ANO 2 | Nº 4 | MAIO 2017
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AFROTOMBAMENTO Quando as negritudes pintam a Universidade como forma de resistência
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ACESSIBILIDADE
No auge das discussões dos direitos iguais e da inclusão para todos, deficientes são deixados de lado
Periscópio
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COLABORADORES
Armando Júnior Editor
Nayara Carvalho Editora
Anna Carolina Cavalcante
Bárbara Guimarães
Cristiane Turnes
Enrico Monteiro
Gabriel Ferreira
Júlia Lima
Leo Barbosa
Lia Rezende
Luis Felipe Cardoso
Marina Urbieta
Mateus Bosse
Vitória Gonçalves
Expediente Revista Laboratório da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, produzida pelos alunos de Técnica de Produção em Jornalismo Impresso.
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Reitor Prof. Dr. Marcus David Vice-Reitora Profª. Dra. Girlene Alves da Silva Periscópio
Thaís Mariquito
Diretor da Faculdade de Comunicação Social Prof. Dr. Jorge Carlos Felz Ferreira Vice-Diretora Profª. Dra. Marise Pimentel Mendes Coordenadora do Curso de Jornalismo Integral Profª. Dra. Cláudia de Albuquerque Thomé Chefe do Departamento de métodos aplicados e técnicas laboratoriais Profª. Dra. Maria Cristina Brandão de Faria
Editorial
Ser diferente é normal ? Por Armando Júnior Lenine um dia cantou: “Todo mundo tem seu jeito singular de ser feliz, de viver e enxergar. Se os olhos são maiores ou são orientais, e daí, que diferença faz?”. Negro, gay, mulher, cego, cigano, padre, ecovileiro, empreendedor, artista, escritor. Múltiplas maneiras de viver que, nas suas mais amplas particularidades, tornam o nosso modo de enxergar uma experiência edificadora. Essa edição da revista Periscópio lança um olhar sobre as diferentes formas de encarar a vida e estar no mundo. Essa é uma construção coletiva daqueles que buscam transmitir, através das palavras, certas realidades tão próximas da gente; e outras tantas que estão prontas para serem notadas, mas que sequer nos damos conta. O cantor continua: “Já pensou, tudo sempre igual?” Na tentativa de responder
essa pergunta, fomos às ruas buscar o que há de mais comum: o diferente! Nosso desafio foi traduzir tal diversidade que, por vezes, se esvai e pouco se nota diante da correria do dia a dia e a pressa de chegar onde sempre estamos. Sair do lugar-comum é sempre uma tarefa difícil. Mas é isso que nos move! “Ser mais do mesmo não é tão legal”. As páginas que se seguem trazem um pouco dessa tentativa de ser o ponto fora da curva. Trazemos a você, leitor, a nossa perspectiva de um mundo diverso, com suas virtudes e problemas. Que as próximas histórias não fiquem presas no papel ou nas telas, mas sirvam de inspiração e estímulo para a construção de uma sociedade cada vez mais diferente. Para todos! Ah! “Já pensou, tudo sempre igual? Tá na hora de ir em frente...”
“As pessoas felizes lembram o passado com gratidão, alegram-se com o presente e encaram o futuro sem medo”. À Marise Baesso e à Janaína Oliveira nossos mais sinceros e esperançosos agradecimentos.
Professoras Orientadoras Profª. Dra. Janaína de Oliveira Nunes Profª Ms. Marise Baesso Tristão
Editores Armando Júnior Nayara Carvalho
Projeto Gráfico Armando Júnior, Anna Carolina Cavalcante e Leticya Bernadete
Reportagem Anna Carolina Cavancante |Bárbara Guimarães | Cristiane Turnes | Enrico Monteiro | Gabriel Ferreira | Leo Barbosa | Lia Resende | Luis Felipe Cardoso | Marina Urbieta | Mateus Bosse | Thaís Mariquito | Vitória Gonçalves Periscópio
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MULHERES INVESTEM E ESTÃO NO TOPO DE UMA NOVA TENDÊNCIA Em Juiz de Fora cada vez mais micro e pequenas empresas vêm sendo comandadas por elas. O sucesso agora é investir em um mercado exclusivo Por Bárbara Guimarães
Fotos Bárbara Guimarães e Evandro Carvalho
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VIDA. Artesรฃ se prepara para formar uma nova peรงa
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O barulho no ateliê já indica que é dia de criação. Pelas mãos habilidosas e delicadas de Jéssica Americano, artesã que conduz um estúdio de criação de joias, as peças vão se formando, uma a uma, de um jeito singular e exclusivo. E é esse mercado particular que vem ganhando espaço dentro de um consumo inconsciente e exacerbado. Cada vez mais mercados que focam em peças únicas vem se destacando e ganham espaço dentro dessa rede de fast-fashion. MÃOS QUE CRIAM Jéssica tem 23 anos e desde pequena foi criada em uma relação muito particular com a natureza. Segundo ela, sempre se sentiu íntima da terra e acreditou na energia que as pedras transmitiam. “A natureza sempre foi minha inspiração”, comenta. Por isso, decidiu apostar nas duas coisas para empreender. E para quem acha que para produzir basta sentar e juntar prata com pedras está muito enganado. “Gosto de me concentrar para sentir a inspiração vir na hora de criar. Uma boa música, um incenso e uma oração me conectam com o universo e daí saem as joias Zambi. Acredito que a naturalidade é o segredo do meu trabalho”, afirma a artesã.
e são vendidos em um site na internet e em feiras organizadas em espaços abertos em Juiz de Fora, como as que acontecem na praça do Bairro São Mateus. A empreendedora tem percebido que de uns tempos pra cá o número de pessoas interessadas em um mercado mais exclusivo aumentou. Ela conta que cada vez mais a ideia de consumo consciente e de peças que façam sentido vem se expandido. A prova disso é que hoje a marca foca na beleza dos detalhes e se preocupa em significar algo para quem for comprar. A produtora explica, “além do amor depositado em cada etapa da produção e criação das joias, fazemos questão de conhecer melhor nossos clientes para fazer um estudo e descobrir qual a pedra que cada um deles precisa.”
Jéssica começa a produzir uma das suas encomendas, e aos poucos vai escolhendo as pedras
Para ela, é impossível criar a mesma peça em escala. Cada produção é única porque contém elementos muito particulares. Nenhuma pedra natural é encontrada duas vezes exatamente igual, cada uma tem suas particularidades e significados. Jéssica confirma e vai além, “minha missão, além de espalhar meu trabalho e boas energias por aí, é mostrar para o mundo que as pedras são muito poderosas e que podemos aproveitar esse presente da natureza em prol do nosso bem-estar.”Daí surgiu a ideia de unir toda essa natureza com peças de moda, acessórios, anéis e cordões. Os produtos hoje são voltados para todos os públicos
PEDRAS NO CAMINHO. Mas, no mercado de negócios nem tudo é paz e energia, principalmente para elas, mulheres. Segundo Jéssica, no começo quando decidiu empreender, sentiu um grande receio. Ela, que sempre gostou de produzir, se viu diante de um cenário rígido com uma concorrência acirrada. A Jéssica acredita as dificuldades iniciais podem ser traduzidas em uma só palavra: tudo. Ela relata que é muito difícil criar uma marca, um conceito inicial, que transmite exatamente o que ela quer e consiga criar um público fiel. Por isso, hoje ela
A Ourivesaria é a arte de trabalhar com metais preciosos (especificamente prata e ouro), na fabricação de joias e ornamentos. A ourivesaria é uma arte bem antiga, tendo sido encontrados sítios arqueológicos no mar Egeu, datados em torno de 2500 a.C. nos quais se encontram joias feitas de ouro. No Egito antigo já se produziam trabalhos altamente detalhados. É uma arte de grande aceitação ao redor do mundo. O profissional que realiza este tipo de trabalho é o ourives. Cabe ressaltar que esta atividade é, em sua natureza, uma atividade de cunho artesanal. 8
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Segundo dados do Sebrae Minas, o número de micro e pequenas empresas comandadas por mulheres cresceu mais do que as de homens, se comparado de dezembro de 2016 até o final de março desse ano. O aumento no número de mulheres empreendedoras foi de 7,7%, enquanto o dos homens ficou por volta de 6%. O que indica que mesmo sendo minoria nos valores absolutos, o número de mulheres empreendedoras aumentou em 774 lojas desde o final do ano passado, enquanto o de homens cresceu em 634. Uma diferença de 140 micro e pequenas empresas a mais criadas por mulheres.
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“Além do amor depositado em cada etapa da produção e criação das joias, fazemos questão de conhecer melhor nossos clientes para fazer um estudo e descobrir qual pedra cada um deles precisa”
ainda sente que depois de um ano a Zambi ainda é um bebê. “ Nosso intuito com a Zambi é aumentar a consciência das pessoas sobre as pedras, sobre esse tipo de trabalho em pequena escala, feito com carinho, de uma forma verdadeira, que é o oposto do que existe no mercado comum, no comércio que vemos por aí”, explica. A empreendedora mostra que mesmo com todos os obstáculos, ela busca mostrar competência e a qualidade nos produtos que vende, “eu sempre acreditei que quando você faz algo com o coração tem grandes chances de dar certo. Por isso, a gente se prepara, corre atrás, cria coisas novas e se une com a natureza”
EXCLUSIVIDADE EM ROUPAS Outra mulher que também está à frente dos negócios é Maria José de Moura. Há 15 anos ela comanda uma fábrica que produz roupas na cidade. A ideia de produção da empresária também é voltada para peças exclusivas, peças que segundo ela “significam e transmitem algum sentido.”
Bons Resultados
Fonte: Dados Sebrae Minas
Peças são vendidas com detalhes bem artesanais. Com bordados feito à mão.
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Maria José conta que também foi difícil conseguir seu espaço dentro do mercado e que hoje se sente feliz vendo tantas mulheres bem sucedidas. Segundo ela, criar uma empresa acabou sendo uma consequência de uma ideologia que ela acreditava. A empresária conta que desde o começo pensava em uma produção diferente da que era encontrada nas grandes lojas, a produção em massa. E foi justamente puxando para esse lado que ela conseguiu fidelizar seu público, que de alguns anos pra cá vem aumentando bastante. Ela conta que as pessoas que procuram a loja buscam peças diferentes, com esse toque artesanal e com o diferencial que é a exclusividade. Em vez de só comprar um roupa, querem comprar algo que as represente na hora de vestir. A produção da loja é toda feita na cidade e se sustenta bem ao longo dos anos, principalmente recentemente, quando a demanda aumentou. Fora da linha de fast-fashion, onde peças são produzidas em escalas e usadas sem conceito por aí. DIFICULDADES MULHERES EMPREENDEDORAS Uma pesquisa realizada por um instituto norte-americano mostrou que o número de mulheres empreendedoras que desejam crescer 50% e empregar, no mínimo, 10 funcionários nos próximos cinco anos cresceu 7% em uma escala global. Mas, para que esse sonho vire realidade, elas enfrentam barreiras sociais e econômicas, fazendo com que o caminho para o sucesso seja ainda mais desafiador. Nos últimos anos, o número de mulheres que começaram a empreender cresceu muito, tanto no Brasil como em outros países. Atualmente, cerca de 30% de todos os negócios privados do 10 Periscópio - Empoderamento
mundo são operados ou têm como idealizador uma mulher. Uma das grandes mazelas que impede com que essas estimativas aumentem é o sexismo, a discriminação baseada nos estereótipos de gênero. Esse é um fator que permeia a caminhada da mulher desde a contratação por uma empresa até a hora em que ela deseja abrir o próprio negócio. Um estudo realizado nos Estados Unidos demonstrou que as mulheres eram mais contratadas pelas empresas que não pediam fotos nos currículos ou não sabiam o sexo da pessoa que estavam analisando. Além disso, as mulheres ainda sofrem julgamentos desiguais em relação aos homens, que são considerados mais competentes em assuntos relacionados a negócios. Essa discriminação torna mais difícil para as mulheres encontrar um ambiente propício para o desenvolvimento dessas habilidades.
TENDÊNCIA. A especialista analisa as roupas e avalia o lado positivo das peças exclusivas
AFINAL DE CONTAS, MERCADO EXCLUSIVO ESTÁ NA MODA? Umas das formas mais bem sucedidas para saber se um negócio vai bem é entender se ele se mantém sozinho no mercado e atinge cada vez mais clientes. No caso da área de moda é preciso
saber também se o investimento em algo novo vai ser tendência ou vai ser sucesso por pouco tempo. Segundo Ana Paula Calixto, consultora de moda, a ideia chamada de "roupa com história" ganhou força nos grandes centros e eventos de moda, e agora está chegando com tudo em cidades
de médio porte, como é o caso de Juiz de Fora. O crescimento de eventos como feiras de moda local e artesanal confirmam isso. Cada um deve usar o que se sente bem, e apostar em peças com significados cria um novo conceito.
Passo a passo Uma boa gestão considera estratégias de marketing, um fluxo de caixa controlado e passa também por muita criatividade e inovação. 1. Saiba que negócio abrir; 2. Veja se você tem perfil; 3. Reúna informações sobre o negócio; 4. Organize-se; 5. Saiba como obter crédito para o seu negócio; 6. Coloque a mão na massa. (Fonte: Sebrae)
PARA COMEÇAR. Com os exemplos acima ficou claro que no começo, abrir um negócio, seja de qual área for, exige persistência, coragem e preparo. Por isso, é preciso se especializar, procurar quem entende do assunto e embarcar de vez na viagem que é criar uma marca. Em Juiz de Fora, vários especialistas apostam em ajudar quem está começando no ramo. São profissionais na área de administração, marketing e cocther, que estão disponíveis para solucionar algumas das principais dúvidas que os inicantes tem. Para a analista do Sebrae, Camila Vilela, antes de abrir qualquer empresa as pessoas devem se perguntar qual é o perfil individual de cada um e qual o perfil eles querem transmitir com os produtos. Além diso, é preciso abdicar de prconceitos e deixar a mente aberta para coneguir fidelizar um público alvo maior, e claro, conseguir estar atento as tendências que movem o ramo no mercado. Outra questão importante é pensar na questão financeira, fazer planos de custo e não se deixar levar por ideias fáceis de lucros iniciais, por isso, é importante fazer um planejamento com quem entende de finanças para não ser surpreendido no futuro com dívidas. Até o local especificado para abrir a loja ou o empreendimento deve ser pensado e calculado na ponta do lápis. Camila afirma que é muito comum, no momento inicial o empresário sentir medo e receio, principalmente quando as dificuldades aparecem. Nesse momento é preciso ficar atento e pedir ajuda a algum profissinal antes de desistir. E pensando no empreendimento feminino, duas mulheres decidiram abrir uma empresa para ajudar outras mulheres na área.
CENÁRIO PROMISSOR. Para ajudar mulheres que buscam se firmar como empreendedoras e driblar problemas como os citados acima, uma dupla de amigas decidiu abrir uma consultoria específica para elas. A “Consultoria para Mulheres” é um serviço especializado para mulheres empreendedoras. Flávia Cadinelli, uma das criadora, explica: “Elaboramos e gerenciamos um planejamento estratégico de comunicação e marketing para iniciativas e marcas criadas e administradas por mulheres. Trabalhamos para que a empreendedora encontre e retenha seus clientes, além de se relacionar estrategicamente com o mercado para que a sua marca seja reconhecida.” A dupla observa que desde o início do ano, quando a empresa foi criada, o número de clientes só foi aumentando e que o perfil de mulheres independentes vem se destacando. “Elas sabem que são capazes e têm coragem para realizar seus próprios sonhos”, afirma Flávia. •
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PRECONCEITOS
Por Marina Urbieta
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Os diferentes hábitos, o estereótipo brasileiro e as documentações são umas das preocupações que todas as mulheres deveriam ter ao viajar para o exterior. Mulheres de várias idades estão cada vez mais viajando sozinhas pelo mundo. Isso só é possível por causa das lutas históricas de muitas feministas. Apesar dos avanços, quem decide viajar sozinho deve se preocupar com os hábitos e costumes dos países para evitar imprevistos ou ocorrências ainda mais sérias. Antes de escolher o destino é preciso saber a documentação necessária e como serão os locais de estadias. A Revista Periscópio ouviu seis mulheres que já passaram por esta experiência e traz dicas de ouro para a turista, como aplicativos que facilitam a locomoção nos destinos até os cuidados para evitar saídas noturnas. Hoje em dia, a modalidade viajar “solo”, para um país que possui uma cultura diferente da sua, sem a companhia dos pais, do marido ou do namorado, não é problema. Uma pesquisa, do ano passado, feita pelo TripAdvisor, um dos maiores sites de viagem do mundo, constatou que uma em cada quatro mulheres no Brasil viaja sozinha. E as quase dez mil entrevistadas, sendo 671 brasileiras, afirmaram que desejam repetir a experiência de duas a quatro vezes nos próximos 12 meses.
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Contudo, as dificuldades ainda são enormes, decorrentes de preconceitos e de tratamentos machistas que elas sofrem por se aventurar desacompanhadas. A estudante Fernanda Rodrigues, 21, foi abordada por um estrangeiro à noite duas vezes, uma nas ruas de Paris e outra ao passear sozinha por Lisboa. “Eu estava na praça do comércio de Lisboa à noite, quando um cara veio falar comigo e eu não respondi, continuei andando.” Gabriella Weiss, 20, que também é estudante, relata que, ao invés de tratamentos, recebeu vários comentários para lhe desmotivar a viajar sozinha e sempre rebatia que “não podia esperar que outras pessoas tivessem essa vontade para enfim eu viajar. Eu faço isso por mim, e é isso que eu preciso.” Independentemente da idade ou da posição social e intelectual, todas estão sujeitas a preconceitos de familiares e conhecidos. Muitas vezes não conseguem perceber que a viagem é uma passo fundamental para a apropriação de conteúdos únicos na vida de uma pessoa. E infelizmente, o pensamento de que podem sofrer assédio e violência, não lhes foge à cabeça na hora de decidir viajar.
E agora? Querer viajar não é suficiente para que as mulheres partam em uma aventura para o exterior. É preciso amadurecimento, coragem e dinheiro, o que pode levar anos. Além disso, durante esse processo, poucas pessoas podem acreditar no seu potencial. E essa é a chave: não desistir e procurar as pessoas certas que deem as dicas suficientes para o melhor plano de viagem a passeio, como voluntária ou por conta dos estudos ou trabalho. A consultora de vendas Carolina Rezende, da agência CI Intercâmbio, afirma que a maioria das mulheres procura por informações de viagens, sendo o Canadá o destino de preferido. “O tipo de viagem mais comum é o curso de idiomas, mas não existe só esses, aqui oferecemos outros também”, explica. Dentro das universidades, o interesse, sem dúvida, é pelas faculdades no exterior. As estudantes procuradisciplinas que tenham a mesma equivalência do seu curso no Brasil. Como no caso da estudante da UFJF Carolina Toledo que optou pela universidade Waterford Institute of Technology - WIT, na Irlanda. Na época, ela viajou pelo antigo programa Ciência Sem Fronteiras, do governo federal quando fazia engenharia civil. A Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), por meio da Diretoria de Relacionais Internacionais (DRI), incentiva o intercâmbio de alunos brasileiros e estrangeiros a partir do programa PiiGrad. Alunas, como a estudante Andressa Mello, viajaram para a Itália pelo programa em 2016.
Antes que as acadêmicas da UFJF embarquem para outro país, reuniões são feitas com todos os futuros intercambistas. Segundo o gerente de Outgoing da DRI, Thiago Coelli, são passadas informações gerais para que os alunos representem a UFJF “da melhor forma possível”. Segundo ele, casos de assédio e preconceito nunca foram relatados oficialmente à diretoria, mas a instituição se disponibiliza a dar todo apoio em caso de haver alguma denúncia. Essa também é a afirmação dada por Carolina Rezende, que orienta as viajantes a chamar a polícia local. “Dependendo do caso, conseguimos apoiar a pessoa daqui, e sempre mantemos o contato com o intercambista.” Ela acrescenta: “Estamos sempre tomando precauções e informamos a lei, quando os países têm uma forma de restrição. Por exemplo, para quem vai para a África do Sul, avisamos que lá não pode sair sozinho à noite, e, se for, não ir a pé. Mais ou menos como acontece no Brasil.” Muitas mulheres não sabem, porém, a maioria dos países de destino, como EUA, Portugal, Espanha, Inglaterra, possui associações de apoio. Por meio dos atendimentos de denúncias, eles tomam medidas, dando assistência às estrangeiras. Na Inglaterra, por exemplo, existe o LAWRS, atendimentos psicológico e apoio às mulheres latino-americana. Já em Portugal existe o Comunidaria, e, em Nova York (EUA), My Sister’s Place, que atuam nesse sentido.
Centro de apoio às mulheres no exterior Inglaterra AMBE – Organização de apoio à mulher brasileira no Reino Unido Casa do Brasil em Londres – Apoio psicológico e jurídico Escócia Women Support Project – Organização de apoio à vítimas de violência doméstica Irlanda Women’s aid – Organização de apoio à vítimas de violência doméstica Portugal Casa do Brasil de Lisboa – Centro de apoio aos brasileiros Mais Brasil – Centro de apoio aos brasileiros no norte de Portugal Comunidária – Associação de apoio à mulher promovendo igualdade de gênero e oportunidades EUA Chicago Foundation – Associação de apoio à mulher My sister’s Place – Apoio e aconselhamento à mulheres e crianças vítimas de violência doméstica. (Nova Iorque) França Solidarite Femmes – Associação de apoio e assistência contra a violência doméstica
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Aprendizados da viagem
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“A sua companhia te basta. Isso é importante para você estar em bons termos com o seu eu”
sozinha, p o i s gosta de estar entre os amigos, mas se tiver que ir “solo” nunca pensa duas vezes: “É uma coisa extremamente libertadora, você monta seu roteiro e faz as coisas no seu tempo.” Ana Carolina, que viajou para vários países da Europa, concorda e comenta que tinha muita autonomia para fazer o que quisesse. Visitava museus,
bares, conhecia mais da vida local, e, “parar para comer tranquila, também é algo que ajuda muito a aproveitar”. E acrescenta: As pessoas têm perfis diferentes. Viajar com alguém com gostos distintos do seu é algo que atrapalha muito e pode, inclusive, acabar com amizades antigas. Prefiro ir sozinha, encontrando amigas novas pelo caminho ou fazendo trechos curtos com amigas antigas, para poder seguir o meu ritmo de viagem.” Além disso, a percepção de mundo muda muito depois de uma viagem para o exterior. Carolina Toledo confirma que percebeu como o mundo cabia na palma da sua mão e “ que era totalmente capaz de fazer tudo sozinha e com perfeição”. Ela também ressalta “como é gratificante ser dona do próprio destino, mesmo com os medos e dúvidas.” Assim como ela, Andressa Mello coloca a viagem como uma experiência única: Achei fantástica e voltei com uma bagagem imensa”, afirma a estudante de direito. Ademais, aprender a se defender contra ataques machistas constitui um dos aprendizados da viagem de Rebecca Gramlich. “Eu acho que ter viajado sozinha me fortaleceu e me deu uma certa confiança em mim mesma; o poder me defender dos homens que cruzam meu caminho se precisar”, afirma.
FOTO: ANA CAROLINA DAL ZOTTO
“Já passou da hora de a gente ocupar o lugar que a gente quiser nesse mundão”. Depois de tudo que passou, Fernanda Rodrigues se considera feminista, assim como Ana Carolina. Logo ao chegar na Itália, Ana Carolina procurou grupos de ativistas. Lá a paulista encontrou uma Caravana Feminista que tinha um projeto da Marcha Mundial das Mulheres (MMM). O grupo cruzou países da Europa à Turquia durante os meses de março a outubro. Durante 60 dias, Ana participou de manifestações e ajudou a produzir o documentário “Feminista”, com previsão de lançamento para o início do mês de maio. Diversas são as experiências que as mulheres desejam passar para a frente. Aprendizados, como autonomia, liberdade, autodefesa e percepção de mundo são alguns deles. “Viajar sozinha te traz um momento consigo mesma. Você faz o que mais gosta e valoriza isso. O essencial: a sua companhia te basta. Isso é importante para você estar em bons termos com o seu eu”, constata Grabriella Weiss, que viajou três vezes para o exterior. Esse também é um dilema para Fernanda Rodrigues, que ainda está na faculdade Université Claud Bernard Lyon 1, na França. Para ela, nem sempre é fácil viajar
Os países de destino Longe de querer ser desrespeitada em um outro país, as intercambistas também pensam que não gostariam que as mulheres do lugar de destino assim também fossem. “Não quero desrespeitar a cultura local, e, especialmente, as mulheres.” Foi o que pensou Ana Carolina ao viajar para a cidade de Saravejo,na Bósnia e Herzegovina, marcada por uma cultura árabe e de pós-guerra. Completa que comprou uma camiseta com manga, “estava me sentindo mal de usar short e regata pelas ruas, não por ter sofrido constrangimento pelos homens, mas em respeito às mulheres locais, muito cobertas.” Como as brasileiras possuem o costume de usar roupas mais curtas, as mulheres de países africanos cobrem todo o corpo - comportamentos enraizados durante séculos de tradição. Quando uma pessoa viaja para países muçulmanos, mais do que pensar no machismo por trás daquela vestimenta, é pensar que, por mais que isso confronte alguns dos ideais feministas, essa característica é a realidade da região: “Pensei muito se eu devia ou não fazer isso, mas achei que, como uma boa visitante, não queria desrespeitar a cultura local, e, especialmente, as mulheres locais. Se, para elas, é importante
estarem cobertas, não fazia sentido eu estar tão exposta.” No caso da alemã Rebecca Gramlich, a aproximação de outras pessoas foi o que mais lhe incomodou. “Eu fui criada com certa desconfiança em relação à intenção do outro gênero ao interagir comigo.” Para Rebecca qualquer toque de aproximação, como beijos no rosto, pode ser vista como uma situação de risco. Ela relata que, uma vez, se sentiu constrangida quando um artista, com quem estava tirando uma foto, virou para lhe dar um beijo no rosto “ eu não tinha pedido e ele me deu um beijo. Naquele momento a gente riu, mas eu falo isso também porque no momento eu não estava sozinha.” Aos 19 anos, ela visitou quatro países da América do Sul: Brasil, Bolívia, Peru e Equador. Durante os três meses da viagem, confessa que se sentiu insegura por saber que podia ser tratada desrespeitosamente, principalmente pelos homens latinos. Ela ainda relembra: “As cantadas e as demais demonstrações de interesse pelo corpo, mais do que pela pessoa, foram algo que não me acostumei. Não faz parte da minha cultura de origem as mulheres se virem confrontadas com essas coisas.”
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Carolina Toledo - Irlanda
Carolina Toledo - Irlanda
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curtiu? Gabriella Weiss - Europa Central
Andressa Mello - Itรกlia
Ana Carolina Dal Zotto - Itรกlia
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A aluna de jornalismo da UFJF, Carolina Toledo, passou um ano e meio na Irlanda e não teve grandes dificuldades com relação ao preconceito de gênero. Porém, segundo ela, duas questões lhe afligiam na época: a insegurança e seu próprio preconceito em viajar sozinha sendo mulher. “Não era pelo o que os outros falavam, e olha que fui tida como corajosa por muitas pessoas próximas, inclusive familiares. No mais, eu tinha medo de precisar da ajuda das pessoas, homens principalmente. Por isso, tentava ter tudo muito bem planejado e esquematizado para não viver situações desagradáveis. Não tive muitas dificuldades devido à essa minha grande preocupação.” Por outro lado, quando visitou sozinha países da Ásia e da África a situação mudou. Principalmente em Marrocos, cidade da África em que teve que usar as vestimentas tradicionais da região para não sofrer nenhum assédio: “Não usei as vestimentas por causa da cultura local, mas porque os homens marroquinos não hesitam em assobiar, fazer sons para chamar atenção ou olhar descarado e fixamente.” Seus pais acharam um absurdo ela ir para os dois continentes desacompanhada.
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A estudante de Relações Internacionais, Fernanda Rodrigues, 21, encontrou facilidade para visitar sozinha diferentes países da Europa. Na opinião dela, Barcelona foi uma das regiões mais tranquilas para passear desacompanhada. Já Portugal e França não foram. Portanto sempre tomava cuidados ao sair de casa, e mesmo assim houve situações em que sentiu medo: “Uma vez, ao passear sozinha por Lisboa aconteceu uma situação tensa. Eu estava na praça do comércio à noite e um cara veio falar comigo e eu não respondi, continuei andando. Porém ele começou acompanhar meus passos. Andei mais rápido e ele continuou me seguindo, insistindo até que perguntei a um casal desconhecido se podia ficar com eles por um tempinho, só assim o cara foi embora.” Além de sair andando e não demonstrar que está desacompanhada, manifestar o conhecimento da língua estrangeira também foi uma das reações que Fernanda fez ao ser abordada por um estranho nas ruas de Paris à noite: “Um cara veio me perguntar se eu tava perdida, dizendo que era suíço e podia me ajudar. Sai andando fingindo que não era comigo,mas ele veio atrás de novo cada vez mais rápido, e me gritando. Então eu falei mais alto que não precisava de ajuda, em francês, e ele foi embora.”
