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soCIedade

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A esperAnçA renAsce dos escombros

Depois dos ciclones Idai e Kenneth terem deixado um rasto de devastação em várias províncias do Centro e Norte do país, os esforços de reconstrução dão lugar a acções concretas no terreno. O objectivo é que algo assim jamais se repita

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os ciclones idai e kenneth abalaram

as regiões Centro e Norte do país há quase três meses, tendo levado consigo a alegria e o sossego, sobretudo dos povos de Sofala e Cabo Delegado, depois de verem o seu esforço de vários anos ser transformado em ruínas. O desconforto e a tristeza foram minimizados pelos gestos de solidariedade, e foi nesta lógica que aconteceu há um mês a Conferência Internacional de Doadores, na cidade da Beira. Claro que o objectivo não seria outro se não o de angariar fundos para a reconstrução. Neste contexto, para os doadores internacionais, como para o Governo moçambicano, “o fundamental é definir um modelo províNcia beira

capital sofala área 61 661 km² Número de habitaNtes 21 911 237 região Centro

integrado de reconstrução melhorada nas regiões afectadas.” E, claro, de todas as prioridades deve definir-se as que mais precisam de urgência.

e quais são? “Os ciclones testaram a nossa capacidade de resposta e solidariedade (nacional e internacional) e a situação coloca à prova a nossa governação” disse o Presidente Filipe Nyusi, que apelou, na abertura da Conferência de Doadores, ao urgente desembolso das doações e a respectiva simplificação dos métodos de injecção de fundos de ajuda. Olhando a situação concreta e ao nível dos estragos causados pelas intempéries

tudo parece ser prioridade. Porém, existem aquelas que são inadiáveis, como é o caso das habitações, das vias de acesso e a reabertura de instituições públicas para a provisão de serviços básicos de saúde e educação. Neste sentido, o Governo está de acordo: “as necessidades são muitas.” Para tal, Francisco Pereira, director executivo do Gabinete de Reconstrução Pós-Ciclones Idai e Kenneth, defende que “é preciso investir rapidamente num vasto leque de áreas, como a alimentação, habitação, educação, saúde e também nos sectores produtivos”. Após o levantamento dos danos e perdas feito pelo Governo e peritos das Nações Unidas, do Banco Mundial e da União Europeia chegou-se à conclusão de que são necessários 3,2 mil milhões de dólares para proceder à reconstrução pós-ciclones. Aliás, o ministro das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos, João Machatine, frisou isso mesmo, logo no arranque de uma conferência que juntou cerca de 700 representantes de parceiros internacionais, governantes, governadores provinciais, sector privado e sociedade civil para analisar o relatório sobre os prejuízos causados e tentar angariar os valores necessários para reconstruir as infra-estruturas danificadas. Coube assim ao Ministro das Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos apresentar as necessidades para a reconstrução, explicando que o valor seria para dar ímpeto à “reconstrução de infra-estruturas económicas e sociais. O valor orçado para as necessidades (3,2 mil milhões de dólares) teve como principal pressuposto o imperativo de uma reconstrução e recuperação mais resiliente aos efeitos das alterações climáticas às quais o nosso país é vulnerável. É considerando estas necessidades que será exigido um esforço intelectual e o sacrifício de todos na concessão, elaboração e implementação de projectos que possam trazer resultados sustentavelmente aceites face aos efeitos das alterações climáticas”, enunciou. Segundo o plano de reconstrução apresentado, a cidade da Beira e todas as zonas afectadas serão mais resilientes a intempéries desta magnitude. Na verdade, o fundo solicitado pelo Governo deverá ser usado para reparar ou reconstruir infra-estruturas e activos físicos, integrar medidas melhoradas para “reconstruir com melhor qualidade” e garantir a resiliência a futuros ciclones e inundações, recupe-

