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MERCADO E FINANÇAS

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PROVÍNCIA

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COMO A ESTATÍSTICA ESTÁ A (DES)AJUDAR O MERCADO

Falta de rigor, informação contraditória até entre documentos oficiais e dados frequentemente desactualizados. Aos olhos dos pesquisadores, a qualidade, ou a falta dela, de muitos dos dados estatísticos que são apresentados, distorcem a realidade do país e comprometem, muitas vezes, o desempenho dos mercados a vários níveis

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vale a pena começar por uma lógica há muito comprovada: Decisões acerta-

das de política, na economia, na própria política e na sociedade, têm como condição necessária a interpretação precisa da realidade dos países ou regiões. Mas isso requer disponibilidade e fiabilidade dos números (estatísticos) que retratam as diferentes realidades de um país, o que aparentemente não está a acontecer, ou não é satisfatório em Moçambique, onde não faltam exemplos de estatísticas que, não raras vezes, desinformam mais do que esclarecem. Vamos a alguns exemplos: os últimos da-

T ÓNIO FRANCISCO, IESE A N

“O que dará credibilidade a estes dados? O mesmo acontece com as estatísticas de emprego. Não há base de dados e às vezes vemos números e estimativas que nos deixam mais dúvidas que certezas”

dos sobre o número de deficientes físicos em Moçambique são de 2007 e apontavam para cerca de 475 mil. São números publicados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE) – Órgão Reitor e Executivo Central do Sistema ao qual compete a produção e validação das estatísticas oficiais. Em 2010, uma reportagem da rfi (Radio France Internacional), que cita “números oficiais do país”, apontava para 300 mil deficientes, o que sugeria a redução de 175 mil portadores de deficiência em relação aos dados oficiais de 2007. Já em 2015, uma reportagem da Voz da América, sem citar qualquer fonte, indicava

cerca de 500 mil portadores de deficiência em Moçambique. Para quem lê, o mais certo é que os números de 2007 ainda não foram actualizados pelo INE e são os que valem até hoje, 11 anos depois, daí que os que foram publicados depois cheguem para gerar dúvidas sobre a sua fiabilidade, podendo dificultar, por exemplo, o esclarecimento de políticas de acesso a emprego ou de salvaguarda social de um grupo que deveria ser protegido. Mas, é apenas um exemplo. Outro, tem a ver com o parque automóvel em Moçambique. Fala-se que existem cerca de 500 mil viaturas em Moçambique. Só que, esse número provém de há cinco anos e é oriundo de um estudo levado a cabo pela associação de importadores de automóveis. Assim, e com a natural evolução social e económica, será de considerar a possibilidade de o número real de viaturas ser muito superior nesta altura.

Dúvidas estatísticas Também há margem para dúvidas em coisas tão simples como a percentagem da população com acesso a água potável, energia eléctrica e até ao Censo do ano passado, e « sobre os números totais da população. Relativamente ao acesso à água, a informação da UNICEF publicada em 2014, revela que a cobertura era, à época, de 49% da população. Quatro anos depois, os artigos informativos ainda utilizam este indicador, dando a entender dois aspectos que geram confusão: que o número está desactualizado ou que a expansão da cobertura de água potável permaneceu estacionária ao longo dos quatro anos. Já em relação ao acesso à rede eléctrica, em Maio de 2015 o Centro de Integridade Pública (CIP), uma das mais importantes organizações moçambicanas da sociedade civil, publicava um relatório em que denunciava divergências: é que enquanto o INE avançava que havia 26% dos moçambicanos com acesso à electricidade em 2014, o Plano Quinquenal do Governo 2015-2019 indicava uma taxa de cobertura de 45%, uma diferença significativa, que distorce completamente a análise (e porventura os investimentos) do país neste domínio. Além da contradição, este dado também não foi actualizado ainda. À semelhança destas há vários outras contradições dignas de realce e que constam de documentos oficiais: um dos mais comuns, é o da superfície de Moçambique (799,3 mil quilómetros quadrados, ou 801,5), ou da faixa litoral, que em inúmeros documentos oficiais vai dos 2 515 quilómetros, aos 2800, noutros.

