ANO 1 | N°2 | AGOSTO 2016
Alistamento para transexuais
População LGBTi enfrenta preconceitos até mesmo com legislação, como a que obriga o alistamento aos 18 anos.
Os 50 anos do Grupo de Teatro Divulgação
Uma viagem investigativa pelas cinco décadas de um dos grupos de teatro mais longevos do país.
Editorial
EXPEDIENTE Revista Laboratório da Faculdade de Comunicação Social da Universidade Federal de Juiz de Fora, produzido pelos alunos de Técnica de Produção em Jornalismo Impresso. Reitor Prof. Dr. Marcus David Vice-Reitora Profª. Dra. Girlene Alves da Silva Diretor da Faculdade de Comunicação Social Prof. Dr. Jorge Carlos Felz Ferreira Vice-Diretora Profª. Dra. Marise Pimentel Mendes Coordenadora do Curso de Jornalismo Integral Profª. Dra. Claúdia de Albuquerque Thomé Chefe do Departamento de metódos aplicados e técnicas laboratoriais Profª.Dra. Maria Cristina Brandão de Faria Professores Orientadores Prof. Me. Guilherme Moreira Fernandes Profª. Me. Marise Baesso Tristão Projeto Gráfico Leticya Bernadete, Matheus Bertolini e Paula Breviglieri Editoras Carolina Tosetti, Caroline Ferreira e Larissa Garcia Reportagem Carla Gonçalves | Carolina Leonel Carolina Tosetti | Caroline Ferreira Igor Santos | Larissa Garcia Leticya Bernadete | Mariana Dias Mariana Meirelles | Matheus Bertolini Paula Breviglieri | Pedro Soares Raquel Cataldi | Ruth Gonçalves Victor Ferreira
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COletivo de Marinheiros
iberdade, empatia, respeito e coletividade. Através dessas quatro palavras é possível repensar uma sociedade melhor. No entanto, apesar de serem bonitas enquanto faladas, é preciso que sejam praticadas hoje, agora e em todos os dias. A Periscópio traz em sua segunda edição relatos e detalhes pouco debatidos da comunidade e militância LGBTI. Como marca da coletividade voltada para a igualdade social, a série de entrevistas e pesquisas feitas pelos repórteres Carolina Tosetti e Matheus Bertolini traz histórias impactantes da realidade do alistamento militar de pessoas transexuais, que ainda é obrigatório e não amparado por nenhuma legislação no Brasil. Minas Gerais é o terceiro estado brasileiro com mais denúncias de violência à população LGBTI desde 2011 no país, realidade que vem sendo cada vez mais debatida com a grande aderência destas pessoas aos coletivos. Nessa edição, trouxemos também o trabalho de dois grupos de teatro que nos inspiram e renovam as motivações para acreditar que é possível sermos seres humanos melhores. O Grupo Divulgação completou 50 anos, com uma trajetória de lutas e conquistas através da arte. No dossiê de Victor Dousseau, que também é ator do grupo, é possível conhecer uma belíssima história contada pelos seus integrantes. Na reportagem de Carolina Leonel, um
perfil do grupo Corpo Coletivo, que busca no teatro praticar e pesquisar um trabalho autoral, com liberdade criativa e de linguagem e acreditam que “ Tudo o que vivenciam e enxergam no outro pode vir a ser material de criação”. Além de diversas reportagens interessantes e aprofundadas, criadas pelos alunos do Mergulhão de Impresso, orientados pelos professores Marise Baesso e Guilherme Fernandes. E o que norteou nosso trabalho foram exatamente as quatro palavras citadas. Cada repórter teve a liberdade para escolher o assunto e abordá-lo, de maneira ética e coerente, sendo verdadeiros jornalistas. Empatia para lidar com as fontes, entendendo suas emoções e histórias. Cada um dos entrevistados, por mais simples que fosse, tinha em si uma bagagem rica de ensinamentos e reflexões. Respeito, acima de tudo, pelo leitor que procura sempre um trabalho humanizado e traduz suas inquietações e pensamentos. Respeitando também nossas fontes que muitas vezes são lançadas a margem da sociedade e não são ouvidas por que falam a verdade que incomoda. E finalmente a coletividade de todos que trabalharam nesta edição. Cada repórter, editor e diagramador que deixou em suas palavras e ideias um pouco de si, concretizando um projeto árduo, porém prazeroso. Juntos construímos o projeto final, o que sozinhos não conseguiriamos. Boa leitura
04. Entre fé e religião
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Medicina busca provar a importância da espiritualidade para tratamento do corpo
Medicina além da técnica
10. E agora? Conheça as diferenças entre parto normal e parto cesariano 38. Grupo Divulgação 50 anos - como chegamos até aqui Uma viagem investigativa pelas cinco décadas 54. Sustentando fardos, vestindo fardas População LGBTi enfrenta preconceitos até mesmo com legislação como a que OBRIGA o alistamento militar aos 18 anos 62. Corpo Coletivo O teatro como projeção do humano 68. De Juiz de Fora para o mundo
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Cidade é sede de nove delegações Olímpicas
Resgatando Raízes
Cada vez mais pessoas procuram modelos alternativos
74. Em busca de uma vida sustentável e longe do estresse à rotina dos grandes centros 79. M de mulher, M de medo: A violência que não se apaga Relato de vítima de violência alerta para o sofrimento silencioso dessas mulheres 83. Vencendo a violência escolar com a inclusão da comunidade Colégio do Santa Cândida envolve famílias 87. Esforço a toda prova Atletas falam da sua preparação para o triathlon, esporte que envolve três modalidades
30 História de Domingo
91. Som na Vitrola Qualidade sonora, saudosismo e charme motivam a volta do mercado de vinil
Seções 04 Comportamento
62 Teatro
10 Gravidez
68 Rio 2016
17 Medicina
74 Sociedade
25 Cabelo
79 Violência
30 Feira
83 Cidadania
38 Dossiê
87 Esporte
54 Gênero
91 Música
FOTO: PEDRO SOARES
ENTRE FÉ E CIÊNCIA Leticya Bernadete
Uma dor que simplesmente passou, uma lesão sem volta que foi curada, uma doença que deixou de existir... Tudo sem explicação clara, ao menos científica. As curas espirituais ganharam força no Brasil a partir da década de 1950, depois que Zé Arigó começou a realizar cirurgias por intermédio do espírito do Dr. Fritz, mas esse tipo de trabalho espiritual sempre foi um quebra-cabeça para a ciência.
Comportamento
FOTO: LETICYA BERNADETE
Emílio teve prolapso mitral, doença cardíaca em que a válvula mitral não fecha, causando taquicardia. Fez tratamento espiritual com dona Isabel por um período de tempo, tomando passes e sempre participando das reuniões abertas do centro espírita da “A Casa do Caminho”. Nunca mais teve nenhum problema com o coração. Ele também recorda de um quisto sinovial que teve no pulso. Não conseguia dirigir e fazer outras atividades do tipo por conta da dor. Ao mostrar para dona Isabel, ela apenas fez uma massagem sobre o caroço. Horas depois, o quisto despareceu, e Emílio não sentia mais dor. Há casos em que o problema continua evidente, mas as pessoas não sofrem mais com isso, como aconteceu com Alessandro Arbex. Ele teve os ligamentos do menisco do joelho direito rompidos. Sentindo muitas dores, estava se preparando para fazer uma cirurgia. Procurou dona Isabel para receber tratamento espiritual, apenas para que tudo desse certo durante a operação. No dia seguinte, após ter tomado pas-
Placa da entrada da Comunidade Espírita “A Casa do Caminho”. A frase, da médium Isabel Salomão, explica o funcionamento do tratamento espiritual.
SAIBA MAIS FOTO: ARQUIVO - A CASA DO CAMINHO
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os 52 anos, o advogado Emílio Carlos Garios presenciou vários acontecimentos na Comunidade Espírita “A Casa do Caminho”, localizada em Juiz de Fora. Tudo começou há 35 anos, quando, por problemas familiares e pessoais, procurou Isabel Salomão de Campos, que o acolheu e ajudou a restabelecer sua vida. Dona Isabel, hoje com 92 anos, é uma médium que ficou conhecida nacionalmente por seu trabalho de cura e marcou a vida de quem a conheceu, não apenas por seu amparo, mas especialmente por seu altruísmo, algo que sempre ensinou a quem passava pela comunidade. “Eu ficava muito aqui (A Casa do Caminho), gostava de trabalhar aqui, e devagar fui me enturmando em um ambiente que me fez tão bem”, conta Emílio. “Era mais um restabelecimento, uma estrutura para voltar para o mundo. Dona Isabel ensina que devemos viver no mundo sem ser do mundo, porque o mundo é nossa oficina. Temos que conviver com as pessoas. O crescimento moral está na convivência”, explica.
D. Isabel Salomão de Campos, fundadora e diretora -presidente da Comunidade Espírita “A Casa do Caminho”, nasceu em Rochedo de Minas, cidade do interior mineiro, em 1924. As primeiras manifestações mediúnicas começaram quando tinha 9 anos, quando via e ouvia “coisas”. Desde pequena procurava ajudar ao próximo, tendo criado uma escola em sua própria casa para educar crianças carentes da redondeza. Foi quando mudou para Juiz de Fora, aos 17 anos, que conheceu a Doutrina Espírita, tomando conhecimento do que seriam as “coisas” que a acompanhavam desde criança. Anos após casar-se com Ramiro Monteiro de Campos, também espírita, fundaram “A Casa do Caminho”. Muitas pessoas procuravam por ela para pedir ajuda, o que a levou a começar um trabalho toda quarta-feira, de orientação e esclarecimento sobre a doutrina. Na comunidade, Isabel também fundou o “Lar do Caminho”, para abrigar crianças e adolescentes em situação de rua, oferecendo auxílios desde alimentação à educação. 5
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Comportamento
Toda a eternidade começa na alma. Muitas vezes é preferível você ter o conhecimento do Evangelho, porque através dele vai se curar. Você se liberta das mazelas que te prendem e fazem adoecer sua alma. É a medicina do Cristo, algo que a medicina terrena às vezes não consegue explicar. Giovanni Carlo Guercio - farmacêutico bioquímico
se da médium, Alessandro não sofria mais com nenhum incômodo. “Isso tem uns 12 anos, e nunca mais senti dor. Hoje eu sou tenista, a lesão continua em evidência, mas não tenho nada do quadro sintomático”, diz. “Eu não sinto nada”. Algo que também marcou a vida de Alessandro foi o nascimento do filho, hoje com 15 anos. Na época, sua esposa estava com sete meses de gravidez e, de acordo com os médicos, tudo estava correndo bem. Um dia se encontraram com dona Isabel, e ela, notando o inchaço da mulher de Alessandro, os avisou que não era normal e deveriam procurar um médico. Os exames constataram que a placenta estava amadurecendo antes da hora, mas que poderiam aguardar algumas semanas antes de fazer o parto. “Passamos essa res-
posta do médico para dona Isabel, e, na mesma hora, ela falou: ‘vocês não vão esperar 15 dias, não vão esperar sete dias, não vão esperar nem dois dias. O bebê está mal aí dentro, tem que sair’. O médico, que é amigo nosso, falou que nenhum outro do país tiraria com aquele quadro, já que ele estava relativamente bem”, conta Alessandro. O casal resolveu fazer o parto mesmo assim, assumindo as responsabilidades com o médico. Segundo Alessandro, o bebê se encontrava em estado de sofrimento fetal, e não havia mais nenhuma gota de líquido amniótico. “Ele ficou alguns dias na UTI, mas não teve nenhuma lesão”, explica. Giovanni Carlo Guercio, farmacêutico bioquímico, teve pedras no rim e no ureter, e sofria com cólica renal. O efeito de remédios como o Buscopan, in-
dicados para dor, não duravam, o que o levou a procurar dona Isabel. Após telefonar para a médium, adormeceu e enquanto estava na cama, ela foi até Giovanni e aplicou um passe. No dia seguinte, não existia mais dor. Ao procurar o médico e realizar novos exames, constatou-se que as pedras também haviam sumido. Mesmo sendo um profissional da saúde, a única explicação que Giovanni dá é a espiritual. “Dona Isabel sempre nos fala que toda a eternidade começa na alma. Muitas vezes, é preferível você ter o conhecimento do Evangelho, porque, através dele, vai se curar”, diz. “Você se liberta das mazelas que te prendem e fazem adoecer sua alma. É a medicina do Cristo, algo que a medicina terrena, às vezes, não consegue explicar”, completa. FOTO: ARQUIVO - A CASA DO CAMINHO
Localizada em Juiz de Fora, a Comunidade Espírita “A Casa do Caminho” é formada por um Centro Espírita, pela Livraria e Editora J. Herculano Pires, pelo Centro de Estudos Espíritas Léon Denis e pelo Lar do Caminho
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Comportamento
O passe, fundamental no tratamento espiritual, funciona como uma doação de energia de outros espíritos através do médium
balho do Espiritismo é justamente fazer com que as pessoas se descubram como seres eternos e procurem crescer espiritualmente. O tratamento espiritual oferecido pela “A Casa do Caminho” e outros centros espíritas consiste na tomada de passes e águas fluidificadas. O passe é uma doação de energia de outros espíritos através dos médiuns, espíritos estes que se dispõem a estar presentes para ajudar as pessoas. A água tem a capacidade de reter fluidos espirituais que também auxiliam no tratamento. Segundo Silvio, outro passo
para a melhora está relacionada à mudança interior, à evangelização e a busca por equilíbrio e, novamente, o ensinamento de dona Isabel sobre “viver no mundo sem ser do mundo” se aplica. “Se você não muda interiormente e não busca uma transformação íntima, o desequilíbrio que te trouxe a doença vai continuar”, diz. “Um ser humano equilibrado se afasta das doenças. Não nos impede de ficarmos doentes, porque como qualquer máquina, vamos morrer por defeito de algo. A diferença está em como vivemos.”
FOTO: LETICYA BERNADETE
O Espiritismo explica que o trabalho da cura espiritual acontece por uma tomada de postura e de valores que se perderam ao longo da vida das pessoas. Quando reencarnados, os espíritos assumem compromissos e recebem todo o amparo necessário para cumpri-los, mas acabam tomando rumos diferentes dos que deveriam seguir. Ao se distanciar desses compromissos, começam as cobranças espirituais que interferem no corpo. De acordo com Silvio Rodrigues da Costa Júnior, médium na “A Casa do Caminho”, a doença, muitas vezes, é uma forma de despertar o indivíduo para algo que está errado, ou para fazê-lo crescer, e não deve ser visto como um castigo de Deus. “Deus, na sua sabedoria imensa, Pai amoroso e bom, não está aí para judiar de nenhum de seus filhos”, explica. “Mas nós somos filhos rebeldes, então, às vezes, tomamos atitudes e condutas erradas, e isso nos leva ao desequilíbrio. O desequilíbrio emocional nos leva à doença no corpo físico”. O desconhecimento da razão das dificuldades também é tido como uma causa do sofrimento. O tra-
ILUSTRAÇÃO: MARCO AURÉLIO ALEXANDRE
Tratamento Espiritual
"A Casa do Caminho" realiza reuniões públicas duas vezes por semana, sobre o estudo do Espiritismo
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Comportamento
O que a ciência tem a dizer
ARTE: LETICYA BERNADETE
Se existe um ponto em que a explicação religiosa e científica concordam é de que a melhor aceitação de uma doença ajuda no tratamento. Tal pensamento pode fazer com que a pessoa tenha uma atitude mais ativa no enfrentamento da doença e se sinta mais encorajada, de acordo com o psiquiatra e parapsicólogo Alexander Moreira-Almeida. Alexander é fundador e diretor do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Um de seus primeiros trabalhos relacionados ao tema foi a respeito de João Teixeira de Farias, ou João de Deus, um dos mais famosos cirurgiões espirituais do Brasil. Segundo Alexander, pesquisas nessa área ainda são escassas. “Há uma série de possíveis explicações para esse fenômeno (cirurgia espiritual). Ainda não tem uma explicação clara e única, até porque é um assunto pouco estudado. Esse é um tema que precisa, sem dúvida nenhuma, ser investigado”, afirma.