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Gabriella Weiss, 20, aluna de jornalismo da UFJF, fez várias viagens para exterior e tudo por sua conta. Na primeira vez, aos 15, procurou uma ONG que promovia viagens interculturais e conseguiu estudar por um ano na Dinamarca. Antes de ir, ouviu comentários de muitas pessoas assustadas por ela viajar tão nova e sozinha, “já na minha família isso foi algo muito natural dado que minha mãe chegou a fazer intercâmbio quando era mais nova também”. Cinco anos depois, no início deste ano,viajou para o exterior pela terceira vez fazendo um mochilão e visitando países da Europa Central como Áustria, Hungria, Eslovênia e Eslováquia. Passado tanto tempo, ela recebeu comentários desmotivadores, e dessa vez, o múltivo era por viajar sem companhia: “as pessoas no Brasil me perguntavam ‘porque viajar sozinha?’ Não somente por eu ser mulher, mas achavam que era uma coisa triste.” Mesmo pessoas desconhecidas muitas vezes questionavam “porque eu não viajei com nenhum parente ou com namorado.” Segundo ela, as mulheres sofrem uma pressão, criada pela sociedade, para que estejam sempre acompanhadas e assim “protegidas”. “Eu sempre dizia que eu não podia esperar que outras pessoas tivessem essa vontade para enfim eu viajar. Eu faço isso por mim, e é isso que eu preciso.”
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Andressa Mello, 21, que cursa direito na UFJF, acredita que foi uma das experiências mais marcantes da sua vida viajar para a Itália e fazer curso de idiomas por lá. Contudo, antes de fazer as malas e chegar ao seu destino, ouviu comentários de pessoas próximas no sentido de desmotivá-la: “Muita gente próxima a mim e familiares sempre diziam que era loucura eu viajar sozinha. Falavam como eu era corajosa e frases semelhantes. Felizmente não dou ouvido a esse tipo de comentário e fui bem segura do que estava fazendo” Do mesmo modo, não fugiu de experiências negativas no país de destino. “A Itália é um país ainda bem machista e patriarcal, então experienciei situações como cantadas e assédios. A situação era intensificada quando dizia que era brasileira, pois eles associam muito isso com prostituição, era bem desconfortável em algumas situações”, acrescenta. Apesar dessas situações de constrangimento, ela ressalta que valeu a pena “pois em vários momentos viajei completamente sozinha, e não tive maiores problemas. A melhor situação era com certeza conhecer muita gente interessante e cada dia ter um grupo de amigos diferente.”
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A paulista, Ana Carolina, 32, mochilou em 2015 por 20 países da Europa durante 6 meses e disse que o machismo nas ruas da Itália e da Espanha é igual ao Brasil, com olhares da cabeça aos pés e comentários maldosos: “eu suava frio cada vez que tinha que passar por algum café na Itália, cheio de senhores idosos sentadinhos na calçada que mexiam com todas as mulheres que passavam. Sorte que eu não entendia muita coisa, mas a gente entende a maldade só pelo olhar.” Além dessa viagem, a ex-bancária também visitou Berlim em 2012, e lá um grupo de quatro adolescentes canadenses fizeram comentários preconceituosos, contra ela e suas amigas, dentro do hostel onde tinham passado a noite: “eles começaram a falar da fama brasileira de mulher fácil, graças à nossa roupa íntima espalhada pelo quarto secando. Foi bem ruim, mas estávamos de partida e decidimos apenas deixar comunicado o constrangimento ao hostel”.
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S A C I D
a, todo h n i z o s r viaja estino e d ens de g o a t r n e a h l v as esco s Apesar d ouco na hora de como foi visto no p s s cuidado é onar com estranho m. Gabriella Weis ra ci de se rela mulheres que viaja saia de casa “me s o relatos da re cautela quand ava indo pra minha p est tinha sem em avisar onde eu ientes caso alguma c a s preocupav que eles ficassem eitera que, nos seu a r r a s família, p cesse.” A estudante va para as pessoa te isa , coisa acon e atenção, “não av dar sozinha à noite an sd momento a sozinha, evitava av omigo.” que eu est m os documentos c ista de carteirinha ur co e sempre s que Gabriella, t ensar na estadia na p ca r Outras di a Europa, propõe é pode ajudar é fica d ue dos países stino: “Um fator q ares propícios para de ug cidade de s da juventude - l ção que você”. ue ua em alberg ssoas na mesma sit pe conhecer
Ela lem com m bra que, “ m hospe ulheres que uitas veze d perdid adas no a também fi s, acontecia c l de pas pode f a nas ruas de bergue.” Pa avam sear a mas c cilitar. Um um país des ra a turist possu omo nem t ótimo meio conhecido, a não ficar e o a aplica m internet, dos que ch é ativar o G tecnologia t o você p ivo que fun a dica de A egam a um ogle maps, n onde ode colocar ciona offlin a Carolina país novo e q ponto uiser, e ele o mapa da , o citymap é baixar um s a sua turísticos, te mostra cidade offlins2go. “Nele, r princi pressa pal di estaurantes locais próx e para usar c i lugar, . “É interes a é descob , banco”. M mos, como e r não pa te permite sante passa ir o seu pe smo assim, r cansa recer, mas o curtir um p r alguns di fil e ir sem encara muito. Par deslocame ouco a cid as em cada a a n Monte r a Europa, quem nã to de um lu de e, pode o são lo vidéu ou Bu vale cogita tem orça gar a outro m r muito cais com umenos Aires ( uma trip s ento para oz o mais p róxim a cultura di u ambas), qu inha para os da gente. ferente, seg e também ” uros, mas
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MEU DIร RIO DE VIAGEM 28 Periscรณpio - Empoderamento
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Vida de estrangeira O Canadá possui diversas características: frio, grande e bonito. O país, situado na América do Norte, e, como todos desse hemisfério, tem as estações bem diferentes do Brasil, chegando a nevar no inverno. Contudo, Vancouver é considerada a cidade menos gelada do país. O que não me fez escapar das temperaturas abaixo de 0 grau.
Conheci amigos colombianos, japoneses, turcos, suíços e por aí a lista aumenta. Não tinha como não praticar o inglês. Além da neve, a cidade é composta por metade de imigrantes, na sua maioria japoneses. Sem contar os brasileiros, foi o que mais encontrei. Essa grande entrada de estrangeiros se deve ao fato de que o país, nos últimos anos, tem
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aberto programas para atrair mão de obra jovem. Apesar do grande território do país, considerado o segundo maior do mundo (9,98 milhões de km²), a distribuição densamente demográfica é baixa. Dividida em North, West, South e East Vancouver, as regiões são bem afastadas e, para se deslocar, é preciso usar metrôs, ferries ou skytrain. O centro chamado Downtown fica envolto por um mar e montanhas rochosas, o que torna a paisagem ainda mais linda. Downtown é o coração de Vancouver e região. Mas chega de falar só do Canadá em geral. A minha viagem foi incrível. Quando cheguei em Vancouver, com objetivo de estudar inglês durante o mês de fevereiro, me deparei com pessoas de todos os lugares do mundo. Conheci amigos colombianos, japoneses, turcos, suíços e por aí a lista aumenta. Não tinha como não praticar o inglês. Às vezes, acordava cedo e minha “homemother” (mulher responsável pela casa onde você dorme) sempre me lembrava que eu não estava no Brasil ao me acordar com um “good morning,
sweet”. Se eu não falasse inglês com ela, nada feito, ela não me entenderia. Não houve problemas em falar inglês. Umas das dificuldades foi a comida. Os canadenses gostam de comida com muita pimenta e sopa todos os dias. A principal refeição deles é o jantar, e eles não almoçam. Diariamente, eu e meus amigos lanchávamos em restaurantes
ou fast food. Mas enquanto um hambúrguer era 5 dólares, um “almoço” custava 11 dólares. Não engordar é quase impossível. Sinto falta dos donuts do Tim Hortons, quase um Starbucks do Brasil, mas existe apenas nas mediações do Canadá, pois é nacional. Uma das lembranças que levei, logo no Aeroporto, foi isso.
O primeiro obstáculo para viajar foi mostrar que eu era capaz de me virar sozinha em um outro país. Pesquisei agências com preços mais baixos e tratei das documentações. Foram inúmeras as vezes que tive dúvida e voltei à agência para saná-las. O processo demorou três meses e ainda dava aquela insegurança. Mas dei conta.
No Canadá fui para Grouse Mountain, onde escorreguei várias vezes na neve No Canadá não deixei de viajar e passear pelos locais turísticos da região. Fui para Grouse Mountain, onde escorreguei várias vezes na neve, para Seattle, EUA, três horas de distância, e para Deep Cove, cidade turística próxima de Vancouver. Frequentei alguns pubs à noite e museus também. Sozinha ou acompanhada eu conseguia fazer várias coisas. Tirei fotos, me perdi e aprendi muito da cultura local. A autonomia e a cultura que adquiri foram imensas. Por mais medo que o início da viagem possa dar, por você estar em um país totalmente diferente do seu, vá em frente porque vale a pena.
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MULHERES NO YOUTUBE O perfil das mulheres que produzem conteúdo para a maior plataformar audiovisual da internet vai além do senso comum. Empreendedorismo, carreira, maternidade, games, beleza. Os assuntos abordados são os mais diversos e falar sobre eles se tornou profissão.
Por Vitória Gonçalves
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Nos últimos anos o Youtube se estabeleceu como a maior e principal plataforma de conteúdo audiovisual, one milhões de pessoas encontraram espaço para compartilhar suas produções. Dentro desse universo dos vídeos, canais e streamings, o espaço é democrático e todas Youtubers de beleza e comportamento Evelyn Regly, Jout Jout, Nah Cardoso, Niina Secrets, as pessoas com uma AsRayza Nicácio e Boca Rosa estiveram na capa da revista Glamour de abril (Foto: Hick Duarte) câmera e acesso à dez milhões de seguidores e internet tem chance de dividir com uma legião de fãs apaixonados. o mundo tudo o que quiserem. O humor e a atuação sempre O Youtube tem mais de 1 bil- foram o foco do canal “5inco hões de usuários e cada da são Minutos”, que rendeu à atriz a assistidos milhões (literalmente!) publicação de dois livros, papel de horas em bilhões de vídeos. principal em um filme e atuação Nos EUA, a plataforma atinge em muitos outros, além de uma mais adultos de 18 a 49 anos peça de teatro que percorreu (do) que qualquer rede a cabo. as principais cidades do Brasil. E nesse não tão novo esCom um foco totalmente diferpaço, muitas mulheres encon- ente, a jovem Malena Riskevich traram uma profissão um lugar Nunes, que aos 23 anos já soma para contar suas experiências mais de três milhões de seguidores ou mesmo apenas entreter. e grava vídeos do estilo “gameNomes como Jout Jout, Niina play”. Jogos de toda natureza e o Secrets, Malena, Kéfera e out- mundo geek sempre foram uma ros mais já somam milhões de paixão dela, que hoje já consegue inscritos e são conhecidos por se sustentar através do seu hobby. qualquer um que passe um tem- Dona do maior canal de games copo vendo vídeos no Youtube. Po- mandado por uma mulher, a jovem dem até não ser unanimidade em de 17 anos garante a paixão pelo agradar todo tipo de pessoa, mas assunto foi herdada de sua mãe. não se pode negar que são amA ideia de criar o canal surgiu em plamente conhecidas e assistidas.
QUEM SÃO ELAS? Foi com o intuito de divulgar seu potencial como atriz e chegar mais perto do trabalho dos sonhos que Kéfera, hoje a maior Youtuber do Brasil em número de inscritos, começou a postar seus vídeos no Youtube. Sempre muito agitada e com certo ar dramático cheio de sinceridade, conquistou mais de 34 Periscópio - Empoderamento
“Eu jogo de tudo um pouco. Se o pessoal me pediu para jogar, estou jogando. Atualmente, é meu trabalho, porém, não deixa de ser meu lazer!” um dia de tédio na vida da garota, que não tinha grandes expectativas e pretensões quanto a isso. Depois de poucos meses e de milhares de visualizações, deixou a faculdade de Jornalismo para se dedicar totalmente ao novo trabalho. No ar desde 2002, o canal “malena0202” é um grande sucesso, que inclusive já proporcionou para Malena a oportunidade de publicar um livro, o “Fala aí, Malena!: O livro dos bunitos”. Sobre a profissão youtuber-vlogueira-influenciadora digital, também existem desvantagens. Segundo ela, ser a própria chefe é a melhor e pior parte do trabalho: “O fato do canal ser uma responsabilidade totalmente minha, faz com que eu não me desligue dele um segundo sequer. Sempre estou pensando sobre o que produzir, como produzir e outras coisas relacionadas ao canal. É literalmente um trabalho 24 horas por dia, não desliga. Isso é um pouco desgastante.”
ELAS COMO PÚBLICO • 60% das mulheres do mundo entre 18 e 24 anos estão no YouTube, o que representa 5,4 milhões dos 8,9 milhões de usuários online; • 2,2 milhões estão online todos os dias e 2,3 milhões; • O tempo que as mulheres passaram vendo vídeos dobrou em um ano. Além disso, triplicou o tempo que elas passam assistindo vídeos sobre negócios, notícias empresariais e serviços. • O estereótipo dita que as mulheres deveriam consumir, majoritariamente, conteúdos sobre saúde, beleza e maternidade, mas a realidade é diferente: elas estão 50% mais inclinadas a assistir vídeos no estilo faça-você-mesmo regularmente do que os homens.
HOBBY X PROFISSÃO C o m espaço para quem quiser, a l g u m a s mulheres utilizam o Y o u t u b e como uma ferramenta para atingir seus objetivos profissionais. É o caso da Tainá compartilha com seus seguidores os bastidores das gravações (Foto: @eutainasantos) Tainá Santos, mineira de 20 anos ao usuário compartilhar vídeos que concilia seu emprego “for- curtos que ficam no ar por 24h). mal” com sua rotina de produção “Não sou do tipo que está o temde conteúdo para redes sociais. po inteiro compartilhando a vida. Nascida em Bicas, uma cidade Às vezes até esqueço ou sinto vercom menos de 15 mil habitantes, gonha de fazer em público, Mas Tainá se mudou para Juiz de Fora tento dar dicas de coisas que pohá alguns anos, e chegou a ini- dem ajudar outras pessoas. Não ciar a graduação em Estatística. tenho uma rotina regrada, vou Hoje trabalha como maquiado- fazendo o que posso nas horas vara e consultora independente gas”, diz a jovem que tira um dia de uma marca de cosméticos: na semana para se dedicar mais “Comecei esse negócio com meu a gravar e editar seus vídeos. namorado, onde me desenvolvo profissional e pessoalmente”. Youtube: T de Tagarela Seu canal “T de Tagarela” foi criFacebook: /tdetagarela ado no início de 2015 e os vídeos Instagram: @eutainasantos totalizam quase 200 mil visualizações. Por lá, a Tainá compar- COMPLEMENTANDO A PROFISSÃO tilha seu dia-a-dia, além de dicas Thais Farage é formada em de maquiagem, moda e projetos Cinema, mas hoje em dia trabalha do tipo “faça-você-mesmo”, os com moda e beleza. Após oito famosos “Do It Yourself” (DIY). anos atuando na área de direção Por ter escolhido esse nicho de arte e figurino, se formou como de conteúdo, tem o públi- Consultora de Estilo Pessoal. co majoritariamente feminino e por isso não enfrenta grandes dificuldades ou críticas. Mesmo não dedicando integralmente seu tempo ao canal, Tainá busca/procura/tenta diariamente atualizar suas redes sociais, divulgar os vídeos postados, responder comentários e conversar com seu público através do InstaStories (ferramenta atrelada ao Instagram que permite
É mineira mas hoje mora em São Paulo e usa o Youtube como forma de dividir seu conhecimento profissional, além de dar dicas sobre maternidade fora do padrão comum. Mãe do Miguel, estimula as mulheres a não deixarem de lado seu estilo e gosto pessoal apenas por se tornar mãe: “Vira e mexe ouvimos algumas regras préfabricadas para grávidas se vestirem durante a gestação, e o que a consultora de estilo prova é bem aquilo que acreditamos: o importante é se sentir bem e vestir o que agrada aos próprios olhos.” Outro tipo de vídeo que faz, sempre a pedido de seu público, é o “Comentando o Red Carpet”, onde ela fala sobre as roupas usadas por celebridades em grandes premiações internacionais de música e cinema. O Youtube não é sua fonte de renda, e Thais também não espera que isso um dia aconteça. Ela não quer deixar de lado seu trabalho como Consultora de Estilo Pessoal para se dedicar somente aos vídeos. Estar presente no Youtube (e em diversas outras redes sociais) ajuda na divulgação do trabalho e principalmente em atrair novos clientes que ao assistir, se identificam com o conteúdo, com a proposta do serviço de consultoria e especialmente com a Thais. Youtube: Thais Farage Facebook: /thaisfarage Instagram: @thaisfarage
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MODA, BELEZA E COMPORTAMENTO Do mundo dos blogs surgiram muitas produtoras de conteúdo audiovisual. Estar presente onde o público está fez com que muitas delas tenham adicionado o Youtube à sua lista de ferramentas de trabalho. É o caso da Karla Lopes, dona do blog Hey Cute. Apesar de ter vontade de um dia tornar o blog sua fonte de renda, ainda precisa ter um emprego formal. Ela tem 25 anos, é Jornalista e trabalha como freelancer e produtora de conteúdo para diversas empresas. Por não ter ainda o blog como principal fonte de renda, acaba deixando ele muitas vezes em segundo plano. Após um período longo sem gravar vídeos e atualizar seu canal, foi motivada pelas amigas a retornar: “Conversar com outras meninas que produzem pro Youtube me ajudou muito. Elas me mostraram que pode ser sim um caminho para trabalhar com produção de conteúdo próprio para a internet e que tenho potencial para isso. Então, por que não?”. Essa retorno veio cheio de novidades, como sua futura lojinha de papelaria e diversos produtos feitos à mão. Segundo Karla, que já gravava vídeos em 2010, houveram muitas mudanças dentro da comunidade da plataforma, com lados bons e ruins: “O lado negativo é que rola muito
“O Youtube pode ser sim um caminho para trabalhar com produção de conteúdo próprio para a internet e tenho potencial para isso. Então, por que não”
No intagram, Karla compartilha seus looks, dicas e suas cerâmicas, que em breve estarão à venda (Fotos: @k.arlalopes)
conteúdo repetitivo no Youtube. Porém, o lado positivo é que o público da plataforma creceu bastante!”. Em seus projetos, ela encontra certa dificuldade em alguns momentos por morar em Belo Horizonte: “Minha cidade ainda está bem atrasada em relação ao Youtube. As marcas e empresas daqui ainda não entenderam o potencial da plataforma e não investem nos produtores de conteúdo. Em São Paulo já estão anos luz à frente”. Youtube: Ka Lopes Blog: Hey Cute Instagram: @k.arlalopes
TUDO ISSO E MUITO MAIS Com todo esse espaço e com tanta gente talentosa, não existe quem não se sinta representado ou que encontre no Youtube aquilo que quer. Fica difícil enumerar todos os nichos alcançados pelas produtoras de conteúdo, mas pode acreditar: são vários. É interessante observar esse crescimento da participação feminina tanto produzindo quanto consumindo esse material, que na maioria das vezes é mesmo feito especialmente para elas. E se você acha que ainda não tem nada que te interesse por ali, que tal criar seu próprio canal e ser mais uma influenciadora digital?
FEMINISMO E NEGRITUDE
Youtube: Afros e Afins Facebook: Afros e Afins Instagram: @natalyneri
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Para Nátaly Nery, de apenas 22 anos, o Youtube é um espaço para falar de feminismo negro, suas próprias experiências de vida e consumo consciente. A jovem que saiu do interior para estudar em São Paulo hoje empodera e inspira milhares de mulheres através de seus vídeos: “Meu objetivo com o canal é falar de autonomia, principalmente para a mulher negra". Assim como ela, as amigas e jornalistas, Maristela Rosa e Natália Romualdo também criaram um canal para falar de racismo, transição capilar, e diversos outros assuntos que interessam ao publico negro - em especial feminino. As meninas de Juiz de Fora já contam com mais de 10 mil inscritos em seu canal e publicam dois vídeos por semana, onde, com muito conhecimento e bom humor, tratam de temas delicados e pouco discutidos em geral por pessoas com espaço na mídia.
Youtube: Papo de Preta Facebook: Canal Papo de Preta Instagram: @papodepreta
Unanidade, humanidade, uma unidade Como uma visão de mundo mais sistêmica e o resgate de culturas ancestrais, nativas e populares têm guiado a busca por uma forma diferente de viver
Por Lia Rezende
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Começo o dia lendo e me aproximando do poder das plantas. As ervas, as matas e as curas têm se feito forte nessa estadia por Terra Una, uma ecovila na Serra da Mantiqueira que visito pela oitava vez. Na cozinha, ao longo do café da manhã, cinco mulheres compartilham o que sentem e como veem a vida no aqui e agora. Fernanda e Lucimara se preparam para uma caminhada dentro da montanha e rumo às cachoeiras. Sônia, a mais velha e que desde cedo está de pé coordenando a poda da grama, põe no forno os pães que começou a preparar ontem para toda a comunidade. Marize chega por último com rabanetes frescos que colheu ao longo do caminho e uma erva especial para fazer chá; ela passará o dia na T(t)erra. Eu faço parte delas, mas sigo no intento de descobrir a melhor forma de captar e exprimir o que, como e porquê temos dias tão diferentes aqui. Passado um tempo na ecovila, me sinto mais achegada. Vejo os hábitos urbanos perderem (parte da) força e o ritmo diminuir. É mais fácil estar presente. Ajudar o outro. Ouvir. Falar baixo. Respirar. Ser gentil. Ser, apenas. Agora, somos dez adultos e uma criança. Nosso número muda com frequência. Independente disso, atravessamos o dia de um jeito diferente de como o faço na cidade: andamos descalço, compostamos todos os resíduos orgânicos - da cozinha e do banheiro -, bebemos e tomamos banho de água corrente e falamos sobre a potência do estar perto e em harmonia com a natureza. Outro dia nos pegamos
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conversando sobre como pode ser difícil sentir - mais do que saber ou ler sobre - que há, de fato, mil e uma formas de se viver a vida e compreender o existir. Vira e mexe fazemos isso. Folheávamos um livro sobre danças tribais africanas. Um casal que viajou por boa parte do continente, cruzando seus litorais e atravessando o Saara, nos mostrava o quanto somos mulheres e homens brancos da cidade - condição que, hoje, depende muito menos da cor do que da cultura ou sistema sob o qual vivemos. Somos ocidentais e aconteceu de termos herdado esse monte de hábitos europeus e gregos, cada vez mais norte-americanos e globalizados. Importante dizer que isso não é ruim: há muita sabedoria e história nessas correntes todas, que não deixam de ser, por si só, uma mistura de várias outras. Mas temos um passado que também é indígena e negro, e uma ancestralidade que transcende a linhagem humana. O que a ecovila me mostra, sempre que a visito, é que há um tanto de pessoas em busca dos tais “novos paradigmas” - que, no fundo, nem são tão novos assim. Eles são, antes de mais nada, um resgate das descobertas, tecnologias, valores, saberes e sensibilidades ancestrais, nativas e tradicionais, mescladas ao que o cara pálida tem a oferecer “de melhor”. Falo de dentro da residência musical organizada pelo Estúdio Gayatri, em Terra Una, ao longo de abril de 2017, e compartilho uma tentativa de ajuntar um pouco do que venho aprendendo e dando sentido dentro de mim, em meio a todo esse movimento.
Foto: Henrique Bocelli
O pôr do sol marca a troca de turnos da mata. Na hora do rush, pássaros cantam mais alto e voam pra casa, morcegos aparecem de tempos e tempos e as aranhas pipocam pelo chão.
#1
Economia é cuidar da casa
Da economia global à sustentabilidade: como fazer essa ponte, propondo mais soluções do que frisando os problemas? “O ponto é descobrir o que é conforto e viver bem pra você. Tudo depende disso“, diz Fernanda Lenzi, a caminhante do café da manhã. A ex-bancária sulista de 39 anos largou tudo e foi passar 50 dias na Ecovila Tibá, no final de 2016, quando, de repente, ouviu falar de um edital para reativar a escolinha das crianças em Terra Una. Veio, ficou e não podia estar mais feliz. Hoje, ela compensa a opção por um novo tipo de vida - e um salário bem menor que o anterior -, em parte, pelo poder da troca. Suas massagens viram vales para serviços e produtos que outras pessoas da comunidade podem oferecer: cursos e vivências, que ocorrem com frequência na ecovila, além dos biocosméticos produzidos por Priscila Borges e Leandro Pinheiro, um casal que também fugiu da cidade pra cá. Ainda ontem a vi aproveitar os restos de papelão para fazer papel marché e usá-lo para decorar parte de sua nova casa com um protótipo do sistema solar. Ficou uma graça. Com o frio, ela vestia o casaco que comprou por cinco reais em um sebo de São Paulo, onde fez uma parada rápida antes de vir oficialmente para o “Chalé das Artes” de Terra Una. “Vim do sul sem saber o que me aconteceria. Deixei quase tudo por lá e não trouxe roupas pro inverno. Comprei sete
peças de roupas valiosíssimas por 35 reais em um sebo beneficente”, explica, toda feliz com o bom negócio. Sem saber, Fernanda me deu o exemplo de três valiosas lições: desapegar, saber trocar e reaproveitar com responsabilidade e criatividade. Fortalecer uma economia mais local, colaborativa e circular é reforçar o time a favor do consumo responsável e criativo. Entender o que de fato precisamos é marchar rumo a uma vida mais sustentável - e, quiçá, feliz. Na cidade, em geral, terceirizamos praticamente todos os nossos serviços básicos de sobrevivência. Trabalhamos para isso. Estudamos, nos formamos, conseguimos um trabalho e, pronto: se tudo der certo, compraremos nossa comida já pronta nos mercados, pagaremos para construírem e cuidarem de nossas casas e de nossos filhos, incluiremos a água e a energia nas contas do mês. Venderemos boa parte de nossos dias e horas de sol para isso. Normal. Nós somos sim, um tanto daquilo que consumimos. Mas uma parte importante da lição foi entender também que o nosso consumo faz parte do nosso poder de mudança. Se meu tempo e meu trabalho são traduzidos em um valor monetário que chamamos de dinheiro, então eu os entrego toda vez que compro alguma coisa. A moeda de troca, no fundo, é essa.
Por um lado, o consumir responsável leva a questionar quais tipos de produção, produtor e produtos você quer patrocinar com sua energia e tempo de vida - o que nos leva a refletir sobre o processo produtivo no qual estamos investindo. Quantos e onde estão aqueles que trabalham entre você e aquela mercadoria? Quão justo ganham por isso? Quanto a natureza teve de doar para que todo esse consumo fosse possível? Por outro, resgatar o valor da troca nos faz descobrir e procurar por todo um mercado que provavelmente não conhecíamos antes. Incrível como vejo pessoas trocando serviços e habilidades por aqui. Uma coisa que tenho aprendido é que nem sempre o dinheiro é a única forma de adquirir o que queremos e precisamos. No mais, não podemos que tudo o que consumimos vem de algum lugar do planeta, foi produzido por mãos e gerou impactos. A etimologia da palavra economia vem do “cuidar da casa”. E não acho que isso aconteça à toa: dividimos o planeta com outras sete bilhões de pessoas, além da infinidade de outros seres vivos que também são moradores daqui. Carece cuidar disso tudo e respeitar o espaço do outro, seja ele humano ou não. Comprar menos e melhor, trocar mais e reaproveitar sem medo: é essa a missão. Sociedade - Periscópio
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#2
Cuidar do outro é cuidar de mim
O silêncio e a escuta são a chave para a porta que nos une e apazigua
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é desafiado o tempo todo. As pessoas não enxergam as coisas do mesmo jeito. Lidar com o outro é criar uma área de resiliência e carinho por cada um, que nos ajuda a entender e trabalhar com as diferenças no dia a dia. O lance é entender qual é a necessidade do outro e respeitar os seus e os meus limites”. Assim, a ecovila vira lugar de experimentação, um laboratório: “o dar certo é o continuar tentando”, conclui Nana, como Marina costuma ser chamada. A importância e a delicadeza da comunicação é tão indispensável quanto desafiadora para a vida em comunidade. Autoconhecer-se e autoeducar-se, também. É quando o trio tempo, silêncio e escuta tornamse tão preciosos. No fundo, o que faz falta é uma inteligência emocional e algumas competências comunitárias que nunca nos ensinaram na escola. Aliás, há quanto tempo a escola não muda? “Ecoalfabetização, comunidade de aprendizagem, antroposofia, montessori, educação livre e consciente e até a ideia de desescolarização têm nos ajudado a escavar uma metodologia mais livre e holística de troca de saberes com os pequenos, que os ensine a cuidar de si, do outro e do planeta”, explica Babi, que anda super interessada nas novas metodologias para a educação. O desafio, pra ela, é encontrar o equilíbrio entre a criação de limites e a liberdade para explorar todo o potencial de sermos o que somos. A busca por uma educação que dê conta da complexidade humana, dos processos e dos relacionamentos que vivemos, além das formas de vida que nos circundam, não deixa de ser um dos principais objetivos de Terra Una no momento. E é essa a missão de Fernanda: colocar essas ideias em prática com o apoio dos pais. “Ser criatividade de manhã, de tarde, de noite: isso pra mim é fantasia, a minha fantasia, que tem se tornado real aqui. As crianças já fazem isso naturalmente. É tão maravilhoso que quero aprender com eles e ensinar junto”, conta ela.