70%

A DIMENSÃO DO SECTOR INFORMAL EM MOÇAMBIQUE. OU SERÃO 75% OU 67%. TAMBÉM AO NÍVEL DO PIB PER CAPITA OS NÚMEROS VARIAM ENTRE OS 382 DÓLARES E OS 480 POR HABITANTE. PORQUE NÃO SE SABENDO O NÚMERO DE HABITANTES NEM TENDO DADOS CONCRETOS SOBRE O TOTAL DA RIQUEZA NACIONAL, É IMPOSSÍVEL SER CONCRETO A ESTE RESPEITO. O QUE AJUDA A PERCEBER O PORQUÊ DE TANTA INIQUIDADE NOS NÚMEROS

Claro que, economicamente, a situação é similar. E essa disparidade torna-se evidente, em relatórios e documentos oficiais sobre emprego, crescimento económico, ou industrialização, emitidos por entidades como o Banco de Moçambique, o FMI ou o Banco Mundial. Já lá vamos.

Insatisfação unânime A E&M foi em busca da percepção de diferentes instituições de pesquisa em assuntos económicos, políticos e sociais, sobre a qualidade e quantidade de informação que há no mercado e que possibilita o seu trabalho. Ao contrário de muitos dados estatísticos, a insatisfação é unânime. O economista António Francisco, pesquisador do Instituto de Estados Sociais e Económicos (IESE), diz enfrentar “enormes dificuldades” em obter verdades nos estudos que faz, a partir das estatísticas publicadas oficialmente. E dá alguns exemplos como o do sector do caju, onde os relatórios do Governo dizem que cada árvore já alcança uma capacidade de produção de oito quilos por ano. Depois de uma busca no terreno, o pesquisador constatou que não passam de três quilos por árvore. “O que dará credibilidade a estes dados?”, questiona. E o mesmo acontece com as estatísticas de emprego. “Não há base de dados e às vezes ouvimos as autoridades dizer-nos números cujas estimativas nos deixam uma série de dúvidas”, queixa-se o economista, para quem “do ponto de vista de utilizador, somos todos também enganados.” João Feijó, pesquisador do Observatório do Meio Rural (OMR), constatou que no inquérito ao orçamento das famílias, por exemplo, aquilo que as famílias declararam ter consumido em produtos alimentares, era inferior ao que era necessário comer para terem sobrevivido. “Então, como é que a pessoa está viva?”, questiona. “Tiveram de colocar ponderadores que estimam o que as pessoas teriam consumido o que acaba por ser uma fuga à realidade”, conclui. O pesquisador lembra também que, ao realizar um trabalho sobre chineses em Moçambique, teve dificuldades em saber quantos residem no país porque os dados não estavam sistematizados. “Este facto dá a entender que o Estado não tem controlo sobre o número de estrangeiros que vivem no país, mas estranhamente, às vezes aparecem estimativas que não se sabe em que é que se baseiam”, lamenta. Depois, mesmo alguns grandes temas, como o da dívida pública, e que são debatidos um pouco por toda a parte, vêem a sua discussão por vezes enviezada, devido à sua aparentemente fraca fiabilidade, O CIP junta-se a estas instituições e adiciona um exemplo: “aceder a informação sobre o estágio ou evolução da dívida pública tem sido difícil. A última informação disponível foi publicada na página electrónica do Ministério das Finanças e é referente ao primeiro trimestre de 2017”, assinala-se. Segundo a pesquisadora Celeste Banze, “mesmo nesse documento desactualizado, a informação não é completa, pois não apresenta indicadores que possibilitem aferir da evolução da insustentabilidade, montantes por credor nem a própria identificação dos credores”, revela.