Uma das explicações está relacionada com o histórico da doença, em que a pessoa iria se curar naturalmente. A busca por outras formas de tratamento também auxilia. Além do espiritual, métodos alternativos que colaborem no processo de cura das pessoas. Outra possível justificativa para as curas espirituais é o chamado “efeito placebo”. A crença de que algo irá curar o indivíduo, de fato, realiza esse trabalho. “A pessoa acredita muito em algo, e a própria mente dela mobiliza no seu próprio corpo recursos de recuperação, de melhoria”, explica Alexander. “O efeito placebo é até bom, por conta dessa capacidade interna de cura e de restauração do problema”.
Qualidade de Vida A espiritualidade e religiosidade impactam na vida das pessoas de várias maneiras, inclusive na saúde. Segundo Alexander, existem mais de 3 mil estudos no mundo a respeito do assunto, e a maioria aponta que pessoas com maiores níveis de envolvimento religioso tendem a ter melhor
qualidade de vida e saúde. “O nível de envolvimento pode ser a frequência, o quanto a pessoa faz prática religiosa como leitura, como orações, ou o quanto a pessoa procura vivenciar plenamente na sua vida seus anseios religiosos”, explica. Melhores graus de saúde estão relacionados com depressão, suicídio, uso de álcool e outras drogas, que apresentaram valores menores entre as pessoas com maior envolvimento religioso. Apresentam, inclusive, um nível maior de longevidade. De acordo com Alexander, a qualidade de vida se relaciona também com o Coping, que consiste em um conjunto de estratégias para lidar com situações de estresse. Ao invés de melhorar a qualidade de vida, copings negativos estão associados a piores resultados. “Existem pessoas que enxergam os problemas como castigo de Deus, ou pessoas com postura passiva, que ficam de braços cruzados para esses problemas. Esta maneira de lidar com a religião traz uma pior qualidade de vida”, diz Alexander.
Mecanismos propostos para a relação Religiosidade e Espiritualidade – Saúde Hábitos de saúde: melhor dieta, menor uso de substâncias e envolvimento com situações violentas e de risco Suporte Social: maior e mais profunda rede social, trabalho voluntário Estratégias cognitivas: crenças que promovem a auto-estima e provém significado à vida e às situações estressantes Práticas religiosas: oração, perdão, meditação, transes
Coping Religioso (estratégias para lidar com problemas)
Positivo Tentei encontrar um ensinamento de Deus no que aconteceu
Negativo Questionei o poder de Deus
Fiz o que pude e coloquei o resto nas mãos de Deus
Fiquei imaginando se Deus tinha me abandonado
Pedi perdão pelos meus erros
Esperei que Deus resolvesse os problemas para mim
Busquei dar apoio espiritual a outras pessoas
Questionei-me se minha comunidade religiosa tinha me abandonado
Orei para encontrar uma nova razão para viver
Imaginei o que teria feito para Deus me punir
Fonte: "Espiritualidade e Saúde Mental: o que as evidências mostram?", de Alexander Moreira-Almeida e André Stroppa
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Comportamento
Busca pela religião
FOTO: INTERNET (CASADOSHUMILDES.COM)
ARTE: LETICYA BERNADETE
A religião está presente na humanidade desde os tempos mais primórdios, quando o homem começou a procurar explicações para a sua origem e outros fenômenos. Além de dar um sentido à vida, muitas religiões serviram e servem para ditar regras morais e éticas de alguma sociedade. Apesar de ser uma das manifestações culturais mais antigas, ainda está presente e espalhada por todo o mundo, com diferentes doutrinas e crenças. O último censo do IBGE, em 2010, por exemplo, apontou que aproximadamente 92% da população brasileira são adeptos a alguma religião. Em Juiz de Fora, esse índice era de 94%. Mesmo que já existam explicações sobre a origem do universo, as pessoas continuam buscando religiões para obter respostas de outros problemas em sua vida. De acordo com o professor do Departamento de Ciência da Religião da UFJF Marcelo Camurça, a procura vai desde soluções para problemas de emprego aos de saúde, e serve também como um refúgio para momen-
tos de aflição. “Religião pode ser o grande anteparo, aonde você busca um sentido para aquele sofrimento, ou até mesmo uma resolução disso”, explica. Existe também uma busca existencial, que ocorre muitas vezes pela insatisfação do cotidiano capitalista. “A religião está associada, às vezes também, a uma busca de inserção no meio ambiente”, diz Marcelo. “Uma busca de transcender a vida desse cotidiano produtivista”. Por outro lado, há religiões que estão procurando se inserir na sociedade moderna. A publicidade ao redor dessas crenças faz com que tenham uma dimensão de consumo. Apesar de ser um motivo para tornar a religião um alvo de críticas, segundo Marcelo, a inserção na modernidade traz a visão de que a manifestação seja também algo mundano. “Você pode combinar uma religião que alivia um sofrimento e uma doença, mas que seja midiática. A religião tem um apelo para além do mundo e de sua materialidade, mas também está na materialidade do mundo. As duas coisas fa- Dados do censo de 2010 do IBGE. zem o seu sucesso na atualidade”.
Precursor brasileiro
As curas espirituais ficaram mais conhecidas no Brasil a partir da década de 1950, pelo trabalho de José Pedro de Freitas, ou, como foi conhecido, Zé Arigó. O médium foi o primeiro a incorporar o espírito do Dr. Fritz. Fritz teria sido um médico alemão que atendia feridos nos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial, com recursos cirúrgicos limitados. Zé Arigó teria sido amigo do alemão em sua vida passada. O médium nasceu na Fazenda do Faria, em Congonhas, Minas Gerais, no ano de 1922. Foi lá que desenvolveu suas atividades espirituais durante cerca de 20 anos. Seu trabalho mediúnico se iniciou em 1950, quando o mesmo começou a apresentar fortes dores de cabeça, insônia, visões e uma voz em um idioma que não compreendia. Durante três anos visitou especialistas, mas não apresentou melhora. Em um sonho, conseguiu entender a mensagem que, no caso, Dr. Fritz queria passar: Zé Arigó foi escolhido para completar sua obra na Terra. Certo dia, o médium resolveu atender ao pedido, e conseguiur fazer com que um homem aleijado voltasse a andar sem muletas. A partir disso, Zé Arigó passou a realizar procedimentos cirúrgicos, utilizando-se de facas e canivetes para retirar quistos e tumores.
Informações retiradas do site autoresespiritasclassicos.com
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E agora? Gravidez
Saiba as diferenças entre parto normal e cesariano e conheça outras opções Paula Breviglieri
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FOTO: PEDRO SOARES
ão nove meses de expectativa. Depois de passar pelas fases de enjoos, tonturas e cansaço, vem aquela temporada de tranquilidade. A mulher tem várias semanas para pensar no nome do bebê, montar toda a estrutura para recebê-lo e, claro, se preparar para o momento mais esperado que é o nascimento. Para isso, no entanto, é preciso escolher o parto. Cesariana ou parto normal? Como decidir? Para a maioria das pessoas,
essas são as duas opções existentes. Mas não são! A procura pelo parto humanizado vem crescendo no país, porém o assunto ainda é pouco abordado. Existem vários tipos de parto que também podem ser escolhidos pelas futuras mamães, como o parto de cócoras, na água, natural, entre outros. Optar por um tipo de parto não é nada fácil. A maioria tem medo do resultado e decide escolher aquele que traga menor
risco. Claro que existem diversos fatores a serem analisados, como as condições físicas e psicológicas da gestante, o conforto para ela e o bebê, os problemas que podem acontecer devido ao uso da anestesia e a recuperação pós-parto. Nesse caso, ouvir a opinião médica é fundamental. Segundo o Ministério da Saúde, o parto normal é o mais aconselhado e seguro, devendo ser disponibilizados todos os recursos para que ele aconteça. Durante o pré-natal e o trabalho de parto, o profissional que atende a gestante avaliará as condições dela e do bebê, para identificar fatores que possam impedir o parto por via vaginal. "O melhor parto é aquele que oferece maior segurança para a mãe e para a criança", explicou Rosiane Mattar, membro da Comissão de Gestação de Alto Risco da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). Para isso, é preciso acompanhar o desenvolvimento da gravidez no pré-natal e avaliar qualquer tipo de complicação. É direito da mulher definir durante o pré-natal o local onde ocorrerá o parto. Este pode ser realizado nos centros de parto normal, em casa ou em qualquer 86 leitos de UTI Neonatal foram fechados no país somente no primeiro trimestre de hospital ou maternidade do Sis2016, de acordo com dados do DataSUS tema Único de Saúde (SUS).
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Gravidez
Parto normal x Parto cesariano Como é feito
PARTO NORMAL
PARTO CESÁREO
Pela vagina
Um corte com cerca de 20 cm é feito abaixo do umbigo até acima da vagina
Entenda as diferenças O parto normal é mais seguro que a cesariana, pois oferece menos riscos de infecção, hemorragia e prematuridade do bebê. O apoio à mulher durante o pré-natal e o trabalho de parto é o principal recurso para seu bom desenvolvimento. Em casos realmente necessários, podem ser oferecidos métodos não farmacológicos de alívio da dor e utilizadas intervenções como analgesia. "Outra vantagem do parto normal é que o organismo materno se prepara para o nascimento. Os hormônios prolactina e ocitocina, fabricados durante o trabalho de parto, são fundamentais para ajudar a acelerar a produção de leite. Quem faz uma cesárea não produz quantidade suficiente desses hormônios e o leite pode demorar a descer", explicou o obstetra Jorge Kuhn, um dos fundadores da Casa Moara, espaço dedicado às mulheres grávidas e suas famílias em São Paulo. Além disso, a recuperação também é mais rápida em comparação à cesariana. A cesariana é mais apropriada para partos de risco, quando há
Anestesia
Recuperação
Sim, mas pode ser conversado
Imediata após efeito da anestesia
Sim
Não acontece no mesmo dia. Após a cesárea, a mãe deve tomar cuidados com a cicatrização. Problemas na bexiga e prisão de ventre podem ser um dos efeitos colaterais após a cirurgia
Contato com bebê Imediato após dar à luz
A mãe vê o bebê rapidamente e é sedada para finalização da cirurgia, enquanto o bebê fica na sala de pediatria neonatal sob observação
situações como posição inadequada do feto (que permanece sentado ou atravessado mesmo após tentativas para mudá-lo de posição) e descolamento prematuro de placenta, por exemplo. Quando não é necessária, a cesariana pode representar mais perigo do que benefício. Além de ampliar cerca de 120 vezes a probabilidade de o bebê ter síndrome da angústia respiratória, a cesariana também triplica o risco de morte materna. Essa forma de parto é cirúrgica e deve ser realizada apenas
Risco Ruptura do útero, caso a mamãe tenha feito cirurgias anteriores Pode trazer riscos ao bebê, como complicações respiratórias ou gerar uma infecção hospitalar
em casos de emergência, quando o bebê não está na posição adequada para o parto normal ou a mãe sofra de algum problema de saúde, como infecção por herpes genital, hipertensão materna mal controlada, pré-eclampsia, diabetes, entre outros. Contudo, a prevalência deste tipo de procedimento ainda é alta no Brasil, devido à praticidade que oferece aos pais e médicos por ter data e horário prédefinidos para o nascimento. De acordo com o ginecologista e obstetra Alexandre Ronzani,
Recomendações do Ministério da Saúde - A operação cesariana programada é recomendada para prevenir a transmissão vertical do HIV; - A operação cesariana é recomendada para mulheres com três ou mais operações cesarianas prévias; - A operação cesariana é recomendada em mulheres que tenham apresentado infecção primária do vírus Herpes simples durante o terceiro trimestre da gestação; - A operação cesariana não é recomendada como forma rotineira de nascimento de feto de mulheres obesas; - A operação cesariana não é recomendada como forma de prevenção da transmissão vertical em gestantes com infecção por vírus da hepatite B e C; - O trabalho de parto e parto vaginal não é recomendado para mulheres com cicatriz uterina longitudinal de operação cesariana anterior, casos em que há maior comprometimento da musculatura do útero, aumentando o risco de sua ruptura no trabalho de parto.
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Gravidez
“o importante é o neném nascer na hora certa. A gente é contra as cesáreas de “hora marcada’, pois essas podem fazer com que a criança nasça antes do tempo necessário e, assim, apresentarem algum tipo de problema”. Ele ainda afirmou que “a primeira coisa é fazer um pré-natal bem feito, começando o mais precocemente possível, bem acompanhado, tomar as medicações indicadas, realizar os exames corretamente e principalmente se informar. É muito importante estar bem informada, para assim escolher a melhor via de nascimento, junto com o médico”.
de livre demanda (sem hora para amamentar), da amamentação prolongada até dois anos e da criação por apego”, A AMMA oferece encontros mensais no Museu Mariano Procópio e na UFJF e tem um grupo na internet que oferece uma rede de troca de informações sobre o assunto e debates. A cidade ainda não conta com a opção de partos assistidos em casa, como já acontece em algumas capitais do país. Para a representante, “o parto humanizado é um parto normal com o mínimo de intervenções possível, em que a mulher possa andar, utilizar uma bola, um chuveiro, colocar música ou se O parto humanizado alimentar. Essas vias de parto têm uma grande importância O parto natural, bastante con- para o fortalecimento da gestante fundido com o parto normal, é a naquele momento. Além disso, forma mais antiga de parto, pois acreditamos que a mulher possa não são realizadas interoptar que o “Para mim, ao invés marido ou venções com medicamentos e procedimentos, de parto humaniza- alguém à como corte do períneo sua escolha a ou anestesia de peridural do, o termo correto acompanhe. ou ráqui. Nele, as necessiParir é um deveria ser ‘parto dades da mulher são resmomento adequado’, que é peitadas e também deve de fragilidaaquele em que a ser acompanhado por de máxima um profissional da saúde. mãe é a protagonista da mulher e Atualmente, vem sendo junto com o neném" por isso, reschamado de parto hupeitar o seu manizado. Para realizá-lo Alexandre Ronzani, corpo é o são recomendados exerobstetra ponto princícios durante a gravidez cipal”. para fortalecimento do O recémperíneo e musculatura da bacia. nascido também deve ser pouA representante da Aliança de pado de intervenções desnecesMulheres por Maternidade Ativa sárias tradicionais. "Em relação (Amma) de Juiz de Fora, Malu ao recém-nascido, se ele estiver Machado, falou sobre o concei- bem, chorando, com boa conto de maternidade ativa que o tratura muscular e bons reflexos, grupo oferece às gestantes. “Nós não é necessário fazer aspiração apoiamos uma corrente de pen- nasal, pois ele tem a capacidade samento em que quanto mais de eliminar as secreções por conamor e atenção, mais a crian- ta própria. Isso acontece porque, ça vai crescer preparada para o no parto por via normal, é o bebê mundo. Somos a favor do parto quem indica a hora certa de nashumanizado, da amamentação cer e, durante a passagem pelo 12
canal de parto, ele é massageado e estimulado para o nascimento", esclareceu a ginecologista e obstetra Andrea Campos. O corte do cordão umbilical também pode respeitar o ritmo natural e ser feito tardiamente, após cessarem os batimentos, a não ser que haja alguma contra -indicação. Alguns profissionais da saúde que atendem ao parto oferecem para que o pai da criança corte o cordão. O parto natural humanizado pode ser realizado em maternidades, centros de parto normal e em casa, mas é preciso contar com o acompanhamento de uma equipe especializada, liderada por enfermeiros-obstetras ou obstetrizes. Nesses tipos de parto, a presença de uma doula também é extremamente necessário, visto que ela oferece suporte físico e emocional à parturiente, transmitindo confiança, segurança e suporte afetivo, físico e emocional. Ao longo do trabalho de parto, essa profissional ajuda a gestante a encontrar as melhores posições, sugere métodos para aliviar as dores, entre eles banhos e massagens, e ainda auxilia e orienta o acompanhante. O parto domiciliar, por exemplo, é recomendado apenas para gestações de baixo risco e deve ser conduzido por um médico ou enfermeiro-obstetra. Durante o trabalho de parto, é preciso garantir que a gestante possa ser transferida para um hospital se for registrado qualquer problema ou complicação. O parto humanizado propõe a experiência total sobre o processo de dar à luz para a mãe, seu parceiro e o bebê que está chegando. A ideia é que a obstetrícia auxilie, mas não interfira no parto. No Brasil, nas regiões do cam-
Gravidez FOTO: PAULA BREVIGLIERI
po e da floresta, muitas crianças nascem pelas mãos de parteiras tradicionais. Aos poucos, essa forma de parto vem chegando às cidades. “Para mim, ao invés de parto humanizado, o termo correto deveria ser ‘parto adequado’, que é aquele em que a mãe é a protagonista junto com o neném, pois é ela quem vai escolher, junto com o médico a melhor posição, quem vai estar no momento, como será, enfim, todos os procedimentos. Não é como era antigamente em que o médico escolhia pela paciente, o parto deve ser da melhor forma escolhida pela mulher, utilizando os recursos da atualidade e dos conhecimentos adquiridos ao longo das gerações”, afirmou o obstetra Alexandre Ronzani. A Carolina Carvalho optou pelo parto humanizado para o A psicóloga Adriana Estevão está na 31ª semana de gestação e aguarda a Helena nascimento da sua segunda filha. Na cidade em que morava, está disponibilizado no Youtube ridade. Quando o nascimento Campo Belo, essa opção não era como “Nascimento da Nina”. acontece entre 34 e 37 semanas, viável e, por isso, escolheu ir para o maior risco é a dificuldade na Belo Horizonte ter o bebê no Parto prematuro respiração. No entanto, quando apartamento da sua tia. “A maioo prematuro nasce antes de 34 Segundo a Organização Mun- semanas, seus órgãos ainda não ria dos profissionais se julga humanizada, mas a maioria tentou dial de Saúde, o parto é conside- estão completamente desenvolme dissuadir da minha escolha. rado prematuro quando ocorre vidos e é necessária uma atenAs coisas nunca vão estar 100% antes da 37ª semana de gestação. ção ainda maior. perfeitas, porque nós não somos Entre as causas mais comuns para Por isso, o Conselho Federal máquinas, não são todas as mu- a prematuridade estão a gravidez de Medicina (CFM) proibiu, a lheres que dilatam um centíme- na adolescência, ruptura pre- partir de julho deste ano, cematura da bolsa, sariana antes de 39 semanas de tro a cada hora, por gestações de gê- gestação. Antes dessa resolução, exemplo, como é o “A maioria dos meos e proble- bebês que nasciam entre a 37ª indicado, mas não profissionais se julga mas de saúde da e a 42ª semana eram consideraé por isso que esse tipo de parto não humanizada, mas a mãe, como pres- dos maduros. No entanto, pespossa dar certo. No maioria tentou me são alta, infecção quisas apontaram a incidência urinária, diabe- recorrente de problemas específinal das contas, foi dissuadir da minha tes e tabagismo. ficos em grupos com idade gesmuito tranquilo e a A “cesariana de tacional inferior a 39 semanas. melhor escolha que escolha.” hora marcada” A norma em vigor, define crieu poderia ter feito” Carolina Carvallho, contribui com o térios para cesariana, a pedido afirmou. Na hora mãe aumento no nú- da paciente, e estabelece que, do parto eram nove mero bebês que nas situações de risco habitual pessoas no apartamento, sua família, uma doula, nascem prematuros. e para garantir a segurança do Os cuidados com o bebê de- feto, somente poderá ser realiduas enfermeiras especializadas e uma fotógrafa. Todo o processo pendem do tempo de prematu- zada a partir deste período.