Foto: Lucimara Letelier
Trabalhar é a entrega de nossa energia e uma atividade essencial dos seres sociais que somos. Fazê-lo deveria, no mínimo, ser prazeroso, já que o faremos por tanto tempo de nossas vidas terrestres. Alinhar trabalho e propósito de vida não é piegas. É importante e nos retribui com sentido. No mais, podemos e devemos somar forças: descubro, ainda, que trabalhar juntos por objetivos comuns salva tempo e energia, diverte e fortalece um senso necessário de comunidade. E foi bem isso o que a Bárbara Nitto, 34, e seu companheiro Rick fizeram: buscaram companhia. Depois de anos de trabalho corporativo na capital carioca, o casal largou tudo e partiu com a filhota Luna para uma rocinha no pé da Serra de Friburgo. Depois, largaram tudo de novo e vieram morar em Terra Una por uns tempos. Assim, a vida é outra: as tarefas podem ser dividas entre os moradores e visitantes da ecovila, além de contarem com o apoio de um grupo sempre em movimento. Quase no fim da gravidez, com uma filha pequena, Babi me mostra que seria bem mais difícil se ainda estivessem isolados a três. Ter pessoas diferentes em volta enriquece e nutre o dia a dia, além de serem um ótimo espelho em prol da “descoberta pessoal e da autoeducação”, como ela mesma me diz. Mas nem sempre é fácil: conflitos sempre acontecem - o que muda é a forma de lidar com eles. “Viver em comunidade me ensina a estar pronta pra sair da minha zona de conforto. Pouquíssima coisa vai ser exatamente do jeito que eu quero ou visualizo - mas elas podem ser de um jeito que funcione pra mim e pro resto do grupo. O paradoxal da coisa é sair do paradigma de vida individual para crescer enquanto indivíduo”, me conta Marina Dain, uma das poucas pessoas que mora em Terra Una desde que ela surgiu. Na história dela, “morar na roça” funciona, mas não é fácil. “Na verdade, eu acho até mais difícil, porque a gente
“Ser criatividade de manhã, de tarde, de noite: isso pra mim é fantasia, a minha fantasia, que tem se tornado real aqui. As crianças já fazem isso naturalmente. É tão maravilhoso que quero aprender com eles e ensinar junto”
Fernanda Lenzi
#3
Somos natureza
“Isto sabemos: a Terra não pertence ao homem. O homem pertence à Terra.” - Chefe Sioux, 1855 “É tão bom não ter que se preocupar pra onde nossa água está indo, né?”. Ouço essa frase ao encontrar Fernanda na cozinha. Em Terra Una, a água que usamos é filtrada pelo próprio solo e pelas plantas, voltando limpinha pra Terra. É ótimo: o ciclo se fecha e não temos que nos preocupar com os químicos, já que os produtos usados são todos biodegradáveis. Uma serpenteira ligada ao fogão à lenha aproveita o calor do fogo e traz água quentinha para a torneira da pia - super útil em dias frios de outono como esses. Telhas transparentes no teto deixam o sol entrar e nos permitem aproveitar melhor a sua luz. Janelas de vidro por todos os lados terminam de iluminar e aquecer o ambiente. Assim, preparar e harmonizar o almoço, quando todos comemos juntos, fica mais fácil e aconchegante. Há algum tempo, descobri que existem coisas como a bioconstrução - que usa o barro, e não o cimento -, formas alternativas de tratarmos o esgoto sanitário - como os banheiros secos, a biodigestão dos resíduos e os círculos de plantas capazes de filtrar
as águas negras - e a compostagem dos orgânicos que sobram da cozinha, transformando-os em adubo. Aprendi que não há lixo ou desperdício: há coisa no lugar errado. Ter uma visão holística e integral dos processos dos quais fazemos parte e dependemos para sobreviver no nosso dia a dia é uma das principais lições da Permacultura, um método de planejamento de ambientes que, no fundo, pode ser facilmente visto como uma filosofia de vida. Toda ecovila que já pratica a permacultura, inclusive aqui, onde as casas foram todas planejadas conforme seus princípios e a rotina é guiada pela vontade de manejar com responsabilidade os impactos que geramos. Fala-se em incentivo à biodiversidade, da importância de observarmos o funcionamento da natureza e da sabedoria que há em mimetizá-la. Questiona-se as forças que cruzam a nossa terra e como elas podem nos servir para que fechemos os ciclos dos quais somos parte, tornandoos mais sustentáveis e regenerativos. Praticar esse método na cidade -
que nada mais é do que uma natureza esculpida pelo homem, e não pelos processos naturais - está longe de ser impossível. Vários amigos que fiz por aqui, por exemplo, transformam seu lixo orgânico em adubo com a ajuda de algumas minhocas e palha seca com uma composteira na cozinha. Guilherme Pacheco, 31, é um deles. Mineiro de Belo Horizonte, ele tenta, ainda, criar um programa de coleta de lixo orgânico na cidade. No cartaz que, aos poucos, vem montando para apresentar o projeto, lê-se: “Tudo o que é lixo para um, é alimento para outro”. E tudo o que fazemos na Terra, permanece na Terra. Não temos que estar no meio do mato para sentir e ser parte da natureza. Entendo cada vez mais que ela está em tudo, dentro e fora de nós. Na verdade, tudo está dentro de mim porque faço parte de um todo que me inclui, e não que me separa. Eis a teia biocêntrica davida, onde somos todos pontos de igual importância e valor, inevitavelmente interconectados e interdependentes, em troca e movimento constantes. Foto: Fernanda Lenzi
Lucimara sempre trabalhou pela arte dos outros, mas, dessa vez, foi buscar a sua. Foram quase duas semanas imersas em Terra Una, entre experimentos com terra e tintas aquarela Sociedade - Periscópio
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#4
E é tudo isso junto
Na verdade, nada nunca esteve separado - é uma questão de como vemos a vida e o que está vivo. “Quem faz sentido é soldado”, diria Alice Ruiz “Por um tempo, achei que teria de desaprender todos esses hábitos que criei ao longo da vida, mas não: há valor e razão de ser em tudo, e o melhor que podemos fazer é abraçar nossa incoerência com gentileza”, diz Lucimara Leteller. A ida à cachoeira foi há alguns dias, mas só agora descobri porque ela deixou o marido e a filha no Rio de Janeiro para passar uma temporada aqui. Gestora cultural há anos, ela agora quer buscar a própria arte e se dedica a um novo projeto pessoal: compreender a infinitude do aprender, intimamente ligada com a visão sistêmica de mundo. “Não existe antes e depois para o universo: é tudo aqui e agora, quando o existente se entrelaça. O fundo do córrego d’água me desenha isso: somos como as raízes entrelaçadas, sempre em rearranjo, nunca iguais”, explica. Ela me conta da transição profunda que tem se visto passar com a chegada dos 40 anos. Do medo que dá em escolher seguir aquelas mudanças que, de repente, fazem sentido. E do alívio, também, que surge quando nos sentimos rumar para o caminho certo. De certa forma, ela me reforça o que ouvi da Marize outro dia na cachoeira: “Se não atendemos o chamado quando o sentimos, pegamos o caminho para um vazio que sempre estará conosco”.
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Marize Oliveira, 31, é uma “bruxinha” e terapeuta do interior de São Paulo que todo dia me ensina alguma coisa diferente. Respira a teoria quântica e o mantra de que “somos o que vibramos”, além de saber um tanto sobre medicinas naturais graças aos três anos que morou sozinha em um sítio afastado da cidade. Calhou de sermos voluntárias juntas nessa estadia e prepararmos todos os dias as refeições principais que da comunidade. Cozinhamos em silêncio e faz parte do feitio celebrar o fim das tarefas. É lindo. Tenho pra mim que o que mais queremos é isso: ser feliz e estar junto. Ainda não encontrei outra vontade humana tão comum e ampla, e a sinto forte quando estou aqui. No fundo, ela me parece contornar a grande questão existencial de viver a vida. Diversidade e conexão são querências e carências universais, e, em última instância, perpassam nossa busca pela felicidade, satisfação dos desejos e evolução. Aprendi, ou venho aprendendo, que a busca, no fundo, guia-se na visão integral e holística do mundo, por vezes encontrada em filosofias e saberes tradicionais, nativos, milenares, do Oriente, esotéricos ou não. Entender que estamos, sim, interconectados faz preservar a natureza, zelar pela casa e cuidar de mim e do outro ser natural.
E isso abre tantas portas que é difícil dar conta: a transformação da consciência pede por meditação, silêncio e serenidade. A saúde do ser e da Terra nos lembra das medicinas naturais, do poder curativo das plantas e da importância de conhecermos e escutarmos o nosso corpo, respeitando o seu tempo e alimentando-o bem. Sentir a unidade é entender que a vida me conecta com tudo o que existe. Ao meu redor, vejo uma espiritualidade sincrética e antropofágica florescer da mistura pessoal e única do intuitivo enriquecido pela arte e tradições zen, indiana, chinesa, cristã, shamânica, islâmica, africana, do infinito ao além. “Nosso Deus é o mesmo deus”, dizia o Chefe Sioux em sua carta ao presidente Roosevelt em 1855. Ser a mudança que buscamos no mundo parece heróico, mas talvez seja mais natural e coletivo do que imaginamos. Que mundo você vê e qual é o mundo que você quer? Acho que, no fundo mais fundo de todos, começo a aprender que não há caminho certo. As diferentes jornadas rumo ao sustentável e ao regenerativo, assim como as buscas universais do ser humano, encontramse e atravessam-se, fundem-se e combinam-se nas infinitas formas de viver. Cabe a nós saber ouvir e encontrar o que nos faz sentido.
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Quem passa na BR-267, na altura de Igrejinha, logo tem sua visão atraída para as barracas rústicas no lado esquerdo da estrada, no sentido Humaitá-Valadares, que contrastamo vivamente com as casas do lado direito do bairro. Além desse primeiro paradoxo urbano x rural, ao observar o acampamento, percebemos um outro contraste ali: no meio das barracas surgem carros modernos, homens vestidos de camisas sociais e mulheres com longos vestidos coloridos cheios de babados. O acampamento atrai a atenção não só pelas discrepâncias ao longo da BR, mas também pela curiosidade. É ali que vive uma comunidade de ciganos. Afinal, como eles vivem? A Revista Periscópio foi até lá para desvendar este povo que ainda mantém algumas tradições, mesmo com todas as dificuldades impostas pelo mundo atual. 44 Periscópio - Sociedade
Vida Cigana Texto e Fotos por Anna Carolina Cavalcante
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Entrando no acampamento, as primeiras coisas que se notam são as barracas. Todas são feitas de lonas e madeiras, mas claramente existe uma diferença entre elas. Algumas são mais simples, sem decoração, sem muitos elementos e parecem servir para uso coletivo, como cozinhar. Outras são ricamente decoradas com tecidos de cetim em todas as paredes e cortinas coloridas de fora a fora, criando dois ambientes. Elas são mais mobiliadas e possuem objetos de valor, como geladeiras, televisões. Algumas guardam até carros, como se fossem parte da decoração, demonstrando o valor que dão para este bem material. Procurando alguém para conversar, o primeiro desafio foi vencer a aparente timidez daqueles que não se dispunham a falar com estranhos ou a uma possível submissão hierárquica: as pessoas eram até receptivas, mas ficavam hesitantes e indicavam que eu procurasse o líder: “Isso é só com o Leandro, ele é o chefe.” Esperava que Leandro apenas me contasse sobre o modo de vida de sua comunidade, mas ele foi muito além disso: contou a história de gerações, desmitificando tudo o que o senso comum atribuia aos ciganos. A Escolha do Líder Leandro, de apenas 24 anos, vem de uma geração de ciganos e é o líder de sua comunidade. Bem articulado, conta que um dos motivos para a liderança é a sua falta de timidez e também por saber ler escrever. Mas essas não são as únicas razões. “Antes tinha um líder mesmo, uma pessoa mais velha, que era o responsável pelo acampamento. Hoje está muito difícil de conter o ser humano, ficou meio difícil de ter um líder”, explica ele. Porém, mesmo tendo essa dificuldade na 46 Periscópio - Sociedade
Leandro, o Líder Cigano
qual todos querem fazer o que acham melhor, ainda se obedece uma hierarquia, na qual os mais velhos são sempre consultados pelos mais novos, seja em busca de opiniões ou conselhos e assumem a frente em relação a assuntos que dizem respeito a todos. “Se for preciso chamar a polícia, ir na prefeitura ou arrumar o lugar para acampanhar, vão os mais velhos, para poder serem os responsáves. E, se precisa de alguma coisa, eles me procuram, e eu sou o responsável até o momento em que eles quiserem.” Perguntei se era sempre a pessoa mais velha que era escolhida como líder, Leandro disse que era a pessoa mais sábia, mais inteligente, que sabia conversar e explicar, resolvendo as situações que estavam atrapalhando a vida de um ou de todos. “Então era sempre a pessoa mais esperta, e eu acho que sou esperto também”, conclui ele, entre risos. O Acampamento Antes de ser montado em Juiz de Fora, o grupo, formado por cerca de 95 pessoas, estava acampado em Vitória, no Espírito Santo. Isso foi há quase uma década, já que
as barracas estão na margem da BR-267 há oito anos. Por terem o costume de viajar, vieram para cá, gostaram da região e ficaram. “Queremos ficar por muito tempo, não queremos ir embora agora não”, revela Leandro. A conversa com o líder dos ciganos aconteceu em um dia em que apenas a família dele, avô, mãe, esposa e filhos e mais algumas poucas pessoas se encontravam lá. A maioria tinha ido para Barbacena, numa festa religiosa. Ele explica que, em casos como esses, sempre ficam algumas pessoas, entre elas, as mais velhas. Não tem como ir todos, pois, além de cuidar das barracas, precisa de alguém que tome conta das criações, que não podem ficar sem trato nem comida. “Este acampamento aqui tem muitos anos, muitos mesmo. Porque são dos nossos avôs, tataravôs. Tem eu, tem meus filhos, então vai passando de geração em geração.Mas hoje em dia está muito extinto os acampamentos de ciganos.” A maioria já está morando em casa, em apartamento ou até mesmo em sítio. “Os acampamentos de ciganos estão em extinção, a verdade é essa.”
Nós não temos moradia fixa. Não porque a gente não quer, mas é porque a gente não gosta de moradia. Meu pai tem terreno, teve casa, mas a gente gosta é de ficar igual um passarinho, solto pelo mundo. A Comunidade As crianças ciganas vão à escola como qualquer outra. Depois, quando tá maior, se quiser sair, sai, se não quiser, continua. Ele conta que antes era um pouco mais difícil as escolas aceitarem as matrículas, mas que hoje em dia tem menos preconceito e é mais fácil. As ciganas ficam responsáveis por tomar conta do lar, enquanto os ciganos cuidam do campo e, se tiver que resolver alguma coisa na cidade, são eles que vão. Quando perguntei se passeavam, ele disse que não têm tempo. Só vão na cidade quando precisam resolver pendências. Entre eles não existe criminalidade ou violência. As crianças são ensinadas desde cedo a respeitar o próximo e a resolver os conflitos conversando. Leandro compara o acampamento ao bairro mais nobre de Juiz de Fora e conclui que lá é muito mais seguro porque, além dessa educação desde a infância, eles sabem quem entra e quem sai, não entram estranhos e os que entram é porque existe um respeito mútuo. “As mulheres andam bem portadas, os homens respeitam suas esposas, e as que são solteiras são bem respeitadas. Uma jovem cigana não procura namorado lá fora e nem um jovem cigano.” “Aqui no nosso meio não tem uso de droga, não tem ladrão, estuprador, estelionário. Não tem uso algum de criminalidade aqui”. Religião A maioria dos ciganos do acampamento é católica, mas hoje também há muitos que
são evangélicos, são batizados, membros de igrejas, o que não interfere em nada na convivência. “Aqui, no meio cigano, cada um escolhe sua religião. Não temos uma própria, mas procuramos fazer o melhor para sempre estarmos no caminho certo.” Relação com as pessoas de fora A relação entre os ciganos e as pessoas em volta, ou seja, os habitantes de Igrejinha, é pacífica. São bem próximos e amigos. Mas ainda têm aqueles que não conhecem e ficam com medo, medo que é alimentado pelas histórias que as pessoas contam, como, por exemplo, que os ciganos roubavam crianças quando passavam pelas cidades. “Também tem o preconceito com as roupas, com o modo de falar, porque a gente, por mais que vá passando o tempo, tem um jeito próprio de conversar, tem um sotaque um pouco diferente, aí isso, junto com as roupas (principalmente das ciganas), chamam muito a atenção das pessoas.” Ele conta que hoje não aparecem pessoas querendo fazer parte da comunidade, porém,
antes havia “pro lado das roças” pessoas que acompanhavam o acampamento, mas era difícil para eles. Acompanhavam por um tempo e depois voltavam para suas casas. Mas acontece de alguém entrar para o acampamento porque se casou com um cigano ou uma cigana Sustento Um dos grandes questionamentos das pessoas que avistam o acampamento de longe é: “Como eles conseguem comprar carros tão bons e caros levando a vida que levam?”. A resposta é: com muito trabalho duro. Leandro explica que as duas principais rendas da comunidade são: a criação de animais (venda e troca) e o artesanato de artigos em couro para montarias. Eles são procurados pelos trabalhos artesanais, e as pessoas compram lá mesmo, no acampamento, mas também encomendam. “Às vezes, a gente também vende em lojas de agropecuária, que mexem com artigo de animais”. Cada peça exige dois dias de trabalho intenso para ficar pronta.
Detalhe da cela para cavalos. Esse é um dos artesanatos que garantem a sobrevivência do acampamento
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História (Fala livre de Leandro) índios, então aconteceu uma luta entre índios e ciganos, mas foi uma Nós já passamos por várias coisas luta muito mais pacífica do que e somos poucos reconhecidos eles (portugueses) imaginavam. no mundo e no Brasil. Tem Quando eles foram ver, esperando histórias de ciganos que vieram que tivessem morrido milhões do Egito, há milhões e milhões de de índios e ciganos, estava anos e foram morar em tendas. índio pra um lado e cigano pro Eram chamados de nômades e, outro: acabaram sendo amigos. hoje, aqui no Brasil, é cigano. Os portugueses ficaram bravos Saímos do Egito e fomos e queriam escravizar os ciganos, perdendo esse contato com mas nosso povo reagiu com as origens. Se você perguntar arma de fogo, violência e teve a hoje para um cigano de onde mesma resposta dos portugueses. veio, ele nem sabe. Mas nossa Muitos ciganos morreram, e naturalidade é do Egito e, de lá, os sobreviventes começaram a espalhou-se pelo mundo. Tem migrar para outros países. Passava cigano na Itália, na França, na navio de carga, e os ciganos Índia, Japão. Tudo quanto é lugar. corriam com suas famílias. O Quando o Brasil foi descoberto, navio atracava, e eles nem sabiam quem ajudou na colonização foi o mais onde estavam. Foi assim cigano. Pode procurar nos livros que espalhou esse monte de de história que não tem relatado cigano que tem no mundo inteiro. isso, mas eles vieram em navios e foram soltos nas primeiras terras Dialeto - Romany descobertas. Mas aqui tinham os Foi uma grande surpresa
descobrir que existia um dialeto cigano. Leandro explica que é uma língua universal entre os ciganos. “É um dos dialetos mais antigos da história e está se perdendo. Cerca de 70% das palavras estão perdidas, hoje só usamos 30%. Os mais novos usam 10%. “Ele faz um paralelo entre os ciganos e os índios em relação a costumes que estão se perdendo. “O índio, que antes morava em aldeia, tinha linguagem própria e seu jeito de se vestir. Hoje o índio se veste como nós.” Assim como a respeito dos índios, as tradições estão se perdendo. Tanto a língua quanto os acampamentos estão entrando em extinção. Infelizmente isso está acontecendo também entre os ciganos. A língua e os acampamentos estão entrando em extinção. “A partir do momento que você para de falar, desaprende
Quatro gerações de ciganos: O pai, a filha, o neto e os bisnetos.
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e vai esquecendo o significado”, entristece-se Leandro. “Hoje nós sabemos apenas o básico, apesar de os antigos saberem mais que os novos. É um rascunho muito leve do que era.” O povo cigano vai acabar, entrar em extinção e até hoje não é reconhecido em livro nenhum, em dicionário, pelos estudiosos, nenhum fala sobre o povo cigano. Se falar, fala muito pouco. Muitas das vezes, quando fala, fala aquilo que não é verdade. É coisa que houve falar e coloca no livro. Enquanto tivermos forças, estamos aí. Quero ser um cigano pra sempre, e meus filhos também vão crescer e vão ser ciganos. Preconceito Mesmo com o preconceito tendo diminuído, ainda é algo muito forte. Esse preconceito existe justamente pelas pessoas não entenderem ou saberem qual é a realidade dos acampamentos. Antigamente era muito pior e foi onde se originou um estereótipo do que é o cigano. Antigamente quando o acampamento chegava em algum lugar desconhecido, uma das preocupações era com as crianças: “A gente chegava e pedia água pra dar para as crianças e dar banho. Ninguém dava. Pedia um pouco de comida e não davam. Talvez a criança estivesse querendo comer uma espiga de milho, estava passando na frente de uma roça muito grande, você pedia, e eles não davam. Porque cigano era bem criticado. Aí pegavam duas ou três espigas pra dar pras crianças, pra matar a fome, porque já teve época muito difícil, a gente passava até fome, e eles não davam.” Então o cigano foi taxado de ladrão. Outra situação que acontecia relacionada a negócios. Às vezes, alguém comprava algo dos ciganos mas não pagava tudo o
que devia. Se o cigano cobrava, era colocado como bravo, violento. “Mas não era nada daquilo, só queriam manter a sobrevivência. Eram julgados sem saber a necessidade que passavam.” Existia também a dificuldade causada por andarem apenas na roça. Chegavam a viajar muitos quilômetros sem passar por casas. Acampavam e não tinha cama, não tinha luz, não tinha nada, só tinha a barraca, uma lona pra poder tampar do sereno e da chuva. Quando finalmente chegavam na cidade, e falavam: “Não, não vamos dar pouso pra cigano aqui não, porque cigano é ladrão, cigano é isso e aquilo”. Aí o prefeito, às vezes, o delegado, tirava o cigano, à noite, de tarde, chovendo, qualquer hora, ia lá e tirava, não deixava nem acampar. Foi uma sobrevivência muito difícil, por isso, hoje em dia, a gente quase não anda. Não adianta, você vai pra algum lugar desconhecido, sempre tem as críticas. Aí, até que você se estabiliza nos lugares, é muito difícil. Por isso ainda estamos aqui. Trabalho Outra face do preconceito sofrido pelos ciganos é em relação a trabalho. O estudo para eles é só para o básico: ler e escrever. Para serviço não serve, porque ninguém contrata ciganos. Leandro nos conta uma experiência que teve: “Eu fui nessa empresa, há um quilômetro daqui. Fui lá pedir serviço. Sei trabalhar como pedreiro e fui pedir serviço como ajudante. Eles exigiram 8ª série. Aí eu disse que eu iria me matricular na escola porque eu só tenho até a 5ª série. Então me perguntaram onde eu morava. Disse que morava no campo de Igrejinha, no acampamento de ciganos, BR- 267. Disseram que iam me chamar, tô esperando até hoje, já vai fazer três anos.
Fui lá umas três ou quatro vezes. Tinha conhecido lá, que era encarregado e nem ele conseguiu arrumar emprego pra mim. Se você for esperar emprego de fora pra comer e sobreviver, tratar das suas crianças e ter um meio de vida melhor, você não consegue.” Ele relata que acontece de pessoas que estão passando de ônibus, ao ver ciganos sentados e conversando, gritam, os chamando de vagabundos. Que também passa gente de carro que grita “ Vagabundo, seus preguiçosos, vão trabalhar”. “Mas eles não sabem que a gente tá ali conversando, tratando dos nossos negócios, tratando de estratégias de vida para poder sobreviver, e eles acham que a gente tá à toa sentado.’ Graças a Deus, nós ficamos mesmo sentados na sombra, a gente não tem hora de comer, a gente come a hora que quiser, mas é porque trabalhamos por conta própria. Mas se a gente não trabalhar, esses que passam chamando a gente de vagabundo não vai nos dar nem R$ 1, nem um prato de comida. Se a gente bater na porta da casa deles pedindo serviço, eles fecham a porta e não dão. Ele me questiona se eu já vi algum cigano trabalhando em prefeitura, farmácia, posto de gasolina. “Procura em qualquer tipo de comércio pra ver se tem. Não tem.” As mulheres ciganas também são criticadas, pois, muitas vezes, quando vão ler a sorte, no centro, levam as crianças porque não têm onde ficar. As creches não aceitam crianças ciganas. Quando vão vender algo na feira, as pessoas acham que eles estão querendo roubar. Mas eles estão lá porque precisam, estão tentando garantir o sustento de sua comunidade. Sociedade - Periscópio
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“Aí, as pessoas veem a gente andando num carrinho melhor e pensam ‘como eles conseguem se estão parados?’. Engano deles, às vezes, a gente trabalha de manhã e vai parar só a noite.” “Eu peguei num trabalho 9h, num serviço e acabei agora, 4h da tarde. Meu horário de almoço foi 20 min só. Foi o tempo de eu comer, tomar um pouco de água, tratar do cavalo e continuar no serviço. Depois vou trabalhar mais ainda e depois vou pra igreja. Sou evangélico.” Instalação do Acampamento O terreno em que eles estão instalados hoje, faz parte da área de lazer do Bairro Igrejinha e parte é da DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes). A maioria das barracas está na área do Dnit. Eles não estavam usando. No momento que não está usando, ela
fica desapropriada. Nós estamos cuidando, não tomando posse.” A prefeitura doou um terreno para a gente, que é destinado para os ciganos. Você pode passar lá hoje que ele tá tomado de mato. É um terreno baldio. Quando chegamos aqui requerendo esse terreno, a prefeitura não cedeu pra gente. E é um terreno que é nosso. Precisamos de um terreno fixo, porque, se um dia a prefeitura precisar de usar aqui ou a BR precisar ser ampliada, nós temos que sair. Aí teremos que destruir tudo que está feito aqui pra ir pra outro lugar. Não queremos mais isso, queremos ficar numa região só. Antigamente, quando os acampamentos mudavam de lugar, eles não tinham a menor perspectiva do que poderia ter no lugar. Hoje, eles fazem uma expedição antes, para averiguar as condições do local, além de conversar com a prefeitura, porque não adianta chegar em um dia e sair no outro. “A água não pagamos porque somos privilegiados. Tem uma mina ali que é cristalina. É água mineral mesmo. Essa mina estava
O avô de Leandro, com 84 anos, é o cigano mais velho do acampamento. Antes de qualquer decisão que afete toda a comunidade, suas opiniões são ouvidas.