Os números não mentem? Moçambique é apenas um dos exemplos de países onde a pouca acuidade dos dados estatísticos é uma preocupação importante. O problema encontra raízes profundas por toda a África. Por aqui, os números são frequentemente considerados errados e tendenciosos, facto que suscita, de há muito, preocupação na comunidade internacional. O Gana, país da África Ocidental, teve de ser reclassificado em 2011 como um país de rendimento médio, em vez de economia

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Q&A: O PAPEL DO INE

Qual é o sistema?

Existem duas grandes fórmulas de organização dos sistemas estatísticos instituídos no mundo: uma em que há uma entidade responsável por todas as estatísticas oficiais e outra que é mais aberta, admitindo que haja mais de uma entidade com essa tarefa. O sistema moçambicano é misto. Ou seja, o INE é a entidade responsável pela produção de estatísticas oficiais, mas este delega a autoridade para as produzir noutras instituições ou órgãos delegados, dos quais fazem parte alguns ministérios que produzem estatísticas da sua área, como sejam a saúde, educação, ou economia e finanças. Em Moçambique são no total oito os órgãos delegados. Contactado pela E&M, o INE dá a mão à palmatória em algumas situações que lhe são apontadas e presta esclarecimento em relação a outras. Todos os pontos têm resposta do INE, na voz do director-nacional, Cirilo Tembe.

Porque falta qualidade? Estamos abertos a críticas, mas há algumas verdades que é preciso dizer: não há, no país, nenhuma instituição que produza estatísticas com melhor representatividade que o INE”. Isto é um facto. No entanto, há instituições que produzem números que colocam em causa a informação que é produzida pelo sistema estatístico nacional. Em África, Moçambique está numa posição acima da mediana, e já até já foi apontado como um ‘bom exemplo’ a seguir.

Porque atrasam os resultados? Muitas vezes não percebemos isso e procuram obter-se informações de ‘ontem para hoje’. Não se pode ter a informação do balanço de um ano económico em Janeiro, porque só termina em Abril, ao que se segue a recolha dos relatórios das empresas e só em Agosto é possível ter resultados. A divulgação dos resultados definitivos do senso de Agosto de 2017 ainda não aconteceu devido à complexidade do processo.

Há viciação de dados? Independência e imparcialidade são os princípios instituídos pelas Nações Unidas que guiam o INE, no sentido de que não receba ordens do Governo para fazer ou não fazer o que quer que seja. A produção de estatísticas é muito cara e o desafio que se coloca é fazer com que a recolha de dados seja abrangente, para ajudar a chegar a resultados mais realísticos. o grande problema aqui é que há muitas entidades que produzem estatísticas, e há que questionar até que ponto as conclusões das pesquisas que fazem põem em perigo a realidade.

Sede do INE, Maputo: Instituto quer condições para fazer um trabalho melhor pobre, após ter sido descoberto que o governo e as agências internacionais tinham, durante anos, subestimado o rendimento médio em mais de 60%. Por via disso, o país continuou a beneficiar de certos empréstimos do Banco Mundial para os quais já não estava efectivamente qualificado. Por este e outros casos, Morten Jerven, pesquisador do Banco Mundial, descreveu a situação do continente como “uma tragédia estatística”. O economista refere mesmo que “muitos dos dados que circulam em documentos oficiais, avaliações e nos media estão errados, e o fundamento deste argumento é que “muitas actividades económicas (em África) não são registadas. Por isso, os números e estatísticas produzidas e reproduzidas através das Nações Unidas, do Banco Mundial, não são factuais, mas simples estimativas com uma margem de erro considerável”. Mas, a iniquidade dos valores das estatísticas, tem reflexo também, num outro factor: a comunicação social, e a qualidade da informação que ela deve prestar.