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Gravidez
Anestesia Na maioria das vezes, a mulher pode escolher qual anestesia quer tomar. No parto normal, pode optar entre a peridural (afeta apenas uma parte do corpo, geralmente da cintura para baixo, mantendo a pessoa acordada) e a local, enquanto na cesárea a escolha fica entre a peridural e a raquianestesia (a paciente perde a sensibilidade do umbigo para baixo) com agulha fina, ou em casos especiais, anestesia geral. Só que, assim como em toda ocasião em que se usa anestesia, pode haver complicações. "Elas podem ser maiores na cesárea, devido à maior exposição aos agentes anestésicos", apontou o ginecologista e obstetra Alexandre Ronzani.
Pós-parto O pós-parto, geralmente, é tranquilo para todos os casos, mas a cesárea exige mais cuidados. Enquanto mães que fizeram partos sem cirurgia saem do hospital em até 24 horas, as que realizaram cesariana precisam de pelo menos 48 horas de observação. As atividades físicas de quem fez parto normal podem ser retomadas em duas semanas, enquanto quem passou pela cesariana precisa esperar um mês. 14
Foi o que aconteceu com a engenheira Fernanda Freitas, “um dia após o parto normal da minha segunda filha, eu já estava andando normalmente, não sentindo nenhum tipo de dor. Além disso, eu tive muito leite, a ponto de amamentar outras crianças, quando necessário”.
Juiz de Fora De janeiro até abril deste ano, foram registrados 2039 partos no SUS em Juiz de Fora, sendo 942 partos cesarianos e 1181 normais. Em 2015, o número total foi 5869, sendo 2519 partos cesarianos, de acordo com a Secretaria de Saúde da Prefeitura. Isso significa que, no último ano, 42,9% dos partos, na cidade, não foram normais. Segundo o CFM, a média nacional, até 2011, de partos feitos por cesariana era de 53,88%. “Não marquei data para parto de cesárea, pois decidi esperar o momento natural de nascimento do bebê - quando a bolsa romper e começarem as contrações. A cesárea só será uma opção se não existirem condições de ser feito o parto normal - como falta de dilatação ou em caso de muita dor, por exemplo. Preferi dessa forma para respeitar o tempo de formação dela e por acreditar que será feita a escolha mais se-
gura para mim quando esse momento chegar”, afirmou a psicóloga Adriana Estevão, de 27 anos, que está na 31ª de gestação e aguarda a chegada da Helena.
Brasil No início de abril deste ano, o Ministério da Saúde publicou, no Diário Oficial da União, o Protocolo Clínico de Diretrizes Terapêuticas (PCDT) para Cesariana, trazendo os parâmetros que devem ser seguidos, a partir de então, pelas Secretarias de Saúde dos Estados, Distrito Federal e Municípios. O objetivo das diretrizes é auxiliar e orientar os profissionais da saúde a diminuir o número de cesarianas desnecessárias, uma vez que o procedimento, quando não indicado corretamente, traz inúmeros riscos, como aumento da probabilidade de surgimento de problemas respiratórios para o recém-nascido e grande risco de morte materna e infantil. “Temos investido fortemente em diversas ações para incentivar o parto normal, porque atualmente o Brasil vive uma epidemia de cesáreas - que se tornaram, ao longo dos últimos anos, a principal via de nascimento do país, chegando a 55% dos partos realizados no Brasil e em alarmantes 84,6% nos serviços privados de
Gravidez
saúde. No sistema público, a taxa é de 40%, consideravelmente menor, mas ainda elevada, o que nos preocupa”, destacou para a imprensa o Secretário de Atenção à Saúde, Alberto Beltrame. Entre os principais destaques do protocolo é o auxílio na busca das melhores práticas em saúde. Além disso, é obrigatória a cientificação da gestante, ou de seu responsável legal, dos potenciais riscos e eventos adversos relacionados ao procedimento cirúrgico ou uso de medicamentos para a operação cesariana. A OMS sugere que taxas populacionais de operação cesariana superiores a 10% não contribuem para a redução da mortalidade materna, perinatal ou neonatal. Considerando as características do Brasil, a taxa de referência ajustada pelo instrumento desenvolvido pela OMS estaria entre 25% e 30%. A idade gestacional do nascimento é um marco importante na análise de dados epidemiológicos sobre morbidade e mor-
talidade perinatal. Em 2015 a Resolução Normativa nº 368, que estimula o parto normal e a redução das cesarianas desnecessárias entrou em vigor. As operadoras de planos de saúde, sempre que solicitadas, devem divulgar os percentuais de cirurgias cesáreas e de partos normais por estabelecimento de saúde e por médico. Também são obrigadas a fornecer o Cartão da Gestante e a Carta de Informação à Gestante, no qual deve constar o registro de todo o pré-natal, e exigir que os obstetras utilizem o Partograma, documento gráfico onde é registrado tudo o que acontece durante o trabalho de parto. O Partograma passa a ser considerado parte integrante do processo para pagamento do procedimento. Nos casos em que houver justificativa clínica para a não utilização do documento, deverá ser apresentado um relatório médico detalhado. Se a cirurgia for eletiva, o relatório médico deverá vir acompanha-
do do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido assinado pela beneficiária, que substituirá o Partograma no processo de pagamento do procedimento. Com o Cartão da Gestante, qualquer profissional de saúde terá conhecimento de como se deu a gestação, facilitando um melhor atendimento à mulher quando ela entrar em trabalho de parto. A Carta de Informação à Gestante contém orientações e informações para ela tenha subsídios para tomar decisões e vivenciar com tranquilidade o parto. E o Partograma é importante para casos em que, por exemplo, haja troca de médicos durante o trabalho de parto. Nele devem constar informações como se a mulher é diabética, tem hipertensão, que remédios está tomando, como estão as contrações, se há sofrimento fetal, se o parto não progride, entre outras. As informações sobre as taxas de partos devem estar disponíveis no prazo máximo de 15 dias, contados a partir da data de solicitação. FOTO: PEDRO SOARES
As operadoras que não cumprirem a Resolução Normativa pagarão multa de R$ 25 mil
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Gravidez
Parto na Água Pode ser realizado no hospital ou em casa. A mamãe se mantém posicionada em uma banheira com água em temperatura de 36º. O parto na água morna proporciona um aumento na irrigação sanguínea, diminuição da pressão arterial e relaxamento muscular, diminuindo assim as dores. A água proporciona maior dilatação do colo do útero e maior flexibilidade ao períneo. Os riscos são os mesmos encontrados no parto normal: o de ruptura do útero. A vantagem de recuperação rápida também se assemelha com o parto normal. Esse tipo de parto, no entanto, não é recomendado para prematuros, casos de presença de mecônio, sofrimento fetal, mulheres com
Parto a Fórceps ou Parto por Vácuo Extrator No Brasil, o uso do fórceps não está entre as principais opções dos médicos, sendo utilizado apenas quando o bebê está em sofrimento fetal ou a mãe não consegue fazer forças para a descida no canal vaginal. O fórceps, instrumento cirúrgico que funciona como uma pinça, é usado para auxiliar a saída da criança do útero e finalizar o parto com segurança. O vácuo-extrator é como uma ventosa e também tem a função de ajudar o bebê a sair.
sangramento excessivo, diabetes, HIV positivo, Hepatite-B, Herpes Genital ativo e bebês grandes (com 4 kg ou mais) ou que precisem de monitoramento contínuo.
Parto de Cócoras A diferença entre o parto normal e o de cócoras é apenas a posição. Para isso, existe
CONHEÇA OUTROS TIPOS DE PARTO
uma cadeira especial disponível para o apoio da gestante e que também auxilia o obstetra durante o processo. Nesse caso, o bebê deve estar posicionado e encaixado para que o parto ocorra tranquilamente. Em situações de risco, não é um dos tipos recomendados.
Parto Leboyer Criado por um médico francês, esse tipo de parto é parecido
Antigamente utilizado pelas índias, por
com o parto normal, só que bem “mais zen”, com trilha sonora e
estar na posição horizontal, a gravidade atua
tudo. O ambiente deve ser calmo, com uma boa música de fundo,
intensificando as contrações e facilitando a
de preferência clássica, com apagamento de todas as luzes da
saída da criança (é um parto mais rápido). Essa
sala, exceto o foco de iluminação do obstetra.
posição ainda traz outros benefícios para a
Também conhecido como “Nascimento sem Violência”, esse
saúde da mulher, que não sofre compressão de
método foi criado pelo médico francês Frédérick Leboyer e
importantes vasos sanguíneos (o que poderia
introduzido no Brasil na década de 1970. É realizado a pouca
levar ao sofrimento fetal) e a área da pelve é
luz e no maior silêncio possível. O bebê não recebe a famosa
aumentada em até 40%, além da elasticidade
palmadinha no bumbum (que é o que faz a criança chorar e abrir
do períneo ser menos comprometida.
os pulmões), sendo que essa transição é feita de maneira suave,
Uma pesquisa realizada por Janet Balaskas, líder do movimento pelo parto ativo na
esperando o cordão umbilical parar de pulsar. A amamentação é precoce e o banho realizado junto com os pais.
década de 1980 em Londres, comprovou que
Segundo alguns psicanalistas, esse tipo de parto reduz o
mulheres que têm seus filhos por essa forma
trauma que significa para a criança a saída do útero. Estudos
de parto sofrem menos com depressão pós-
com crianças que nasceram por esse método mostram que
parto e têm menos dificuldade de amamentar,
essas são mais seguras, tornam-se autônomas mais cedo e são
além da recuperação ser mais rápida.
emocionalmente mais equilibradas.
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Medicina [
alĂŠm da tĂŠcnica Mariana Dias texto e fotos
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Busca por medicinas alternativas gera debate sobre humanização em tratamento e vem modificando a percepção acerca da prática médica voltada para a família e comunidade
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S
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eis da manhã, a neblina da madrugada fria mal começa a baixar e uma pequena fila já se forma em frente a Unidade Básica de Saúde (UBS) do Bairro Teixeiras, Zona Sul de Juiz de Fora. Esse é o procedimento padrão na unidade. Os pacientes chegam pouco mais cedo da abertura do local e pegam a senha para o médico designado para a sua área. Dona Camila Miranda, aposentada de 62 anos, aguarda a consulta para mostrar alguns exames: “Tem dois anos que operei de hérnia e agora parece que tenho outra perto do umbigo. Trouxe o ultrassom para pegar o encaminhamento para o cirurgião”, conta. No pátio próximo a recepção um grupo de aposentados que realiza caminhadas faz alongamentos para partir em direção as ruas do bairro. Camila também já fez parte, mas parou por ter medo de fazer esforços por conta da suspeita de hérnia. Moradora do bairro há mais de 25 anos, ela frequenta a unidade desde sua criação, em 2002. O mesmo médico a acompanhou por todos esses anos e cuida de toda a família: “Ele até relembra
algumas vezes da minha sogra, que já faleceu, mas que ele visitava quando ela já não podia vir para a consulta”. A confiança, segundo ela, é o que a faz recorrer sempre ao posto de saúde. Esse tipo de acompanhamento faz parte da especialização em medicina da família e comunidade, que vive um momento de expansão. Segundo dados da Secretaria de Saúde da Prefeitura de Juiz de Fora, que implantou o Plano de Diretor de Atenção Primária a Saúde, são 41 unidades que estão inseridas no programa, atendendo 61% da população da cidade. Nos últimos três anos houve uma expansão de 10%, atendendo mais 55 mil pessoas. No Brasil, a medicina da família foi desenvolvida em 1993, cinco anos após a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), e tomou força a partir de 1995. A proposta é que médicos e agentes de saúde funcionem de maneira preventiva, é o que explica a médica e diretora de residentes da Sociedade Brasileira de Medicina da Família e Comunidade (SBMFC), Laís Melo: “O médico de família é aquele que
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lida com muitas incertezas acerca do adoecimento individual e coletivo, pois é o profissional que está (ou deveria estar) na “porta” de qualquer sistema de saúde”. Apesar dessa forma de medicina já estar consolidada no país, é comum a confusão entre esse profissional e o médico generalista, é o que comenta a acadêmica de medicina Mariana Gazolla, que quer se especializar nessa área: “Às vezes quando respondo qual campo quero me especializar as pessoas acham que vou me formar e com essa formação geral já posso ser considerada médica da família e comunidade.” Esse profissional precisa ter uma especialização da mesma forma que outras áreas como, cardiologia, geriatria, etc. Segundo Laís Melo, o médico da família tem como foco o paciente inserido na sua comunidade e contexto social: “A rotina do médico de família envolve diversas atividades, desde a assistência aos problemas de saúde mais comuns no seu território e visitas domiciliares, até a gestão da clínica e dos recursos disponíveis para a seu trabalho. O trabalho multiprofis-
sional está bem presente no nosso exercício, sendo frequente as interconsultas com profissionais de outras áreas da saúde e reuniões de planejamento para o trabalho da equipe”, explica.