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abandonada há mais de 20 anos. Nós a recuperamos. Ela era usada, mas há 15 anos a casa que usava ela foi destruída por uma empresa que comprou o terreno. Aí a mina ficou abandonada. O pessoal do campo usava, mas não era muito preservada. Aí colocamos uma manilha pra cima da terra, cercamos e não deixamos mais cair terra dentro dela.” Em relação à energia elétrica, eles procuraram a Cemig e pediram um ramal de luz provisória. A conta de luz de todo o acampamento varia entre 300 e 400 reais. Cidadania Os ciganos possuem documentos como qualquer outro cidadão brasileiro, porém não como cigano. O sonho de Leandro é ser registrado como cigano, porém é preciso muita burocracia e, entre outras coisas, necessita de registro do acampamento.E, apesar de viverem de uma forma diferente, também exercem sua cidadania através do voto. “Também votamos. Eles não gostam que a gente vote, mas a gente vota. Temos nossos direitos pra escolher nossos candidatos. Se tá roubando muito, não tem porque a gente reeleger ele. Vamos votar contra ele e a favor do que tá mais certo.” Leitura da Sorte A leitura de mãos não é algo que acompanha a cultura cigana desde os primórdios. Foi algo que foi ensinado às mulheres para servir como uma fonte alternativa de renda. Apesar de ser algo extremamente vinculado à cultura cigana, essa é a principal característica a entrar em extinção e isso está acontecendo devido à conversão à religião evangélica. Leandro diz que, muitas das vezes, a leitura estava certa, e as pessoas iam até
o acampamento com esse intuito. Porém, devido à busca deles para se tornarem pessoas ligadas aos dogmas evangélicos, se a leitura estiver errada, for um pecado, então praticamente não se pratica mais no acampamento deles. Assimilação cultural O fenômeno chamado assimilação cultural se caracteriza por uma cultura considerada subalterna tomar para si elementos da cultura dominante para garantir sua sobrevivência. Talvez essa seja a maior causa da iminente extinção dos acampamentos ciganos e, consequentemente, da sua cultura. Apesar de eles não gostarem de viver em moradias fixas, em suas barracas existe tudo o que há em uma casa: geladeira, televisão, móveis, utensílios, ferramentas, tornando inviável a rotação do acampamento. A religião também influência essa inversão de conceitos, mas, por outro lado, serve como constante inspiração e possibilita o convívio mais harmonioso dentro e fora do acampamento. Leandro ressalta a falta de reconhecimento da cultura cigana e o preconceito. Isso se deve ao estereótipo de que os ciganos são preguiçosos, ladrões e espertos e isso dificulta que as pessoas se permitam olhar para eles com uma mente mais aberta. Finalmente, o senso de comunidade entre eles é incrível. Tudo é voltado para o bem comum e para se viver o melhor possível.
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Fotos: 1 - As panelas que de tão bem conservadas, parecem espelhos. 2 - A esposa de Leandro, que não quis tirasse uma foto dela, revelando a timidez da cigana. 3 - O acampamento visto por um dos acessos ao bairro Igrejinha. Sociedade - Periscópio
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Espaços Culturais: Disponível para todos, acessível para poucos Por Luis Felipe Cardoso e Nayara Carvalho Fotos: Armando Júnior
“Lembro-me de uma vez, há um bom tempo atrás, quando eu e meus quatro irmãos, todos cegos, decidimos ir ao Museu Mariano Procópio. Estávamos empolgados, era a primeira vez que fazíamos algo do tipo. A decepção veio assim que chegamos ao local, não havia ninguém pra descrever a exposição, as obras e o ambiente. Não sabíamos nada, ficamos lá parados, perdidos, sem saber o que tinha a nossa volta. Por um momento, um dos meus irmãos tentou enxergar pelo tato uma das obras, mas logo em seguida o segurança apareceu e pediu para que não fizéssemos isso, os objetos em exposição não podem ser tocados” Maria Girléia Jardim, 37 anos, cega. Sociedade - Periscópio
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A história contada pela advogada Maria Girléia Jardim, 37 anos, que é cega desde o nascimento, é mais comum do que se imagina, já que o acesso aos locais de lazer e aos bens culturais de Juiz de Fora nem sempre tem a inclusão como prioridade. Maria é apenas uma entre as mais de 64 mil pessoas que apresentam algum tipo de deficiência, cerca de 14% da população da cidade. Os problemas encontrados diariamente por essa parcela da população são inúmeros, como calçadas pequenas e irregulares, poucos veículos de transporte público preparados e sinalização não adaptada. É preciso pensar em acessibilidade em todas as camadas e não se limitar a aspectos do dia a dia. Imagine você aguardar ansiosamente a estreia de um filme e descobrir que o cinema da sua cidade não é capaz de te atender da forma correta? Voltar para casa frustrado depois da ida ao museu, onde não conseguiu ver e nem tocar nada? Ou ser impedido de entrar no teatro porque as portas não são grandes o suficiente para você passar? Para mostrar a realidade destas pessoas, a Revista Periscópio fez um levantamento dos espaços de lazer do município, como teatros, cinemas e museus. Maria Girléia conta que, logo após o seu nascimento, foi diagnosticada com patologia retinose pigmentar. A doença, hereditária, também afeta os seus outros quatro irmãos. Devido ao problema, ela e sua família nunca tiveram hábito de frequentar teatros, museus, cinemas e outros centros culturais. “A cidade não está preparada para atender as necessidades do cego, muitas coisas são visuais e, como não tem ninguém para descrever, eu prefiro não ir a estes locais, me sinto perdida, sem saber o que
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Maria Girléia acredita que a cidade não está preparada paras as necessiades dos cegos
fazer”. A professora de libras, Rosani Kristine Paraiso Gárcia, é surda de nascença, e relata que encontra dificuldades de comunicação em vários setores e que a falta de interpretes interfere em suas escolhas: “Isso é um problema para nós surdos, pois queremos muito participar do teatro, museu, etc. Precisamos de mais informações, emoções, etc. Mas estes lugares não obedecem a lei 10.436, 24 de abril de 2002. Que compreendem a Libras como direito do surdo e a sociedade necessita se adaptar às suas necessidades, uma vez que, nós também exercemos nossa cidadania”. Rosani ainda enfatiza que os surdos tem uma visão muito assistencialista dos interpretes de libras, e que necessitam desses profissionais para interpretar o teatro ou o museu, por exemplo. Embora tenha ganhado mais destaque nos últimos anos, a acessibilidade cultural é um assunto que nem sempre recebe a devida atenção. Mesmo apresentando melhorias e
evoluções nas questões de acesso e inclusão da pessoa com deficiência, muitas delas ainda sofrem as consequências da falta de planejamento na infraestrutura dos centros culturais, para que possam atender às suas necessidades. As políticas culturais pouco conhecem o tema, reduzindo-o na perspectiva da acessibilidade física do espaço e não do produto cultural. Até pouco tempo, o item “acessibilidade” em editais de incentivo à cultura era associado principalmente à gratuidade no ingresso das produções, referindose à acessibilidade financeira. Porém, uma acessibilidade cultural plena precisa passar por medidas diversas. No Plano Nacional de Cultura, instituído em 2010, somente a meta 29 é voltada para a questão da acessibilidade cultural. Ela estabelece que o Brasil deve apresentar até 2020: 100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais
atendendo aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição cultural por parte das pessoas com deficiência. A Legislação da cidade estabelece, desde 2003, normas gerais e critérios básicos que devem ser efetuados para a promoção da acessibilidade de pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida. É destinado, ao que se refere, aos bens culturais imóveis de Juiz de Fora, e determina que os imóveis devem compatibilizar-se com a sua preservação e, em caso específico, assegurar condições de acesso, de trânsito, de orientação e de comunicação, facilitando a utilização desses bens e a compreensão de seus acervos para todo o público. Ela prevê ainda que as intervenções e adaptações nos bens culturais imóveis devem assegurar no mínimo: o alcance e o acesso ao imóvel, bem como a permanência nesse, desde o seu
exterior; a sinalização adequada que permita deslocamento nos espaços e participação nas atividades abertas ao público, com segurança e autonomia; os serviços e equipamentos disponíveis ao público tendo como referências básicas as normas brasileiras de acessibilidade; a informação sobre os bens culturais por meio da adoção de mecanismos que atendam às necessidades específicas de comunicação das pessoas com deficiência auditiva e pessoas com deficiência visual; e a utilização de meios alternativos de interação com o ambiente e o acervo, no caso em que soluções para acessibilidade plena sejam tecnicamente impraticáveis ou restringidas pelas características especiais do bem cultural imóvel. Os deficientes auditivos, podem conseguir auxilio da Central de Libras, a prefeitura disponibiliza através do Departamento de Políticas para a Pessoa com
Deficiência (DPCDH), intérpretes para acompanhar os deficientes auditivos em atividades do dia a dia. Para isso é necessário entrar em contato e agendar um horário com o intérprete, que faz o acompanhamento em médicos, bancos e outras atividades. Nos museus O Memorial da República Presidente Itamar Franco é o museu mais recente da cidade. Inaugurado em 2015, a sua estrutura é adaptada para atender cadeirantes, com espaço amplo para circulação, banheiros adaptados, rampas e elevadores. No que diz respeito a acessibilidade para deficientes visuais e auditivos, apenas alguns vídeos do acervo audiovisual possuem legendas, impossibilitando o aproveitamento total de todo o conteúdo exposto. O museu, apesar de moderno, não é acessível para os deficientes visuais, não possui textos
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em braile e áudiodescrição. Com piso tátil, apenas o chão do Memorial é adaptado, auxiliando na locomoção dos cegos. A maioria dos museus da cidade são localizados em prédios históricos e tombados, impedindo que grades mudanças na estrutura sejam realizadas. O acervo também não pode ser tocado, e, sem áudio-descrição e legendas, não é possível usufruir do espaço. Um dos mais antigos e importantes espaços de lazer de Juiz de Fora, o museu Mariano Procópio, foi procurado pela Revista Periscópio, mas não obtivemos resposta até o fechamento da edição. No teatro Um dos principais pontos turísticos de Juiz de Fora, e de grande relevância cultural, o CineTheatro Central, possui acesso aos cadeirantes de forma parcial e atende somente ao público do setor Plateia A, por meio das portas laterais. O estabelecimento também apresenta um banheiro adaptado, mas não possui acessibilidade arquitetônica ao palco e aos camarins, nem para atores e nem para o público. Em caso de visita, os mesmos têm de ser carregados. A advogada Maria Girléia conta também que visitou o CineTheatro Central apenas uma vez, na ocasião, para assistir a um show de humor. Segundo ela, por se tratar de um espetáculo sem ligação visual direta, não se sentiu prejudicada pela falta de áudiodescrição. Mas como a maioria dos espetáculos necessitam da imagem, ela prefere não sair de casa. A assessoria do Cine-Theatro informou que não possuem projetos voltados para atender o público cego.
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A gerente do Departamento de Políticas para a Pessoa com Deficiência (DPCDH) da Prefeitura de Juiz de Fora, Thais Altomar, também vive essa experiência na pele. Cadeirante, ela relata uma das vezes em que foi assistir ao show do cantor Geraldo Azevedo, no Central. “Para eu entrar no camarim do Geraldo Azevedo, tinham nove degraus. A sorte foi que eu estava com meu marido e confio nele pra me levar no colo, mas e se eu tivesse sozinha ou com uma amiga? Eu ia deixar de ir lá, falar com ele e tirar foto, por causa da falta de acessibilidade?” Entretanto, além de a acessibilidade ter de ser promovida nas plateias, é importante pensar que os palcos também têm de ser acessíveis. Pessoas com deficiência podem ser espectadores, mas também atores, cantores etc. “Uma outra coisa, que é um das nossas lutas, é que nós podemos ser plateia, mas também podemos ser atores, cantores. Então o palco tem que ser acessível, o camarim tem que ser acessível, e se for eu a atriz da peça de teatro ou a cantora? A
gente precisa ver a acessibilidade cultural não só no modo como eu vou trabalhar a acessibilidade para pessoa com deficiência na plateia, mas também no palco, também como protagonista”, diz Thais. Nas salas de cinema Os cinemas de Juiz de Fora possuem um sistema de integração propício ao conforto e bem-estar das pessoas com deficiência. Segundo Thais, eles conseguem responder às necessidades dos cadeirantes, não os segregando do resto das pessoas. “Nos cinemas, geralmente tem uma cadeira e mais dois lugares para cadeirante, ou duas cadeiras e um lugar para cadeirante. Então eu consigo ir com meu marido e com meus filhos, e eles podem ficar perto de mim”. De acordo com Thais, a acessibilidade vai muito além da pontualidade de apenas reservar um espaço. “Para garantir a acessibilidade, tem de se pensar em promover políticas que atendam às necessidades das pessoas com deficiência. Por exemplo,
Fachada do Cine-Theatro Cental: sem projetos para o público cego
disponibilizar um filme que tenha uma sessão com audiodescrição para o cego, ou uma sessão com audiolegenda. E também é preciso entender o espaço: quando você destina um local para a pessoa com deficiência, ele não pode caracterizar exclusão, como, por exemplo, todas as pessoas com deficiência ficarem em uma área reservada. Eles precisam ser integrados. Em toda área você precisa manter um espaço acessível, porém integrado, porque ninguém vai para um lugar cultural sozinho.”
“As acessibilidades que envolvem as deficiências sensoriais, o surdo e o cego, devem ter a questão dos espaços bem entendidas pra que eles sejam integrados, e não segregados.” Thais Altomar, 52 anos, cadeirante.
Nos estádios O Estádio Municipal Radialista Mário Helênio também consegue promover a acessibilidade. Segundo Thais, isso só aconteceu por causa de uma intervenção sua, algo que, segundo ela, devia acontecer sempre: pessoas com deficiência correndo atrás de seus direitos e de seu conforto. O estádio estava programado para possuir uma área separada, cercada por grades de ferro, para comportar cadeirantes. Porém, depois da intervenção de Thais, o planejamento foi mudado. “No
Memorial da República Presidente Itamar Franco: apesar de seu piso adaptado para deficiêntes visuais, o museu não possui acervo destinado aos mesmos.
estádio ia ter uma área, que eu chamei de ‘curral’, destinada só para cadeirantes, onde teria um ferro para ‘cercá-los’. Só que eu pedi para tirar, porque os cadeirantes têm de ficar integrados com a arquibancada, porque imagina se eu quiser ver um jogo com a minha família, ela fica sentada na arquibancada, e eu estou lá na área que comporta cadeira?”. Vivemos no ápice das discussões sobre os direitos iguais e à procura
de uma sociedade onde todos tem espaço. O acesso à cultura nos permite ser quem somos e faz parte do nosso processo de identificação. Nesse momento, é preciso não só ver a acessibilidade arquitetônica, mas muito além disso, é primordial que seja visto a acessibilidade no seu geral, como um todo, para promover o bem estar de quem necessita. Só assim faremos com que todos se sintam verdadeiramente incluídos e parte dessa sociedade.
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NEGRITU (R)existe espaรงo ac
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UDE gay te e ocupa cadÊmico
Por Armando Júnior e Leo Barbosa
Os dados sobre violência utilizados durante essa reportagem são referentes à toda a comunidade LGBT e à comunidade de negros e negras. Com o objetivo de tematizar melhor o assunto, a Periscópio ouviu três homens gays e negros. Por isso, todos os termos aparecerão no plural masculino.
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Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), o percentual de negros no nível superior de ensino deu um salto e quase dobrou entre 2005 e 2015. Em 2005, um ano após a implementação de ações afirmativas, como as cotas, apenas 5,5% dos jovens pretos ou pardos na classificação do IBGE e em idade universitária frequentavam uma faculdade. Em 2015, 12,8% dos negros entre 18 e 24 anos chegaram ao nível superior, s e g u n d o pesquisa divulgada em dezembro do ano passado. Comparado com os brancos, no entanto, o número equivale a menos da metade dos jovens brancos com a mesma oportunidade, que eram de 17,8% em 2005 e chegou a 26,5% em 2015. Mas e o acesso e a permanência no ensino superior por parte de lésbicas,
De que maneiras é possível enfrentar os preconceitos dentro das universidades? A manutenção de políticas, como o sistema de cotas sócio-raciais para o ingresso no ensino superior público, é uma alternativa para que mais pessoas possam conquistar seus direitos. Apesar de os números serem tímidos, tal medida aponta algum resultado e se mostra
extremamente necessária.
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gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros? Carregar essas duas identidades sociais (negra e LGBT) faz com esses indivíduos estejam mais expostos às violações. No Brasil - apesar dos avanços, como a conquista do casamento igualitário para homossexuais e lésbicas e o direito ao uso de nomes sociais para pessoas trans - não há nenhuma política pública que promova igualdade para pessoas LGBTs. Com a aprovação de planos de educação pelo país que excluem termos como gênero e/ou limitam o uso da palavra diversidade, está sinalizado que conquistar esse solo só será possível através de muita luta. Se nas instâncias do poder público a promoção de ações que valorizam a comunidade LGBT são diminuídas; em espaços como as universidades, ainda que de maneira indireta, há medidas que promovem a existência das diversidades através de debates, eventos e ações dentro do espaço acadêmico. As campanhas promovidas pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), como a “Por que eu te incomodo?” feita com alunos e alunas LGBts; a do dia das mães que trouxe um casal de professores lésbicas como personagens; e a “Quantos professores negros você tem?”, evidenciam um posicionamento de abertura da instituição em
relação às minorias sociais. O estudante de Jornalismo, Lucas Gonçalves, milita diretamente pelas causas LGBTs, mas também se empodera com o movimento negro. “Sou filho de uma mulher branca e um homem negro e não apresento todos os fenótipos paternos. No Brasil, o racismo vê cor de pele, em outros lugares do mundo eu seria considerado negro. Embora eu compactua com as pautas e saiba que o racismo me atinge em alguns quesitos, minha militância nesse período da universidade foi junto ao movimento LGBT”, explica. Para o acadêmico “a instituição se esforça na tentativa de integrar as minorias, mas essas ações ainda são muito pontuais, falta políticas para nós. Participei ativamente de
um coletivo LGBT dentro da UFJF e atuei nas campanhas “Libera meu xixi” (que permitiu o uso livre dos banheiros independente do gênero) e do uso do nome social para pessoas trans. Essas campanhas surgiram a partir de uma demanda popular da comunidade acadêmica e foram encaminhadas para Diretoria de Ações Afirmativas, que é a unidade para qual caminhamos nossas pautas e demandas”. De acordo com o diretor de Ações Afirmativas da UFJF, Julvan Moreira, as cotas fazem parte das diversas medidas que a Universidade criou nos últimos anos. Elas têm uma importância fundamental, porque viabilizaram não só a entrada, mas a permanência desses estudantes na Universidade para que eles possam se formar.
“Com relação à comunidade LGBT, uma das políticas que também pode contribuir para a permanência desse público na Universidade é, por exemplo, a adoção do nome social feita em 2015 e ampliada neste ano para todos os documentos nos quais a população Trans queira usar o nome social”, exemplifica. “Não são apenas palavras, mas um posicionamento político da Universidade no compromisso de valorizar a diversidade e promover a equidade por meio de diversas ações que possibilitam a construção de uma sociedade justa e equitativa, principalmente na defesa dos direitos dos setores mais vulneráveis e discriminados da sociedade como a população negra, LGBT, mulheres e indígenas”, pontua Moreira.
CAMPANHAS
“Por que eu te incomodo?” traz o estudante Augusto Henrique em uma das peças
Campanha do dia das Mães com as professoras Daniela Auad e Cláudia Lahni
“Quantos professores negros você tem?”, com o professor Julvan Moreira
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Gays e negros ainda são AS
maiores vítimas das violências no Brasil
Os números da violência contra a população negra no Brasil são alarmantes. De acordo com o Mapa da Violência 2016 – produzido pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) - a taxa de homicídios de negros aumentou 9,9% entre 2003 e 2014, passando de 24,9% para 27,4%. Apenas em 2010, 26.854 jovens entre 15 e 29 foram vítimas de homicídio, 74,6% dos jovens assassinados eram negros e 91,3% das vítimas eram homens. Pela pesquisa, a vitimização negra, que em 2003 era de 71,7%, mais que duplicou até 2014, o que significa que morrem 2,6 vezes mais negros que brancos. A população LGBT (lésbicas, gays, bissexuai, transexuais, travestis e transgêneros) é outro grupo social que sofre com a violência no país. Segundo um levantamento feito pelo Grupo Gay da Bahia, 340 pessoas foram mortas por “LGBTfobia” em 2016. São 11 mortes a mais do que no ano anterior. Um assassinato a cada 28 horas. A maior parte das mortes ocorreu em via pública por tiros, facadas, asfixia, espancamento e outras causas violentas. Se os dados das duas pesquisas forem cruzados, é possível que pelo menos 12,6% das vítimas sejam negros e LGBTs. Contudo, a violência não é apenas física; é verbal e moral. Ela não só abrevia vidas, como também afeta o modo de essas pessoas exercerem seus direitos básicos, como a educação, por exemplo. Um estudo realizado em 2011 por Yan Faria Moreira, na época aluno do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia (Ifes), do Espírito Santo, ouviu 226 LGBTs na região metropolitana de Vitória e mostrou que 56% das pessoas já sofreram alguma forma de agressão (física, moral ou ambas) dentro das escolas. Outro dado levantado pelo pesquisador mostra que 22% das pessoas entrevistadas continuam estudando mesmo sofrendo alguma forma de preconceito por sua orientação.
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exaltar E m p o der a r v a l o ri z a r en a l te c er e s ti m u l a r f o rt a l e c er re c o n h e c er re a f ir m a r engr a nde c er de s t a c a r e v iden c i a r p re s tigi a r re v eren c i a r aplaudir
A Periscópio procurou três personagens que representassem o universo e a multiplicidade de gays negros, primeiro para focalizar melhor o assunto e segundo porque a temática diz respeito aos repórteres que constroem essa matéria. Neste contexto, nasce o ensaio fotográfico Bafro, que conta com depoimentos e imagens dessas pessoas interagindo com os espaços de intervenção artística, presentes na Universidade. O termo Bafro vem da união das palavras “bafo” (vem de “bafão’, algo surpreendente, uma notícia muito boa) e afro (tudo que remete à descendência negra: beleza, cultura, som, movimento, etc.) O verbete é muito usado pela “geração tombamento” que é uma das facetas que alguns e algumas jovens do movimento negro aderiram. O “afrotombamento”, como também é conhecido o movimento dessa juventude, atua no enfrentamento dos sistemas de opressões (racismo, machismo, LGBTfobia) e tem no uso de acessórios, tranças, roupas e maquiagens de cores vibrantes, além de uma atitude de auto-confiança, um processo de beneficiamento estético e político, de autoaceitação e superação de estereótipos. Marcada pela inovação, arte, dança e a música, essa geração tem em nomes como Karol Conka, MC Linn da Quebrada e Liniker, suas referências artístico-culturais brasileiras.
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“(...) Que eu sou uma bicha, loka, preta, favelada/ Que quando eu vou passar/ E Ninguém mais vai dar risada/ Se tu for esperto, pode logo perceber/ que eu já não to pra de brincadeira/ Eu vou botar é pra f*der/ [...] A minha pele preta, é meu manto de coragem/ Impulsiona o movimento/ Envaidece a viadagem (...)” ♪ Bicha preta, Mc Linn da Quebrada
Fotos: Armando Júnior e Leo Barbosa
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Baque, não reconhecimento e negação da sexualidade Nascido em Lagoa da Prata, região central de Minas Gerais, o estudante do curso de Turismo, Arthur Ribeiro, 18, fala da reação de sua mãe ao saber de sua orientação sexual, de homofobia e da negação de sua sexualidade em sua vida escolar. “Quando me assumi para a minha mãe foi um baque, mas ela sempre deixou claro que o amor dela por mim não mudaria, independente da minha sexualidade. Sempre me achei diferente dos meninos da escola. Nunca fui de fazer amizade com garotos e nunca gostei das coisas que eles faziam. Eu sempre fui amigo das meninas e escondia a atração que sentia pelo mesmo sexo”.
“Não é pelo fato de eu ser gay que eu tenho que consequentemente dar em cima de qualquer menino que apareça na minha frente”
FOTOS: ARMANDO JÚNIOR
“Eu sofri homofobia ano passado, quando concluí o ensino médio. Isso afetou muito meu desempenho nas matérias. Foi ridículo, os garotos que estudavam comigo tinham um ar de superioridade por serem héteros e, quando eu me impus e falei que era gay, eles já começaram com risadas e a me observar com olhar de deboche. Aprendi a conviver e a ignorar, porque isso fez parte de toda minha vida letiva”.
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“Ando como se estivesse no clipe de Crazy In Love... se tem uma coisa de que eu tenho muito orgulho é de ser negro e gay, isso é resistência, e eu amo”
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[ FOTO: LEO BARBOSA Sociedade - Periscรณpio
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Inspiração mútua e Tombamento: para além de um mero registro motivação “Eu visto aquilo que me faz bem, uma roupa que eu possa olhar no espelho e gostar do que estou vendo. Não vejo porque omitir minhas características; se tem uma coisa de que eu tenho muito orgulho é de ser negro e gay, isso é resistência, e eu amo. Me visto para me sentir bem, mas também me imponho e mostro que eu tenho meu valor e tenho voz. Assim como vi várias gays negras aqui se vestindo como querem e sendo quem elas realmente são, o que me trouxe uma confiança muito grande, acredito que o contrário também aconteça”, ressalta. O universitário destaca, também, a diferença entre sua vivência no ensino médio e no superior. “Me senti extremamente abraçado quando entrei para UFJF. Independente de sexualidade ou cor, aqui não sou tratado como anormalidade. Fiz amizade com pessoas das mais diferentes opiniões, e são todas maravilhosas! É muito diferente do ensino médio, onde eu era tratado como a gay que só sabia dar dicas de moda e ajeitar garotos para as meninas ou a bichinha que ninguém podia chegar perto porque senão seria viadinho. Eu acho que pequenas ações nos empoderam e empoderam várias pessoas todos os dias. Estar aqui me dá forças para querer sempre mais e também para que, assim como eu, outras pessoas do meio (LGBT e negro) estejam nesse lugar”, finaliza Arthur
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FOTOS: ARMANDO JÚNIOR
“Por aparecer em fotos de festas nas redes sociais e sempre cercado de gente bonita, às vezes, sou visto como “a mana tombamento”, mas a minha realidade é bem mais profunda que esse mar de rosas, ela é bem mais que um mero registro. Ser negro, gay e afeminado na sociedade em que estamos não é fácil. Os olhares tortos, as risadinhas e os deboches são frequentes; às vezes, essas ações partem até mesmo de outros gays, os heteronormativos”, afirma. Dono de um visual marcante, Arthur ressalta a importância do cabelo para a formação da sua personalidade e sua importância como sinônimo de aceitação. “Sempre achei que meu cabelo é minha identidade, e o jeito que eu me expresso também. Conheci várias pessoas aqui que puxaram assunto comigo justamente por isso e também pelo jeito que eu sou; sempre com olhar confiante e andar forte. Já recebi alguns comentários como “nossa você é minha inspiração”, “eu amo esse seu jeito de andar, o jeito que você se veste e se porta nos ambientes”. Ando como se estivesse no clipe de Crazy In Love, sou fã da Beyoncé né amore?”.
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“Estar aqui me dá forças para querer sempre mais e também para que, assim como eu, outras pessoas do meio (LGBT e negro) estejam nesse lugar”
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Minha verdade de verdade Aos 23 anos de idade, cursando Bacharelado Interdisciplinar de Artes e Design, Augusto Henrique Lopes conta que, durante a adolescência, foi membro de igreja evangélica, em Coronel Fabriciano, no interior de Minas. Segundo ele, a descoberta de sua orientação sexual aconteceu durante a puberdade, mas a autoaceitação só ocorreu quando estava no primeiro ano do ensino médio. “Eu tinha algumas responsabilidades
portas para o assunto, com isso foi bem mais fácil eu me revelar. Há parentes que não entendem bem, mas todos sempre respeitavam as decisões uns dos outros. Quando contei para minha mãe, ela não demonstrou surpresa, nem desapontamento, apenas perguntou se eu tinha certeza do que estava afirmando e se me sentia bem com isso. No fim nos abraçamos e ficou tudo bem!”.
“...tinha que lidar com toda a repulsa que a igreja tem por eu ser quem eu sou. Eu via os amigos namorando e sempre pensava: será que vou ter isso um dia?” dentro da congregação e sempre tive desejos por homens. De certo modo, isso me atormentava, porque não entendia o que estava acontecendo comigo. Ainda tinha que lidar com toda a repulsa que a igreja tem por eu ser quem eu sou”. O acadêmico segue relatando: “Eu via os amigos na igreja namorando e sempre pensava: será que vou ter isso um dia? Mas onde estou isso é totalmente recusado. Chegou um determinado dia que eu decidi acabar com aquilo e, assim, fui viver minha verdade de verdade, sendo honesto comigo mesmo. Assumir para família não foi uma tarefa fácil, entretanto, uma tia lésbica já havia aberto as 82 Periscópio - Sociedade
“Com as outras pessoas, eu fui demonstrando aos poucos, porque não havia necessidade alguma de convocar uma reunião para assumir a homossexualidade ou simplesmente jogar isso no meio do churrasco de família. Deste modo, as pessoas se sentiram mais à vontade de perguntar, e eu de me abrir. Ainda hoje, alguns que fingem que não sabem ou não têm interesse em saber, portanto, estes não merecem nem menção. Família é quem está presente no seu cotidiano e se importa com você. Acredito, que com o passar do tempo, você pode constituir um modelo família alternativa, que foge daquela que é imposta”.