1,2

Mil Milhões É o valor angariado na ConferênCia internaCional de doadores, dos 3,2 mil milhões apontados pelo governo moçambiCano durante o levantamento dos danos

rar a produção de bens e serviços, restaurar o acesso das pessoas a produtos e serviços e ainda restabelecer a governação (reabilitar edifícios públicos e capacitação da gestão do processo de recuperação), entre outros. Porém, contra todas as expectativas, Moçambique apenas conseguiu angariar 1,2 mil milhões de dólares na Conferência Internacional de Doadores, pouco mais de um terço dos 3,2 mil milhões apontados pelo Governo como o valor ideal antes da conferência, mas de certa forma, suficiente para se começarem os projectos de reconstrução. Segundo o plano esboçado, a ajuda deverá focar-se em quatro sectores: produtivo (agricultura, pescas, segurança alimentar, indústria, comércio e turismo), infra-estruturas (energia, transportes, estradas, caminhos-de-ferro, água e saneamento), social (habitação, educação, saúde, cultura e desporto), e questões transversais (de género, ambiente, meios de subsistência e protecção social).

construir infra-estruturas resilientes às intempéries é o próximo passo Um tema recorrente na conferência foi mesmo a necessidade de construir novas infra-estruturas, sobretudo habitaçionais, mais resistentes a intempéries que, de acordo com os estudos existentes, tenderão a assolar o país nos próximos anos. “Sinto que há um verdadeiro consenso sobre esta questão de reconstruir da melhor forma e não como se fazia até então”, afirmou Mathias Spaliviero, da ONU-Habitat. Mas não é só na habitação que o Gabinete de Reconstrução PósCiclones se foca quando se fala de infra-estruturas. Há que lembrar que a cidade da Beira, em particular, tem ciclicamente sofrido problemas de erosão costeira e de saneamento. Para isso, o município local coloca também como prioridade de reconstrução os sistemas de drenagem e de um paredão para protecção do avanço do nível do mar. “A acção visa mitigar os efeitos do ciclone e da erosão costeira, passando pelo reforço dos paredões e outros quebra-mares para minimizar os efeitos da erosão e das ondas do mar”, justificou o presidente da autarquia da Beira. Se por um lado várias famílias afectadas pelos ciclones Idai e Kenneth carecem de aconchego no que diz respeito à habitação, nota-se, por outro, que estas viram também a sua produção agrícola ser engolida pelas águas, ficando assim a depender das doações, e existem ain-

província

O regresso lento às rotinas diárias parece indicar que, literalmente, o mau tempo está a dar lugar a tempos de esperança

da largas centenas que continuam a viver em zonas de reassentamento e sem qualquer fonte de rendimento. Para piorar, “milhares de postos de trabalho se perderam e as pessoas não conseguem reerguer-se sem meios de subsistência”. Assim sendo, o apoio e assistência às vítimas das calamidades “deve ser a prioridade do Governo, até que a sua vida volte à normalidade.” Para tal, Francisco Pereira lembrou aos doadores durante a conferência que “quase 2 milhões de pessoas continuam a precisar de ajuda urgente, entre as quais muitos órfãos e crianças vulneráveis, e mais de 75% de idosos afectados. Após estas calamidades, 2 milhões de pessoas, cerca de 7% da população do país, vivem dependentes de assistência humanitária e isso requer uma grande atenção da parte de todos nós”, resumiu.

Apoiar, de facto, o sector privado A par de outras áreas, o sector privado é dos que mais precisam de assistência. Francisco Pereirare afirma, sublinhando que “mais do que apoiar este

“Mais do que apoiar este sector que dá emprego a muita gente, ele deve ser ajudado com facilidades fiscais”, diz Francisco Pereira

sector que dá emprego a muita gente, ele deve ser ajudado com facilidades fiscais”. Outra das preocupações do sector privado, auscultado pela E&M, é a distribuição dos fundos. A este respeito, Francisco Pereira deixa uma garantia: “A gestão das doações será de tolerância zero à corrupção”, disse, acrescentando que os doadores “mostraram interesse em financiar áreas da sua competência, ou seja, onde já implementam as suas acções.” Por agora, e apesar de um valor considerável de fundos de ajuda estar já disponível, só o tempo vai ditar o que vai suceder-se, uma vez que o gabinete ainda carece de mais meios para alavancar todas as áreas necessárias a uma reconstrução efectiva. Até porque não se trata de reconstruir apenas, há que haver rigor e qualidade nas obras. Para isso, Francisco Pereira não prevê que o timing da implementação dos projectos seja inferior a quatro anos.

