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Ponto de vista

Os desafios para o ensino do digital na área da prótese dentária

João Carlos Roque

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Técnico de prótese dentária. Professor do curso de Prótese Dentária da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa.

Passados 40 anos, sim, quatro décadas, sobre o surgimento da tecnologia digital na área da reabilitação protética, como está esta realidade espelhada ao nível do ensino na área dentária? Conseguiram as instituições de ensino acompanhar e espelhar nos seus currículos o ritmo de desenvolvimento tecnológico a que vimos assistindo? Estamos hoje a praticar um ensino de tecnologias digitais ao mesmo nível do que tem sido feito ao longo dos anos no ensino das técnicas tradicionais (analógico)? O acesso das instituições de ensino à tecnologia digital, que evolui a um ritmo vertiginoso, é satisfatório e de vanguarda? Existe conhecimento e preparação do corpo docente para esta nova realidade? Estarão os jovens licenciados, na entrada do mercado de trabalho, preparados para as novas exigências profissionais, alicerçadas num novo paradigma de fluxo de trabalho digital? Que contributo estão os cursos a dar para o conhecimento científico no domínio do digital? As questões são infindáveis e urge olhar para as respostas atuais para preparar o futuro, que é hoje!

Aos poucos, porque a prática profissional o vai impondo, os docentes vão evoluindo no seu conhecimento do processo digital, no entanto, existe um desfasamento geracional que ainda vai ditando alguma resistência ao processo de transformação

Todos temos presente os slogans, que constantemente nos são buzinados aos ouvidos, de que o digital é mais fácil, rápido e de melhor qualidade. Acredito que sim, mas para tal temos de saber utilizá-lo, potenciá-lo e melhorá-lo, conforme fizemos durante outras tantas décadas com os métodos tradicionais. É aqui que entram as instituições de ensino, que em Portugal na área da Medicina Dentária e também da prótese dentária são de nível superior, universitário ou politécnico. Afinal, é suposto a universidade ser o local de vanguarda, investigando novas alternativas e apontando novos caminhos, funcionando como um polo agregador de novas ideias e tendências na prática quotidiana. Está isso a acontecer? Concretizando as minhas dúvidas, aponto três situações que devem merecer alguma reflexão.

Primeiramente a questão do modelo de ensino. Na realidade portuguesa, os cursos de licenciatura em prótese dentária existem em paralelo com os de mestrado integrado em Medicina Dentária, lecionados nas mesmas instituições. Sendo um modelo que não é transversal na Europa, porque o ensino da prótese dentária ainda acontece ao nível da formação técnico/profissional em alguns países, existe também pontualmente em outros continentes. É um modelo que tem inúmeras vantagens, entre as quais destaco a sinergia de recursos humanos e técnicos, a partilha de conhecimento técnico/científico mais abrangente e um enorme potencial para investigação científica conjunta, em áreas que são indissociáveis como seja a da reabilitação oral. Contudo, não tem sido explorada convenientemente. Olhando para os vários curricula dos cursos das duas áreas e para as práticas instituídas, de que tenho algum conhecimento, não é

ainda percetível que exista uma componente de formação no digital que reflita a prática corrente a nível profissional. Não quer dizer que não exista, mas assenta em formação de introdução teórica de base ou de prática apenas ao nível de cursos de pós-graduação. Uma forma de potenciar o modelo de ensino integrado, é definir áreas de conhecimento transversais aos vários grupos profissionais e estabelecer domínios de partilha entre cursos. Ao nível de congressos temos assistido a conferências conjuntas de médicos dentistas/protésicos que são enriquecedoras pela partilha de pontos de vista e por elucidarem sobre as distintas abordagens entre clínica e laboratório. O mesmo deveria ser aplicado na formação básica universitária, para que o conhecimento seja mais transversal e se entendam os domínios de atuação, os processos e procedimentos que concorrem para o sucesso da reabilitação oral. Esta partilha não deve ser guiada por objetivos economicistas, que assentam na utilização de unidade curricular transversais aos cursos de pouco interesse comum e diminuição do número de docentes, mas sim assente em objetivos de partilha de conhecimento relevante para a área de atuação profissional de interseção entre os dois cursos. Relacionar com o digital temáticas de digitalização intraoral e transposição para os softwares de desenho CAD, utilização de softwares de planeamento de colocação de implantes e produção de guias radiológicas e/ou cirúrgicas, escolha de materiais de reabilitação indireta e processos laboratoriais de produção, são exemplos de áreas que podem beneficiar largamente de uma formação teórico/prática transversal, que deveria ser planeada em conjunto para integração nos curricula base dos dois cursos. O modelo que temos no nosso país tem tudo para que seja implementado. Do que estamos à espera?

