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fIgUra do MÊs

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Onde ficamOs na ‘guerra’ glObal da nOva internet?

Numa altura em que é certo que o futuro da rede global de informação está a mudar diariamente, a grande questão é o caminho que essa mudança irá levar e que papel o continente africano terá em toda esta nova dinâmica global

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no passado mês de maio, no

contexto da guerra comercial a que se assiste actualmente entre os EUA e a China, a administração norte-americana ordenou a empresas tecnológicas como a Google, a Intel, a Broadcom, a Qualcomm e várias outras que suspendessem qualquer tipo de relação com a tecnológica chinesa Huawei que envolvesse, nomeadamente, a transferência de hardware, software e outros serviços técnicos. Entre os vários argumentos esgrimidos, o boicote à Huawei justificar-se-ia pelo facto de que a tecnologia desta empresa lhe permite espiar, de forma subtil e camuflada, individuos, empresas e instituições que a usem. Em particular, no que toca à Google, a implementação deste boicote implicaria que o acordo de licenciamento que a Google e a Huawei têm para a integração do sistema operativo Android nos smartphones da marca chinesa ficaria igualmente suspenso. E os futuros smartphones da Huawei só teriam acesso à versão do sistema Android em código aberto ficando impedidas de receber as frequentes actualizações de segurança directamente da Google. Os smartphones da Huawei deixariam também de trazer instaladas de origem as aplicações proprietárias da Google, como o Gmail ou a loja de conteúdos multimédia Google Play. O impacto desta decisão poderia ser certamente devastador para a Huawei que é a segunda maior vendedora de smartphones a nível mundial, apenas atrás da Samsung, tendo expedido mais de 200 milhões de unidades em 2018. E teria um impacto igualmente devastador nos consumidores que utilizam smartphones da Huawei pois ficariam impedidos de receber as actualizações do sistema operativo Android o que, a prazo, tornaria os seus telemóveis, como já alguém disse, numa espécie de “casca de ovo vazia”.

under pressure Informações recentes indicam que a Google está, neste momento, a exercer uma enorme pressão nos bastidores para evitar que a administração norte-americana leve por diante esta sua decisão. E não apenas a Google. Outras empresas norte-americanas, sobretudo ligadas às redes e infra-estruturas tecnológicas de comunicações, têm estado a movimentar-se para impedir que a política definida pelo presidente norte-americano se concretize. Por seu turno, os chineses afirmam ter, há muito, um “Plano B” para a eventualidade de um cenário deste tipo, ten-

5G

A novA internet vAi mudAr o mundo e quem A detiver estArá mAis perto de o controlAr

do começado a desenvolver um sistema operativo alternativo ao Android. Há mesmo quem considere que este este novo sistema operativo não se trata, apenas, de um plano de contingência mas se insere num contexto mais ambicioso que envolve criar uma alternativa à própria Internet tal como a temos conhecido até agora. Ou seja, estaremos, possívelmente, na iminência de uma “bifurcação histórica” no que toca ao futuro da internet enquanto rede global. Acresce que, segundo informações recentes, este plano inclui também o desenvolvimento, por parte da China, dos seus próprios chips de processamento e memória, rompendo o cerco imposto por fabricantes como a Intel, a Qualcomm, a Xilinx, a Broadcom, a Micron Technology e a Western Digital. No entanto, para entender de forma adequada o que está a acontecer, é preciso perceber que o que está verdadeiramente em jogo é a emergência das redes super rápidas de quinta geração, a chamada tecnologia 5G, onde os chineses levam, reconhecidamente, um considerável avanço sobre os norte-americanos e os europeus. Segundo revelava em Fevereiro passado o “Wall Street Journal”, a Huawei detém neste momento 1 529

sociedade

patentes relacionadas com a tecnologia 5G – mais do que qualquer outra empresa no mundo. Combinando este número com o de outras patentes já firmadas por empresas chinesas, o “Wall Street Journal” estimava que 36% das patentes, ao nível mundial, associadas às tecnologias 5G, são chinesas. Na verdade, a passagem para o 5G não se compara a qualquer das evoluções tecnológicas anteriores (como foi do 3G para o 4G). Já não se trata apenas de obter “mais velocidade” mas da capacidade de conectar biliões de objectos (a chamada “Internet das Coisas”) e de tratar quantidades astronómicas de dados praticamente em tempo real.

imediatismo imediato Isto será possível devido, em grande parte, à redução da latência, ou seja, o tempo de resposta que um dispositivo leva para executar uma ordem desde que o sinal é enviado. Quanto mais baixa for a latência, mais rápida será a reacção do aparelho que accionarmos à distância. O 5G reduz esse atraso a um milésimo de segundo. Será esta instantaneidade da comunicação que permitirá, por exemplo, que os “carros autónomos” (sem intervenção do condutor) possam circular em “cidades inteligentes” onde a automatização de inúmeros sistemas terá de funcionar sem falhas. Ou, para dar apenas outro exemplo, os chamados sistemas de “tele-saúde” – em que operações sejam efectuadas à distância sem riscos - possam finalmente desenvolver-se. Tendo em atenção que, no quadro desta guerra comercial entre os EUA e a China, os norte-americanos têm vindo a desenvolver, simultaneamente, uma enorme pressão diplomática junto dos seus aliados (e não só) para que o boicote a empresas como a Huawei e a ZTE tenha um alcance verdadeiramente internacional,

EUA e China concorrem pelo domínio do tabuleiro global da tecnologia da informação