“Temos que fazer uma medicina de doentes e não de doenças” Nos anos 70 aproximadamente, inicia-se um movimento intelectual de crítica e desconstrução da ciência a partir de teóricos franceses como Henri Bergson e Michel Foucault. Com esse discurso surge a desconstrução de uma medicina que passa a desenvolver excessivamente seu lado técnico e cientificista, desumanizada, que busca desesperadamente a verdade apesar do ser humano. Atualmente alguns profissionais discutem a reorganização da chamada medicina moderna, que foi cada vez mais deixando de lado a figura do médico de cabeceira, tão bem reconhecido em épocas de menor desenvolvimento urbano, como, por exemplo, no personagem Charles Bovary, eternizado
em 1857 pelo escritor francês Gustav Flaubert em seu livro “Madame Bovary”. O personagem é parecido com um médico de família nos dias de hoje, visita a casa dos enfermos e acompanha seu desenvolvimento em relação a pequena aldeia na qual atende. Charles, além disso, cuida com paciência, oferecendo um tratamento humanizado, como exposto na frase do narrador da história: “Recordando-se então da atitude dos mestres à cabeceira dos feridos, animou o doente com todas as boas palavras que lhe ocorreram, carícias cirúrgicas que são como o óleo com que se untam os bisturis”. O médico da família e pesquisador do tema humanidades médicas, Allan Denizard, é um dos questionadores do modelo altamente técnico e defende um retorno a esse conceito anterior, em que ouvese mais: “Se somos parte de uma natureza tão complexa, porque a ciência médica é tão exata? Esse modelo que é vigente nos hospitais e que nos forma em grande medida, não cabe mais no bolso dos países. Os governantes percebem cada vez mais, e isso já faz um tem-
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po, que não se pode sustentar uma saúde que se pauta em tecnologias duras, densas, como essas de pedir ressonância para qualquer dor no ombro. Daí vem as medicinas alternativas e trazem uma forma de práticas à medicina no cotidiano, em ambulatório, com intervenções em estilo de vida e ambiente, trazendo também novas formas de enxergar o ser humano que, entre outras tantas caraterísticas, o vê como parte de uma grande ecologia”, questiona. Denizard ainda ressalta a busca recente pela medicina alternativa, que, segundo ele, surge de experiências mal sucedidas dentro de uma prática mais tradicional, em que a doença é vista em primeiro lugar, antes do doente. Entretanto, a humanização não quer dizer a perda da relação profissional que se encontra nas consultas e nem o rompimento com o código de ética da profissão. A professora e pesquisadora do tema empatia na medicina, Patrícia Boechat, comenta que deve-se entender que, mesmo com uma maior 20
proximidade e acolhimento, essa é uma relação de trabalho. Ela também ressalta que há, atualmente, um movimento de retorno para a medicina realizada anteriormente: “A gente passou por um momento onde o avanço da tecnologia, os exames e as grandes técnicas e com isso vimos um grande afastamento na relação médico-paciente. Hoje em dia a gente tem visto grandes publicações, grandes estudos relacionando como é importante esse estabelecimento de vínculo com o paciente. É um resgate de algumas coisas que ao longo do tempo foram se perdendo”. Essa recuperação de características do médico que aos poucos foi se afastando da cabeceira do paciente está relacionada, segundo a médica Laís Melo, com o ouvir e entender as demandas das pessoas: “Dar a devida atenção ao paciente nesse momento não significa ouvi-lo durante uma hora e chorar junto com ele, mas entender o cerne da questão trazida por ele, nem que isso te demande mais de um encontro. Para mim,
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o principal desafio do método clínico centrado na pessoa é esse: quanto estamos dispostos a ouvir e compreender as demandas que o outro me traz?”, explica. Outro ponto importante ressaltado por Allan Denizard é em relação ao tratamento paliativo, área ainda em desenvolvimento no Brasil e que visa remediar as dores, tanto físicas quanto psicológicas no momento da morte e em doenças terminais: “A medicina vem resgatando o cuidado do paciente frente ao seu leito de morte. O paliativismo é o termômetro da nossa medicina atual. Quando o paciente vem para gente no final da vida dele, isso nos fazer pensar o que estamos fazendo com o paciente. A minha intervenção sobre ele ajudou em que nesse momento final?”. Alguns manuais de referência para os alunos de medicina, como é o caso do volume um de “Clínica Médica”, organizado pelo professor da USP Antonio Carlos Lopes,
trata do tema de maneira a desconstruir alguns estereótipos da área, como a compreensão de que o paliativo é uma medida provisória, sem eficácia, para pacientes moribundos. Na definição do livro: “São [os tratamentos paliativos] mais bem definidos como Cuidados de Proteção: proteção contra o sofrimento causado pela doença ou por seu tratamento (quimioterapia, radioterapia ou cirurgia, por exemplo.) O tratamento individualizado pode favorecer uma vida ativa, com qualidade, mesmo em situações de irreversibilidade da doença”. Ainda segundo dados do livro, essa área é uma das que tem pior nível de atendimento no Brasil, cerca de um serviço de cuidados paliativos para cada 13 milhões de brasileiros. Em Juiz de Fora, ainda não há serviços especializados em tratamento paliativo, mesmo em áreas de mais necessidade, como a oncologia, mas há um esforço por parte de profis-
sionais de forma isolada, é o que explica a acadêmica de medicina Mariana Gazolla: “Alguns profissionais da saúde que acreditam e desenvolvem a ideia da humanização acabam acompanhando o seus pacientes na hora da morte e em situações difíceis, mas ao meu ver não é algo sistematizado”.
A experiência da medicina humanizada Algumas vezes, como colocado pelo médico Allan Denizard, o profissional está inserido em um ambiente desgastante e com isso torna-se mais difícil um atendimento que dê maior atenção as falas dos pacientes, como acontece na urgência e emergência. Mas, mesmo com essa dificuldade e a necessidade de remediar de forma imediata, o médico ressalta a importância do ouvir no atendimento emergencial: “Por causa de alguns momentos que eu deixei acontecer
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a consulta médica eu descobri pessoas que estavam querendo se suicidar, que já tinham tentado, que já tinham planejamento. Eu descobri coisas bobas da vida, que é muito importante para a saúde do paciente e para a minha”, conta. Já a médica da família Laís Melo ressalta o fascínio que tem ao conhecer as pessoas, as relações com seu ambiente e como isso pro-
duz saúde ou doença: “Desde que comecei a atuar na área da MFC, já convivi e ouvi histórias que me fizeram compreender um pouco mais da grandiosidade e da complexidade do ser humano, do que ele é capaz na saúde ou na doença, na alegria ou na tristeza”. Denizard também ressalta a diferença em lidar com os pacientes dentro de suas comunidades:
“Quando estou no pronto-atendimento, a única coisa que me importa é saber se o antibiótico está atuando. Na comunidade, conheci uma senhora com uma doença, ela era mãe de três meninos. Convidou-nos para entrar, tomar uma xícara de café com bolo. Conhecemos a casa, enxergamos os riscos que nela haviam que poderia lhe proporcionar quedas. Vimos que
Projeto da IFMSA, Hospital do Ursinho, aproxima a relação de estudantes de medicina com crianças de creches públicas
passa a maior parte do dia sozinha, mas que gosta de ir a igreja que fica a poucos quarteirões de casa. Conhecemos o carro que a leva, e o filho que a ajuda mais. E logo de saída ela nos mostrou os artesanatos que faz para complementar a renda. A visita, em termos médicos, era basicamente para renovar receitas, mas conhecer a mulher para além da doença foi nosso maior prêmio”, ressalta. 22
Laís Melo coloca o tratamento humanizado como um aprendizado para conhecer seus limites: “Tem sido momentos de muito autoconhecimento também, de reconhecer os meus limites profissionais e pessoais, e do quanto a nossa graduação não nos prepara para nos relacionarmos com as pessoas que nos procuram por qualquer forma de adoecimento. Acredito que essa aproximação
produz bons resultados, para o paciente e para o profissional. Aprendi também que esses limites não são sinais de falha ou fraqueza, mas são necessários para que eu me lembre de que não sou super-heroína e que medicina não é sacerdócio, e sim uma ciência que precisa ser estudada e praticada com afeto e razão em doses que só o tempo vai me mostrar quais são”, confessa.
Medicina
De dentro da faculdade para a comunidade Em Juiz de Fora, os alunos de medicina são orientados e inseridos desde o início do curso para o atendimento nas comunidades. O acadêmico do oitavo período do curso de Medina da Suprema Victorino Cecato comenta a aproximação que teve com o tema em disciplinas como a bioética e psicologia médica, que visa individualizar o paciente: “Um dos primeiros aprendizados no contato com os pacientes é que o padrão de sinais e sintomas vai ser o guia para sua intervenção na doença, mas cada caso tem que ser particularizado, já que cada paciente exige uma demanda diferente do cuidado”, diz. A acadêmica Mariana Gazolla também ressalta que as idas a unidades de atenção primária foram importantes para entender que a prática da medicina vai além do físico: já aconteceu de em um desses estágios acompanhar uma senhora, que acabou sendo internada em seguida. “Em um final de semana fui visitá-la no hospital da faculdade, foi uma visita rápida, mas vi a felicidade no rosto dela. Ouvi a história sobre a sua casa e a saudade que ela sentia da sua tartaruga chamada Itamar Franco [risos]. Parece besteira contando assim, mas esse pequeno ato de visitá-la e ver como ela estava depois da operação me fez perceber a importância que a preocupação e pequenos atos tem na vida das pessoas”. Fora da grade curricular das universidades alguns estudantes
se unem para promover ações em saúde pública e comunidade. Esse é o caso da ONG International Federation of Medical Students Associations (IFMSA). Em Juiz de Fora, o comitê da Faculdade de Ciências Médicas (Suprema) e UFJF, tem se organizado em torno de vários projetos e um deles é o “Hospital do Ursinho”, que tem como proposta reconstruir o ambiente hospitalar para crianças de creches públicas. Esse contato, segundo a pediatra e orientadora do projeto, Patrícia Boechat, é importante para que os alunos saiam do ambiente da universidade e tenham maior contato com outros públicos e é uma ação de retorno para a comunidade: “o objetivo do Hospital do Ursinho é modificar a forma com que a criança lida com o hospital e com a consulta médica. Queremos desmistificar esse medo e modificar a relação com o médico”.
As salas das creches se transformam em consultórios, salas de cirurgia, raio-x, farmácia e enfermaria. Cada criança ganha um bicho de pelúcia e passa por todos os locais cuidando do ursinho como se fosse um paciente. “Elas acham que os bichinhos que elas ganham estão realmente doentes, falam as queixas dos bichinhos e querem fazer os curativos. É muito interessante porque elas realmente entram no universo que a gente cria”, comenta Patrícia. Mas não são só as crianças que ganham com a iniciativa. A estudante de medicina Carolina Delgado argumenta que o projeto propicia um maior contato como o público infantil. “Normalmente muitos alunos de medicina têm um certo receio em lidar com crianças por uma percepção de que são difíceis e também por insegurança. Depois de participar, a
“Desde que comecei a atuar na área da MFC, já convivi e ouvi histórias que me fizeram compreender um pouco mais da grandiosidade e da complexidade do ser humano” Laís Melo, médica 23
Medicina
gente acaba perdendo esse medo, estimulando essa relação médico-paciente”, afirma. A ONG também desenvolve outros projetos com estudantes e comunidade, como campanhas de conscientização em bairros, aferição de pressão e orientação.
“Em duas semanas eu volto”
A aposentada Camila Miranda tem a UBS como ponto de referência
Aproximação entre crianças e estudantes desmistifica o medo do médico. O projeto atende principalmente creches públicas da cidade
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Dona Camila Miranda, depois de aguardar cerca de uma hora, sai do consultório segurando os papéis de encaminhamento e algumas amostras de remédios. Esse tempo de espera, segundo ela, não importa tanto: “A gente acostuma, fica conversando aqui fora. Não reclamo porque quando entro [no consultório] também quero atenção por mais tempo. Normalmente não fico só cinco minutos e saio. Faz diferença”, explica. Agora a aposentada segue para o especialista, que fará exames mais apurados para ver se ela tem a necessidade de uma operação. Mesmo assim, já anotou na agenda o dia de retorno para seu médico de cabeceira: “Tenho que renovar receitas e pegar outros remédios que tomo. Daqui duas semanas eu volto”.
FOTO:DIVULGAÇÃO/ BEATRIZ BRITO
FOTO: PEDRO SOARES
Resgatando raízes
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Cabelo
A aceitação do cabelo natural e o empoderamento Mariana Meirelles
A história nunca esteve a fa- poderamento negro Ana Clara vor das trajetórias das mulheres Junqueira, que, aos 5 anos, pasnegras e seus cabelos, suas iden- sou pelo seu primeiro processo tidades. O alisamento era, e em de alisamento químico. “Eu tiparte ainda é, para a maioria de- nha ido acompanhar minha mãe las, uma imposição da sociedade ao salão. Ela estava retocando os para aceitação, seja no mercado cabelos brancos, quando a cabede trabalho, na rotina escolar, leireira olhou pra mim e disse “ nos relacionamentos amorosos. Por que não alisamos ela tamDe fato, o cabelo natural sempre bém?” Fiquei assustada, eu tinha foi uma espécie de empecilho apenas 5 anos, e o cheiro do proquando o assunto era aceitação duto era muito forte, definitivadiante da sociedade. mente aquilo fazia mal. Ao mesPara se sentirem inseridas na mo tempo, eu pensava na dor chamada ‘’integração racial’’ que era ter que desembaraçar os brasileira, as mulheres negras fios e em como minhas colegas passaram por um notável processo de embranquecimento. A vivência em busca da perfeição do cabelo liso desconstrói a identidade, além de desvalorizar outros traços da sua estética, também muitas vezes, alterados para aumentar o sentimento de pertencimento. Seguindo um antigo ditado popular, que diz que “o cabelo é a moldura do rosto, a maioria das meninas brasileiras do século XX e início do século XXI tinha como ritual de embelezamento Beatriz sofreu desde a infância por cauo alisamento capilar, criando, sa do seu cabelo. Hoje, exibe eles com assim, a ditadura do cabelo liso, orgulho. que afetou e afeta não só mulheres negras, mas mulheres de outras etnias que também pro- lisas de escola usavam faixas e curavam a perfeição estética da tiaras que eu achava não comchapinha e progressiva a todo binar comigo. Saí do salão feliz custo. Tal ritual começava cedo, com meu novo cabelo, não era muitas vezes, por volta dos 4 exatamente liso, mas também anos de idade, como conta a es- não era mais crespo. Isso era tudante de Direito e atualmente tudo o que eu precisava para me ativista em movimentos de em- sentir aceita. Quando fui cres-
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cendo, percebi que não me reconhecia mais ao me olhar no espelho, aquela não era eu, nunca foi. Foi a partir daí que percebi que havia algo errado.” A estudante baiana Beatriz Brito sempre sofreu por assumir seus cabelos naturais. Desde a infância, recebeu apelidos na escola e conviveu com o preconceito por parte dos colegas de turma. “Uma vez recebi um bilhete de dois meninos da 4° série que dizia: “Oi, mata africana”, fiquei muito mal. Eles me entregaram o bilhete assim do nada e eu nem os conhecia, a intenção foi fazer piada comigo, claro.’’ Atualmente, Beatriz se orgulha de ter assumido sua verdadeira identidade e diz que tira inspiração e força na resistência de outras mulheres. “Comecei a amar muito mais meu cabelo, apesar das mil recaídas em que eu quero alisar. Para mim, a aceitação do cabelo natural não é e nunca vai ser moda, amar a si mesma é a maior forma de revolução que existe. Não costumava ver modelos nem bonecas ou moças nos filmes com cabelo cacheado ou crespo. Nunca achei que eu teria que me aceitar e sim me encaixar para que me elogiassem da mesma forma que me criticavam. Eu acho importante a aceitação do cabelo natural e também as pessoas usarem o cabelo que quiserem. Quando eu vejo as meninas de cabelo natural, eu me encorajo a continuar amando o meu como eu nunca amei antes.’’