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“Estamos num lugar conhecido por sua pluralidade e diversidade... o mínimo que todos deveriam praticar é o respeito ao outro”
Enfrentamentos, militância e autoconhecimento
De acordo com Augusto, a universidade é um espaço onde há o encontro de diversas tribos e classes, em suma, um lugar em que há diversidade de pessoas. “Ela se torna ainda mais interessante quando um indivíduo identifica a que classe pertence. Ser negro, gay e estar na universidade, de um certo modo, me coloca em uma situação de privilégio à medida que a realidade no Brasil não é tão favorável a essas minorias. Estar em um ambiente dominado por classes que não são as de minorias sociais é complicado. Estar junto delas, revela que somos todos cidadãos e que, sim, temos o direito de frequentar o mesmo espaço, que é público”. “É preciso saber, ou pelo menos tentar entender, o que a nossa presença neste espaço pode causar. Isso traz consciência de que este espaço deve ser ocupado, cada vez mais, pelas minorias. Entendo o meu lugar e por isso tento me colocar de um modo que eu não desconsidere o número de outras pessoas que não possuem essa oportunidade. Infelizmente corremos riscos sérios de perder o pouco de direitos que conseguimos conquistar devido à atual crise política no país. Apesar de ter consciência desta responsabilidade, muitas vezes, me sinto impotente, e até perdido dentro da universidade, no sentido de lutar por políticas de ações afirmativas”, alerta.
“Estamos num lugar conhecido por sua pluralidade e diversidade, logo, o mínimo que todos deveriam praticar é o respeito ao outro. Nunca sofri discriminação por parte dos alunos diretamente, apesar de saber de casos que aconteceram com outras pessoas. O que ocorre, muitas vezes, é de maneira disfarçada, aqueles olhares seguidos de cochichos. Algumas vezes, eu respondo a estes atos de preconceito encarando, e eles cessam.”, relata o acadêmico, que ingressou na instituição em 2013. “Não sei se minha vivência empodera outras pessoas; se isso acontece, me sinto muito feliz de ajudálas a serem o que são. Se com o meu modo de agir e vestir, eu crio um diálogo empoderador com outras pessoas, me sinto bem com isso. Nunca havia pensado o meu comportamento como uma forma de militância. Com o passar do tempo, entendendo o meu lugar e indo em busca do autoconhecimento, fui tomando certa consciência de que sim, posso usar o pensamento e o ser artístico para militar. Estou em busca de um autoconhecimento. Só assim conseguirei ajudar os outros e poderei lutar afetiva e efetivamente: me conhecendo”, conclui Augusto. Sociedade - Periscópio
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Ensino superior: ainda um espaço para poucos
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Discriminação sutil: carregada de preconceitos e estereótipos Também graduando do Instituto de Artes e Design, Matheus Assunção, 23, conta que sempre soube de sua homossexualidade, sentir atração por pessoas do mesmo sexo fez parte de seu processo de crescimento. O fluminense, de Teresópolis, classifica sua relação familiar como ótima. “Apesar de religiosa, ela sempre se mostrou muito aberta para me amar e me dar liberdade para ser quem sou. Acredito que, se em algum momento, eles me reprimiram, tenha sido pelo local em que eles estão inseridos e por circunstâncias que não dependiam deles.” “A discriminação na sociedade brasileira se dá de maneira sutil; carrega estereótipos e preconceitos. Existem olhares constantes, alguns com objetivo de exotificar, outros por estranhamento mesmo. Em outra universidade, uma professora dizia que eu tinha “cara de que não gostava de estudar”, sem sequer me conhecer. Já aqui, também encontramos dificuldade para inserir conteúdos afros nas disciplinas. Isso ainda assusta muitos professores”, exemplifica. “Não sou um negro embranquecido, pelo contrário, valorizo aspectos da minha negritude mais que tudo. Por não me enquadrar em um ideal de masculinidade, sei que esses olhares se tornam mais intensos. Piadas ouço constantemente, mas nada que eu dê importância ou que me incomode. Um dia desses gritaram de uma sala de aula para eu e mais dois colegas negros e gays. Não há espaço para pessoas medíocres na minha vida. Tenho outras lutas!” 94 Periscópio - Sociedade
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Desigualdades naturalizadas, disparidades precisam ser questionadas: Segundo Matheus, gays e negros ainda não são maioria no ambiente acadêmico. “A construção do atual projeto de universidade é eurocêntrico, da bibliografia à arquitetura dos espaços, nada é feito para nós. Sei que esse modelo não foi pensado para minorias. Todos os espaços deveriam ser para quem quisesse estar neles, independente de condições sociais, econômicas ou culturais. Tem sido uma experiência de combate, reflexão e aprendizado. Tenho tomado ela com a devida responsabilidade que é esperada de mim.” “Para ocupar este espaço e estar aqui, houve todo um processo de lutas de ambos os movimentos, o negro e o LGBT. Estamos criando espaços e ocupando os já existentes com saberes orgânicos que vão de encontro aos saberes acadêmicos. Em um país onde mais de 50% da população é negra; não é aceitável que ainda ocupemos mais postos nos serviços subalternizados das instituições do que no banco das salas de aula. Essas disparidades estão bem à frente de nossos olhos e precisamos questioná-las. As desigualdades são naturalizadas! Não posso fingir que nada está acontecendo!”, completa indignado.
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“Esse modelo não foi pensado para minorias. Todos os espaços deveriam ser para quem quisesse estar neles, independente de condições sociais, econômicas ou culturais”
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“Um negro na universidade, servindo à casa grande, pouco ajuda na luta, só serve para perpetuar a desigualdade”
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Consciência, valorização e experimentações com o corpo: Para o acadêmico, mais do que ser negro, gay e universitário, é necessária uma consciência das lutas que se deram para que estivesse neste espaço e a valorização dessas identidades. “Há muitos negros na universidade que não têm essa consciência e compactuam com a desigualdade, aceitam opressões. Um negro na universidade, servindo à casa grande, pouco ajuda na luta, só serve para perpetuar a desigualdade. É necessário se unir, articular para trazer nossas questões em pauta nos espaços universitários. Uma andorinha só não faz verão”. Matheus acredita que, apesar de inspirar outras pessoas, seu visual também pode causar um certo desconforto, mas ele não se veste com o objetivo de afrontar ninguém, muito menos para se parecer uma mulher. “Espero que sim, que elas se sintam inspiradas a ser quem elas são e se sintam orgulhosas disso. Mas que esse empoderamento não se resuma a uma questão estética”. “Minhas identidades se expressam de diversas maneiras em várias fases. Estamos em constante transformação, hoje me visto assim e amanhã pode ser que não. Simplesmente uso aquilo que me sinto confortável, como uma unha pintada. Pode causar um certo estranhamento pelo fato de ser homem; acredito que o feminino não está nesses signos. São experimentações com meu corpo, por atuar também no campo da arte de performance, acredito nesse potencial. Quero explorá-lo!”. 102 Periscópio - Sociedade
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Ocupar o ambiente universitário e estar em contato com movimentos sociais populares, dentro e fora da academia, fortalece as identidades sociais de jovens e outras pessoas que pertencem a minorias, especialmente negros e LGBTs. Todavia, é necessário que os debates em torno dessas causas não se restrinjam aos muros do meio acadêmico e do discurso de alguns movimentos. Essas formas de conhecimento não devem ser privilégios, mas direitos. Isso é, toda a população precisa se reconhecer e se reafirmar. É preciso pintar a universidade de povo mas, também, é preciso pintar o povo de universidade.
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Produzir HQs não é brincadeira de criança Apesar de os quadrinhos serem uma das formas de comunicação mais populares do mundo, artistas de Juiz de Fora afirmam que no Brasil ainda há muito preconceito
Por Cristiane Turnes
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Mesmo com todo o glamour que envolve o universo das Histórias em Quadrinhos dos super-heróis da Marvel e da DC Comics, principalmente após os lançamentos dos blockbusters, desenhistas locais do mundo das HQs contam as dificuldades que enfrentam na profissão, que, no Brasil, não é nem mesmo reconhecida oficialmente. Isso dificulta, por exemplo, que os artistas sobrevivam de sua arte, mesmo com as facilidades de divulgação dos trabalhos proporcionadas pela web. Entre estas iniciativas em Juiz de Fora estão o ColexCon, evento que promove artistas locais e um importante projeto desenvolvido no Colégio de Aplicação João XXIII da UFJF, o Encontro de Histórias em Quadrinhos, realizado anualmente. Além disso, o colégio incentiva as produções de jovens talentos, por meio do projeto Corujito: Núcleo de Quadrinhos.
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Coordenado pelo professor de artes Frederico Crochet, com o auxílio de um bolsista aluno de Artes e Designer da Universidade Federal de Juiz de Fora, o Corujito busca ensinar um pouco sobre as técnicas da criação de quadrinhos e incentivar as crianças a produzirem. Sempre com trabalhos ligados ao que elas estão aprendendo em sala de aula. Os trabalhos produzidos pelos alunos são utilizados no material visual do colégio. E, uma vez por ano, é realizado, no colégio, o Encontro de Histórias em Quadrinhos (EHQ), que trabalha com uma temática diferente a cada edição e conta com a participação de profissionais da área. Para o quadrinista Raphael Salimena, um dos poucos juizforanos que consegue sobreviver da arte e possui trabalhos reconhecidos no país com publicações on-line oficiais de suas produções autorais, ações como essa são ótimos estímulos
para os alunos: “Eles precisam só de lápis e papel para contar suas histórias e se expressarem para o mundo. Isso pode parar por aí ou se tornar um veículo importante para as ideias futuramente.” Giuliano Pietro, bolsista do projeto, acredita que iniciativas como essa são muito importantes, principalmente para o desenvolvimento artístico e o olhar diferenciado dos alunos: “Eu não tive esse incentivo quando criança. Só fui ter aulas de desenho na faculdade e percebi como isso é importante para melhorar a técnica das ilustrações.” A ilustradora Paula Januzzi, que também integrou o projeto, acrescentou que outro diferencial do núcleo é trazer para os estudantes um pouco dos gibis nacionais: “É legal tornar conhecidos os quadrinhos produzidos aqui. Já que normalmente se conhece mais as HQs americanas.” Para alavancar a produção e
Foto: Cristiane Turnes
divulgação dessa arte, o ColexCon reúne quadrinistas, desenhistas, ilustradores e colecionadores mensalmente no Santa Cruz Shopping. O evento é promovido pelo Encontro Nacional de Colecionadores (Enacol) e pela Tsuru Eventos (cenário Geek e Nerd). Os profissionais da área ressaltam a importância desse tipo de evento para a consolidação do mercado em Juiz de Fora. “É uma ótima oportunidade de podermos ter contato com as pessoas e apresentarmos nosso trabalho. Além de conhecermos outros artistas da área, possibilitando parcerias”, afirma Paula, ressaltando a oportunidade de sair do digital e mostrar fisicamente sua arte.
Projeto do Colégio João XXIII realiza anualmente Encontro de Histórias em Quadrinhos
ColexCon
Foto: Arquivo Pessoal
Para quem ficou interessado, o próximo ColexCon será em 20 de maio com o tema “Orgulho Nerd”. A entrada é franca. Você pode conferir as atrações da edição de maio e a agenda completa dos próximos meses pela página do evento no facebook: https://goo.gl/s1Rh6T
Explorando o universo das HQs A experiência de produzir tirinhas vai muito além de saber desenhar. O quadrinista Otávio Subtil comenta: “Quadrinhos é, para mim, a melhor e a mais acessível forma de comunicação e expressão, mesmo que outras possam ser mais visualmente encantadoras”. Henrique Filho ainda acrescenta: “Os desenhos não conquistam só pelos traços, e, sim, pela ideia, pelo sentimento.” Raphael Salimena destaca que, inicialmente, o quadrinho não tem a ver com desenho. É preciso antes de tudo compreender a linguagem desse gênero para só então produzi-lo: “Claro que o traço é importante, mas antes de mais nada o autor precisa entender de ritmo, narrativa, diálogos, personagens. É como entender de todas as etapas de um filme e realizá-las sozinho. Só depois entra o desenho, que é a maneira como isso tudo será passado ao leitor.” Otávio Subtil na segunda edição do evento ColexCon, realizada em abril Cultura - Periscópio
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A tecnologia na arte da produção de quadrinhos trabalho: “Faço a finalização toda diferente do tradicional, tem alguma no Photoshop. Às vezes, faço a coisa errada. Minha arte deve ser finalização com caneta nankin e uso maior que o material que uso.” o programa para colocar as cores. O Photoshop é bem completo para quem desenha, pois tem bastante recursos para facilitar.” Henrique Filho concorda com Giuliano e utiliza os programas de forma semelhante, mas pondera: “Todo artista gráfico deve saber usar o papel, lápis, nanquim antes de partir para a arte digital, para que os trabalhos não sejam tão padronizados, tem que haver o conhecimento principal.” Já Otávio Subtil prefere utilizar os materiais tradicionais (lápis, tinta). Ele usa menos a arte digital e vê o computador apenas como mais uma ferramenta disponível. Em sua opinião, é necessário haver um equilíbrio: “Se a finalização com cores no computador fica muito
Ilustração: Giuliano Pietro
Como dizia o famoso teórico da comunicação canadense Marshall McLuhan, “o meio é a mensagem” e, com os quadrinhos, não é diferente. A tecnologia não é apenas um novo espaço para divulgação, como também está sendo incorporada diretamente ao processo de criação das HQs. Para Salimena, hoje o uso de programas de computador na produção é imprescindível: “Ainda tem gente produzindo todas as fases no papel, e isso é muito bacana em termos artísticos. Eu faço todas as etapas digitalmente, desde o esboço, porque me agrada o dinamismo e a finalização que essas ferramentas proporcionam.” Já Giuliano Pietro, estudante de artes e designer na UFJF e também quadrinista, gosta de fazer os rascunhos e esboços a mão e utiliza o computador para a finalização do
Curiosidades do mundo das HQs The Yellow Kid, criada em 1895 pelo artista americano Richard Outcault, é considera a primeira história em quadrinho produzida no mundo.
Krazy Kat de George Herriman foi a primeira tirinha para o público adulto e introduziu no gênero histórias com animais. Inspirando a criação do Gato Félix de Pat Sullivan, e Mickey Mouse de Walt Disney, dois dos personagens mais famosos das HQs.
Na década de 1920 as primeir revista exclusivamente de histó em quadrinhos foram lançada no Japão. Nos Estados Unidos e só foram começar a aparecer n década seguinte alguns exemp foram: Funnies on Parade, Famo Funnies, Tip Top Comics, King Comics.
Durante a Segunda Guerra Mundial foi inevitável a influência do acontecimento histórico nas tramas das HQs. Surgiram os célebres heróis como Capitão Marvel, Tocha Humana. E talvez um dos mais famosos deles o Capitão América criado por Stan Lee e Jack Kirby na Marvel Comics.
Em 1940 foi lançado The Spiri Eisner essa criação marcou o a ponto do maior prêmio de mundo a levar o nome de se Prêmio Will Eisner, conhecido c do Quadrinhos.
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A internet é atualmente a principal plataforma de divulgação dos quadrinistas independentes, é através dela que os trabalhos chegam ao público. Além de não resultar em gastos elevados para os artistas, as publicações on-lines também têm um alcance muitas das vezes até maior do que teria em meio físico. Todos os entrevistados possuem página própria seja em blogs e ou redes sociais. Raphael Salimena escolheu a produção de quadrinhos para a web por esses motivos. E ainda afirma que começou a realmente ganhar dinheiro com seu trabalho a partir de parcerias com outros quadrinistas que o conheceram pelo seu blog: “Com o tempo, meu blog começou a receber mais visitantes, entre eles outros quadrinistas e editores que me
ras ória as elas na plos ous g
it, de Will o gênero e HQs do eu criado como Oscar
divulgaram e chamaram para algumas parcerias. Assim comecei a receber alguns trocados.” Ele conta que depois, com o tempo, foi ganhando mais visibilidade, e o número de contratos freelancer aumentou consideravelmente. Outra forma de divulgação são os eventos da área, que se constituem como forma de intercâmbio entre artistas e aproximação com o público, além de possibilitar o aprimoramento do próprio trabalho de cada um. Para o quadrinista Henrique Filho, os eventos também ajudam na formação de um cenário mais propício futuramente ao estabelecimento dos quadrinistas: “Os eventos são importantes, pois é neles que podemos de fato criar um movimento artístico na cidade”.
Nesse mesmo período foram criados alguns dos personagens mais memoráveis como Tintin de Hergé (1930), Betty Boop de Max Fleischer, Tarzan de Harold Foster, Buck Rogers e Popeye de Elzie Crisler Segar (1931).
Após todo essa ascensão o mercado de quadrinhos caiu em declínio e as tirinhas de jornal voltaram a popularidade.
Ilustração: Paula Januzzi
Internet, um novo espaço de publicação e divulgação
Foi em 1930 também que o tema aventura invadiu o gênero sendo criados Flash Gordon, o agente secreto X-9 de Alex Raymond e o Fantasma e o Mandrake de Lee Falk. E também os heróis mais marcantes da história o Superman de Jerry Siegel e Joe Shuster e o Batman de Bob Kane.
Somente em 1960 a fama das revistas reacendeu com a criação de uma nova safra de heróis com dilemas mais humanos. Nesse período Stan Lee e Jack Kirby dominaram o mercado de heróis lançando o HomemAranha, Quarteto Fantástico, Thor - o Deus do Trovão e o Surfista Prateado. Cultura - Periscópio
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Os desafios (da falta) dos mercados local e nacional
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da cultura nerd, muitos ainda percebem que há muito preconceito quanto a esse tipo de arte. Otávio Subtil, veterano no mercado de ilustrações e quadrinhos, acredita que um dos principais problemas é a cultura aqui no Brasil, que não valoriza muito esse tipo de arte, algo evidenciado pela falta de uma regulamentação da profissão de desenhista: “Tirando o desenho técnico, que é outra categoria de desenho, nenhum ilustrador e ou quadrinista é registrado dessa forma. É sempre usado outro tipo de registro na carteira.” Henrique Filho também destaca as dificuldades em Juiz de Fora. Ele acredita que o interesse do público precisa ser despertado para os talentos locais: “Percebo muito talento, mas um bloqueio na criatividade, e, na busca por uma identidade de cada artista, que é causada pelo cenário que não dá asas a nossos sonhos e imaginação.” Ele aponta como caminho um movimento maior entre os artistas principalmente na
realização de eventos que ajudem na divulgação do trabalho: “Temos que viver nosso mundinho mesmo e correr atrás de meios de comunicação para mostrar essa arte, com eventos, por exemplo, como ColexCon.” A ilustradora Paula Januzzi também concorda com Henrique e vê o fato de as pessoas não conhecerem as produções realizadas pelos artistas da região como um dos obstáculos da profissão: “Costuma se achar que as pessoas não gostam do que é produzido aqui. Mas nem sempre é assim. Na maioria das vezes, elas desconhecem. Como você pode gostar de algo com o qual nunca teve contato?” Para conhecer melhor o trabalho dos quadrinistas, acesse: Paula Januzzi: ilustrasdapaula. tumblr.com Raphael Salimena: facebook.com/ linhadotrem Giuliano Pietro: facebook.com/ giuliano.pietro.12 Otávio Subtil: facebook.com/ OtavioKromics Ilustração: Otávio Subtil
Ilustração: Raphael Salimena
Para Raphael Salimena, os problemas começam já com o fato de não existir um mercado de fato na área no Brasil. Segundo ele, hoje, de produtoras de quadrinhos há apenas a Mauricio de Sousa Produções (produtora de Mauricio de Sousa, o criador da Turma da Mônica): “Cada um tem que criar o seu e se virar como pode.” Outra dificuldade apontada por Salimena é quanto à adesão do público aos quadrinhos digitalizados. Apesar das inúmeras possibilidades que a internet passou a permitir, ela também possui seu lado negativo, já que as HQs nessa plataforma podem acabar afastando uma parcela do público mais nostálgico: “Escolhi fazer webcomics, que são quadrinhos digitais voltados para internet, então, além de não ser contemplado pelo público geral que acredita que quadrinhos são coisa de criança, também não sou pelos colecionadores que piram em edições bonitas, de papéis especiais e cheiro de livro”. Mesmo com o crescimento
Curiosidades dos gibis brasileiros Angelo Agostini cartunista italiano radicado no Brasil escreveu As Aventuras de Nhô Quim em 1869. Considerada por muitos estudiosos a real precursora do gênero de quadrinhos. As Aventuras do Zé Caipora foi lançada em 1883, também criação de Angelo Agostinho foi a primeira história em quadrinhos brasileira de longa duração.
As HQs de heróis brasileiros como O Vingador de P. Amaral e Fernando Silva e Jerônimo - o herói do Sertão de Moisés Weltman e Edmundo Rodrigues vieram de novelas radiofônicas juvenis.
O termo Gibi, hoje utilizado para se referir as revistas de quadrinhos no Brasil, era o nome de uma revista de HQs lançada pelo grupo Globo em 1939.
Mauricio de Sousa criador da Turma da Mônica foi o mais bem sucedido dos quadrinistas brasileiros, vivendo exclusivamente de suas publicações.
Ziraldo um dos principais cartunitas brasileiros responsável pela criação de Pererê e O Menino Maluquinho foi lançado pelo revista Sesinho (do SESI).
O jornal O Pasquim, que se opunha ao Regime Militar na década de 1960, ficou famoso por suas tirinhas em especial as do cartunista Jaguar um dos idealizadores do periódico. Os jornais brasileiros só começaram a publicar trabalhos de artistas nacionais na década de 80 antes veiculavam apenas quadrinhos americanos.
Ilustração: Henrique Filho
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Carlos Eduardo Leal A relação entre Psicanálise e Literatura
Junto à carreira de psicanalista, Leal é também escritor e artistaplástico.APeriscópioconversoucomoprofissional para saber um pouco mais de sua trajetória e dia-a-dia.
Por Júlia Lima
P
ara além do tradicional, as profissões podem ser interligadas e funcionar de forma cíclica e multifacetada a partir de uma pessoa. O psicanalista Carlos Eduardo Leal é um exemplo disso. Mestre e doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ), Leal é também professor universitário de Psicanálise e Arte, com ênfase em Literatura. A Periscópio conversou com Carlos Eduardo Leal para saber um pouco mais sobre suas inspirações, assim como tentou trazer um pouco sobre a relação entre seus trabalhos literários, artísticos e em clínica
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psicanalítica. Apresentando o diferencial de sempre trazer à tona escritos, como o de Clarice Lispector, para suas aulas, Leal também leva, mesmo que inconscientemente, poesia até para sua prática clínica. Junto à carreira na Psicologia, é também artista plástico e escritor. Seu mais recente trabalho literário foi o Ensaio Sobre o Gênesis, lançado em 2016. Leal ainda debruçouse a escrever livros, como Fragmenta; A Sede da Mulher; O Nó Górdio; O Céu da Amarelinha; A Última Palavra. Dentre seus escritos e publicações, estão também ensaios sobre a obra de Clarice Lispector.
Periscópio: O que o inspirou\ levou a se envolver com as áreas da Literatura, Artes Plásticas e Psicanálise? Leal: Sempre tive influência das artes em casa. Minha mãe sempre tocou violino, então, a música chegou para mim através dela, e minha avó contava histórias, que considero ser uma forma de transmissão da arte. Depois, veio o gosto literário, pela proximidade com artistas, daí escrevo e pinto. Sempre li muito e, antes do escritor, tem o leitor, a leitura veio antes da psicanálise. Não sei o que me inspirou… Meu primeiro contato com a escrita foi aos 14 anos. Comecei a escrever nessa idade e já tinha uma preocupação em querer dizer algo que eu não sabia dizer, eu queria dizer, mas não conseguia. Hoje, eu consigo isso. A arte é expressar aquilo que não se expressa, é escrever o indizível, é pintar aquilo que não está em lugar algum, tem que ser autêntico, tem que ser próprio, não pode ser copiado. Por mais que você possa se influenciar, no final você escreve e pinta o que é seu. O interesse pela psicanálise começou cedo, meu avô materno era curioso pela psicanálise. Antes mesmo de eu saber o que era, ele já falava de psicanálise para mim, então eu comecei a me interessar
“Comecei a escrever com 14 anos e já tinha a preocupação de querer dizer algo que eu não sabia dizer” muito cedo a partir desse contato e, mais tarde, fui fazer Psicologia. P: Qual foi sua inspiração ao escrever seu mais recente livro, Ensaio Sobre o Gênesis? L: Sempre tive uma curiosidade muito grande sobre o início do mundo. Essa curiosidade acompanha toda criança: de onde vim? Para onde vou? E eu também parto disso, de escrever alguma coisa que, até então, eu nunca tinha visto alguém escrever. O que tinha no início de tudo? Tem uma vertente religiosa, influenciada também pelo meu avô, que era filósofo, pastor, era tudo (risos). Um dia resolvi escrever, e não
foi fácil, levei mais de cinco anos para escrever esse livro, porque comecei e achei que era muita ousadia, achei que não tinha mais ideia para continuar e parei. Um dia, sentei e acabei de escrevê-lo em uma tarde. A ideia desse livro é reescrever os 7 dias da criação e mais o encontro de Adão e Eva. Fiz um pequeno romance, P: O trabalho na clínica interfere/ajuda no trabalho da escrita? L: Não interfere, mas ajuda em muito, porque estou há mais de 30 anos escutando histórias, e os romances que escrevi estão permeados de histórias, que não são dos pacientes, mas são histórias de vida, têm sutilezas, tem coisas interessantes a acrescentar na vida. Escutar histórias do outro é um privilégio, mesmo que sejam problemas, são relatos emocionantes, sou atravessado por isso também, não tem como não ser. Se eu escutava histórias de minha bisavó quando criança, continuo ouvindo histórias hoje, elas povoam meu imaginário, e isso me faz escrever. O que me leva a escrever, às vezes, é uma frase, uma música, um fragmento, enfim, que sinto e me leva a escrever ou a pintar.
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“A palavra me desaloja do meu eu quando não faço uso dela. Mas, quando escrevo, sou outro” P: Você também atua como professor. Como fica a relação entre lecionar e escrever? Essas atividades se complementam? L: Uso Literatura para lecionar Psicanálise, mas nunca uso a minha Literatura para lecionar Psicanálise. Nunca começo a aula sem ler um trecho de Literatura para os alunos. Isso me inspira para dar aula, eu acho que a Literatura engrandece a Psicanálise, isso me ajuda a dar aula.
Além de psicanalista, Carlos Eduardo Leal é também escritor e artista plástico. Foto: Acervo pessoal
Há um momento em que se convoca a Literatura para dizer aquilo que a Psicanálise não alcança?
L: Quanto mais eu leio, mais eu P: Situações em sala de aula ou me inspiro ao falar certas coisas. em consultório já o inspiraram a Tive uma resposta de uma paciente, escrever? Exemplo? que chegou recentemente ao final L: Do consultório sim, em sala da análise e me mandou uma de aula não, porque, quando têm mensagem, depois do fim da sessão, interferências, são mais específicas agradecendo o percurso feito, falou da disciplina. Em consultório, sim, que havia feito várias análises, às vezes os pacientes são poetas, mas que nunca tinha feito análise mesmo sem falar poesia, falam poética... Eu nunca citei poesia nas sessões, eu apenas falo para o coisas que o são verdadeiramente. paciente, mas talvez a forma de eu P: A Literatura pode ser dizer inspirada nas coisas que leio considerada uma arte; a tenha um toque poético. Guimarães Psicanálise uma ferramenta de Rosa disse que viver é um negócio investigação, de interpretação perigo e que de sofrer a gente nunca que dialoga e precisa estudar se desfaz. Isso é analitico, as pessoa as várias composições do vão falar de amor e de dor e isso está sujeito, como sua cultura, seu atravessado na fala que posso dizer funcionamento psíquico, enfim. ao paciente.