“Apesar da retórica ocidental sobre a importância do acesso à internet para o desenvolvimento de África, na prática, o investimento dos ocidentais no apoio ao desenvolvimento das infra-estruturas para materializar esse acesso ficou aquém”

não foi surpresa que, no que toca a África, a União Africana tenha sentido necessidade de vir a público no início do mês de Junho dar uma indicação do seu posicionamento nesta matéria. Sem qualquer surpresa também, a “resposta” veio através da assinatura de um “memorando de entendimento” entre a União Africana e a Huawei no qual ambas as partes manifestam o seu empenho em reforçar a cooperação, em particular no que diz respeito a cinco áreas estratégicas: Banda Larga, Internet das Coisas, Inteligência Artificial, Cloud Computing (computação na núvem) e 5G. Seria difícil imaginar um posicionamento diferente. De facto, na última década, a maioria dos países africanos tiveram um apoio sistemático da China no que toca ao desenvolvimento das suas infra-estruturas de comunicação digital. Não apenas a Huawei mas também a ZTE e a China Telecom dominam hoje quase por completo o mercado africano.

África é o palco da luta eua-china No caso de alguns países essa dependência é total. Veja-se, por exemplo, o caso do Uganda. Desde 2008, o país tem vindo a implementar o projecto National Data Backbone Infrastructure. Neste momento, dezenas de cidades estão interligadas por 2 400 km de cabos de fibra óptica. O projecto desta infra-estrutura foi financiado em 107 milhões de dólares pelo Exim Bank of China e tem sido implementado no terreno pela Huawei. Também na Zâmbia, é a Huawei, com financiamento do governo chinês, que está a contruír de raiz a grelha digital do país. Para muitos países do continente africano com pouca capacidade de investimento, a tecnologia chinesa de telecomunicações é não só eficiente mas bastante mais acessível. Países como a África do Sul, o Botswana, a Nigéria e o Quénia, que pretendem desenvolver projectos de “cidades inteligentes”, têm vindo a assinar parcerias com empresas de telecomunicações chinesas. Estes projectos de “cidades inteligentes” não são apenas importantes pelo nível de interconectividade que permitem e por facilitarem a estruturação de uma economia de serviços de base digital em sintonia com a 4ª Revolução Industrial já em andamento. Estes projectos são também fundamentais, por exemplo, para garantir formas mais eficientes e sustentantáveis no domínio da gestão energética. Refira-se ainda que em África a forma mais comum de

aceder à internet é através dos telemóveis e que, também aqui, a oferta chinesa, e não apenas da Huawei, é muito mais atractiva em termos de preço. Por exemplo, um em cada três smartphones usados no continente é da marca Tecno, produzidos pela Transision, uma empresa baseada em Shenzhen, no sul da China.

e a china leva vantagem Para Iginio Gagliardone, professor na Universidade de Witwatersrand na África do Sul, não é de admirar que o continente africano veja a China como seu parceiro preferencial: “Apesar da retórica ocidental sobre a importância do acesso à internet para o desenvolvimento do continente, a realidade foi que, na prática, o investimento dos ocidentais no apoio ao desenvolvimento das infra-estruturas necessárias para materializar esse acesso ficou sempre muito aquém das expectativas”. E Eric Olandar, co-fundador com Cobus Van Stade, investigador no South African Institute of International Affairs, do China-Africa Project, uma iniciativa sem fins lucrativos focada na análise das relações entre a China e a África, sublinha que o problema é que “Washington pede para que o continente corte os seus laços com a Huawei mas não oferece nenhuma alternativa. Não diz, por exemplo, se o fizerem estamos preparados para vos dar um bilião de dólares para irem comprar redes e equipamentos a outras empresas sejam elas norte-americanas ou mesmo europeias”. Ainda segundo Iginio Gagliardone, apesar de a China ter, neste momento, uma posição dominante no continente, os recentes investimentos da Google no Gana (onde abriu um laboratório de Inteligência Artificial), da Microsoft na África do Sul (onde estabeleceu novos data centers) e a vontade do Facebook em começar a investir de forma mais substantiva no continente, são indicadores a ter em conta no sentido de não considerar como um dado adquirido, desde já, que o domínio da China é um facto irreversível. Até porque, em muitas regiões do continente africano, tem havido manifestações, por parte de organizações da sociedade civil, preocupadas com a perspectiva de que uma infra-estrutura tecnológica dominada pela China signifique a importação de um modelo de Internet baseado na censura e na limitação da “liberdade de expressão”. Adrian Shahbaz, da Freedom House, lembra, por exemplo, que, para além do modelo de Internet que os chineses estão a implementar ter uma vocação “totalitária” que se “casa” bem com a vocação autoritária de muitos governos do continente africano, também a maior parte dos projectos de “cidades inteligentes” actualmente em desenvolvimento integram sistemas de vigilância pública altamente sofisticados. É cedo e arriscado prever qual será o desenlace desta guerra comercial entre a China e os Estados e o seu impacto no continente africano (até porque se aproximam as eleições presidenciais norte-americanas e muita coisa poderá mudar, ou não, dependendo de quem for o vencedor). Apesar da actual posição dominante da China em África - e em certas áreas tecnológicas como o 5G e a Inteligência Artificial - convém sublinhar que, em algumas capitais africanas, como Nairobi, Lagos, Accra ou Kigali, não é claro que, por exemplo, a posição da União Africana perante a Huawei tenha sido unanimente bem acolhida. Neste contexto, com múltiplas variáveis em jogo, os próximos meses poderão certamente dar indicações interessantes sobre o que irá acontecer.

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