Cabelo
Low e No Poo No último ano, o mercado foi bombardeado com dezenas de lançamentos no segmento de produtos para cabelo. Todos apostando em linhas especializadas para os cuidados com o cabelo cacheado, baseados no método do NO E LOW PO. Mas afinal, o que esse termo significa? Revolucionando completamente o tratamento dado aos cabelos crespos e cacheados, Lorraine Massey lançou, nos anos 2000, o Livro Curly Girl, ou “O Manual da Garota Cacheada” em sua edição no Brasil. Lorraine, que é inglesa e possui cabelos crespos, também é a criadora da marca DevaCurl e co-proprietária do Devachan Salon, em parceria com o brasileiro e expert Denis da Silva, conhecido
Diferenças Na pratica do LOW POO, prioriza-se a utilização não só de agentes mais leves de limpeza, como de substâncias que tratem o cabelo por completo, sem mascarar a saúde dos fios. Substâncias, como Betaína cocamidopropyl (Anfótero) e Sulfossuccinato de Sódio de Dioctilo, são mais leves, fazem menos espuma e proporcionam limpeza aos fios sem retirar a proteção natural do couro cabeludo. A técnica também defende a utilização de produtos que não contenham em sua fórmula Petrolatos (parafina líquida, óleo mineral, vaselina, entre outros componentes químicos). O uso constante de petrolatos deixa o cabelo pesado e mascara a real saúde dos fios. Além da preocupação com o meio ambiente, uma vez que, depois de usadas, são substâncias de difícil decomposição no ambiente.
como o Guru dos cachos. Traduzido para diversas línguas e best seller por onde passa, o livro incluía tratamentos alternativos para os cabelos, como receitas naturais, feitas muitas vezes com ingredientes caseiros e não industriais. Dentre eles, estavam as técnicas do No Poo e Low Poo, que, em português, querem dizer, Nenhum Shampoo ou Pouco Shampoo. Apesar de ter sido sucesso imediato na Inglaterra, demorou um tempo para que as praticas ensinadas no livro fossem popularizadas no Brasil. Seguindo a Cultura Ocidental, espuma é sinônimo de limpeza. Lavar os cabelos faz parte de um ritual de limpeza do corpo e leveza espiritual, quase uma terapia. O ato de massagear os cabelos com shampoo, formando bolhas
de espuma e sentir o perfume se espalhar pelo ambiente é como uma prova de que a limpeza foi concluída. Limpeza essa que, para a maioria das pessoas, só pode ser alcançada com um bom shampoo. No entanto, para Lorraine, a espuma que sai dos fios e cai no ralo do banheiro leva com ela muito mais que a sujeira do dia a dia, mas também lipídios naturais do cabelo e do couro cabeludo, responsáveis não só pela sedosidade, como também pela proteção capilar. Cabelos secos, que são particularmente comuns entre os cacheados, crespos, sofrem demaiscom os danos do shampoo comum, diferente do que ocorre com cabelos lisos por exemplo, devido à presença de componentes como o Lauryl Sulfate, Sodium Laureth Sulfate e outras substâncias de caráter ultra limpantes .
No NO POO, é abolido o uso de shampoos, mesmo os de caráter mais leves. Sendo assim, além dos petrolatos, não utiliza qualquer produto (máscaras, leave-in, condicionadores) que contenham silicones insolúveis em água, pois estes só são retirados do cabelo com shampoo. A lavagem, chamada co -wash, é feita com condicionadores que não contenham silicones. Seguir essa regra é essencial para manter os cabelos limpos.
Sendo assim, a diferença do NO para o LOW POO é que, neste último, o shampoo é utilizado com substâncias de limpeza leves e, portanto, máscaras, cremes de pentear e demais produtos podem conter silicones que são retirados dos fios com o shampoo. Já o NO POO, por não se fazer a utilização de shampoos, os produtos com silicones insolúveis não são utilizados, pois estes se depositam no couro cabeludo.
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Cabelo
Simplificando a técnica
Os ingredientes de shampoos que geram - controvérsia LAURIL ÉTER SULFATO DE SÓDIO
PETROLATOS
O que é
O que é
-
Aparece no rótulo como "sodium laureth sulfate". É
Derivados de petróleo, como óleo mineral. São
um detergente presente na maioria dos xampus e
usados em condicionadores para "blindar" o fio de
tem a função de limpar e fazer espuma
agressões externas e conferir mais brilho ao cabelo
O que dizem os adeptos do "no poo" Resseca o cabelo
O que dizem os adeptos do "no poo" As substâncias se acumulam no cabelo com o tempo, deixando-os sem brilho
O que dizem os especialistas No xampu, há "repositores de gordura", como a
O que dizem os especialistas
lanolina, que neutralizam o efeito do lauril éter.
A propensão à alergia é menor e o composto não
Mas o composto pode ser irritante para algumas
penetra no fio. Mas podem obstruir os poros do
pessoas. Por isso, muitos xampus de bebê não têm
couro cabeludo. Prefira Ativos de origem vegetal
o ingrediente
como óleo de macadâmia e manteiga de karitê .
SILICONES
PARABENOS
O que é
O que é
Derivados de pedras de quartzo, muitos apenas dão brilho. São
Substâncias conservantes usadas para impedir a proliferação
usados tanto em xampus como em condicionadores. Há muitos
de micro-organismos. Aparecem com o nome de methylparaben,
tipos, entre eles o "dimethicone"
butylparaben e proprylparaben
O que dizem os adeptos do "no poo" O composto fica impregnado nos cabelos, deixando-os
O que dizem os adeptos do "no poo" As substâncias são tóxicas
"pesados" e sem brilho
O que dizem os especialistas
O que dizem os especialistas
Estudos já encontraram relação da substância com alterações
Eles até se acumulam nos fios, mas, ao invés de danificá-los,
no sistema hormonal. A Anvisa estabelece um limite para o
criam um filme de proteção. Porém, produtos com maiores
uso seguro de parabenos e já existem muitos produtos sem as
quantidades de silicone podem não ser bons para cabelos
substâncias no mercado
normais e oleosos
O que tem em um frasco de shampoo ?
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Detergentes que limpam e fazem espuma
Condicionantes para melhorar o aspecto visual e tátil do produto
Corantes e aditivos de efeito visualcabelo
Espessantes que facilitam a aplicação do produto
Cabelo
INCENTIVO ON-LINE Com a popularização dos métodos de cuidados para os cabelos crespos e cacheados, surgiram também os grupos on-line, que têm como finalidade auxiliar os integrantes, com dicas, técnicas e trocar experiências. Para a empresária Leila Guimarães, fundadora do grupo no Facebook No e Low Poo Iniciantes - hoje com mais de 236.000 membros -, o grupo é muito mais que um espaço para divulgar as técnicas, ele representa refúgio e incentivo para quem quer se livrar da dependência pelo cabelo liso. “Geralmente quando as pessoas chegam ao nosso grupo, elas estão com o sentimento de se aceitarem, mas, ao mesmo tempo, estão quase desistindo. Geralmente estão passando pela transição, momento em que parte do cabelo está alisado pela química, e a outra, natural, crescendo. Isso afeta muito a autoestima, principalmente das mulheres, e quando você entra no grupo, se depara com uma legião de mulheres que já passaram por esse momento de transição e se sentem livres como são. E isso é lindo, é empoderador, dá forças para continuar. Essa é a principal força do grupo e é por isso que ele existe, Para Leila, o grupo também é formador de opinião quando o assunto é a industria de cosméticos voltados para cachos. “Nosso grupo é muito grande, nele damos dicas de produtos e postamos nossas opiniões e experiências pessoais com tais cosméticos. É notável o crescimento do interesse da indústria por nós, pelos nossos cabelos e necessidades, acredito que eles estão de olho nas nossas demandas, no modo que pensamos, o que revindicamos. E isso é bom por um lado. ajuda na visibilidade da causa, que é o que queremos também.
7 passos para uma boa lavagem
1
Escolha um produto indicado para seu tipo de cabelo
2
3 Não coloque o produto direto na cabeça, dificulta espalhar.
Não use muito shampoo. Duas moedas de um real ou o equivalente a uma azeitona é o bastante
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4 Não lave o cabelo todos os dias. Para a maioria das pessoas, o ideal é lavar em dias alternados
Use o shampoo no couro cabeludo: é ele que será lavado. Não precisa esfregar os fios. A espuma vai escorregar
6 Use pouco condicionador (cerca de uma moeda de um real) e só nas pontas. Se for aplicado na raiz, o produto pode obstruir os poros.
Apesar das recomendações, não é necessário repetir a lavagem. Apenas enxague bem. para eliminar resíduos
7
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Feira
m
História de Pedro Soares
S
domingo
eis horas da manhã de um domingo tão gelado que as pessoas mais parecem dragões soltando fumaça pela boca e também pelo nariz. O que a maioria das pessoas quer em um dia como esse é continuar enroladas no máximo de cobertores possíveis e só levantar quando a cama as expulsa de vez. Mas isso não é o que acontece na Avenida Brasil. Lá a movimentação começa a partir das três horas da madrugada, independente da temperatura ou de não conseguir enxergar mais de três metros na frente do seu rosto. Caminhões, frutas, legumes, orquídeas, mercadorias, biscoitos feitos em casa, felicidade, pessoas, feirantes. Homens, mulheres, crianças, adolescentes, gato, cachorro, papagaio. Todo mundo trabalhando junto para levar para a casa o dinheiro que ajuda no sustento da família. Esse é o caso da Dona Lucy, seu esposo, seu filho, sua filha, seus
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dois sobrinhos e um amigo da família. Eles são donos de uma excêntrica barraca de uma fruta bastante conhecida na mesa dos brasileiros: a laranja. Caixas e mais caixas de laranjas de todos os tamanhos e preços são vendidas. Quatorze por três reais. Doze por quatro, varia o preço de acordo com o tamanho. “Ô Seu Vicente, por quanto o senhor me faz uma caixa de laranja?”. Pechincha vai, pechincha vem, e eles fecham um preço mais “camarada”. O tempo vai passando e, com ele, as pessoas, os clientes, os amigos que vão e voltam. O preço da mercadoria é apagado e escrito novamente durante todo o tempo de feira. “Quanto mais tarde, mais barato”, Dona Lucy explica. Vicente e Lucy Fortunato são casados e vierem com a sua família de Rio Pomba para Juiz de Fora cerca de 30 anos atrás. Há vinte e cinco anos trabalham como feirantes em todas as feiras
livres da cidade. Naquele mesmo dia, seu outro filho estava com uma barraca na feira realizada na Rua Manoel Bernardino, no Bairro São Mateus. Cheiros e cores Aromas diferentes invadem nosso nariz em cada passo ao redor das barracas coloridas pela lona que cobre o fino sereno da manhã de inverno. As frutas, os legumes, as flores, os pastéis aguçam o olfato trazendo para a cabeça as memórias que um dia foram guardadas por algum motivo. Somente na feira livre da Avenida Brasil são mais de 650 barracas credenciadas na Prefeitura, pagando uma taxa, como se fosse um certo “aluguel” por cada dois metros de barraca. O clima na barraca da família da Dona Lucy é o mais descontraído possível dentro do que o frio cortante permitia naquela manhã às margens do Rio Paraibuna.
Feira
“Pelo menos a nossa barraca fica aqui no meio, e o pessoal da beira do rio corta um pouco do vento. Lá que está congelando!”, brinca a jovem senhora, trajando um elegante conjuntinho de veludo verde, meias e chinelo. “Tem laranja hoje?”, indaga um senhor. “Não, só morango!”, senhor Vicente responde, com toda alegria e diversão que alguém pode ter. “É assim o dia todo”, comenta a filha Márcia, falando do entrosamento de seu pai com os amigos. Enquanto isso, mais clientes-amigos passam para levar para casa um pouquinho dos produtos que o senhor e a senhora Fortunato vendem, trazidos diretamente de São Paulo. Ele conversando mais com quem passa, atraindo todos para a venda, e ela atendendo quem para. Laranjas de vários tipos: natal, pêra, serra d’água. Não importa a espécie, o padrão de qualidade é visível já na casca, e os clientes aprovam. Dona Lucy apalpa cada fruta, mostrando que ela está “no ponto”, garante a vendedora a cada cliente. Em meio aos gritos dos feirantes, conversas entres os clientes, movimentação de dinheiro e o alto falante da feira tocando os mais variados tipos de música durante toda a sua programação
matutina, os homens da família Fortunato se divertem tentando vender moedas com estampas das Olimpíadas para o amigo da barraca de batatas, logo à sua frente. “Vinte reais essa aqui do mascote!”, Vicente e o filho oferecem. “Não! Muito caro!”, responde o outro, e todos caem em gargalhadas sinceras. Eles
insistem na venda (sem sucesso), ainda que com caráter de brincadeira. Nesse momento, as mulheres aproveitam o movimento baixo decorrente do frio e se unem para dar uma volta no outro lado do rio, a zona livre de vendas na avenida. Quando voltam, a anfitriã traz consigo duas mudas de uma espécie de árvore. Duas pequenas
arvorezinhas de laranja. Vicente ri da situação: “não cansa de laranja, não?”. Mesmo assim, ele carrega para o caminhão as futuras moradoras do seu quintal, lá no Bairro Grajaú. Elas voltam para o lado cadastrado da feira com um brilho nos olhos, provando que ninguém precisa de muito para ser feliz. Basta uma volta para quebrar a rotina. Lucy confessa que, quando puder tirar uma folga do trabalho, ela quer conhecer o “lado de lá” inteiro. “Lá é bom demais! Tem tudo o que você precisa... Até dentadura se você quiser, você acha”, conta sorridente. Chega o momento de despedida. O jovem estudante de jornalismo, que passou uma agradabilíssima manhã congelante ao lado dessa família inspiradora, pede um abraço de cada um. Com esses abraços, o calor do acolhimento vem junto. Ao pedir uma foto de lembrança para Lucy Fortunato, a senhora mais simpática e dona de uma barraca de laranjas na feira livre da Avenida Brasil, ela mira o horizonte com um olhar sonhador, e o futuro contador de histórias, emocionado e paralisado com tamanha comoção, aperta o botão de sua câmera fotográfica. Clique. 31
FOTOS: PEDRO SOARES
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Lucy Fortunato tem na sua rotina o trabalho de feirtante. Carregando a simplicidade e companheirismo em todos os momentos, vendendo laranjas e distribuindo carisma
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Ensaio fotográfico
X Com essa explosão de sentidos e sentimentos, as imagens são essenciais para a captação do que é vivido em um dia de feira. Imagens de Pedro Soares
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DOSSIÊ ESPECIAL
GRUPO DIVULGAÇÃO 50 ANOS como chegamos até aqui VICTOR DOUSSEAU
Primeiro sinal A minha vida se confunde com a do Divulgação. Não somos contemporâneos, não temos os mesmos pais e já não vivemos mais no mesmo país de quando nascemos. Neste primeiro ato pretendo fazer uma viagem para dentro de mim, num esforço sobre-humano para invocar o ator-repórter que existe aqui dentro - que até o final deste parágrafo se concretizará como a tarefa mais difícil da minha vida- Difícil porque na vida sempre aprendi que é preciso ser breve, evitar delongas, mas estabeleço agora a regra do jogo. Vou escrever o quanto meu coração conseguir mensurar a beleza e paz que o Grupo Divulgação trouxe para a vida de centenas de pessoas que foram tocadas pelo teatro. Um trabalho de pesquisa, investigação. A partir de agora “levarei muitas lembranças e mil sonhos na bagagem”.
Segundo sinal A ideia inicial era fazer uma reportagem sobre um outro tema que fugisse desse universo. Mas, resolvi insistir até conseguir falar do grupo. Eu não queria fazer um trabalho como os que são feitos por aí. Queria fazer algo com um olhar de quem está dentro, olhando para fora. Consegui, e me desafio agora a mergulhar no passado e no presente de uma das companhias de teatro mais antigas do mundo. O Divulgação, idealizado por um homem de teatro, abnegado, fiel à sua causa.
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Terceiro sinal “Desliguem seus celulares, pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus, desliguem os seus celulares.” Esta frase é dita pelo professor José Luiz Ribeiro, todos os dias antes dos espetáculos, em uma gravação. É um aviso para a sociedade de hoje, interconectada de hoje, de que o teatro vai começar; é preciso ter atenção pois um feito mágico vai acontecer neste tempo de tela. O homem vai estar diante do homem. Por isso, peço a atenção minuciosa a cada detalhe. Quero fazer deste ‘Divulgação 50 - como chegamos até aqui’ um acalanto.