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“Escutar histórias do outro é um privilégio, mesmo que sejam problemas, são relatos emocionantes, sou atravessado por isso também, não tem como não ser”
P: Em uma situação de psicanálise, não basta o profissional apontar e explicar qual o problema de seu paciente, mas ele precisa operar interpretativamente de dentro da história do analisando. No livro O que é Psicanálise, de Fábio Hermann, ele afirma que assim, de dentro da história, o analista será escutado e poderá criar tensões dentro do campo ativo, que o levará a romper-se. Você acredita que a Literatura carrega um pouco desse viés? L: Muito, tem uma coisa em Clarice Lispector que chama epifania. Epifania, em teologia, é erupção de um Deus na terra do ponto de vista da aparição. Na Literatura, significa o surgimento de algo inesperado de dentro do texto na obra do autor. Tem um conto da Clarice chamado Amor, em que a personagem está num bonde, ela olha para o lado e vê que tem um cego olhando para ela, mascando chiclete. Mas como um cego está olhando? Mas ele olha, e a maneira de o fazer a desconcerta, ela se destempera, não sabe como está a relação dela mesma como mulher, e há uma mudança. Na análise, isso acontece se você toca no sujeito, ele repensa a vida e passa a viver de outra forma. P: Em Semiótica, autores como Bakhtin e Pierce abordam a questão de que as pessoas não têm acesso direto à realidade, essa relação é sempre mediada pela linguagem. Isso pode ser visto como uma prisão e, ao mesmo tempo, como uma boa ferramenta para nos expressarmos e nos libertarmos, uma vez que há a semiose infinita, que é a questão de que um signo leva ao outro, um discurso se relaciona com
outro, enfim. No campo da Psicanálise, qual considera ser o papel da linguagem? Essa relação é modificada e\ou potencializada quando relaciona-se Psicanálise e Literatura? L: O campo é fundamental, fantástico, a partir de Lacan, ele refunda a relação de linguagem, ele faz um desdobramento do signo, um significante remete a outro e essa é a situação que Freud falou: da associação livre. Uma ideia remete a outra, então o campo é fundamental na Psicanálise, a palavra, a potência da palavra, o uso dela é o que pode haver de melhor na análise, ao ponto de que, ao final de uma análise, o paciente possa escrever seu próprio texto. Quando o paciente fala, ele reconta a história. Já não é mais a história que ele viveu, é algo recriado, é o olhar dele hoje para algo do passado, é ficção. P: Em seu Blog, há a frase “A palavra me desaloja do meu eu quando não faço uso dela. Mas, quando escrevo, sou outro.” O que você quis dizer com isso? Tem a ver com a questão acima? L: A palavra me inquieta. Eu me seguro na palavra para viver, mas, ao mesmo tempo, é um instrumento frágil. Ela não é um conceito acabado, é um conceito sempre em construção. Nesse sentido, ela me desaloja, isso me convoca a um desassossego e me faz trabalhar, me faz ir em frente. Esse movimento de pausa me leva ao trabalho, me leva a escrever e a ler. Ainda bem que me desaloja, não no sentido da angústia, mas da produção. Se isso me acomodasse, seria um tédio para a vida. Na poesia, você usa metáfora e, na análise, também.
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Os altos e baixos do cinema tupiniquim A história afetou a relação do público brasileiro com filmes nacional. Ainda assim, nunca se produziu tanto Por Thaís Mariquito Com uma trajetória bem diferente da história do cinema mundial, as produções brasileiras demoraram a acompanhar os movimentos artísticos pelo mundo. Os altos e baixos na qualidade das produções e na relação com o público estão diretamente relacionados aos momentos mais importantes da história do país, como a ditadura militar e a crise política e econômica dos anos 1990. Atualmente, os filmes nacionais mais populares são as comédias, principalmente aquelas vinculadas a outras produções já conhecidas. Por exemplo, as franquias “Minha mãe é uma peça”, adaptada de uma peça de teatro stand up, “Carrossel”, adaptada de uma novela infantil, e “É Fada”, que tem uma das youtubers com mais seguidores do país como personagem principal. “As produtoras estão pensando no que o público gosta e fazendo filmes”, explica Flávia Vilela, que
trabalhou como assistente de direção em produções como “Hoje eu quero voltar sozinho” e “Internet – O Filme”. “Ano passado fiz esse filme que usou os youtubers mais bombados na internet para atrair os jovens para o cinema. Ou seja, as pessoas que ‘consomem’ youtubers iriam ao cinema para vê-los. É uma distribuidora que quer atingir um público e começa a produzir filmes que eles sabem que interessam a esse público. E esse é um público que está rendendo bastante bilheteria.” Ainda assim, a preferência do público está, geralmente, nas superproduções americanas, como o repórter de cultura do jornal Tribuna de Minas Júlio Black analisou. “Nós nos acostumamos com o perfil cinematográfico hollywoodiano. O ser humano gosta do que lhe é familiar, então, se ele cresceu com filmes de ação, aventura, comédias, ele, teoricamente, pode querer seguir nesse caminho. O público, em geral,
busca diversão escapista e, por isso, vai nas referências que possui.” Nilson Alvarenga, cineasta, professor dos cursos de Jornalismo e Rádio, TV e Internet da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e organizador do Primeiro Plano – Festival de Cinema de Juiz de Fora, concorda: “Compara-se uma suposta ‘qualidade técnica’ de produções americanas com uma qualidade que seria ‘inferior’ dos filmes brasileiros. Não se leva em conta, neste caso, modos de narrar, modos de filmagem e finalização que seguem outros parâmetros que não os do cinema comercial americano.” Ele lembra, ainda, que o fator econômico e publicitário também deve ser levado em conta. “Se numa sala estiver passando um filme cujo aporte de recursos publicitários é bem maior do que um outro, brasileiro, que não o tenha, a preferência de consumo e de oferta por parte do distribuidor será maior.” Cultura - Periscópio
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Desde outros tempos Historicamente, a relação do público brasileiro com o cinema nacional é marcada por altos e baixos. Da chegada do cinema ao país até sua estabilização como meio de comunicação, foi um longo caminho. A primeira exibição de um filme por aqui foi em julho de 1886, oito meses após a primeira da história, na França. E, foi somente no ano seguinte, em 1887, que a primeira sala de cinema foi aberta na capital carioca. “Os Estranguladores” é considerado o primeiro filme de ficção brasileiro e foi lançado mais de dez anos depois, em 1908. “O mercado brasileiro foi historicamente ocupado pelo produto estrangeiro, pelo menos, desde os anos 1910”, explica o cineasta e professor do curso de Cinema e Audiovisual da UFJF, Luís Alberto Rocha Melo. “Até os anos 1940, havia um
típico complexo de inferioridade, uma comparação com o cinema internacional (especialmente o americano) que levava a pensar que o Brasil não poderia produzir filmes de ‘qualidade’”, conta Nilson. Em 1949, o estúdio Vera Cruz foi criado com base nos moldes norte-americanos em uma tentativa de industrialização do cinema por aqui, sendo um marco na história por produzir “O Cangaceiro” (1953), primeiro filme brasileiro a vencer o Festival de Cannes. Na transição da década de 1950 para a de 1960, surgiu o Cinema Novo. Com o lema “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”, a intenção era fazer filmes revolucionários e com temáticas de cunho social e político, sem importar se eram esteticamente bons. Ainda assim, filmes como “Deus e o Diabo na terra do sol” (1964) e “O
1950-1970
1886-1910
“Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça” era o lema do Cinema Novo, que tem “Deus e o diabo na terra do sol” (1964) como um de seus clássicos
Ao final do século XIX, ocorreu a primeira exibição de cinema no Brasil; em 1908, foi exibido o primeiro filme de ficcção brasileiro, “Os estranguladores”
1910-1950
Apesar do complexo de inferioridade dos brasileiros, o cinema nacional ganhava formas, com a criação de estúdios como o Cinédia, que produziu “Bonequinha de Seda” (1936)
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dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), do baiano Glauber Rocha, até hoje são considerados clássicos representantes dessa época. “No Cinema Novo, houve uma recusa da ideia de cinema popular e um renovado interesse no cinema brasileiro, mas, infelizmente, restrita a uma classe média politizada. O cinema marginal e, depois e na esteira dele, a pornochanchada, são um capítulo à parte. Uma mistura de cinema popular com um apelo comercial (no caso da pornochanchada) bem forte, mas que gerou um preconceito muito grande, tanto do ponto de vista do cinema comercial, que continuava tomando como critério o cinema americano, quanto da perspectiva da classe média, que via na pornochanchada uma manifestação de baixa cultura”, esclarece Nilson.
1970-1980
O período de 1975 a 1980 ficou conhecido como “a era de ouro” do cinema nacional. O filme “Dona Flor e seus dois maridos” (1976) teve público de mais de 10 milhões de pessoas aos cinemas do país e é até hoje um dos maiores da história do cinema nacional
Luís Alberto completa: “Tradicionalmente, o chamado ‘público classe A’ apresentava certas preferências, e, eventualmente, recusava o filme brasileiro (popular ou não) dizendo que era de má qualidade – ou era excessivamente vulgar (chanchadas, pornochanchadas) ou era excessivamente hermético (Cinema Novo); os frequentadores de cinema de extração mais popular não tinham esses preconceitos, mas tinham também suas preferências. Preferiam a pornochanchada aos filmes do Cinema Novo”. A principal distribuidora da época era a Embrafilme, criada durante a ditadura militar e que se tornou uma ferramenta de controle estatal que financiava as produções. Com isso, o mercado e a população ficaram mais abertos ao cinema nacional. Segundo o Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), vinculado à Agência Nacional de Cinema
(Ancine), o filme “Dona Flor e seus dois maridos” (1976) levou mais de dez milhões aos cinemas e se manteve no topo da lista de filmes brasileiros com maior público até 2010, quando foi desbancado por “Tropa de Elite 2”. “A Embrafilme sempre foi muito polêmica e uma das várias acusações que faziam a ela dizia respeito ao favoritismo que existia na distribuição de verbas para produção e distribuição, privilegiando os cineastas próximos ao Cinema Novo”, conta Luís Alberto. “O fato é que, nesse período ‘de ouro’ (entre 1975 e 1980), a Embrafilme chegou mesmo a conquistar quase 50% do mercado de exibição, atuando como produtora e distribuidora”. Passada a era de ouro, o declínio começou na década de 1980, com o surgimento do videocassete e a proliferação de locadoras de filmes por todo o país. “Os anos 1980 foram anos de muita crise, de inflação galopante e de ocaso do regime militar, o que
1980-1995
punha também em cheque a própria política de tutela estatal da produção cinematográfica”, Luís Alberto explica. Ainda assim, os filmes dos Trapalhões monopolizam a lista da Ancine de maiores públicos da década de 1980, com um total de quase 60 milhões de ingressos vendidos. Durante o governo Collor, além das privatizações, foram extintos o Ministério da Cultura, a Embrafilme, o Conselho Nacional de Cinema (Concine) e a Fundação do Cinema Brasileiro. Mas Luís Alberto destaca que havia interesses por trás disso. “É preciso lembrar que isso também era claramente algo que interessava às grandes distribuidoras transnacionais instaladas no país, pois eliminava a competição do filme brasileiro no nosso mercado. O Collor acabou com a Embrafilme, mas não colocou nenhum tipo de alternativa à produção e à distribuição de filmes”.
2010-2017
A grave crise no país também afetou a produção cinematográfica, mas os Trapalhões levaram quase 60 milhões aos cinemas com seus filmes na década de 1980. “Os saltimbancos trapalhões” (1981) levou 5 milhões
A comédia se destaca como o gênero mais assistido em produções nacionais. O longa “Minha mãe é uma peça 2” teve faturamento superior a R$116 milhões após seis semanas em cartaz
1995-2010
A volta do apoio do Estado às produções cinematográficas ficou conhecida como “retomada do cinema brasileiro” por resultar em grandes clássicos. “Cidade de Deus” (2003), por exemplo, teve quatro indicações ao Oscar Cultura - Periscópio
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Aos poucos, após Itamar Franco assumir o poder executivo, retomou-se o Ministério da Cultura e surgiu a Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual, que liberava recursos para produção de filmes através do Prêmio Resgate do Cinema Brasileiro. Em 1993, a chamada Lei do Audiovisual (Lei Federal 8.685/93) entrou em vigor a fim de investir em produções cinematográficas e audiovisuais nacionais e em infraestrutura de produção e exibição. Nessa época, dos 11 filmes que tiveram mais de 1 milhão de espectadores, cinco são da franquia Trapalhões, dois da Xuxa e um é a subfranquia “Sonho de Verão” (1990), que tem como principal atração as Paquitas. “A partir da reorganização da classe produtora, buscouse novamente o contato com o Estado, resultando naquilo que, mais ou menos a partir de 1995, ficou conhecido como ‘retomada do cinema brasileiro’, que não é outra coisa senão a retomada da produção de filmes novamente com apoio do Estado, a partir das leis de incentivos fiscais. Entre 1995 e 2003, uma parcela de produtores cinematográficos conseguiu se reorganizar e se adaptar às diversas transformações que ocorreram”, relata Luís Alberto. No entanto, muitas dificuldades continuavam: a maioria dos filmes não encontrava salas de exibição no país e muitos eram exibidos em condições precárias, com salas inadequadas, pouca divulgação na mídia local e exibição em datas desprezadas pelas distribuidoras estrangeiras. Foi com a criação da Globo Filmes, produtora especializada das Organizações Globo, que o cinema nacional conseguiu se 126 Periscópio - Cultura
reposicionar em praticamente todos os segmentos. Em pouco tempo, ela viria a se tornar um grande monopólio ocupante do mercado cinematográfico brasileiro. Entre 1998 e 2003, a empresa se envolveu diretamente em 24 produções e sua supremacia se consolidou nesse último ano, quando os filmes com participação da empresa obtiveram mais de 90% da receita da bilheteria do cinema brasileiro e mais de 20% do mercado total. Com temática atual e novas estratégias de lançamento, alguns filmes lançados na primeira década do século XXI alcançaram grande público no Brasil e também carreira internacional, como “Central do Brasil” (1998) e “Cidade de Deus” (2002), Carandiru (2003) e Tropa de Elite (2007), sendo que esses dois primeiros chegaram a receber duas e quatro indicações ao Oscar, respectivamente. Em relatório de 2016 da Ancine, três filmes nacionais ocupavam a lista dos 20 mais assistidos pelos brasileiros: “Os dez mandamentos”, “Minha mãe é uma peça 2”, lançado apenas uma semana antes do fim do ano, e “Carrossel 2 - O sumiço de Maria Joaquina”, respectivamente. Em meados de fevereiro, “Minha mãe é uma peça 2” ultrapassou “Os dez mandamentos”, faturando mais de R$116 milhões, após seis semanas em cartaz. No mesmo ano, “Aquárius” foi alvo de polêmica após a equipe protestar no Festival de Cannes contra o impeachment da presidente Dilma Rousseff, o que levou aqueles a favor do impedimento de promoverem um boicote à produção. Ainda assim, a película se destacou no cenário nacional e internacional por agradar a crítica, entrando para as listas de melhores filmes do ano de diversos veículos de mídia e vencendo mais de 40 premiações. Sônia Braga em cena do filme “Aquarius” (2016) Foto: Dilvugação/SBS Distribution
O filme “Mate-me por favor” (2015) fez sucesso entre os críticos, mas só estreou no cinema um ano depois, em apenas 46 salas. Foto: Dilvugação/ Wayna Pitch
Em nome da arte Segundo Nilson, hoje, o cinema brasileiro encontra-se claramente dividido em duas vertentes opostas: “uma produção comercial voltada para competir - deslealmente, diga-se de passagem - nas salas de shopping ou de multiplex com o cinema internacional (americano, principalmente) e uma produção artisticamente sofisticada, por vezes engajada ainda, mas sobretudo antenada com outros modos de produção cinematográfica que não o americano, mas que está restrita a festivais e mostras.” Essa segunda vertente, a dos filmes de viés mais artístico, ainda enfrenta problemas. “Existe essa noção entre o público de que filme brasileiro sério é ‘filme chato’. E isso acaba disseminado nas redes de cinemas, que não vão querer deixar uma sala vazia durante uma ou duas semanas quando poderiam faturar mais com um blockbuster, uma franquia ou uma comédia.”, comenta o jornalista Júlio Black. Flávia Vilela justifica também com os baixos orçamentos dessas películas, que acabam prejudicando o processo de distribuição. “Filmes autorais têm mais dificuldades de ir para as salas de cinema convencionais e ficam mais restritos aos festivais porque não há muita distribuição, tem poucas cópias, circula menos e tem menos dinheiro
investido”. Luís Alberto defende que o cinema precisa se tornar uma política de Estado, uma atividade estratégica para a cultura, economia e geração de empregos. E, dessa forma, criar novos canais e janelas de difusão e exibição para filmes brasileiros. “O que penso é que, sem vontade política, a situação do cinema no país será sempre precária. Enquanto isso, vai-se produzindo como cada um consegue. Eu, por exemplo, faço filmes independentes, com recursos próprios. Talvez eu me classifique como louco, quem sabe?” A fim de estimular o patrocínio das artes e do cinema, no Brasil, foram criadas as leis de incentivo à cultura ainda nos anos 1990, como a Lei Rouanet (Lei 8.313/91), a Lei do Audiovisual (Lei 8.685/93), entre outras em níveis estaduais e municipais, como a Lei Murilo Mendes (Lei Municipal nº 8525/94) em Juiz de Fora, além de inúmeros editais e seleções públicas divulgados pela Ancine. Mas Nilson destaca também uma outra realidade: “Com a ideia de abatimento de parte dos impostos devidos, o objetivo era que as empresas se vissem estimuladas a investir na cultura. Mas, ao invés de estimular o patrocínio direto na cultura, subsidiou-se, indiretamente,
um modelo de incentivo que, no final das contas, tinha uma forte conotação publicitária”. “Porém, se olharmos da perspectiva do produtor cultural, tirar-lhe este, muitas vezes, único meio de poder produzir - especialmente quando pretende produzir cinema não comercial - seria catastrófico. Então, embora o modelo das leis de incentivo possa ser repensado, extingui-las seria um erro maior”, pondera. “A verdade é que filmes nacionais teriam muito menos presença nos cinemas se leis como essas, em especial a Rouanet, não existissem. Infelizmente não temos estúdios fortes como nos Estados Unidos, então a participação da iniciativa privada por meio de leis de incentivo ainda é essencial para nosso audiovisual”, Júlio completa. Os festivais de cinema locais também ajudam a dar mais visibilidade às produções nacionais, especialmente aquelas que não conseguem espaço nas salas de cinema tradicionais. “Os festivais fecham uma lacuna no sistema de distribuição cinematográfica no Brasil. Como muito da produção que não segue o parâmetro comercial não encontra lugar nas grandes salas, o meio de distribuição principal são os festivais e mostras”, aponta Nilson. Cultura - Periscópio
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Futuro otimista Apesar dos problemas, o cenário futuro parece favorável. De acordo com o Informe anual preliminar de 2016, realizado pela Ancine e divulgado pelo OCA, 143 filmes brasileiros foram lançados no ano passado, sendo 97 deles de ficção, a maior marca registrada na história do cinema nacional. Além disso, foram vendidos 30,4 milhões de ingressos para produções brasileiras, sendo este o melhor resultado desde 1984, e a participação de mercado dos filmes nacionais chegou a 16,5%, contra 13% em 2015. “Eu acredito que podemos ter um público cada vez maior no futuro, pois a capacidade técnica de nossas produções tem evoluído, e diretores daqui têm filmado lá fora, o que ajuda muito. Isso vai permitir que filmes tidos como série, de arte, tenham um acabamento ainda melhor”, comenta o jornalista Júlio Black. Flávia também se mantém otimista: “Estamos com muitas produções, canais de TV por assinatura e streaming olhando um pouco mais para nosso mercado. E também temos diretores brasileiros dirigindo fora,
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coproduções cada vez maiores, então pode ser que comece a mudar o ponto de vista do público. E espero que consumamos coisas melhores, porque o cinema também é uma maneira histórica de reconhecimento de um povo e como ele vive.” Já para Nilson, o futuro do cinema nacional depende diretamente da forma como a sociedade enxerga a cultura brasileira como um todo. “Talvez um futuro mais promissor deveria ser rever essa ideia de um eterno recomeço, como nas tentativas de industrialização (anos 1940 e 1950, renovadas nos anos 2000), o Cinema Novo (anos 1960), o cinema da retomada (anos 1990) e o novíssimo cinema brasileiro. Parece que o cinema no Brasil está sempre começando”, avalia. “Mas isso implica uma dinâmica cultural - e também política - que vai para além das fronteiras do cinema. Implica toda uma visão da cultura brasileira. Onde faltar consciência da importância cultural do cinema brasileiro para além do consumo, será difícil uma concorrência de mercado equitativa”, completa.
A Liturgia do
Vinil
Por Gabriel Ferreira
Cultura - Periscรณpio
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“Esse nome emerge o tempo todo para definir uma série de práticas e pessoas que se interessam por LP”. Definida acima por Felipe Brandão, cientista social mestre em Antropologia, a cultura do vinil é uma práxis que remete aos anos 40, quando os discos Long Play (LP’s) despontaram e, consequentemente, tomaram o lugar dos obsoletos discos de goma-laca. Após a emergência dos Compact Discs (CDs) no início da década de 80, a cultura – ou universo, a gosto – do vinil ganhou, daqueles que a adotam, nuances específicas devido à nova concepção mercadológica escolhida. A partir do aumento da produção e das vendas dos CDs pela indústria fonográfica, o cultivo dos discos de vinil, seja por colecionadores, discotecários ou DJs, intensificou-se à margem dos maquinários industriais. As perspectivas de lucro das grandes gravadoras foram norteadas pela praticidade e portabilidade das novas mídias; o analógico, fincado na cultura popular musical, começara a ser marginalizado, até mesmo ignorado, seja pela im-
De vinil, a maioria dos discos produzidos têm 12 polegadas e 30 centímetros. O peso varia entre 100 e 200 gramas. Enquanto no auge da crise do petróleo – década de 70, diga-se - produzia-se discos de gramatura correspondente a 100, as fábricas japonesas, atualmente, produzem vinis de 200 g. Rodam a 33 1/3 por minuto 130 Periscópio - Cultura
prensa ou pela própria indústria. “No Brasil, houve a interrupção da fabricação de discos de vinil, diferentemente de outros países. Não que as pessoas não procurassem. Parou-se de fabricar. A cultura do vinil nunca morreu”, diz Brandão. Em sua dissertação, denominada “Vinil é assim, é sorte: Colecionismo, garimpo e obscuridade no mundo do vinil”, Felipe mapeia, brevemente, as movimentações da indústria fonográfica após a entrada dos CDs no mercado brasileiro, em 1987. Ao passo que os discos menores ganhavam o gosto popular, os preços dos seus reprodutores caíam, bem como seus próprios custos; já em 1991, um CD custava metade de um vinil. A investigação de Brandão tomou a cidade do Rio de Janeiro e sua região metropolitana como principal centro. Entre entrevistas com amantes do vinil e visitas a sebos, buscou ele compreender a estrutura da cultura do vinil, configurada tanto por sujeitos quanto por objetos. A partir das relações e processos singulares a esse universo, Brandão observou uma construção da memória da música
brasileira: “Existe um conflito na produção de memória da música brasileira. Alguns artistas e gêneros vão sendo deixados para trás. A militância da galera do vinil é fazer com que os obscuros sejam lembrados”. Militar implica luta, combate; como coloca o pesquisador, “o que define a cultura do vinil são as questões trazidas pelas pessoas”. A principal atividade que se desdobra junto ao universo do vinil é o garimpo. Diz-se garimpo a busca incessante por discos de vinil. Porém, é a busca pelo desconhecido, ou seja, quem procura, procura alguma coisa e não o quê. O processo de descoberta de desconhecidos discos de vinil se dá, principalmente, em sebos, lojas especializadas, feiras e festas. “Então, procura-se trazer à tona músicos, discos, autores e artistas que não foram privilegiados por uma construção de memória da música brasileira ou pelas grandes corporações fonográficas”, conclui o cientista social sobre o garimpo por aqueles fonogramas ditos obscuros, colocando, posteriormente, que tal questão foi um dos eixos
sive, dizendo que alguns comerciantes são dealers”, fala Brandão. Em literal tradução, o termo refere-se a revendores, negociantes; a problemática, em si, não mora no comércio, mas, sim, na maneira em que ele é feito. Completa o pesquisador afirmando que se trata de “uma conotação pejorativa para quem mercantiliza o vinil e não sabe das regras éticas de precificar um disco”. Há consensos dentro do universo do vinil que norteiam o processo de precificação. A partir de tal ética, cada vendedor vai usar uma estratégia própria para realçar um aspecto musical, seja de interpretação, composição ou produção, para valorizar o LP. Há contornos específicos em torno da cultura do vinil e de sua ética; foram os sujeitos do universo responsáveis por uma das maiores problemáticas do trabalho desenvolvido por Brandão. Diz ele que, ao investigar as práticas que compõem a cultura, “automaticamente chamava os interlocutores de colecionadores e, muitos deles, faziam ressalvas nesse sentido. Então, eu comecei a problematizar o que seria ser colecionador dentro desse universo”. Portanto, o cientista social categorizou os amantes do vinil em três tipos de colecionadores: os curadores, ou quaisquer pessoas que têm disco. Não há uma ordem explícita de como se deu o ato de colecionar; os acumuladores, ou quaisquer pessoas que têm compulsão em acumular os LPs sem qualquer ordem (razão), pois não o compartilhamento do acervo. O conhecimento não circula; e os colecionistas, ou quaisquer pessoas que garimpam a partir de uma ordem. É, então, a partir dos sujeitos, meios e processos que a cultura do vinil se estabelece através de contornos de resistência e, inclusive, nostalgia, ainda que há quem se engaje e cative os discos de vinil por conta das suas especificidades sonoras.
“Há uma concepção de que o universo do vinil seja homogêneo, o que não é verdade. Existe uma variedade enorme dos engajamentos em relação ao LP, de como se relacionar com ele e entender qual o significado de estar colecionando-o”, CONTOU FELIPE BRANDÃO, NO DESENROLAR DA PROSA. A CULTURA DO VINIL SE DELINEIA A PARTIR DOS LAÇOS SINGULARES AMARRADOS entre os amantes e os próprios vinis.