OPINIÃO

Línguas: o risco por calcular

Denise Branco • Investigadora e Consultora em Comunicação Intercultural e Tradução para Fins Empresariais, Técnicos e Científicos

a 4 de março de 2019, Moçambique foi atingido pelo ciclone Idai. Descrito como uma das piores tempestades a atingir África e o Hemisfério Sul, afectou para sempre a vida de cerca de 1,85 milhões de pessoas de acordo com os dados publicados pela organização Translators Without Borders (TWB). Chegou a ajuda, chegaram as pessoas e com elas chegou a necessidade de gerir comportamentos e emoções resultantes da perda de vidas, de referências, de um sentido de propósito. E a ajuda chegou daqui, de nós, e de todas as partes do mundo, em várias línguas. Partilharam-se projecções sobre vidas perdidas, danos materiais, prejuízos económicos para o país, entre outras. Hoje partilho mais alguns números não só devido à sua importância para uma resposta humanitária mais eficaz para as vítimas da Beira, mas pela lição que importa reter – ou relembrar. Convido-o a reflectir sobre o papel das políticas linguísticas – públicas e privadas - em resposta à pergunta: quanto valem as línguas num plano de comunicação de emergência? Na área da comunicação em cenários de crise e emergência tem-se como princípio orientador que a informação certa, no momento certo, pela pessoa certa pode salvar vidas. Atrevo-me a acrescentar: na língua certa. De acordo com os dados disponibilizados pela TWB, após a realização de um estudo no terreno, em Abril de 2019, junto dos sobreviventes do Idai, constatou-se que 41% da população não compreende a língua portuguesa escrita, a língua principal da ajuda humanitária; 65% das mulheres de todas as idades e 57% das pessoas de ambos os sexos acima dos 50 anos de idade não compreende informação escrita em qualquer língua e, finalmente, 44% das mulheres não compreende português falado. As línguas mais faladas nos locais onde a população se encontra temporariamente alojada são Sena, Ndau e Chuabo. Não é necessária uma reflexão demasiado elaborada para compreender as consequências dos constrangimentos linguísticos nas operações de ajuda humanitária. Acreditando que o exemplo acima é óbvio para o leitor, expandamos a reflexão de modo a incluir as indústrias que operam em contextos multiculturais e multilingues, e cuja actividade representa risco para populações e para o ambiente: o risco de não falar a(s) língua(s) necessária(s) foi calculado? A empresa tem uma política linguística de contratação que garante que a todo o momento é capaz de interagir com o seu ecossistema? O plano de comunicação de emergência reflecte a diversidade cultural de Moçambique onde são faladas mais de 40 línguas? A relação de confiança que permite gerir percepções de risco, emoções e comportamentos está alicerçada nas pessoas de confiança da comunidade? A empresa sabe se deve privilegiar mensagens escritas ou orais e em que línguas? A empresa “fala” as línguas que podem comprometer ou acelerar uma intervenção de emergência? As comunidades fazem parte da estratégia de comunicação de emergência ou são meras receptoras? O plano comunicativo foi testado? O resultado do cálculo do risco irá certamente variar por sector e por empresa, tal como pode variar o número de vidas salvas no caso de uma emergência. A sua organização está disposta a aceitar o risco ou a gerir a responsabilidade?

Após a realização de um estudo no terreno, em Abril de 2019, junto dos sobreviventes do Idai, constatou-se que 41% da população não compreende a língua portuguesa escrita, a língua principal da ajuda humanitária

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