A importância da indústria

De seguida a questão do acesso à tecnologia. Se a integração teórica se afigura de fácil realização, e só depende da estratégia institucional e do corpo docente para ser posta em prática, a implementação do ensino prático das tecnologias digitais encerra maiores desafios. Uns relacionados com a formação do corpo docente e outros relacionados com os meios técnicos à disposição. Aos poucos, porque a prática profissional o vai impondo, os docentes vão evoluindo no seu conhecimento do processo digital, no entanto, existe um desfasamento geracional que ainda vai ditando alguma resistência ao processo de transformação. Contudo, ela é maioritariamente imposta pelos recursos financeiros, que são cada vez mais escassos nas instituições de ensino, em particular nas públicas. Por isso, as parcerias com a indústria assumem uma importância crucial para a transformação do ensino prático. É sabido que existe uma curva de aprendizagem dos procedimentos técnico/práticos e que esta se relaciona também com o domínio dos equipamentos utilizados. Quanto mais cedo se inicia a aprendizagem, feita com apoio e conhecimento académico, mais rápido é a interiorização de conceitos e procedimentos que se transportam depois para a vida profissional. Atualmente, os equipamentos digitais e as licenças de software são ainda bastante caros, e evoluem rapidamente, representando um custo que as instituições de ensino, pelo menos as públicas, não têm capacidade para suportar. É pois crucial que a indústria assuma um papel de facilitador desta mudança, disponibilizando equipamentos e formando os docentes para que efetivamente a utilização destas tecnologias entre no dia a dia dos estudantes e seja a via prioritária de aprendizagem, antes do início da vida profissional. Até agora esta colaboração tem acontecido apoiada em colaborações pontuais, em ações de formação específicas e implementadas por docentes de forma autónoma. Ficam por isso visíveis a públicos restritos, havendo pouco retorno. Se estas parcerias assumirem um papel institucional, apoiadas em protocolos de colaboração com uma extensão temporal que permita a inclusão de objetivos educacionais permanentes e transversais a vários cursos e dentro destes a várias unidades curriculares, serão mais abrangentes e podem potenciar melhor, com menos recursos envolvidos. Recursos que não necessitam de ser os de última geração da marca, mas que sejam substituídos, refletindo a evolução dos sistemas. É por isso importante que as políticas para implementação do ensino do digital sejam bem estruturadas e apresentadas de forma objetiva e coerente, integradas de forma incremental ao longo dos anos de curso e disseminadas nas várias unidades curriculares, de modo a que os equipamentos tenham uma utilização permanente e as horas de contacto de cada aluno sejam significativas para a aprendizagem. Assim sendo, serão uma ferramenta mais consistente do que o atual modelo utilizado pela indústria, apoiado em minicursos de formação, que muitas vezes deixa ao abandono os profissionais no início da curva de aprendizagem. Nas áreas de engenharia estas parcerias institucionais estão muito desenvolvidas, não só com a indústria, mas também com o tecido empresarial, e é importante olhar para as melhores práticas e aplica-las na área dentária, numa altura em que se avança rapidamente para a fase de industrialização 4.0, alicerçada precisamente em processos digitais. Existem já bons exemplos de empresas como a Nobel Biocare, Zirkonzahn, Straumann e 3D System que fazem investimentos significativos, em Portugal, no ensino da vertente digital na área da prótese dentária. Estas parcerias podem e devem ser aumentadas. Para tal é fundamental e decisivo implementar maior capacidade de produção e desenvolver a investigação científica, aproveitando todo o potencial da tecnologia digital.

Para concluir, devo assinalar a lacuna existente ao nível de cursos de mestrado na área da prótese dentária, não só a nível nacional mas também a nível internacional. Os cursos de licenciatura existem em Portugal há mais de uma década e existe também um programa de doutoramento nesta área específica, não sendo compreensível que não exista esta oferta intermédia. Como é sabido, o contacto dos estudantes com novas áreas de conhecimento fomenta a curiosidade e estimula a criatividade, requisitos essenciais para desenvolver investigação científica. E alguns já o têm feito noutras áreas do saber por não terem essa oportunidade na sua área de licenciatura. É essencial que a evolução da profissão não fique apenas dependente do contributo dos médicos dentistas e dos engenheiros, mas que dê um salto em frente na criação de conhecimento próprio. O digital é uma ótima oportunidade para alargar horizontes, e uma formação base forte neste domínio do saber será muito aliciante para desenvolver áreas de investigação que elevem o contributo científico dos protésicos para a área dentária. Ficará então fechado o ciclo que tornará a prótese dentária uma ciência autónoma, relevante para a indústria e para as empresas, capaz de gerar cadeias de valor acrescentado em muitas dimensões profissionais.

O caminho é longo, mas faz-se andando! O importante é ter objetivos e ser perseverante.

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