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de sua investigação. A adjetivação referente à obscuridade de determinada obra liga-se, logicamente, às relações de precificação determinadas nos sebos, nas lojas e nas feiras estabelecidas pela cultura do vinil. É fundamental frisar que obscuridade não diz respeito, necessariamente, à raridade e, sim, à noção de exclusão e falta de protagonismo. “A pessoa que precifica o disco usa estratégias retóricas para construir o valor do disco”, pontua Brandão, o que ele classificou, em seu trabalho, como Efeito Verocai. Refere-se, o nome, a Arthur Verocai, músico, arranjador, produtor, e compositor atuante entre as décadas de 60 e 70 na produção musical de bossa nova e jazz brasileiros. “Na década de 70, ele foi convidado pela gravadora Continental para gravar o próprio disco. Ele não era um artista, comercialmente falando, pronto para o mercado. Ele não era intérprete. E ele gravou com total liberdade, o que, na época, era um luxo. Ninguém se meteu”, conta o pesquisador sobre Verocai. Sua primeira obra solo, denominada “Arthur Verocai”, não foi bem recebida pela crítica indústria fonográfica. A partir de então, ele foi boicotado dentro do meio e chegou a ficar no ostracismo nos anos seguintes à gravação de seu álbum. Brandão explica que Verocai “ficou muito ressentido com isso. Ele não gravou mais nenhum disco próprio como artista”. Contudo, atualmente, a obra do compositor e arranjador é reverenciada pelos amantes do vinil, tanto no Brasil, quanto em países como Estados Unidos, Inglaterra e Japão. A partir, então, da valorização da obra de Verocai - que aconteceu por meio de DJs e rappers-, todos os discos que têm o seu nome são valorizados dentro da cultura do vinil. “Algumas acusações indicam que há lojistas que se aproveitam dessa popularização da cultura do vinil para ganhar dinheiro. Inclu-
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as margens do garimpo “Garimpar é uma categoria fundamental à cultura do vinil. O que é garimpar? Sair atrás de discos sem saber qual disco está procurando, o que é uma forma de consumo muito peculiar”, define o pesquisador Felipe Brandão como uma das principais atividades do universo dos LPs. Em Juiz de Fora, na Avenida Getúlio Vargas, um galpão, de número 245, guarda um acervo de, aproximadamente, 80 mil vinis. Entre inúmeras mídias físicas – como CDs, DVDs, fitas cassetes e VHS -, os fundos do Museu do Disco recolhem em algumas prateleiras de madeira e caixas de papelão discos de vinil de múltiplos artistas, gêneros e gostos. A especificidade da loja - compra e venda de produtos usados -, junto ao seu acervo, atrai amantes do vinil de diversas regiões para garimpo, como conta, em conversa, Maicon Cesca, proprietário do Museu: “Nós recebemos muita gente de fora, porque é uma loja que não tem em qualquer lugar. No Brasil, há, somente, 13 lojas como a nossa”. Recém-formado em Administração, Cesca herdou do pai, João Roberto de Moreira – ou Bebeto -, o manejo do negócio, que há algumas gerações acompanha a família. Como explica o dono do Museu do Disco, o histórico iniciou-se em Niterói, há mais de 50 anos, com seu tio-avô; em Juiz de Fora, a tradição desembarcou nas malas de seu avô e perpassou para o pai. “O meu pai começou a trabalhar para ele e, depois, abriu a própria loja de produtos usados – mais barata e coisa que ninguém estava fazendo -, já que ele não queria concorrer com o pai”, narra Cesca, calmamente. Antes segmentado em três lojas, o patrimônio foi unificado somente no atual endereço, à altura do Centro Cultural Bernardo Mascarenhas (CCBM). A ascensão 132 Periscópio - Cultura
da internet e da pirataria, somadas à queda das vendas, levaram a família a encerrar as atividades das outras duas lojas, especializadas em novos produtos, e concentrar as mercadorias na atual estrutura física. De grande metragem, o galpão carrega seus visitantes, por meio de seus corredores - em desenho arrojado e simples -, para os fundos. Além do chão de cimento queimado, avermelhado e descascado, o cheiro e a disposição dos discos norteiam quem os procura há décadas atrás; precisamente, século passado. Em um momento, Cesca revela que “mantêm uma estrutura interior, um design, porque tem medo de afugentar as pessoas mais humildes. As pessoas que têm mais dinheiro gostam de vir também por conta do estilo do lugar”. A simplicidade, afinal, casa perfeitamente com os bolachões. Dispõem os discos em gênero estantes escuras de ferro e, inclusive, madeira. Lotadas, têm como companhia, abaixo, caixas de papelão com outros LPs. Do samba ao rock, do chorinho/violão ao jazz/blues; o grande acervo se expõe nas mais variadas categorias. Ângela Maria, Chico Buarque, Caetano Veloso, Frank Sinatra, Maria Bethânia, Ray Conniff e Simone são alguns e algumas artistas etiquetados. Muitos discos de vinil, aliás, duplicados, triplicados. O administrador diz que o único meio de compra dos analógicos é a pessoa física: “O fluxo de saída é maior que o de chegada. Essa é a nossa dificuldade. Não a entrada, mas a quantidade de discos dos quais a gente não precisa. A dificuldade em conseguir é devido à captação direta com a pessoa”. Questionado se a loja não buscava discos nas feiras comuns à cultura do vinil, ele responde que “os valores das feiras já são valores finais. O Rio de Janeiro, por exem-
Orlando Silva, Francisco José e Nelson Gnçalves: há 25 anos, guardam os compartimentos do Museu do Disco as vozes que soam a partir das
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plo, tem colocado um valor bem alto nos discos”. Aos fundos, após as caixas de papelão e vizinhos às estantes do samba, alguns discos, aparentemente mais antigos devido às marcas mais amareladas, são dispostos. Acima deles, em papel, lê-se: “LP 1,00”. Por conta do estado físico, machucados com alguns arranhões e cobertos com poeira, alguns bolachões são vendidos a um real. “São muitos critérios no processo de avaliação, porque cada álbum, cada artista tem o seu valor. O estado... até a prensagem, inclusive. A dificuldade em encontrar, também”, considera Cesca sobre como funciona a avaliação durante a compra dos vinis usados. No processo de precificação, contudo, outros critérios são adotados. “A gente avalia como o disco está no mercado, a quanto o mercado está o vendendo, porque o preço do disco também sofre uma alteração com o tempo. Então, nós estamos sempre atualizando o valor dele”, completa o empreendedor. À beira das estantes gastas, notase diversos públicos ‘folheando’ os bolachões. Alguns, vestidos sob plásticos; outros, nus, expostos. O Museu “tem vários tipos de público, tanto público A, quanto público C”, como conta Cesca. Precificados em diversos níveis, os bolachões vão desde o real mínimo até o preço de 300, 400 reais. “Nós só vendemos mercadorias originais. Há colecionadores que gastam horrores de dinheiro todo mês, mas há também gente que compra um realzinho todo dia”, detalha o proprietário da loja. Inúmeros colecionadores visitam a casa dos discos de vinil em Juiz de Fora, inclusive, naturais de outros países: “Na semana passada, veio um inglês que trabalha com isso e disse que não tem uma loja desse tamanho, de usados, aqui no Brasil”, relata ele. Na era da liquidez dos bens de posse e das nuvens - Spotify, Deezer, YouTube, etc -, chama a atenção a emergência do consumo por
matérias. O disco de vinil simboliza a resistência dos analógicos face às mídias digitais. “Parte do público gosta de manter essa relação com a mercadoria física. Tornou-se um movimento cultural ter disco de vinil. Não só ele, na verdade; colecionar coisas antigas, o vintage. Hoje, o acesso a música é algo muito prático e muita gente opta, logicamente, pela praticidade. Porém, as pessoas gostam de colecionar, pegar, ver o álbum”, detalha o proprietário, quando a conversa se afunilou nas nuances da era digital. Bem como os vinis, alguns toca-discos e, inclusive, vitrolas, não fogem à vista dos visitantes. Expostas sobre as estantes, modelos usados, de outras décadas, esperam por novos donos e donas. “É difícil conseguir vitrolas antigas, por exemplo. Nós temos modelos novos, mas não expomos. Compramos também sob encomenda. Uma vitrola nova chega a custar mil, dois mil reais, enquanto vendemos uma antiga por 350, 400”, fala Cesca. Posteriormente, conta ele que um toca-discos já foi vendido “sem nem ter saído da caixa”. Após sua compra, Maicon havia colocado uma foto sua em uma das redes sociais da loja, por onde fechou o negócio. Rebuscado e trabalhado, o reprodutor saiu a oito mil reais. Em um único canto, no Museu do Disco, é proibida a entrada; a porta, amarelada, tem centralizada uma vidraça. Através dela, vê-se mais discos de vinil guardados no outro lado. Poucos, ao espaço, têm acesso, entre eles, colecionadores já habituados ao cotidiano do local. Seja sebo, seja colecionador, é agente ativo na manutenção da cultura do vinil. Compreendido como resultado da relação entre a procura do disco de vinil e o próprio colecionador, o garimpo é a atividade mais característica do universo. Em terras batidas juiz-foranas, os minérios estão envoltos às margens da Avenida Getúlio Vargas. Cultura - Periscópio
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TUTA, O DISCOTECÁRIO
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Parque Independência. Na Rua Gabriel Gonçalves da Silva, escondido por uma pequena mata, o cômodo de paredes na cor salmão, aconchegante, revela-se manso; guarda nos compartimentos de uma enorme estante aproximadamente 4 500 discos de vinil. “Eu não sou DJ, sou discotecário. DJ é algo mais performático e o meu trabalho é mais de pesquisa”, diz Roberto Correa. Tuta, o Discotecário. Café com açúcar mascavo a gosto, o integrante do coletivo Vinil é Arte conta que “o vinil é a minha cachaça. Eu sou viciado em vinil”. Fundado em 2001 pelo próprio Tuta e por Bruno Niggas - residente, hoje, em São Paulo -, o coletivo é norteado pela pesquisa musical, seja por meio da discotecagem ou produção. É composto, atualmente, por mais quatro membros, fora os dois fundadores: Caio Formiga (São Paulo), Luiz Valente (Belo Horizonte), Marcello MBgroove (Rio de Janeiro) e Pedro Paiva (Juiz de Fora). “Muitas vezes é algo de infância. Eu tenho 40 anos, então eu pude comprar um disco, comprar um LP de uma loja, da época. No coletivo,
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todos viveram isso. Tem essa coisa nostálgica. Eu herdei a coleção de sambas do meu pai, então o meu único trabalho é dar continuidade”, relata o discotecário, sereno. Ao fundo, roda, em seu toca-discos, o álbum Portuñol Latinoamericano (1980), do sambista Martinho da Vila. Extasiado pelo som, Tuta revela que se trata de um dos seus álbuns de cabeceira. Questionado sobre a ‘volta do vinil’, de batepronto responde que “o vinil nunca foi. Ele foi aqui, no Brasil, na América Latina, o que é uma coisa do sistema. A obra-prima do artista, cantor, músico, é o vinil. Lá fora, sempre foi”. Frente à porta, as prateleiras que segmentam os vinis de Tuta em gênero negam qualquer tentativa de esconder seu amor pelos discos. Do samba rock ao funk brasil, passando por sertanejo, forró e groove. Parte do trabalho de pesquisa, a diversidade traz à tona o gosto do músico pela cultura popular brasileira por meio de gêneros como o maracatu e o frevo, suas predileções. “A minha pegada é essa, da cultura popular brasileira, da coisa de raiz. É a cultura negra. Tudo o que eu ouço, na verdade, vem da
África. Misturado com o Brasil, claro. Essa coisa dos tambores, das manifestações afro-brasileiras”, desvela Tuta, ao passo que a voz grave de Martinho preenche todo o cômodo. Desassociado da casa, é o seu espaço de trabalho. Martinho da Vila era o terceiro sambista da roda; anteriormente, Adeilton Neves e Ataúlfo Junior deram o tom à conversa. Confessa Tuta que “descobriu” ambos por meio do garimpo: “É a pepita de ouro. Aquele disco de 1 500 reais que pode estar te esperando para ser comprado por cinco reais. Eu não estou preocupado com a raridade de um disco. A minha intenção não é pegar e deixar na prateleira, é tocar. Eu curto muito o garimpo, ir no sebo e cheirar o pó dos discos”. No compasso da conversa, as perguntas faziam-se brechas para o cigarro de palha do discotecário. “O amor pelo disco de vinil; a descoberta e a busca de uma coisa que você não sabe que existe. Há o encanto, também. Eu e Pedro [Paiva] temos casos de tocarmos em outra cidade e irmos para o sebo gastar quase todo o nosso cachê de show”, fala Tuta, após sorriso leve, como quem narra
Pés no chinelo; Calça preta, larga; Camiseta azul; Jogada sobre, camisa fina, verde; Boné; Barba cheia, Bigode delineado; De Roberto, nasce Tuta, o discotecário; Marceneiro; Juiz-forano; Maracatu; Frevo; África; Café; Açúcar mascavo; Cigarro; Anti-sistema; O vinil, sua cachaça.
REPRODUÇÃO: GABRIEL FERREIRA
arte de criança. A cultura do vinil traduz-se, para ele, nas suas afetividades com o fonograma e, principalmente, em sua busca. Perguntado pelas compras através da internet, o pesquisador diz que “são muito aleatórias. Tenho pouquíssimos discos comprados pela internet. É tudo de garimpo, de viagem”. Folheando os discos em sua estante, Tuta cata o LP do coletivo, mixado e masterizado pela Polysom. Com o apoio da Natura Musical, o grupo teve acesso aos serviços de maiores custos da fábrica. Além da produção industrial, Tuta menciona, também, a produção artesanal: “Isso quebra um pouco essa coisa da indústria. O [Bruno] Niggas tem a máquina na casa dele, então ele foge de toda a burocracia, porque o lançamento de um vinil envolve muitos aspectos burocráticos. Você tem que ter uma firma, um selo, uma gravadora, etc. Não é tão simples assim”. Citada pelo músico, a empresa de Niggas, sediada em São Paulo, atende por Vinyl-lab. Juntamente à Lombra Records, de Brasília, são as principais personagens do cenário de produção independente e artesanal. Na parede, por detrás do mixer de Tuta, um disco quadrado, azulclaro, chama a atenção. De sete polegadas, também fabricado no vinil, o disco de baixa fidelidade (lofi) é colocado sob a agulha por ele. “Esse tem só uma música”, conta ele. “O vinil é algo duradouro. Nós achamos discos sujos, trazemos para casa, limpamos e eles voltam a tocar. É qualidade e arte”, coloca o discotecário, ao estabelecer uma contraposição às mídias digitais. O vinil é arte.
O cômodo das paredes em salmão emana-se, no Parque Independência, em canto do discotecário. Entre adereços da cultura popular e discos, Cultura - Periscópio 135 Roberto torna-se TuTa
REPRODUÇÃO: GABRIEL FERREIRA 136 Periscópio - Cultura
No Museu, seção ‘Rock’. letra B: Após folhear os discos, Madalena cata um dos álbuns dos Beatles; diz ela que tem toda a coleção da banda de Liverpool
MADALENA, A CURADORA Poucos minutos após às 13h30,
Madalena Costa chega, às pressas, aos fundos do Museu do Disco. Mochila ainda sobre as costas, desculpa-se pelo atraso. O trânsito de Juiz de Fora, aliás, não é dos mais agradáveis. Estudante de Jornalismo, mostra-se colecionadora de LPs e conta que sua grande meta é encontrar, em meio a tantos garimpos, o álbum Heroes, de David Bowie. “Sempre que sobra um dinheirinho no final do mês, eu venho para comprar um disco. Eu tenho um carinho com eles, procuro trata-los da melhor maneira possível”, revela Madalena – ou Madá, a gosto. Diz ela que os cuidados, inclusive, se dão também com o toca-discos, como com a agulha, uma das mais frágeis peças. Ao lado das caixas de papelão enfileiradas sobre o piso, a estudante senta-se em um dos vários banquinhos de madeira esparramados pela seção de discos de vinil. Já separado, um álbum da banda britânica The Cure. Seu acervo, iniciado ainda no ano passado, abriga, ao todo, 236 bolachões, entre os LPs comprados por ela e os herdados pelos pais, como relata: “Os meus discos têm muita relação com a história dos meus pais, o que eu acho incrível. Tanto que, quando eles se casaram, juntaram os discos e havia muitos repetidos”. Fez, inclusive, Madá, um inventário dos discos encontrados em sua casa, catalogando-os em artista, álbum e ano. “Quando o toca-discos foi consertado, eu comecei a comprar os meus e eles já ficam separados. São poucos, eu devo ter comprado uns dez discos, mas são meus”, conta ela, entre tímidos risos, quando perguntado se havia se apropriado dos bolachões dos seus pais.
“Nas férias, eu vinha [ao Museu do Disco] e passava a tarde aqui, olhando todas as letras. No Rio, também; é coisa de ficar o dia inteiro fazendo”, narra Madalena sobre sua garimpagem. Tem ela técnicas específicas durante a busca. Quando encontra um LP de seu interesse, procura, logo, por outro igual, para comparar o estado físico de ambos e escolher pela mídia que apresente menos arranhões. Seu toca-discos, cativo na família há 25 anos, voltou a funcionar há pouco tempo. Apego de Madalena, o reprodutor quase foi descartado por uma eletrônica após a própria atestar que ele não tinha conserto. Segundo a estudante, havia um problema no motor do toca-discos; voltaria ele a funcionar somente quando sua suspensão estivesse reequilibrada, necessidade fundamental ao funcionamento do motor. “Em um dia, ligaram da eletrônica perguntando se meu pai iria querer o toca-discos de volta ou se poderiam jogá-lo fora. Meu pai respondeu que o pegaria, porque eu tinha muito apego com o toca-discos”, narra Madá. Finalmente, o reprodutor voltou a funcionar após conserto realizado por um de seus amigos e professor na faculdade onde estuda. Quando sai do tom vocal comum à sua fala, Madalena afirma, como se repetisse para si mesma, que “o som do vinil é melhor, não é um mito”. Explica – de maneira calma, novamente – que o momento em que para e escuta os seus vinis é uma espécie de ritual: “Se eu estiver fazendo qualquer outra coisa, não escuto. Quando eu estou em casa e ela está muito cheia, eu não escuto, porque chega a ser uma falta de
respeito com o disco”. Os seus momentos juntos ao toca-discos configuram um minucioso ritual; Madá, após escolher o disco em sua “gigantesca estante”, observa se o disco está sujo, coloca-o no reprodutor e leva o próprio braço do aparelho sobre o LP. “Se estou lendo ou escrevendo alguma coisa e estou afim de ouvir a um disco, eu fico na sala ouvindo enquanto faço o que estou fazendo. Mas eu continuo pretando atenção ao disco. Se eu tiver que me deslocar de onde estou, eu já não escuto”, acrescenta ela, reafirmando a singularidade do momento. Se há apego dos colecionadores para com os discos, há, também, o mesmo apego com os sistemas de audição. Caso seja um sistema adequado, no que diz respeito à posição das caixas e à qualidade da agulha, por exemplo, os detalhes sonoros tornam-se mais evidentes. “Quando eu escuto, eu vejo a música acontecendo na minha frente”, elucida Madá. “O palco sonoro é, basicamente, as caixas sumirem da sua frente quando se está ouvindo a música. Você escuta as coisas na posição certa, correspondente às posições dos músicos no palco. Isso é sensacional”, explica a colecionadora. São os sistemas de audição, segundo os próprios amantes do vinil, os responsáveis pela maior diferença de qualidade sonora entre os LPs e as demais mídias; há dinâmica de volume nos bolachões. Madalena diz que “o som muda. Tem gente que é mais sensível e gente que não percebe”. Revela ainda uma das frases mais emblemáticas escutadas por ela - e dita pelo pai - após o conserto do seu toca-discos: “Finalmente eu estou ouvindo a voz dos Beatles que ouvia quando tinha 16 anos”. Cultura - Periscópio
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REPRODUÇÃO: DIVULGAÇÃO/POLYSOM
Em Belford Roxo, as prensagens ficaram paradas por pouco tempo. Em 2010, a Polysom passou a (re) produzir os bolachões, seja reprensagens ou novos artistas.
EM meio À crise industrial, A deRROCADA Em 1989, a venda de long play (LP’s), no mercado brasileiro, atingiu seu ápice, chegando a 56,7 milhões de cópias compradas. À época, houve um acréscimo de 24,7% nas vendas em relação ao ano anterior. Enquanto isso, os compact discs (CDs), introduzidos no país em 1987, correspondiam a um aumento exponencial nas vendas. Os dados foram apurados pela Associação Brasileira dos Produtores de Disco (ABPD), nomeados, atualmente, como Pró-Música Brasil Produtores Fonográficos Associados. Junto à popularização da mídia digital no Brasil, devido à diminuição do preço dos CDs e dos seus reprodutores, a indústria fonográfica projetava sobre o novo formato a superação da crise em vigor no país após a transição entre a ditadura civil-militar e a abertura democrática, marcada pelos altos índices inflacionários. 138 Periscópio - Cultura
Já em 1993, pela primeira vez, as vendas de CDs superaram as vendas dos LP’s e, no ano seguinte, o formato digital devolvia à indústria um lucro de US$ 40,2 milhões, ao passo que as mídias analógicas simbolizavam um lucro de US$ 14,5 milhões. Por meio da política de redução de custos e da substituição dos formatos, o CD balizou a superação da crise industrial à época. “Costuma-se explicar o fim da fabricação de discos de vinil aqui no Brasil como algo natural após o início da fabricação de CDs. Houve incentivo de vários setores, como o governo federal e as gravadoras, para a substituição do fonograma. Por exemplo, houve uma política do governo para estimular a compra de aparelhos para reprodução do CD”. Felipe Brandão explica que a transição entre as mídias se deu em meio a crises nacionais
política e econômica, influenciada por inúmeros fatores, inclusive, pelo fim proposital de produção de discos por algumas gravadoras. Os CDs foram um dos responsáveis pela superação da crise industrial. A cultura do vinil, logo, viu-se à margem da lógica central dos meios de produção e, consequentemente, do discurso midiático. Conta o próprio pesquisador que “há um certo ressentimento, uma reclamação dos amantes do vinil acerca dos discursos midiáticos que permeiam a cultura do vinil”. Entre 1989 e 1997, os LP’s derrocaram desde o auge do seu consumo até o fim de sua produção pelas fábricas instaladas no Brasil. A transição entre os fonogramas, representou, entre outros aspectos, a ‘perda’ de 80% de toda a produção musical em vinil no século XX, pois tal produção não fora digitalizada. Em 1996, ABPD já não contabilizava as vendas dos
discos produzidos em vinila no país, cenário configurado até hoje; no último levantamento divulgado pela Pró-Música – em relação ao mercado fonográfico brasileiro em 2015 -, não há dados referentes às vendas dos LP’s. A dificuldade em encontrar dados a respeito das produções e vendas dos discos de vinil no cenário brasileiro acentuou-
se após o fim da produção no fim dos anos 90. Em contato com a reportagem, a Polysom, fábrica carioca de propriedade da gravadora independente Deckdisc, informou que tanto a produção quanto a venda de discos de vinil do seu selo aumentaram no último ano em relação a 2015, ainda que os números sejam. Foram fabricados, em 2016, exatos 128
979 LP’s – um aumento de 5,6% - e vendidos 35 498 – acréscimo de 11,12%. Outra grande fábrica em solo brasileiro, a Vinil Brasil, sediada na Barra Funda, em São Paulo, respondeu aos contatos da reportagem informando que não tem os dados disponíveis. Em seu site oficial, a indústria informa que não estão aceitando pedidos, uma vez que os processos internos estão sendo finalizados.
Cultura - Periscópio
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O Padre que arrasta multidões
Conheça a história de Pierre, um jovem que apresenta ao povo um jeito diferente de ser católico Por Enrico Monteiro 140 Periscópio - Perfil
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A vida de Padre Pierre Natural de Juiz de Fora, mas com a infância e juventude em Rio Pomba, Pierre Maurício Almeida Cantarino foi um menino bagunceiro, que cresceu, fez curso de enfermagem e voltou para sua cidade natal. Em uma consulta, ouviu de uma paciente a sugestão de que teria jeito para padre. Mal sabia ela que esse desejo já existia em seu coração. Filho de Arcyr e Consoladora, cresceu com o dom da oratória. Amante de política, rendeuse ao sacerdócio. Ordenado em 2013, no dia 2 de março, ele vê nessa data uma marca em sua trajetória: foi o dia de seu nascimento e também o dia do mês em que sua mãe faleceu, em 2012. Uma perda que o abalou, mas não diminuiu sua fé, ainda mais quando descobre Nossa Senhora dos Impossíveis, encontrando nela um carinho materno. Sua caminhada começa na Catedral Metropolitana, sendo apontado por alguns como “um padre jovem, que andava de tênis”. Hoje aos 34 anos, Padre Pierre é pároco da Igreja de São José e tem atraído milhares de fiéis às missas de terça-feira, chamadas de Missa do Impossível. Houve até uma celebração com cerca de 20 mil pessoas, duas mil a mais do que a população da cidade onde cresceu. Devoto de Santa Terezinha, ao assumir a paróquia de São José encontrou uma igreja muito velha, tanto na estrutura, quanto no perfil dos fiéis, e se deu a missão de mudar isso. Com o trabalho que desenvolve junto aos paroquianos, reformou a igreja e ganhou fama entre os católicos, sendo reconhecido pela população das cidades próximas a Juiz de Fora e também por pessoas de outras igrejas e cultos. Além de pároco, comanda um quadro semanal na Rádio Globo, com duração de 15 a 20 minutos, falando do evangelho e rezando pelos fiéis que ligam deixando seus nomes e pedindo orações. Sem a batina, gosta muito de circo, teatro, shopping e ouvir músicas, mas avisa que é padre 24 horas, seja na igreja, seja fora dela. 142 Periscópio - Perfil
Fotos: Arquivo pessoal
A decisão de virar padre Pierre, já mais velho, abraçado com seus cachorros em Rio Pomba, onde cresceu
Pierre com seus irmãos: Catalina, Frederik e Junior
Na comemoração dos 80 anos de sua vó
Ele quando era bebê, com seus cabelos cacheados
De cara, Pierre já avisa que foi muito arteiro, brincando que seu batismo foi um pouco diferente do normal: “Tem um fato muito cômico na minha vida, que minha mãe dizia que minha madrinha não me batizou, ela jogou xixi na minha cabeça, porque eu sempre fui muito bagunceiro”. Ajudante na igreja desde pequeno, ele lembra que teve uma vida normal, sendo coroinha na Igreja, mas também brincando com todos na cidade, fazendo as coisas típicas de crianças e adolescentes. Sua irmã, Catalina Caldoncelli, se recorda do irmão na infância como inquieto. “Ele nunca estava dentro de casa, vivia na casa da família Prazeres, que é uma família antiga, na casa da Tia Lucinha. Ele era muito inquieto.” Pierre, quando pequeno, já foi atropelado por uma moto, o que causou pânico em sua família.
Porém, segundo sua irmã, “ele que atropelou a moto”, por causa de tal inquietude e o estilo “rueiro” dele. “Namorei, como todo jovem da minha idade namorou, trabalhei na prefeitura de Rio Pomba, vendia velas na Semana Santa. Foi uma vida de um jovem simples, vivenciando cada etapa, cada fase, com suas conquistas, restrições, frustrações, tristezas, mas também com seus desejos e seus sonhos”, fala Pierre. Com o desejo de ser padre, já quis cursar história e por isso até ajudou a montar um museu em Rio Pomba, mas crescendo, veio a vontade de vir para Juiz de Fora, fazer enfermagem, e, segundo ele, “com a idade, estando em uma cidade pequena, dá vontade de vir para uma cidade grande. Alguns amigos meus já tinham feito a experiência de morar aqui, aí você quer e ia deixando de lado um pouco a questão de ser padre.”
Infância e juventude
A vontade do sacerdócio sempre esteve com ele, mas a inocência, uma impressão de seminário, de ser um lugar grande, antigo, com corredores sombrios, o pouco contato com a família, de quem era muito próximo, o afastaram um pouco desse caminho. Com o tempo, a aproximação com a política, movimentos sociais e outras prioridades deixaram essa oportunidade ainda mais distante. Até que um certo dia, quando já cursava enfermagem, atendeu uma paciente que mudou o rumo de sua vida. “Ela disse pra mim: ‘Você tem vocação para padre’. Assustei-me com a palavra dela, fiquei pensando que nunca tinha comentado nada com ela sobre meu desejo. Perguntei o porquê, e ela falou que eu era muito carinhoso, atencioso no meu jeito de ser, tratando as pessoas com carinho. ‘Eu vejo você como padre’. As palavras daquela mulher me tocaram profundamente, porque era algo que eu já queria, algo que já existia no meu coração, mas que havia sido adormecido por diversos fatores e, a partir da palavra dela, aquilo suscitou de novo a vontade, desejo de aperfeiçoar, e assim foi.” Depois disso, ele terminou o curso técnico de enfermagem, no Colégio Pio XII, e procurou um padre, que o conduziu ao seminário. Lá, fez um ano de Discernimento Vocacional Específico (Dives), com psicólogos e padres, e, ao final, foi convidado para a experiência da vida comunitária no seminário. Sua irmã conta que foi uma surpresa para ela essa decisão: “Imaginava ele político, sempre estava envolvido com isso em Rio Pomba”. Perfil - Periscópio
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O caminho até o sacerdócio
Com quatro anos de filosofia e depois quatro de teologia, o seminarista tem toda a sua vida dentro do seminário. Pierre lembra que “tinha a oportunidade de ir na família duas vezes ao ano, mas assim é de fato abrir mão de outras coisas, porque sua dedicação e seu tempo são exclusivos ao seminário. Aos finais de semana, por exemplo, quando todo jovem sai, passeia, vai para festa, nós já temos a possibilidade de ir para uma paróquia, desenvolver o trabalho pastoral em uma comunidade.” Qualificando esses oito anos como muito bonitos, um tempo muito forte em sua vida, ele afirma que cresceu muito como ser
humano dentro do seminário, mas garante que lá não é o céu e que há inúmeros problemas. “Temos as dificuldades, de convivência, uma autoridade que nos é dada e questionamos, nossas questões pessoais. Não é uma fase que você entra e vive no sonho, há muitos questionamentos, muitas pessoas desistem, dá vontade de desistir, de sair. Mas acreditamos que a força de Deus, a oração e o esforço nosso nos ajudam a seguir até o fim.” Após as faculdades, realizou oito meses de trabalho pastoral, no chamado tirocínio (um “estágio”). Depois disso, foi ordenado diácono e provisionado a realizar seus trabalhos na
Catedral Metropolitana. Seis meses depois, no dia 2 de março de 2014, torna-se sacerdote em cerimônia realizada no mesmo local, onde ele exerceria seus primeiros passos presbiteriais. De sua turma de 12 pessoas no início do seminário, apenas ele tornarase padre. Sobre ser padre, ele comenta que sempre haverá dúvidas em seu coração: “Você também não sabe se é isso mesmo, até você se ordenar padre, e acredito que a dúvida perpassa o coração da gente até o dia que, de fato, for para junto de Deus. Certeza absoluta na vida, a gente não tem. É mistério, nunca teremos plena consciência dele”.