Soneto de amor ao teatro Atenção, eu vou contar A história de uma trupe Que fez do palco O seu altar Do teatro sua fé Do trabalho, religião Aos grandes encenados Saudamos com devoção Apaixonados e fiéis Lutamos com bravura Dificuldades passamos Nascemos na ditadura Ao Divulgação agradecimento Por fazer deste momento Cinquenta anos comemorar Nossa causa é público formar Para o teatro mudar tantas Gerações que ainda vão chegar
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Dossiê
CENA II - O ENGATINHAR
FOTO: ARQUIVO GRUPO DIVULGAÇÃO
PRIMEIRO ATO
(Na mesa da sala, depois de tomar o café da manhã, o ator-repórter (Deitado na cama, o ator-repórter está debruçado na pesquisa. Lê vopensa como vai começar a escrev- ciferadamente, mais uma vez, o liver. Ouve-se na vizinhança choro de ro de Márcia Falabella, ‘Grupo Dicriança, barulho de martelos) vulgação- o teatro como devoção’)
CENA I - A CONCEPÇÃO
Ainda nos anos 1960, o Divulgação se estabelece como uma companhia estudantil, sendo a primeira da cidade a se organizar como uma companhia de teatro universitário. Desenvolvendo assim, um trabalho constante, baseado na pesquisa. E continua assim até hoje. Aos poucos, a trupe começa a participar de festivais de teatro no país inteiro, conseguindo respeitabilidade nacional. Vale lembrar que era tempo de ditadura e a censura estava cassando os autores nacionais. Para fugir disso, nos primeiros anos, o grupo passa a montar textos de grandes nomes do teatro mundial, como ‘Bodas de Sangue’ de Federico García Lorca, ‘Electra’ de Sófocles, ‘Pequenos Burgueses’ de Máximo Górki, entre muitos outros. Todos alinhados com o tempo que estavam vivendo. Com isso, o Grupo Divulgação passa a fazer um teatro, que se estabelece até hoje como político, mas apartidário.
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O ano era 1966. Um grupo de jovens se reunia aos sábados pela manhã para ler e discutir teatro e poesia na então Faculdade de Filosofia e Letras. O exército tinha tomado o poder dois anos antes e o Brasil vivia um momento complicado. “Era um tempo de guerra, era um tempo sem sol”. Na década de 1960, havia uma efervescência política e cultural no país e existia um número considerável de grupos que faziam teatro universitário. A partir destes encontros semanais surgiu a ideia de se montar um espetáculo intitulado ‘Amor em versão e canção’ que reunia poemas de Pablo Neruda, Federico García Lorca, Carlos Drummond de Andrade. Entre essas poesias estava ‘Motivo’, de Cecilia Meireles: “Eu canto porque o instante existe e a minha vida está completa. Não sou alegre, nem triste. Sou poeta’’. Estes versos abriam o espetáculo apresentado no Instituto de Laticínios Cândido Tostes. Em 7 de julho daquele ano, entrava em cena, oficialmente, o Divulgação.
Cena de ‘Pequenos Burgueses’ de Máximo Gorki, montagem de 1969.
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José Luiz e Malu Ribeiro em cena de ‘O Urso’ de Anton Tchekov em 1967.
Dossiê
CENA III - O DIA EM QUE SE CONHECEU O ANJO
(Na mesa da sala, o ator-repórter começa a visualizar em sua cabeça como era Juiz de Fora nos anos 1960, os primeiros anos de grupo, a descoberta dos anjos da guarda).
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Essa respeitabilidade que mencionei no parágrafo acima, é que traz à Juiz de Fora, em 1971, para assistir ‘Maria Stuart’, Paschoal Carlos Magno, um dos maiores nomes do teatro brasileiro. Paschoal escreveu uma carta, direcionada ao Divulgação, manifestando o interesse em conhecer o trabalho do grupo.
Em 1971, no III Festival de Teatro da Guanabara, o grupo apresentou ‘Cancioneiro de Lampião’. Ao centro, Paschoal Carlos Magno.
CENA IV - PRIMEIROS PASSOS contre um grupo com este pedi- de Fora são convidadas pelo en(Na mesa da sala, o ator-repórter faz uma pausa. Desliga o computador para escrever mais tarde. Volta para a cama).
Paschoal vem ao Divulgação e se identifica com o trabalho produzido aqui. “O trabalho do Divulgação o coloca numa posição de destaque dentro do panorama do teatro universitário brasileiro. Isso talvez seja o mais importante dentro da realização do Divulgação. O teatro feito por amor, em que o trabalho árduo substitui as subvenções, tão minimizadas, só poderia frutificar através de uma grande consciência. Creio que nem no Rio de Janeiro, a não ser talvez em “O Tablado”, a gente en-
grée e um trabalho tão frutuoso. Talvez esse contato possa ser o início de outros, pois um grupo como este tem muito a oferecer, não só à comunidade como ao Brasil, dado à sua vivência integral e sua formulação dentro de um sentimento de pesquisa, que hoje vai se afastando dos palcos brasileiros, no momento em que grupos universitários se restringem a copiar grandes montagens”. Depoimento de Paschoal Carlos Magno, publicado em ‘Grupo Divulgação- O teatro como devoção’ de Márcia Falabella e pertencente aos arquivos da companhia. Em 1972, com a Criação do Forum da Cultura, o Divulgação e outras entidades culturais de Juiz
tão reitor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), professor Gilson Salomão para desenvolverem seus trabalhos no prédio que abrigava até aquele momento a Faculdade de Direito. No ano seguinte, surge a necessidade de se criar um departamento de teatro infantil, uma vez que, o teatro infantil tem extrema importância na formação de plateia. O primeiro espetáculo infantil montado pelo Divulgação é ‘ A onça de asas’ de Walmir Ayala. De lá para cá, o grupo montou um espetáculo infantil por ano. No ano de seu cinquentenário, ‘Anjos e Desarranjos’ de José Luiz Ribeiro é a quadragésima terceira peça infantil montada. 41
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Dossiê
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Cena de ‘Escorial’ de Michel de Ghelderode, montagem de 1971.
CENA V - DIVULGAÇÃO É BATIZADO NAS ÁGUAS DO RIO SÃO FRANCISCO
(É noite alta, reina o silêncio. O ator-repórter, deitado desconfortavelmente, imerso, lê com cuidado o que foi a Barca da Cultura).
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Cena de ‘Camões, canto de uma nação’, apresentado na Academia de Comércio em 1972.
Cena de ‘Seis personagens em busca de um autor’ de Pirandello, montagem de 1973-74.
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Em 1974, Paschoal Carlos Magno convida o grupo a participar da Barca da Cultura. Um projeto de alcance nacional que reuniu as mais variadas entidades artísticas. Durante dois meses a barca percorreu cidades ribeirinhas ao São Francisco e depois seguiu descendo a rodovia Belém-Brasília. Para a barca, o GD remontou ‘Cancioneiro de Lampião’ e montou os espetáculos de fantoche ‘Mariquita dos Girassóis’ de Maria Mazetti e ‘O Anjinho Siriri’ e ‘O caso do foguete muito doido’, ambos de José Luiz Ribeiro. Em cada cidade que passava, havia a apresentação dos espetáculos, oficinas, debates e conferências. Um trabalho de fôlego que atravessou o Velho Chico. Um batismo para o Divulgação, levando seu trabalho à pessoas que, naquele momento tinham talvez, o primeiro e último contato com o teatro.
Dossiê FOTO: ARQUIVO GRUPO DIVULGAÇÃO
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Cena de ‘Guairaká’ de José Luiz Ribeiro, montagem de 1980.
Cena de ‘O Estado de Sítio’ de Albert Camus, montagem de 1980.
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Os anos de 1980 representam a fase de amadurecimento de trabalho. Um trabalho que consistia na ampliação de público. Nasce em 1985 o projeto ‘Escola de Espectador’, pioneiro, vanguardista na cidade, levando crianças e adolescentes de escolas públicas para assistir aos espetáculos gratuitamente. O Divulgação passa a ser o braço direito de professores interessados no aumento de lastro cultural de seus alunos. Após assistirem aos espetáculos, os temas abordados eram debatidos em sala de aula. Foi assim comigo, Cena de ‘Putz, a menina que buscava o sol’ de Maria Helena Kühner, montagem de 1985. estudante do primeiro ano do Ensino Médio. Assisti, por meio do projeto, ao ‘Juizado de pequenas perdas’ de José Luiz Ribeiro, em 2010. Este texto é definitivo na minha vida. Foi assistindo este espetáculo que decidi, aos 15 anos, que queria estudar teatro no Divulgação. O sonho se concretizou mais tarde, dois anos depois. Mas voltemos aos anos 80, mais precisamente, 1984, com ‘Esta noite se improvisa’, de Luigi Pirandello. A montagem foi incluída numa lista que continha os dez melhores espetáculos do ano, no eixo Rio-São Paulo, produzida Cena de ‘A Aurora da minha vida’ de Naum Alves de Souza, montagem de 1987. pela revista Afinal.
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CENA VI - O DESPERTAR DE UMA JUVENTUDE
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Cena de ‘O Mercador de Veneza’ de William Shakespeare, montagem de 1988.
É nesta década que foram monCENA VII - RITMO INDUSTRI- peças por ano. As temporadas ficarAL E A FÁBRICA DE MONTA- am maiores, as atividades também e tados os maiores sucessos de púo ritmo passou a ser industrial. Em blico do grupo. ‘Era sempre priGENS 1994, é criada uma ramificação do trabalho, com mais um núcleo de montagem, fazendo teatro com a Terceira Idade. O Divulgação mais uma vez larga na frente e o método Vem os anos 1990 e com ele pro- de trabalho entra para a ‘Cartogradução de um número maior de fia do teatro Brasileiro’. FOTO: ARQUIVO GRUPO DIVULGAÇÃO
(O ator-repórter ainda se impressiona com tudo, deitado, escrevendo desconfortavelmente, mergulhado na própria história)
Cena de ‘O Burguês Fidalgo’, de Molière. Montagem de 1991.
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meiro de abril’ e ‘A Escada de Jacó’, 1990 e 1995/96, respectivamente consolidam o Divulgação, por meio destes textos de José Luiz Ribeiro, com forte projeção e identificação do público juiz-forano com os textos encenados.
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CENA VIII - O PALCO NÃO É carnaval pela escola de samba Vale própria, num trabalho quase que, O BASTANTE E DIVULGAÇÃO do Paraibuna, com o samba “Divul- totalmente autoral. A única mongação na Avenida: Teatro em Juiz tagem da década que traz um auNA AVENIDA (A madrugada avança e o objetivo de Fora”, composto por Cris, Paulo do ator-repórter é fechar os anos Carioca e Zezé do Pandeiro. Dois meses antes, a sala do Divulgação no 2010 antes de dormir). Forum da Cultura se transformou Em 2001, quando completa 35 num barracão de escola de samba. Os anos 2000 se configuram como anos de história, o Divulgação é escolhido para ser samba-enredo do a consolidação de uma dramaturgia
tor não brasileiro é ‘A Tempestade’ de William Shakespeare. Dos textos que não trazem a assinatura de José Luiz Ribeiro estão ‘Senhora na boca do lixo’ de Jorge Andrade e ‘O Mambembe’ de Artur Azevedo, dois medalhões do teatro brasileiro. FOTO: JESUALDO CASTRO/ ARQUIVO GRUPO DIVULGAÇÃO
Cena de ‘A Lira do Encanto’ de José Luiz Ribeiro, montagem de 2009.
CENA IX - ESTÁ DIFÍCIL FAZER E isso posso falar com mais pro- ainda não sabemos direito onde vai priedade. Muitas vezes vi pessoas dar, obras como ‘A comédia da falTEATRO
que ficaram seis meses ou no máxPassamos da primeira metade da imo um ano fazendo teatro com a década de 2010. A época da aceler- gente. Mas vi também muita gente ação, do “tudo para ontem” na qual interessada em fazer o teatro se peros indivíduos não têm mais tempo petuar para as próximas gerações. para se aprofundar em um conhe- Até 2016, ano do cinquentenário, cimento ou não se dão à esse luxo. o grupo continua reafirmando sua Vivemos numa época de grande ro- dramaturgia própria, sempre com tatividade no elenco do Divulgação. textos alinhados à esse época que
ha trágica’ de 2015, inspirada em ‘A Divina Comédia’ de Dante Alighieri, no qual tive a honra de participar. Até agora, na dramaturgia universal, recorremos à Molière e seu divertido ‘O Doente Imaginário’ em 2013, e Shakespeare, com ‘Romeu e Julieta’ em 2016. Mas o cinquentenário é assunto lá pra frente. FOTO: ARQUIVO GRUPO DIVULGAÇÃO
Cena de ‘Os ossos do Ofício’ de José Luiz Ribeiro, montagem de 2011.
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SEGUNDO ATO
FOTO S: REPRODUÇÃO/ FB
Propus uma dinâmica para cinco GDnianos, de cinco gerações diferentes. Que cada um escrevesse uma pergunta direcionada à uma pessoa de determinada época, escolhida por mim, sem que ambos soubessem para quem estavam perguntando e para quem estavam respondendo. O resultado me provou que, por mais que as pessoas sejam diferentes, o teatro toca em pontos similares no coração e na alma dos que viveram essas experiências em algum momento de suas vidas. Com vocês, Leda Nagle, representando a primeira década, Arlete Heringer, a segunda, Pedro Chicri, a terceira, Táscia Souza, a quarta e Saulo Machado, com o quinto decêncio.
Leda Nagle
Arlete Heringer
Pedro Chicri
Táscia Souza
LEDA NAGLE: O que você feiçoar o trabalho de ator. Acho aprendeu com o grupo e não se es- que isso vem para todos depenqueceu na sua vida pessoal? dendo da dedicação de cada um, mas a qualidade que eu mais cresPEDRO CHICRI: Aprendi acima ci foi a de vida. Você passa através de tudo que o GD utiliza o teatro do trabalho em conjunto a se como instrumento de formação portar diante da sociedade. O traHUMANA. Amor, respeito, disci- balho com o ganho de aplausos, o plina, paixão, educação, trabalho, trabalho de sonhos que o Divulresponsabilidade, capricho, per- gação oferece nos faz cidadãos em feição. Escola de preparação para a busca de uma sociedade melhor, vida! Ser um bom cidadão! pois o teatro é feito para mostrar os defeitos do homem, e assim, PEDRO CHICRI: Com a inaugu- nós, exemplo disso, somos a conração do Teatro do Forum da Cul- strução de uma vida melhor. tura, o Divulgação começa a fazer temporadas, com maior número de SAULO MACHADO: Gostaria apresentações. O que isto represen- de saber qual processo teatral o inta para a cidade e para a Cia.? tegrante sentiu mais dificuldade e por quê? Se como ator, como técniLEDA NAGLE: Representa uma ca, na produção, no apoio ou no oportunidade maior para popu- sistema de panfletagem? lação da cidade e da região a ter acesso a bons textos, boas montaTÁSCIA SOUZA: Certamente, gens. Reforça a cultura local e for- a atuação. Todo o restante, num talece o Grupo Divulgação. Além grupo com a trajetória e o peso do de ajudar a formar plateia e ampli- Divulgação — que já era um patar horizontes da população. Só vejo rimônio histórico para Juiz de Fora pontos positivos. quando eu comecei no no núcleo de adolescentes, em 2000 (embora ARLETE HERINGER: Que ainda não oficialmente reconhequalidade você passou a ter de- cido como tal) —, já funcionava pois que entrou no GD? O que e continua a funcionar numa envocê mais aprendeu? grenagem perfeita. Não é difícil cuidar da produção, por exemplo, SAULO MACHADO: Aper- por mais trabalhosa que seja, num 46
Saulo Machado
grupo que já tem um enorme acervo técnico, tanto de cenário quanto de figurinos e adereços, num grupo cujo diretor é também cenógrafo e iluminador profissional, num grupo no qual os próprios integrantes vão passando uns para os outros ao longo dos anos um aprendizado teatral que vai muito além do palco. E não só um aprendizado teatral, mas uma lição que vale para a vida toda. A técnica não é só um exercício de acender ou apagar a luz e ligar ou desligar a música, mas um trabalho de observação e sensibilidade extremamente precioso. O apoio é imprescindível porque sem ele não há sequer como receber o público. A necessidade da panfletagem mostra que, mesmo depois de 50 anos de trabalho ininterrupto, o público não está pregado nas cadeiras e é preciso cativá-lo continuamente. Mas não senti dificuldade nessas atividades, porque elas são exemplos do que o GD tem de melhor: o trabalho de grupo, em que cada integrante, independentemente da sua função, é essencial. Por outro lado, a dificuldade da atuação está justamente no fato de ser a função que todo mundo que começa a fazer teatro quer e para a qual acha que está ‘’destinado’’. Se já não é fácil colocar plenamente o corpo e a voz a serviço da cena,
Dossiê
se isso exige um esforço e um desprendimento que vão se construindo aos poucos, romper o individualismo meio narcísico de quando se começa no teatro torna tudo ainda mais difícil. Muitos atores que não passaram por um grupo como o Divulgação, em que o importante é o trabalho conjunto, não conseguem compreender isso.
grupo no seu tempo refletiu esse momento? De que maneira?
