cultura, conhecimentos de saúde, crenças. Como seres sociais é assim que funcionamos. Às vezes, os profissionais de saúde pensam que dar ordens resolve tudo e as pessoas adotam os hábitos corretos. Veja o que se está a passar com este periodo de emergência ou antes dele. Já se sabia que não era aconselhável sair à rua e ainda havia pessoas em festas, esplanadas, praias, etcétera. E mesmo agora, continua a acontecer! Incrível não é? Como é que regras tão simples – ficar em casa, lavar as mãos e não tocar na cara – são tão difíceis de seguir! Na realidade, o papel do paciente/ cidadão é viver e atuar através daquilo que acredita e o nosso papel enquanto profissionais e responsáveis é criar políticas

de comunicação que sejam efi cazes para uma grande maioria de pessoas e depois atuar individualmente, criando estratégias que sejam efi cazes ao ponto de as pessoas acreditarem nelas e mudarem os seus hábitos, que depois são transmitidos nas cadeias sociais dessas pessoas. Ordens, conselhos não individualizados, informações avulsas e baseados apenas no ponto de vista dos profi ssionais tendem a falhar. Infelizmente, ainda há alguns profi ssionais de saúde que não perceberam isso.

Como encara o contributo das novas tecnologias para o exercício da profi ssão, ou melhor, de todas as profi ssões na área da saúde oral?

As tecnologias estão aí, não para alterarem tudo o que fazemos, mas para nos ajudarem a melhorar enquanto profi ssionais. Existem muitas tecnologias que facilitam o trabalho técnico (scanners, impressoras) e isso é realmente um up- -grade para as nossas profi ssões, mas, por exemplo na área da comunicação e mudança de comportamento, a utilização

das tecnologias não pode prescindir da sua dimensão emotiva e pessoal. Muitos pacientes usam estas tecnologias, por exemplo as app de saúde oral, de uma forma autónoma e individual. Terá algum impacto é certo, mas nós podíamos e devíamos aumentar esse potencial, uma app pode aumentar o seu valor comportamental se trabalharmos com o paciente um conjunto de estratégias que vão desde o feedback, à criação de objetivos e criarmos uma estratégia para ela ser realmente útil para o paciente. Hoje em dia temos escovas de dentes inteligentes, são capazes de detetar todas as áreas da boca e dar-nos um feedback quase real de como fi zemos a escovagem dos dentes. Para mim, é fantástico, fi cção científi ca, mas se eu não construir uma relação com o paciente para que entenda a importância da utilização dessa tecnologia num determinado momento do seu tratamento, todo este investimento vai chegar a muito poucos e perde-se assim uma tecnologia fantástica que podia ser muito útil na gestão e alteração de comportamentos de saúde oral. Outro fator é a utilização dessas tecnologias pelos profi ssionais. Estamos habituados a uma rotina no consultório que muitas vezes não é compatível com estas novas tecnologias. Veja-se o exemplo das câmaras intraorais. No estudo que efetuámos, percebemos que estes instrumentos são importantes no que diz respeito à mudança de hábitos em pacientes com patologias gengivais, ajudando a controlá-las e a preveni-las. Muito interessante foi ver como a utilização desta tecnologia na interação com os pacientes alterou variáveis psicológicas que intervêm na perceção da saúde, na manutenção dos tratamentos e no controlo da ação desses comportamentos. São resultados muito interessantes quando andamos sempre a queixar-nos da falta de compliance dos pacientes. Mas, por outro lado, a grande maioria dos profi ssionais não usa as câmaras intraorais, e muitos até já as compraram, mas estão fechadas numa gaveta. A sua utilização implica algumas mudanças de rotinas e rapidamente as pessoas desistem e voltam à sua forma de atuar tradicional. Basicamente, assumem o mesmo padrão de comportamento dos nossos pacientes quando lhes propomos fazer algo de novo (tipo o escovilhão) e que altere a sua rotina. Não somos assim tão diferentes. Por isso, era importante que as faculdades, os cursos pós-graduados incluíssem nos seus currículos e aulas práticas a uti

20 JULHO 2020 Mário Rui Araújo constata que as equipas que nos centros de saúde têm trabalhado a saúde oral, nestas últimas décadas, têm feito um excelente trabalho de base.

lização destas tecnologias. Há uma curva de aprendizagem e de habituação que tem de ser trabalhada. E que melhor lugar que as escolas?

Como comenta a atual conjuntura provocada pelo novo coronavírus, em especial as suas implicações junto dos profi ssionais de saúde oral?

Bom, esta é uma situação que nos apanhou de surpresa. Uma surpresa relativa, devo realçar. Sabíamos que ia acontecer, mas achávamos sempre que não era agora. Basta olhar para as afi rmações de muitos cientistas ou mesmo de pessoas insuspeitas como Bill Gates, que já nos alertavam para estes riscos há alguns anos. O que fi zemos? Olhámos para o lado, fi zemos de conta que não era nada connosco, investimos noutras coisas, demos prioridades a modelos económicos insustentáveis no tempo. Mas agora não vale a pena estar a dizer: nós bem vos avisámos! Agora o urgente é parar a pandemia e pensar no futuro. A área da saúde oral vai abanar, mas não vai cair, não pode cair, temos de aprender com tudo isto. Vai ser enorme a importância de manter os níveis de saúde, de controlar infl amações crónicas e de ajudar cada vez mais na manutenção dos tratamentos, de forma a que as pessoas não fi quem ainda mais prejudicadas. Tudo isto vai exigir uma maneira diferente na forma de olharmos para a área da saúde oral. Os consultórios que sempre tiveram uma política virada para as pessoas, vão vencer, pois as políticas viradas para as pessoas vão vingar. Há dias, alguém me dizia que agora ia tudo piorar, que os programas preventivos nas escolas vão parar, que as pessoas vão deixar de ir ao dentista. Eu não olho para o futuro de forma tão negativa, a humanidade aprende sempre com as crises e novos modelos vão emergir. Temos de estar

Temos de ter elasticidade mental para atuar de forma diferente depois da crise. Querer manter tudo igual é que provavelmente não irá funcionar

preparados, temos de ter elasticidade mental para atuar de forma diferente depois da crise. Querer manter tudo igual é que provavelmente não irá funcionar. Vão acabar os programas de escovagem nas escolas? Esperemos que não, mas provavelmente vão existir difi culdades por uns tempos. Nada de pânico. Vamos pensar em alternativas: pastilhas de Xilitol, outras atividades, enfi m, a única coisa que não podemos fazer é parar, desistir e deprimir. Os pacientes não vão poder colocar tantos implantes? Apostemos então cada vez mais na manutenção das bocas que temos, dos tratamentos que foram feitos, temos aqui uma verdadeira oportunidade de realmente promover a saúde oral. Vamos ter argumentos para ajudar as pessoas a mudar de atitude. Há sempre um caminho! Os profi ssionais de saúde oral estão mais do que preparados para isso. Só não temos ordem para desistir. A grande vantagem é que estamos todos juntos neste barco, por isso a solução passa por todos e por acreditar que o futuro vai ser diferente, tem de ser diferente. Navegar é viver! E nós, portugueses, somos muito bons nisso...

O higienista oral e docente é um dos oradores do próximo congresso da APHO, que terá como cenário um hotel de Lisboa.

21 JULHO 2020

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