Três grandes eventos da vida de Pierre acontecerem nesse dia. Em 1983, ele nasceu, no Hospital Maternidade Therezinha de Jesus, no Bairro São Mateus. 29 anos depois, sua mãe viria a morrer, no dia de seu aniversário e, no ano seguinte, ele se ordenaria padre. Tudo em um mesmo dia, data que ele define como “um misto de muita coisa”. “É uma tristeza profunda. Eu não acredito, não trabalho com a concepção de perda, acredito na ideia de distância. Eu não acho que morreu, acabou, acho que morreu e haverá um recomeço. Então hoje minha mãe não está enquanto realidade, está enquanto saudade. Por outro lado, marca definitivamente minha vida, quando assumi o caráter de padre, a essência de ser padre. Dia 2 de março é o dia em que eu me tornei um sacerdote, algo que desejei, me esforcei, me aprimorei para ser, então é um coroamento”. 144 Periscópio - Perfil
“Minha mãe sempre foi algo muito determinante na minha vida. Ela é modelo, protótipo. Quem a conheceu e me conhece, sabe que eu sou muito parecido com ela, estilo, forma de ser. Era também um sonho da minha mãe que eu fosse padre”. Com essas palavras, ele faz memória de dona Consoladora Caldancelli de Almeida, sua progenitora. Pierre se lembra que não foi possível sua mãe vê-lo padre, pois ela faleceu quando ele estava terminando a fase de seminarista. Ele confessa que quase pensou em largar o seminário, mas acredita que ela o ajudou, intercedendo junto a Deus para ele. Emocionado, ele diz que sua mãe foi e é ainda uma presença muito forte na sua vida. “Minha mãe sempre foi e sempre será o modelo a ser seguido. Mesmo junto de Deus, ela ocupa um lugar muito importante e determinante para mim.” Mesmo parecendo muito forte,
Foto: Arquivo pessoal
O dia 2 de março
Consoladora, mãe de Pierre, não conseguiu realizar o sonho de vê-lo padre
ele demonstra quando sua mãe lhe faz falta, ressaltando que a saudade é muito presente: “Mas há a tristeza pela ausência, pela falta de um abraço, de um carinho. Às vezes chego em casa e, sozinho, não tenho para quem ligar, para contar um problema, coisas que fazia antes quando tinha minha mãe, e isso é algo que machuca. Não tenho problema com a morte, aprendi que ela não é o fim, mas o começo de uma vida que Deus preparou para nós. Mas a saudade é real e presente”.
Os primeiros passos do sacerdote Pierre
Em uma igreja tradicional, a Catedral, Pierre traz o estilo jovial, um novo jeito de evangelizar as pessoas. Podendo escolher entre o caminho tradicional e um modelo diferente, preferiu o segundo, mesmo que correndo riscos de não ser aceito pela comunidade. Porém, logo teve boa aceitação e adesão a essa nova maneira de rezar e evangelizar. “Ali consegui atrair um público grande, com os jovens, fazendo com que a Catedral, naquele período, tivesse outra cara, uma face jovial que até então era desconhecida. Eu mantive aquilo que era importante, que é necessário e essencial da tradição da Catedral”, recorda, com carinho, seu tempo lá.
Ele quase saiu da cidade O arcebispo metropolitano, Dom Gil Antônio Moreira, precisava de um padre para um trabalho pastoral na cidade de Chácara, e Pierre era o escolhido. Porém, após muitas conversas de algumas pessoas com o chefe da Igreja da região de Juiz de Fora, com apelo para a quantidade de jovens que a igreja havia conquistado, ele provisiona Pierre como pároco da Paróquia de São José, no Bairro Costa Carvalho, onde ele exerceria esse papel pela primeira vez, pouco depois de se tornar padre. Sobre esses momentos, ele recorda: “A saída da Catedral nos pegou de surpresa. O bispo precisava de um trabalho missionário em outra cidade e depois de conversarmos muito, eu disse que poderia servir a igreja de Juiz de Fora em outro lugar. O padre é ordenado para servir a Igreja, onde quer que ela precise, mas diante da necessidade maior de Igreja, que era aqui no centro, o bispo repensa e me convida a vir trabalhar como pároco na Igreja de São José”. Convite aceito e malas prontas para a mudança.
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“A missa do Impossível suscita no coração das pessoas e desperta na vida delas a garantia de que Deus anda junto. Cada dia mais gente busca esse Deus que é presente, real e está junto da gente” Pe. Pierre
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Fotos: Enrico Monteiro
Aproximação de sua missa com o estilo neopentecostal Assim que chegou, o padre teve a missão de reformar sua nova paróquia, e fez isso rapidamente
A nova missão
“Há uma diferença muito grande. Teve um novo avivamento, um levantamento.” É com essas palavras que Lucas Rangel, 18, auxiliar do pe. Pierre no altar define a chegada do novo sacerdote no local. Após quase 40 anos com o mesmo pároco (Monsenhor Hernani), o cenário se alterou, saindo um padre idoso para a entrada de um jovem, dando uma nova cara para a Igreja de São José. Lucas, que se batizou na própria igreja e sempre trabalhou no local, garante que a comunidade ficou surpresa com o estilo: “Vieram muitos jovens, era um padre diferente, animado, que se mistura com as pessoas, e que, principalmente, é amigo.” Sobre a sua chegada, o Padre Pierre lembra que foi um grande desafio, e ele teve receio do que poderia encontrar. “Cheguei muito confiante em Deus, e, quando assumi a paróquia, a primeira coisa que reconheci foi a necessidade de uma reforma estrutural, física e espiritual. A igreja estava visualmente comprometida, e escolhi começar pela mudança física. Em menos de um ano, eu tinha reformado toda a igreja. Acho que isso assustou as 148 Periscópio - Perfil
pessoas que estavam aqui”. Pierre trouxe pessoas de outras paróquias para trabalhar com ele, introduziu músicas com bateria e guitarra, vigílias na madrugada. A comunidade se espantou com essa nova forma de evangelizar. Segundo ele, algumas pessoas até se afastaram da igreja, porém, com o tempo, foram se aproximando do novo pároco. Dona Maria Aparecida Neves é frequentadora da Igreja há mais de 40 anos e se recorda que ainda há retaliação. “Muita gente até hoje não aceita, porque eles têm medo do novo, não gostam muito, o ser humano não gosta de muita experiência, gosta de acomodar. Mas nem Jesus Cristo agradou a todos, não é? Então trazer o novo é difícil”, opina.
“É um padre diferente, que se mistura com as pessoas, e que, principalmente, é amigo” Lucas Rangel
Questionado sobre as críticas que são feitas à sua missa, sobre a aproximação com os cultos evangélicos neopentecostais, ele afirma que não se preocupa com isso: “Não há regra para falar de Deus, não há maneira. Esse estilo não é do neopentecostalismo, esse estilo é do povo de Deus, que fala com Ele. Não trabalho muito com a concepção de que isso pertence à Igreja Católica, isso à Evangélica, isso ao espiritualismo. Não sigo o modelo evangélico, sigo o modelo do Espírito Santo, Deus suscitou para que fosse dessa forma, e é assim que a gente faz”, diz o padre, que garante respeitar quem pensa diferente. De acordo com o padre, durante a celebração, “tem quem feche os olhos, quem bata palmas, tem quem não faz nada, tem quem fique o tempo todo sério”, e reafirma: “Aqui o importante é que você venha e fale com Deus. Dificuldades, críticas e incompreensões existem em todo lugar, e eu sei muito bem lidar com isso”.
suas inovações, mas vê que as pessoas perceberam que tudo caminhou corretamente: “As pessoas daqui não acreditavam que viria alguém. ‘Padre, não vai vir ninguém aqui’, ‘Padre, fazer missa lá fora não tem jeito, não vai dar certo, a estrutura é muito difícil, muito grande’. E, com o tempo, elas foram vendo que era possível e acolheram Pierre lembra que recebeu essa nova forma de ser igreja, de muitos avisos na época de evangelizar.”
A Missa do Impossível
de louvar e agradecer a Deus, é ação do Espírito Santo, ação de Deus que nos inspirou naquele contexto a criar essa missa. É uma forma de ver que o trabalho foi reconhecido e deu certo”. Com católicos praticantes, não praticantes, pessoas de outras religiões, a missa é sucesso na cidade. Para se ter uma ideia, a última missa dos anos de 2015 e 2016 (celebrada na última terça-feira antes do Natal) reuniu cerca de 15 mil e 20 mil pessoas, respectivamente. “A missa do Impossível virou o que é pela ação de Deus. Suscitar no coração das pessoas e despertar na vida delas a garantia e certeza de que Deus anda junto, fez com que cada dia mais gente busque esse Deus que é presente, real e está junto da gente”, fala o padre.
Fotos: Enrico Monteiro
Iniciada em uma capela na Rua São João, ainda nos últimos meses de Catedral, a Missa do Impossível foi transferida junto com Pierre para a Igreja São José. Logo na segunda semana após sua chegada, já havia cerca de mil pessoas. “A primeira Missa do Impossível que celebramos lá fora, foi em cima de um caminhão com a tábua toda furada, correndo riscos de alguém se machucar, enfiar o pé no fundo de uma tábua, nem podíamos mexer direito”,recorda-se. Hoje, atraindo cerca de quatro a cinco mil pessoas por semana, a celebração é feita na área externa da igreja com fiéis ocupando o pátio e a Avenida 7 de setembro. “É de fato, um resultado maravilhoso, sem sombra de dúvidas, uma ocasião
Missa do Impossível forma um “mar de gente” na Igreja São José, no Bairro Costa Carvalho
Por volta das 15 horas, as primeiras participantes da missa já chegam à Igreja enquanto os funcionários da paróquia preparam a celebração, que acontece às 19h30 Desde cedo, toda terça, pessoas pedem a oração de Pierre em seu programa na rádio Globo
Idolatria? Esse carinho pelo pároco atinge tal nível que a Igreja de São José chega a ser conhecida como Igreja do Padre Pierre. Da mesma forma, a Missa do Impossível, como missa do Padre Pierre. Mas ele garante que isso não é uma idolatria por parte dos fiéis. “As pessoas sabem que Deus é Deus, agora o meio, ou a forma que as conduz a Deus, isso eu acho que é algo interessante, algo que deve ser respeitado”, comenta o padre, que lembra de uma época em que um sacerdote o fez voltar à igreja, quando ele já estava afastado. Por causa desse sacerdote, ele acordava seis e meia da manhã e deixava de ir a Rio Pomba aos finais de semana para estar presente em sua missa. Ele acredita que o sacerdote pode, sim, ser o responsável pelas pessoas irem para a missa, não há nada de ruim nisso. Em uma comparação, Pierre diz que para ir à sua casa existem vários ônibus que passam perto, mas um é melhor para você pegar, e, na igreja, existem diversos caminhos para chegar até Deus, e cada um pega o que melhor se adequa. Em uma segunda comparação, ele lembra de João e Cristo: “ As pessoas não adoram o padre Pierre, elas têm um carinho comigo, uma admiração, como João Batista. Quando João pregava, alguém chegou ao equívoco de achar que ele era o Messias, e ele dizia que não era, dava testemunho dele; não era a luz, dava testemunho da luz. E é isso que eu digo, eu não sou Jesus Cristo, o evangelho que eu prego é o de Cristo, não é o evangelho do Padre Pierre”. Perfil - Periscópio
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O carinho do Bom Pastor Caracterizado por seu jeito carinhoso com as pessoas, ele conversa com todos que o procuram, não importando horário e local, sendo comparado por seu auxiliar, o jovem Lucas, com o Bom Pastor, aquele que larga as suas 99 ovelhas e parte em busca de uma que está perdida. Esse carinho também é citado pela ministra da eucaristia Joana D’Arc Pereira, 54, que sempre pede conselhos a seu amigo Pierre: “Às vezes, vou falar dos meus filhos, e ele resume o que eu falei em uma palavra, bastando isso para eu entender”.
Ela também aponta que o caminho para que o religioso tenha tamanha consideração pelos fiéis é a sua forma de falar: “São pessoas muito diferentes que participam das missas, e que podiam nem ter a caminhada de Igreja, mas passam a ter. Ele fala a língua de cada pessoa, o Jesus que ele traz é tão vivo, que cada pessoa recebe de uma maneira diferente, mas de uma forma que a deixa alimentada. Essa maneira é verdadeira, pura, linda, tanto que nossa família só vai crescendo”, diz Joana, que conheceu o padre antes mesmo de ele virar seminarista, em sua antiga paróquia, e que até hoje o vê como “aquele menino que usava sandália franciscana e calça larga”. Lucas relata também que a comunidade tem muito receio em uma transferência do pároco: “O medo de nossa comunidade São José é perder o Padre Pierre. Já houve vários boatos que ele ia sair, o bispo iria tirar ele, mas ele desmente. Porém, esse medo é muito grande, de ele mudar, sair de perto da gente.”
Bate-Pronto Um Sonho? Construir o Santuário de Nossa Senhora dos Impossíveis. Pierre daqui a 5 anos? Trabalhando muito Palavra que te define Uma só é difícil, mas acredito que seja sonhador Uma decepção Quando as pessoas julgam sem conhecer Devoção a Santa Terezinha Enorme, grande e aumenta cada vez mais Nossa Senhora dos Impossíveis Aquela que, de maneira mais especial, soube me conduzir até Deus nos momentos que eu mais precisava. Foi de fato a mãe que eu havia perdido e que agora exerce o papel da mãe que acolhe, que dá carinho, que está junto como presença Pretende sair de Juiz de Fora? Por enquanto não, eu amo Juiz de Fora. Aqui aprendi o que é o conceito de carinho, aprendi o carinho das pessoas. Então, enquanto a Igreja me quiser aqui, vou ficar muito feliz, mas se amanhã ela achar que eu precise ir para outro lugar, desprendidamente, irei. Podendo ficar em Juiz de Fora, também fico feliz Como se define? Como alguém que sonha e corre atrás. Como alguém que luta pelo que quer, que não questiona, mas é muito verdadeiro. Aquilo que é, sempre será, e o que não é, pode ter certeza que não será. Perfil - Periscópio
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TROCANDO
Após escândalo de corrupção, comun
Em meio à realização dos Jogos O do Maria Lenk amanheceu com a á tentando limpar o palco das disput mentais, a solução foi esvaziar por novamente. Menos de um ano depo a cena se repetir. Dessa vez, metaf
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O A ÁGUA
nidade aquática busca reestruturação Por Mateus Bosse
Olímpicos do Rio, o centro aquático água esverdeada. Após quatro dias tas de polo aquático e saltos ornar completo as piscinas e enchê-las ois, o esporte aquático brasileiro vê foricamente.
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No início do mês de abril, a operação Águas Claras da Polícia Federal prendeu preventivamente o presidente da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos (CBDA), Coaracy Nunes, o diretor financeiro da confederação, Sérgio Ribeiro Lins de Alvarenga, e o coordenador técnico do polo aquático, Ricardo Cabral. Dentre as acusações apontadas pela Polícia Federal estão fraudes em licitações, corrupção passiva, associação criminosa, provável lavagem de dinheiro, sonegação fiscal e falsidade ideológica. Em meio às investigações, atletas, ex-atletas, treinadores, gestores e autoridades buscam reerguer a Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos e minimizar o impacto negativo da má gestão dos últimos anos na entidade. Sob o comando de um inteventor nomeado pela Justiça, a CBDA, agora coordenada pelo medalhista olímpico Ricardo Prado, tem como prioridade imediata a manutenção do patrocínio dos Correios. Atletas divulgaram carta aberta, clamando pelo cumprimento do calendário previsto para o ano de 2017. Alguns deles, como César Cielo, Thiago Pereira e o ex-nadador Gustavo Borges, têm apresentado propostas de gestão junto à CBDA. ENTENDA O CASO No dia 6 de abril de 2017, a Polícia Federal deflagrou a operação Águas Claras, que prendeu preventivamente membros da cúpula da CBDA. O presidente Coaracy Nunes, o diretor financeiro, Sérgio Ribeiro Lins de Alvarenga, e o coordenador técnico do polo aquático, Ricardo Cabral foram presos no Rio de Janeiro. O diretor da natação e superintendente executivo Ricardo de Moura é tido como foragido. Em entrevista coletiva, a procuradora da República Thaméa Danelon disse que as investigações foram iniciadas há cerca de um ano após denúncias recebidas pelo Ministério Público
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Federal e pela Polícia Federal. A apuração tinha por objetivo verificar se os repasses recebidos junto ao Ministério do Esporte eram devidamente empregados pela CBDA. Constatou-se, então, que parte do valor não beneficiava os desportos aquáticos. Dentre as práticas relatadas estavam a de superfaturamento de passagens aéreas e aluguéis de vans e ônibus para o transporte de atletas. O dono da agência Roxy turismo foi conduzido coercitivamente à Polícia Federal em São Paulo. Equipamentos que teriam sido comprados para o polo aquático, no valor de R$ 1,5 milhão jamais foram entregues. Segundo o delegado regional de combate ao crime organizado Rodrigo de Campos
Costa, não existe nenhum indício de entrega dos equipamentos por parte da empresa contratada ou de recebimento por parte da CBDA. LICITAÇÕES FRAUDULENTAS No processo de licitação, a empresa vencedora e beneficiada pelo esquema corrupto enfrentava duas empresas fantasmas. Nos endereços das empresas indicadas como concorrentes funcionam estabelecimentos que nada têm a ver com os esportes aquáticos. Um deles é de um pet shop. O dono da empresa vencedora das licitações fraudadas também foi conduzido coercitivamente à Polícia Federal. Três convênios com o Ministério do Esporte que
somam mais de R$ 5 milhões tam- bas públicas não pode continuar.” bém estão sendo investigados. NOVOS RUMOS PATROCÍNIOS Em meio à grave crise política Segundo a procuradora Thaméa nos esportes aquáticos, a Justiça Danelon, nos últimos cinco anos nomeou um interventor para ados Correios, patrocinador de lon- ministrar interinamente a Conga data da CBDA, destinaram federação Brasileira de Desportos mais de R$ 62 milhões à entidade. Aquáticos. O advogado Gustavo No início do ano, Poliana Okimo- Licks assumiu o comando da ento, atleta de maratonas aquáticas e tidade por tempo indeterminado. única medalhista olímpica da Rio Após a nomeação, o administrador 2016, representando a CBDA, teve se reuniu com os coordenadores seu patrocínio cancelado sob ale- dos cinco esportes da CBDA, que gação de falta de verba. O patrocí- decidiram, por unanimidade, nonio dos Correios à entidade, entre- mear o medalhista olímpico Ricartanto, foi renovado em fevereiro do Prado como Coordenador Geral e tem valor de R$ 11 milhões. de Esportes da CBDA. Ricardo participou dos comitês de organização CONSEQUÊNCIAS do Pan de 2007 e dos Jogos Olímpicos de 2016. A primeira missão Além do prejuízo financeiro da dupla foi evitar o cancelamento causado pela má gestão da Con- do patrocínio dos Correios à entifederação Brasileira de Despor- dade. Após reunião, a patrocinatos Aquáticos, o aspecto técnico dora exigiu como contrapartida e o ciclo olímpico de preparação maior transparência na gestão. Em para a Rio 2016 também foram maio, haverá um novo encontro afetados. Para Alexandre Pussi- para a decisão final dos Correios. eldi, comentarista de natação dos A manutenção do incentivo é canais Sportv, já existiu, nos últi- fundamental para que o calendário mos três anos, uma queda nacio- de 2017 seja cumprido pela Connal. Dentre os exemplos, Alex- federação. Em carta aberta, atandre cita a ausência da Seleção letas das modalidades aquáticas Brasileira de Polo Aquático no demonstraram preocupação Mundial Júnior em 2015 (na épo- com o futuro e pediram socorro: ca, a seleção era bicampeã Pana“Queremos que as regras esmericana), a ausência no Campe- tatutárias sejam cumpridas sem onato Mundial Júnior de Águas manobras, almejamos que nosAbertas de 2016 (o país havia sos dirigentes pensem no esconquistado medalha na edição porte exclusivamente, cobiçaanterior), e a não realização dos mos que os atletas e técnicos Campeonatos Brasileiros de Na- sejam respeitados, e que o dintação de Inverno em 2016 e 2017. heiro público seja corretamente Alexandre Pussieldi afirma empregado - visando ao desenvolvique o prejuízo poderá ser melhor mento dos Desportes Aquáticos.” analisado em um ou dois anos: “Requeremos por fim, pela “O mal causado é intrínseco. Nós garantia da manutenção dos vamos precisar de uma reestru- calendários estipulados, com as turação por completo do esporte efetivas realizações das comporque este modelo de gestão está petições marcadas; pela correta e definitivamente falido. Este mod- transparente eleição da comissão elo que depende de 98% de ver- de atletas e por uma mudança de
nova presidência da CBDA, além de uma intervenção em conjunto dos Ilustres e Eminentes Senhores, para que não nos falte a verba básica no intuito de CONTINUARMOS INSPIRANDO GERAÇÕES.” PROPOSTAS Alguns atletas, como César Cielo, Thiago Pereira e o ex-nadador Gustavo Borges, vêm se reunindo com o administrador interino da CBDA Gustavo Licks e o novo Coordenador Geral de Esportes Ricardo Prado para a apresentação de propostas de gestão. Dentre as princiais propostas, elaboradas com o auxílio de Sami Arapi, ex-presidente da Confederação de Rugby, estão o impedimento da contratação de parentes próximos, da contratação de empresas pessoais de membros do conselho administrativo e a criação de uma Assembléia Geral. Alexandre Pussieldi classifica a proposta como interessante e profissional, mas alerta para a impossibilidade da implantação integral imediata das medidas devido à ausência de uma cultura para essa implantação: “ Para mim, é o modelo ideal. Não tenho dúvidas, mas não sei quanto tempo demoraríamos para a adaptação a esse modelo.” A expectativa de atletas, treinadores e amantes dos esportes é que as gestões fraudulentas e os desvios de verba pública fiquem no passado. Pussieldi afirma, no entanto, que o caso da CBDA é apenas mais um: “A corrupção é sistêmica e endêmica. Existem outras entidades”. O comentarista celebrou o momento de combate à corrupção nos esportes brasileiros: “A gente tem que fazer isso, isso é bom. Nós vamos sair dessa. O esporte aquático brasileiro é forte, tem representatividade e nós vamos sair dessa. Acho que nós vamos ficar mais fortes, mais organizados.” Perfil - Periscópio
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Com a intenção de ilustrar a rotina de um atleta profissional da natação brasileira, a Periscópio conversou com o nadador Pedro França, sete vezes campeão nacional na categoria, campeão sul-americano, vicecampeão mundial júnior e duas vezes medalhista em campeonatos brasileiros adultos. O atleta de 22 anos que atualmente defende o Esporte Clube Pinheiros-SP conta detalhes da sua história de vida, carreira e comenta a conturbada situação política vivida pelos esportes aquáticos brasileiros após as denúncias do esquema de corrupção na CBDA. Confira a íntegra da entrevista: Nome: Pedro de França Vieira Clube Atual: Esporte Clube Pinheiros- São Paulo Data de nascimento: 01/02/1995 Periscópio- Quando começou a praticar a natação? Por qual razão? Pedro Vieira - Comecei a prática de natação aos 4 anos por indicação médica. Quando começou a competir? Comecei a competir por volta dos 11 anos, foi também quando abandonei as aulas de futebol para me dedicar somente ao treino de natação. Por quais clubes pelos você já passou? Iniciei os treinos pela equipe da Pró-Record, em São Bernardo. Em seguida, mudei para a equipe do MESC, também em São Bernardo, onde fiquei por um ano. Meus dois anos seguintes foram pela equipe de São Caetano do Sul, onde obtive bons resultados que me deram a chance de integrar a equipe do 156 Periscópio - Perfil
Corinthians, clube pelo qual defendi por cinco anos. Atualmente defendo a equipe do Esporte Clube Pinheiros/SP.
Minha rotina de treinos consiste em nove treinos semanais de água, e mais três treinos de musculação, ou seja, três dias por semana. Além dos treinos pela manhã, volto para Quando se tornou atleta profis- a água à tarde. Nesses dias, também sional? têm os treinos de musculação, que Na categoria Juvenil, quando passei são logo após o treino da manhã. meus dois anos em São Caetano, já sentia um certo profissionalismo Além dos treinos, o que mais devido à dedicação e ao tempo que faz parte da rotina de atleta? ( a natação me tomava. Porém, o nutrição, fisioterapia, psicoloprimeiro salário veio só no ano se- gia, etc.) Essas atividades norguinte, quando entrei para a equi- malmente são oferecidas pelos pe do Corinthians e passei a dedi- clubes ou são custeadas indicar 100% da minha vida à natação. vidualmente? Hoje é indispensável o acompanQuais são as principais dificul- hamento de profissionais de nudades enfrentadas por quem trição, pisicologia e fisioterapia vive profissionalmente da na- no atleta de alto rendimento, e, tação? normalmente, os clubes de mais Fica meio clichê, mas realmente a destaque no cenário nacional já infalta de incentivo e de organização corporaram esses profissionais ao do governo e das federações são re- staff da equipe de natação. alidade na vida não só do nadador, mas de todo atleta de esporte olím- O salário de nadador permite pico. autonomia financeira sem a necessidade de patrocínios, parceConte um pouco da sua rotina rias ou até suporte da família? de treinos: Os clubes fornecem moradia
ou os atletas se organizam em repúblicas de maneira independente? O salário depende muito dos resultados alcançados, e posso dizer que precisei chegar a grandes resultados, não só nacionais, como internacionalmente para conseguir me sustentar sozinho.
Todos falavam que, para os brasileiros, estar em uma final de mundial já era motivo para comemorar e se orgulhar, mas eu sempre soube que podia ir mais além e sonhar com uma medalha!
Melhores campanhas em campeonatos brasileiros absoluto? Lista das principais conquistas: Desde 2013, eu faço parte das fi- 7 títulos nacionais de categoria nais A dos campeonatos absolutos, consecutivos porém a medalha veio só no Open -Campeão Sulamericano de 2016 nas provas de 100 e 200 - 3 medalhas de prata (100 bor- borboleta.” boleta, revezamento 4x100 meley e 50borboleta) no Multinationals Qual a estrutura fornecida pela Youth Swimming Meet realizado CBDA em competições internada Ucrânia cionais? Além disso, existe um -Vice-campeão Mundial Júnior em suporte no dia a dia do atleta? Dubai 2013 (100 borboleta) de que forma? Campeão do Festival Panamerica- Sempre em que estive representanno da Juventude realizado no Méx- do o Brasil pela CBDA nos foi ico oferecido uma ótima estrutura em - 2 Medalhas de prata no Open competições (hotéis, transporte, Correios 2016 ( 100 e 200 borbole- staff). Porém, fora de competições ta). internacionais, os atletas ficam esquecidos pela federação, e a orgaQuando estreou pela Seleção nização de campeonatos nacionaBrasileira? Participou de quan- is nunca passa desapercebida por tas competições pela CBDA? conta de algumas falhas de equiEstreei em 2013 em uma com- pamentos (placar) ou cronogramas petição na Austrália pelo Comitê que nao favorecem os atletas! Olimpico (COB). No mesmo ano, fiz minha estreia pela CBDA no Qual o seu maior sonho como Sul-Americano realizado no Chile, atleta? além do Mundial Júnior e do Mul- Como atleta de esporte olímpico, tinationals Youth Swimming Meet. com certeza, a participação nos jogos é meu maior sonho, não só parConte um pouco da emoção ticipar como fazer uma final. do título sulamericano e do vice-mundial júnior Quais são os seus principais Estar no lugar mais alto do pódio e ídolos? ouvir o hino nacional te dá a sen- Como nadador, na minha geração, sação de dever cumprido. Ao mes- é muito difícil não considerar o mo tempo, um orgulho em repre- Phelps como ídolo. Mas Gustavo sentar o seu país e um patriotismo Borges e Cesar Cielo também são enorme. heróis para mim!” -“ Já no mundial, eu fiquei meio sem reação, sem noção do feito Sobre a crise na CBDA, as que tinha acabado de realizar. Fui a prisões de ex dirigentes, a carta única medalha do brasil na edição aberta divulgada pelos atletas. e em uma competição fortíssima. Foi comprovado um superfatu-
ramento de passagens aéreas e de transportes com vans e ônibus. Os atletas teriam sido submetidos a voos em classe econômica com muitas escalas, o que desgasta fisicamente e prejudica o desempenho. Você viveu algo parecido? Conhece atletas que se queixam da qualidade de serviços prestados pela confederação nos últimos cinco anos? Nunca passei por isso com a federação e desconheço atletas da natação que tenham passado por algo parecido com problemas de voo e etc. mas isso realmente aconteceu em outros esportes aquáticos e ficou tudo comprovado. Atualmente sob o comando de um interventor nomeado pela justiça, na visão dos atletas, qual o caminho a ser seguido pela CBDA? Na minha concepção como atleta a CBDA precisa de uma reformulação geral, renovação é a palavra, o estatuto da federação é extremamente ultrapassado. Na carta aberta divulgada, os atletas manifestaram a incerteza com o futuro. O maior medo é que as competições previstas no calendário de 2017 sejam afetadas e até canceladas? zTodas as competições nacionais levavam o nome dos Correios, é claro, devido ao patrocínio. Houve alguns rumores de um possível cancelamento de campeonatos nacionais, o que, até então, não se confirmou. Contudo, pelo critério de convocação para o mundial de Budapeste, irão apenas oito atletas entre masculino e feminino, não me lembro de uma delegação tão pequena assim nos últimos anos. Bons atletas ficarão de fora dá competição como reflexo de toda essa crise, com certeza. Perfil - Periscópio
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ANO 2 | Nº 4 | MAIO 2017
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ACESSIBILIDADE
No auge das discussões dos direitos iguais e da inclusão para todos, deficientes são
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deixados de lado
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AFROTOMBAMENTO Quando as negritudes pintam a Universidade como forma de resistência