A desconfiança “Quanto mais áreas cinzentas existirem nos números, maior a possibilidade de existência da corrupção”. A frase é de Morten Jerven, do Banco Mundial, professor universitário no Canadá. Esta é uma percepção que encaixa no pensamento dos pesquisadores que falaram à E&M, a propósito da qualidade das estatísticas nacionais. Há desconfiança de manipulação de dados para ocasionar fraudes e salvaguardar objectivos pouco claros, dependendo da área de estudo. “Porque é que ainda não são públicos os resultados definitivos do senso populacional de 2017? Prometeram divulgar a 31 de Julho e ainda não o fizeram. Aí perguntamo-nos se não serão manobras para evitar cruzar os dados com os das eleições autárquicas do próximo mês. Isso dá a entender que podem haver interesses ocultos, e isso não é positivo”, questiona António Francisco. “O último orçamento das famílias não saiu na altura em que deveria sair e desconfia-se que, por parte do Governo, tenha havido manipulação, porque teve de ser divulgada mediante a autorização pelo Conselho de Ministros, o que mostra que a informação estatística está fortemente politizada”, aponta João Feijó. Mas, há outros exemplos: “quando se faz a confrontação do que as empresas extractivas declaram ter pago ao Governo em impostos e o que o Governo refere ter recebido, existem

Contas difíceis: a pouca fiabilidade dos números é um dos problemas da economia nacional

Quando os números que remetem a factos sobre o país são mal produzidos, divulgados tardiamente ou manipulados, então não conhecemos o país real em que vivemos e tão pouco poderemos ou saberemos, projectar o caminho do desenvolvimento

divergências. Tudo isto significa que o exercício de prestação de contas está a falhar e não se sabe quanto é que o país efectivamente arrecada com alguns desses projectos”, lamenta Celeste Banze do CPI.

Pobreza também condiciona É verdade que o país e as suas instituições, têm de promover uma cultura de organização que permita a produção de estatísticas de qualidade e em quantidade que vão ao encontro das expectativas dos utilizadores. Mas não é menos verdade, que um país com poucos recursos como Moçambique tem maiores dificuldades fazê-lo. Isso é consensual. “Se o país for pobre, as estatísticas revelam uma forma de tratamento igualmente pobre porque para produzir informação estatística as pessoas têm de se deslocar, são precisos meios adequados para recolher e tratar dados, além de um fórum apropriado para sintetizar e divulgar a informação”, explica Romano Manhique, da Autoridade Tributária. Uma posição que é partilhada pelo pesquisador do OMR, João Feijó: “as dificuldades dos pesquisadores são dificuldades do próprio país, porque uma instituição não está isolada da sociedade”. Depois, há também questões culturais. Muitos estudos revelam-se contraditórios porque há indicadores, sobretudo os que dizem respeito ao bem-estar das pessoas, como os rendimentos ou o consumo, que elas optam por não fornecer de acordo com a realidade. Depois, é quase impossível medir os salários porque há rendimentos que se conseguem informalmente e que os inquéritos não captam.

Autoridade Tributária, um exemplo a seguir Costuma dizer-se que há coisas a que ninguém escapa: a morte e os impostos. E é assim também em Moçambique. A AT será hoje, das entidades mais preparadas ao nivel do conhecimento da sua base contribuinte. De acordo com Romano Manhique, “a AT desenvolveu um trabalho de 10 anos, educando os seus quadros para tratar números e lidar com estatísticas. Depois, temos um sistema informatizado que nos permite desenvolver um trabalho consertado.” A AT investiu, nos últimos anos, no tratamento de dados, através de meios informáticos. Hoje, é possível obter dados de qualquer ponto do país em tempo real, porque existem meios tecnológicos e todas as condições que permitem a harmonização e padronização da organização da informação, algo impensável há poucos anos. E são as estruturas da AT, segundo Romano Manhique, a “definir a estatística como prioridade, porque um gestor sem números não funciona.” A resposta tecnológica é, no entanto cara, e demorará tempo a ser universal. Mas, há algumas mudanças a acontecer nesse sentido, especialmente desde a questão das dívidas ocultas, que fez com que alguns doadores externos queiram ter acesso a informação detalhada sobre as contas públicas, e a dívida soberana. Também para quem está fora e quer investir no país, saber em que realidade o pode fazer, é fundamental.

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