ARLETE HERINGER: O Grupo Divulgação sempre montou textos que refletem nossa sociedade, nossa política e a inversão/mudança de valores lutando, a cada espetáculo, por uma sociedade mais equilibrada e mais justa. É um compromisso com a comunidade, com os espectTÁSCIA SOUZA: Os anos 1980 adores. Se hoje qualquer fato é diforam uma década, de uma certa vulgado instantaneamente nas reforma, paradoxal no Brasil. De um des sociais, sem censura prévia, em lado, problemas econômicos muito meados da década de 1980, quando fortes. De outro, uma enorme es- entrei no grupo, me recordo que perança política, desde as Diretas uma mulher ia “avaliar” os espetácuaté a própria redemocratização, los antes das estreias. Havia uma a Constituinte etc. O trabalho do sessão especial do espetáculo para
passar pelo crivo da censura. Mesmo assim, o que mostrávamos no palco era pungente, visceral, incômodo e perturbador. Alguns temas que sempre foram tabus ou indigestos entravam em cena: estupro, acomodação da sociedade, escravidão, opressão, alienação, submissão, passividade, diferenças sociais, preconceitos... Os espetáculos, inclusive os infantis, espelhavam com muita propriedade questões contemporâneas relevantes para a vida comunitária, a cidadania e a humanidade lançando mão do poder transformador do teatro de recriar a realidade com um olhar atento, crítico e eficaz para criar empatia com os espectadores. FOTO: JESUALDO CASTRO/ ARQUIVO GD
Cena de ‘Gritos Dissonantes’ de José Luiz Ribeiro, montagem de 2014.
mais variadas funções. Eu tenho A INVESTIGAÇÃO - O que fez o tidade e seu método de trabalho. mais afinidade com os cenários e É impossível não lembrar das Divulgação chegar até aqui? Existem muitas teorias que podem explicar o sucesso ou o fracasso de um espetáculo ou de uma trupe. Quando pensei em fazer este dossiê sobre o Divulgação fiquei pensando se esse poderia ser um caminho na hora de tecer a reportagem. Pensei se seria a presença de um líder que fez do grupo ser tão longevo. Recordei de um capítulo do livro da professora Márcia Falabella que fala justamente sobre isso. A figura do diretor é a figura do grupo. É sobre ele que recaem as pedras ou as folhas de louro. É a figura do diretor, a primeira a puxar o bonde, entender a particularidade de cada integrante e fazer com que uma companhia não perca sua iden-
longas horas de produção de um espetáculo, poucos dias antes da estreia. Nos reunimos sempre no mesmo horário, às 9h30, para uma reunião com o diretor. É nessa reunião que se determina quais serão as tarefas do dia, o prazo para conclusão, a maneira como determinado elemento cênico será construído ou modificado, obedecendo às necessidades da prática de montagem. É o diretor quem organiza e distribui as tarefas aos integrantes, respeitando a facilidade com determinada área que cada um possui na hora de montar o espetáculo. Mas é importante salientar que todos nós passamos pelas
iluminação, e gosto disso. E isso não impede que, se for necessário costurar um determinado elemento cênico, nos não faremos. Pelo contrário. À medida que determinado setor avança, vamos dando suporte aos companheiros que estão diante de uma tarefa mais demorada ou trabalhosa. E para que essa organização aconteça, a presença do diretor, de fundamental importância, pois é ele quem tem este olhar mais apurado e sensível, na hora de fazer as escolhas que vão desde a escalação dos atores, passando pela distribuição de tarefas. E no entendimento de todos nós que passamos pelo grupo, sabemos que é essencial. 47
Dossiê
Corrida contra o tempo
TERCEIRO ATO CENA I
Pão com salame Coca-cola na escadinha Corta, costura Pincel na lata de tinta Dia voa e não acaba Tira, muda e guarda Momento de pesquisa
FOTO: ARQUIVO GRUPO DIVULGAÇÃO
Refaz o traço com perfeição Amanhã tem mais Um dia de produção No Grupo Divulgação
José Luiz fazendo leitura para a montagem de ‘Pequenos Burgueses’ em 1969.
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O Grupo Divulgação é dividido em três núcleos de atuação: o de universitários, secundaristas e terceira idade. Conversei com Rodrigo César Julião, que entrou para o núcleo este ano e com Adélia Bassani da Silva, que está há 16 anos cursando o módulo da terceira-idade, junto com o marido, José Paulo Silva.
“Um mundo novo se abriu em nossas vidas. A aposentadoria chegou e ficamos meio perdidos com o que fazer. Sempre tivermos uma meta, que era depois de aposentar e ter os filhos criados, estudar e fazer coisas novas. O teatro chegou e preencheu este espaço de uma forma muito intensa. Começamos em 2000, em um grupo que o Zé (José Luiz Ribeiro) fez. Lá havia pessoas que nunca tinham feito teatro. Nossa primeira peça foi ‘Estação Esperança’. No ano seguinte, só eu e meu marido voltamos e ficamos num grupo que já existia há mais tempo. Fomos muito bem recebidos e estamos lá até hoje. E isso a gente passa a entender melhor as pessoas, essa convivência é muito boa, é como uma família, literalmente”. Adélia Bassani da Silva, do núcleo de terceira idade.
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Sábado e domingo Até os feriados Dias de produção
(O ator-repórter, na redação, pensa como vai abrir o terceiro ato)
“Sempre gostei muito do trabalho do Divulgação e digo que sou fã. Chegar nesse grupo no ano de seu cinquentenário foi um choque, pois sempre adorei atuar. E digo ainda que estou muito feliz com isso. Não considero mais meus colegas como minha turma e sim como uma família. A união que temos uns com os outros é algo que nunca tinha visto em qualquer outro lugar. O Divulgação é a diferença na minha vida até então. Nossos encontros me deixam mais feliz, pois faço o que gosto. Não só para mim, como para outras pessoas do nosso núcleo. Tenho algumas mudanças significativas até então, porém, a mais significativa foi que hoje eu amo e compreendo mais a arte de representar. Costumo dizer que minha vida é teatro.” Rodrigo César Julião, do núcleo de secundaristas.
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Nove e meia Abre a porta Mestre fala Começa reunião
Dossiê
CENA II - Teatro como ato de CENA III - Foi bonita a festa resistência
Para celebrar o cinquentenário, (Na redação, o ator-repórter dá sequência ao trabalho. A missão é dez eventos foram programaconcluir todo o texto até o fim do dos. No dia 6 de julho o núcleo de secundaristas abriu a semana dia) comemorativa com o espetácuPara uma companhia de teatro lo ‘Uma aula de teatro’, que repchegar aos 50 anos não é uma tare- resentava o Futuro. Na mesma fa muito fácil. Existem desafios que noite, abriu-se para a visitação vão desde a escolha do texto, que uma exposição que ocupou três precisa obedecer critérios de mon- salas no Forum da Cultura tratagem que caibam dentro da neces- zendo máscaras, fotografias, sidade da época e de seus atores. O cenários, figurinos e premiações diretor precisa ser o fio que une o ao longo destes anos. 7 de julcolar de pérolas, capaz de liderar, ho, dia do aniversário, o núcleo instigar e despertar o interesse de da terceira idade, representando seus integrantes para o debate e pro- o passado, trouxe à cena ‘Cora, dução de um espetáculo. O Divul- luar e cantar’ com poemas de gação é um dos poucos grupos de Cora Coralina. Na sequência, o teatro no mundo a atingir esta mar- livro Cancioneiro Divulgação, ca, com um trabalho ininterrupto e de José Luiz Ribeiro, que traz com um número de produções tão cerca de quatrocentas fotogravolumoso. Desenvolver um método fias e cordéis, contando toda a de trabalho, mesmo não estando es- história da trupe. No dia 8 foi a crito e regimentado, é crucial para vez do grupo colocar no ar o site manter a ordem e o padrão de mon- da companhia, um trabalho de tagem. E mais uma vez, o diretor é pesquisa que durou dois anos. No site, existem fotos, cartazes, quem coordena as atividades e disrevistas-programa, ficha-técnica tribui aos integrantes as tarefas foi meio de palavras e trabalho. É pre- e um videoclipe para cada especiso resistir, sempre e por isso son- táculo montado a partir de 1985, hamos, por isso resistimos. Quando quando passaram a ser filmados. um sonho acaba, procuramos por Para cada videoclipe, uma música e imagens dos espetáculos. Na outro, adiante.
mesma noite, a ‘Cantoria do Divulgação’ reuniu gente de várias partes do país e que já integrou o grupo. Um sarau, com cerca de 30 músicas, utilizadas em espetáculos adultos e infantis. No dia seguinte, pela manhã, um desfile nas ruas do centro de Juiz de Fora para celebrar o aniversário. O cortejo passou pelas ruas Fernando Lobo, Avenida Barão do Rio Branco, Barão de São João Nepomuceno, Batista de Oliveira, Calçadão da Rua Halfeld e Parque Halfeld, (colocar na ordem) onde numa grande ciranda, o grupo promoveu um abraço ao parque mais famoso da cidade. Em seguida, um tour pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) onde vários banners traziam imagens de espetáculos montados pelo grupo. Às 16h, o grupo apresentou ‘Anjos & Desarranjos’ e às 20h30 ‘Romeu & Julieta’ em apresentações extras. No domingo pela manhã, último dia de comemorações, às 11h, o ‘Papo Deita e Rola’ reuniu várias gerações para compartilhar histórias de bastidores e depoimentos de pessoas que passaram pelo grupo. O papo só foi terminar à noite, depois de muito samba e feijoada.
O site do Divulgação (www.grupodivulgacao.com.br) é documental e para colocar no ar, foram necessários dois anos de pesquisa.
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Dossiê FOTO: D. ZIMMERMANN/ GD
CENA IV - Premiações
1966
FESTIVAL DE ARTE DA UFJF Prêmio de declamação: grupos
1967
No sarau, músicas de todas as épocas foram cantadas pelos integrantes.
FOTO: MIARIANA ITABORAY
MINI FESTIVAL DE TEATRO - PRÊMIO CAIT (Centro Autônomo de Incentivo Teatral) Premiações referentes ao espetáculo Cancioneiro de Lampião Melhor Grupo 67 Melhor Espetáculo 67 Melhor Figurino 67 Melhor Música de Teatro 67 (Sueli Costa) Prêmio Atriz Revelação (Beatriz Martins: “Maria Bonita”)
1968
Prêmio de declamação: grupos Prêmio de declamação individual: 1° e 2° lugares, duas Menções Honrosas
1970
Lançamento do livro ‘Cancioneiro Divulgação
FOTO: MICHELL COSTA/GD
PRÊMIO MUNICIPAL DE TEATRO Melhor Grupo: pelo trabalho de difusão cultural Melhor Ator: José Luiz Ribeiro (Arnolfo: Escola de Mulheres) Melhor Diretor: José Luiz Ribeiro (por conjunto de trabalhos) Melhor Ator Coadjuvante: Pedro Paulo Taucce (Burgomestre: A Visita da Velha Senhora) Melhor Figurino: Lucas Marques do Amaral (por conjunto de trabalhos) Prêmio Atriz Revelação: Nelma Sandra G. Fróes (Inês: Escola de Mulheres) Melhor Espetáculo: Escola de Mulheres Abraço coletivo no Parque Halfeld
1971
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FOTO: MESSIAS MATHEUS/GD
VIII FESTIVAL DE TEATRO AMADOR DA GUANABARA (promovido pela ATA - Associação de Teatro Amador) 2ª colocação no Festival Troféu João Caetano, referente à classificação na chave OT Troféu João Barbosa: destaque de direção (José Luiz Ribeiro) Troféu Cacilda Becker: destaque de atriz (Delma Rocha) Troféu Jaime Costa: destaque de ator (Jairo Schimidt) Troféu Santa Rosa: destaque de cenário (José Luiz Ribeiro) Troféu Calixto Cordeiro: destaque de figurino (José Luiz Ribeiro) Troféu Glauce Rocha: destaque de coro e direção musical (Lisieux Costa)
No domingo, o ‘Papo deita e rola’ foi marcado por histórias de bastidores.
Dossiê FOTO: ACERVO PESSOAL
1971
PRÊMIO MUNICIPAL DE TEATRO Melhor Grupo: trabalho de difusão cultural Melhor Atriz: Léa Maria Clifford Kegele (Maria Stuart: Maria Stuart) Melhor Atriz Coadjuvante: Marta Sirimarco Guedes (Ana Kennedy: Maria Stuart) Melhor Ator Revelação: Jairo Schmidt (Mortiner: Maria Stuart) Melhor Figurino: Lucas Marques do Amaral (Maria Stuart) Melhor Diretor: José Luiz Ribeiro (por conjunto de trabalhos) Melhor Espetáculo: Maria Stuart
Na festa, com Franciane Lúcia, integrante do GD nos anos 2000.
FOTO: ACERVO PESSOAL
1972
I ENCONTRO NACIONAL DE TEATRO JOVEM (promovido pelo Governo do Estado do Rio) Melhor Espetáculo 1ª Colocação Nacional: Troféu Sesquicentenário da Independência (A Morta)
A concentração antes do desfile foi marcada por sorrisos e selfies.
FOTO: ACERVO PESSOAL
PRÊMIO MUNICIPAL DE TEATRO Melhor Ator: José Eduardo Arcuri (Eufêmia: O patinho torto) Melhor Ator Coadjuvante: Pedro Paulo Taucce (Hierofante: A morta) Melhor Atriz Coadjuvante: Nelma Sandra G. Fróes (Iracema: O patinho torto) Melhor Atriz Revelação: Lêda Nagle (A outra de Beatriz: A morta) Melhor Atriz: Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro (D. Custódia: O patinho torto) Melhor Ator Revelação: Luiz André Defilippo (Bibi: O patinho torto) Melhor Figurino: Lucas Marques do Amaral: (O patinho torto) Melhor Diretor: José Luiz Ribeiro (por conjunto de trabalhos) Melhor Espetáculo: A morta
1973
No domingo, após a feijoada a festa ainda se esticou.
FOTO: ACERVO PESSOAL
I FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO AMADOR (FENATA) Ponta Grossa, Paraná 1ª Colocação Nacional Melhor Espetáculo Seis personagens à procura de autor Melhor Ator/Troféu Sérgio Cardoso: José Eduardo Arcuri (Pai: Seis personagens à procura de autor) Melhor Atriz/Troféu Glauce Rocha: Virgínia Calaes (Enteada: Seis personagens à procura de autor) Melhor Atriz Coadjuvante /Troféu Cacilda Becker: Sandra Emília Costa (1ª Atriz: Seis personagens à procura de autor) Melhor Figurino/Troféu Helena Van Den Berg: Malu Ribeiro (Seis personagens à procura de autor) Melhor Cenário/Troféu Santa Rosa: José Luiz Ribeiro Melhor Iluminação/Troféu Hamilton Saraiva: José Luiz Ribeiro Melhor Direção/Troféu Salvador Ferrante: José Luiz Ribeiro
Com a Arlete Heringer, integrante dos GD no anos 1980.
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Dossiê FOTO: MESSIAS MATHEUS/GD
1984
Concentração para o desfile.
FOTO: MESSIAS MATHEUS/GD
VI FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO AMADOR São José do Rio Preto, São Paulo Melhor Espetáculo Esta noite se improvisa Melhor Trilha Sonora: José Luiz Ribeiro (Esta noite se improvisa) Melhor Iluminação: João Ricardo Luz (Esta noite se improvisa) Melhor Figurino: Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro (Esta noite se improvisa) Melhor Direção: José Luiz Ribeiro (Esta noite se improvisa) Esta noite se improvisa espetáculo escolhido para abertura do Festival do SESC no Teatro Anchieta, São Paulo Esta noite se improvisa: indicação da crítica carioca e paulista, da Revista Afinal, como um dos 10 melhores espetáculos do ano
1985
VII FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO AMADOR São José do Rio Preto, São Paulo Melhor Atriz: Valéria Veiga Penna (Putz: PUTZ – A menina que buscava o sol) Melhor Figurino: Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro (PUTZ – A menina que buscava o sol) Premiação Especial/Melhor Produção: PUTZ – A menina que buscava o sol
Visita à UFJF, onde banners em homenagem ao grupo estavam fixados.
Selfies e sorrisos durante a feijoada
FOTO: ACERVO PESSOAL
VIII FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO AMADOR São José do Rio Preto, São Paulo Melhor Texto Nacional Inédito/Prêmio Timochenco Wheby: Girança, de José Luiz Ribeiro Melhor Atriz: Alice Freesz (Mercês: Girança) Segundo Melhor Espetáculo: Girança Ator Revelação: José Márcio Carvalho de Souza (Duende Plum: A noite dos duendes) Indicação da FETEMIG para representar Minas Gerais no VIII FBTA (Festival Brasileiro de Teatro Amador, em Ouro Preto): Girança O Grupo Divulgação recebe em Cabangu a Medalha Santos Dumont, grau bronze, outorgada pelo Governo do Estado, em 23 de outubro
FOTO: ACERVO PESSOAL
1986
1989
O Grupo Divulgação recebe o Prêmio Manoel Teixeira de incentivo aos grupos de interior pela AMCT – Associação Mineira de Críticos de Teatro, em Belo Horizonte
1990
Título de Sócio Benemérito da FETEMIG/Federação de Teatro de Minas Gerais: José Luiz Ribeiro 52
Desfile no calçadão da Rua Halfeld
Dossiê FOTO: ACERVO PESSOAL
1995
XV FESTIVAL NACIONAL DE TEATRO São José do Rio Preto, São Paulo Melhor Atriz: Márcia Falabella (Sara: A escada de Jacó) Melhor Espetáculo no Júri Popular: A escada de Jacó
2000
Medalha do Sesquicentenário de Juiz de Fora concedida pela Prefeitura de Juiz de Fora ao Centro de Estudos Teatrais – Grupo Divulgação
Com Nilma Raquel, na feijjoada.
FOTO: ACERVO EPSSOAL
2002
Medalha do Mérito Legislativo concedida pela Câmara Municipal de Juiz de Fora a José Luiz Ribeiro Destaque das Artes Cênicas como Atriz, conferido pela AMPARC/Associação Mineira: Márcia Falabella (Eulália: Botanágua)
2004
Medalha Pedro Nava, concedida pela Prefeitura de Juiz de Fora: Centro de Estudos Teatrais – Grupo Divulgação
2005
FOTO: ACERVO PESSOAL
Prêmio Altamente Recomendável da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil para o texto teatral de José Luiz Ribeiro: O Rei de Quase-Tudo (inspirado na obra homônima de Eliardo França) Prêmio Usiminas-SINPARC no Palácio das Artes: José Luiz Ribeiro (por conjunto da obra) Prêmio Reconhecer conferido pelo Conselho Municipal de Assistência Social: José Luiz Ribeiro (pelo trabalho assistencial) Grande Prêmio Minas de Dramaturgia: José Luiz Ribeiro (pelo texto: A Formosa Menina que Salvou o Circo) Medalha JK concedida pela Universidade Federal de Juiz de Fora: José Luiz Ribeiro
Com Fátima Amorim e Márcia Falabella.
Concentração para o desfile.
2012
Comenda Bernardo Mascarenhas, concedido pela Agência de Desenvolvimento de Juiz de Fora e Região: José Luiz Ribeiro FOTO: MICHELL COSTA/GD
2013
Título de Cidadão Benemérito de Juiz de Fora: José Luiz Ribeiro
2016
Medalha do Mérito Legislativo, conferida pela Câmara Municipal de Juiz de Fora: Grupo Divulgação Mérito Comendador Henrique Guilherme Fernando Halfeld: Grupo Divulgação
Desfile no calçadão da Rua Halfeld.
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FOTO: MATHEUS BERTOLINI/CAROLINA TOSETTI
H
istórias de luta, garra e persistência. Em uma sociedade cada vez mais voltada para o consumo e a padronização das identidades, ser diferente exige esforço. Pelo caminho podem, e irão haver embates, olhares tortos, incompreensão e estigmas datados de séculos e mais séculos atrás. O preconceito não só é reforçado por instituições sociais, como é alimentado pela falta de diálogo, pela falta de novas leis que amparem pessoas diferentes, que vivem em um tempo diferente. Muito se diz sobre o poder influenciador da mídia, há aqueles que falam até que a televisão, por exemplo, participa da construção do caráter de indivíduos que a assistem. Mas cenas de afeto entre gays em uma telenovela podem mesmo invadir a personalidade de alguém? Seria a orientação sexual pura representação de caráter? E as pessoas transexuais, apenas por se sentirem pertencentes a outra identidade de gênero perdem seu valor de cidadãos? Perdem o direito à dignidade ou a empregos formais? Fato é que a empatia tornou-se um sentimento precioso na sociedade contemporânea. Queremos que todos entendam nossos dile-
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Carolina Tosetti Matheus Bertolini
mas e anseios, mas somos incapazes de pensar e mesmo colocar a prova nossas atitudes pelos outros, principalmente se esses “outros” são, por algum motivo, diferentes da hegemonia que a sociedade padronizou numa fábrica. Partindo de “N” perspectivas, com união, pretende-se confrotar problemas até então pouco vistos. O discurso violento só aumenta, e, consequentemente, as vozes das pessoas que merecem que as escutemos são caladas. Numa grande máquina chamada coletividade, a segregação atinge seu ápice e cria um espaço onde nada se respeita, tudo se descrimina. Com base em pesquisas atuais e dados reais obtidos junto à Secretaria de Direitos Humanos e entrevistas que serviram de profundo aprendizado sobre a realidade LGBTI no Brasil, nesta reportagem, vamos destrinchar aspectos essenciais e pouco falados sobre a vida dessa comunidade plural e que sofre tanto até hoje. A violência contra gays, lésbicas, pessoas transexuais e intersex consiste em violação aos direitos humanos. O ‘Disque 100’ é o órgão responsável por coletar, examinar e encaminhar denúncias desse tipo de violência, e elas poderão ser anônimas ou sigilosas quando solicitado pelo denunciante. 55
Gênero
A Questão da Militância LGBTI o kit serviria para incentivar as crianças a virarem gays. A intenção da campanha era mostrar pra sociedade que não há problema em ser LGBTI, que isso não é um desvio de caráter”. No entanto, projetos como este são desfeitos por bancadas fundamentalistas religiosas em todo o país, que argumentam a respeito da ideologia de gênero e o corrompimento da família tradicional. “No ano passado, a gente teve a perseguição nos planos municipais de educação no Brasil todo. Os planos iam falar de igualdade de gênero, que nada mais é do que direitos iguais para homens e mulheres, ia falar também sobre a orientação sexual para combater o preconceito nas escolas. Eles não querem que se fale sobre igualdade de gênero, identidade e nenhuma dessas questões com o argumento que isso iria incentivar as crianças a serem diferentes. Em Juiz de Fora também aconteceu isso, a ban-
cada fundamentalista religiosa criou o termo “ideologia de gênero”, falando que a gente queria destruir a família e a noção de que se nasce menino e menina. A gente quer o direito de travestis e transexuais retificarem o nome da certidão de nascimento, mas isso na idade adulta”. A militante destaca que, no ano passado, o Coletivo Duas Cabeças conseguiu a regulamentação da adoção do nome social em Juiz de Fora por meio de um abaixo-assinado. “O coletivo, no início de 2015, conseguiu a adoção do nome social pela UFJF para travestis e transexuais, foi uma luta do coletivo. A gente conseguiu fazer um abaixo-assinado recolhendo mais de mil assinaturas no município. A gente ganhou muita visibilidade na cidade com essa campanha, para que travestis e transexuais pudessem estudar e ter seu nome social escolhido respeitado”.
FOTO: DIVULGAÇÃO UFJF
A militante do Visitrans (Grupo de Visibilidade e Militância para Travestis, Transsexuais e Interssexuais) e Coletivo Duas Cabeças, Bruna Leonardo, fala sobre as questões que barram as lutas atuais. “Infelizmente no nosso país vivemos um retrocesso muito grande nos últimos três anos. A perseguição à comunidade LGBT é uma perseguição institucionalizada, e isso é muito grave porque os poucos direitos que a nossa comunidade conquistou corremos o risco de perder por causa do fundamentalismo religioso e da falsa noção de moral”. Bruna conta que os grupos criam diversas práticas para incentivar o respeito e combater o preconceito já nas escolas, falando sobre a igualdade de gêneros. “A gente tem uma campanha como o ‘kit anti-homofobia’, que era para combater o bullying LGBTIfóbico com crianças nas escolas, e em resposta foi dito que
“Aqui você é livre para usar o banheiro correspondente ao gênero com que se identifica”. Frase colocada nos banheiros da UFJF desde 2015. A iniciativa da campanha Libera meu xixi é voltada ao combate da transfobia em espaços públicos
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Gênero
“A campanha ‘Libera meu xixi’ também do coletivo na universidade está sendo muito perseguida, as pessoas estão perseguindo por ignorância e por maldade, porque nada mais é do que o direito de travestis e transexuais usarem banheiro de acordo com a identidade de gênero. Isso é um direito, não tem como um aluno ou servi-
dor da universidade não usar o banheiro de acordo com essa identidade. Essas pessoas já sofrem violência fora do banheiro. Bruna conta que o Brasil é o país em que mais há casos de morte de travestis e transexuais no mundo e finaliza: “Nosso país é um país que permite que a gente se assuma, mas, se sofremos algum tipo de violência, nos
é falado que a gente sofre porque escolhemos ser diferentes. Diferente de outros países que esse tipo de violência é criminalizado. Não tem como a gente ficar indiferente a tanta violência, a gente só quer o direito de existir e andar nas ruas sem sofrer nenhum tipo de perseguição. Um direito à dignidade. Eu tenho orgulho de ser uma mulher transexual”.
independentemente se ela não se conforma com os padrões preestabelecidos. Padrões esses moldados por uma vasta gama de preconceitos. Acredito que o direito ao uso do nome social no Brasil entra na pauta civilizatória de nossa nação. Pauta essa que precisa agregar as pessoas LGBT, principalmente, as pessoas trans, que vivenciam constantemente a experiência da abjeção”.
A sociedade brasileira precisa assimilar de uma vez por todas que a dignidade humana não pode ser relativizada por causa da identidade de gênero* ou sexual*. O direito do uso do nome social* é uma forma de tirar da invisibilidade essa população, é uma forma de enfrentar a violência e a exclusão tão comum na trajetória de vida dessas pessoas.
O direito do uso do nome social é uma questão de legitimidade humana para as pessoas trans. Essa legitimidade humana é um fator imperativo no Brasil, visto os diversos tipos de violências que essas pessoas sofrem em nossa nação. O uso do nome social permite as pessoas trans usufruam de toda a máquina governamental, inclusive as políticas públicas de inclusão social, sendo tratadas pela identidade de gênero que a representam. Além disso, o uso do nome social demarca avanços tanto em nossa legislação, mas também no abalo nas estruturas de nossa sociedade. “Alguns compreendem que a condição humana está aprisionada a corpo binário, pois ele não está. Diversas experiências na história da humanidade nos mostram a diversidade de possibilidades de expressar nossa identidade de gênero, para além do sexo biológico”, explica Hugo Quintela, estudioso de gêneros. Possibilitar a uma pessoa trans o uso do nome que representa a sua identidade de gênero é possibilitar a sua satisfação psicossocial. De acordo com Quintela, estamos, mesmo que em passos lentos, superando a nossa cultura heteronormativa*. “A sociedade brasileira precisa ser confrontada com a ideia de que todas as pessoas possuem o direito de ser identificada como ela quiser,
ARTE: MATHEUS BERTOLINI
nome social
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Gênero
A Questão dos Direitos Humanos
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jetos que já estão sendo colocados em prática. “Estou lidando bastante com o grupo LGBTI e com os respectivos coletivos, porque estamos ajudando na construção de um projeto chamado ‘Casa da Diversidade’, uma casa de acolhimento. Muitos adolescentes quando decidem se assumir são botados pra fora de casa pela família, sofrem preconceitos. A Casa seria um local de múltiplos atendimentos a essas pessoas, como o psicológico. A UFJF também será uma entidade parceira. Primeiro será criada a ONG, depois partiremos para a procura de um imóvel e aí começará a construção. Terá no local vários cursos, como o de música. Já iniciamos o processo fazendo orçamentos e identificando parcerias”. ARTE: MATHEUS BERTOLINI
A presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB de Juiz de Fora, Cristina Couto Guerra, entende o alistamento militar de transexuais e travestis como uma violação aos direitos humanos. “É uma violência para essas pessoas terem que passar por esse constrangimento, até mesmo nas filas que elas enfrentam no exército. Em conversa com uma militante transexual, ela me mostrou a sua certidão de nascimento, que continha o carimbo do alistamento no exército. São tantas as violações repetidas e diárias a essas pessoas que elas se tornam normais, mas, quando paramos para refletir, vemos o quão constrangedor isso é”. A falta de amparo legislativo e a rigidez nos processos relativos ao ambiente militar brasileiro, impulsionam o que podemos chamar de ignorância à identidade de gênero e às necessidades básicas de expressão de transexuais e travestis. “Muitas vezes, essas pessoas têm suas identidades expostas porque o exército é uma entidade machista por natureza. A identidade do exército é de que todos ali têm que “virar homem”. Não há qualquer lei ou documento a que essas pessoas possam se amparar, para evitar constrangimentos. Aos 17 anos, todos os convocados têm que ir, é uma exigência. Não existe um tratamento diferenciado para elas, têm de enfrentar as filas, passar por dentro do ambiente, tirar a roupa na frente de todos”, complementa Cristina Couto Guerra. No entanto, o movimento LGBTI tem voz mais ativa e questões que antes não podiam ser discutidas, como o preconceito familiar, agora podem ser ouvidas e reparadas o quanto antes. A presidente da Comissão de Direitos Humanos explica os novos pro-
Gênero FOTO: PUBLIC DOMAIN PICTURES
A Questão Psicológica de uma posição inferior. No entanto, apesar de muitos avanços nas últimas décadas a psicóloga explica que tal ‘descolonização’ deve ser cotidiana e ampliada, pois muitos direitos ainda são negados a estes grupos. A psicóloga enxerga o movimento LGBTI como ferramenta para o sentimento de pertencimento dos indivíduos. “Isso contribui para o orgulho e a autoestima das pessoas. Muitas vezes, a mídia, escola e família associam que pessoas LGBTI são condicionadas a uma vida menos digna e “errada”. Do ponto de vista coletivo, a comunidade, ao se reunir, questiona a concepção de que são minoria e podem lutar coletivamente por suas demandas. É uma forma de trazer visibilidade a questões que o contexto busca apagar e sufocar o tempo todo”. ARTE: MATHEUS BERTOLINI
O contexto social dos movi- baixa autoestima e sintomas dementos LGBTI parte de realida- pressivos e prejuízos à circulação des que não são inicialmente co- no campo social, visto que poletivas, mas sim geradas a partir dem sofrer represálias e agresde questões particulares de quem sões. As pessoas trans, por exemsofre o preconceito, e principal- plo, ainda hoje são consideradas mente, não se identifica como portadoras de desordem mental, componente de um padrão an- em que necessitam de laudos teriormente estabelecido como psiquiátricos, médicos, psicolócorreto. Para a psicóloga Brune gicos e sociais para legitimar sua Coelho, existem concepções em identidade jurídica, retificar seus nossa sociedade que estipulam a documentos e passar por proceheterossexualidade compulsória dimentos cirúrgicos consoantes como a única via legítima de ex- com suas necessidades”. pressão da sexualidade. Mesmo dentro destes gru“As pessoas LGBTI fazem re- pos que formam o movimento sistência ao contexto cisnorma- LGBTI, existem formatos que tivo* e heteronormativo* com a priorizam certas populações. De sua própria exisacordo com a psitência, lutando por cóloga, o Brasil foi direitos negados, marcado historicacomo ter liberdade mente por fissuras Discriminação sobre o seu corpo entre as próprias e o próprio nome. é o preconceito letras da sigla, visMuitas vezes, elas to que há especina ação sofrem estratégias ficidades entre as de violência corpopulações G, L, retivas no sentido T e B. “Percebe-se de as punirem por que o machismo fugir às normas convencionadas e a cisnormatividade atravessasocialmente como naturais. Den- vam o movimento, dando mais tre elas, as concepções equivoca- importância às pautas de hodas de que o corpo é binário* e mens gays, brancos e que não carrega em si uma verdade on- fossem tão afeminados. Atualtológica* do que é ser homem e mente, o movimento se tornou mulher”, afirma a psicóloga que mais complexo e está questiotambém é transexual. nando esses preconceitos antiPara Brune Coelho, existem es- gos que o atravessavam, dando tratégias de anulação das pessoas mais voz e visibilidade a lésbicas LGBTI por parte de instâncias da e pessoas trans. Além disso, a sociedade conservadora que oca- proximidade com a academia e sionam prejuízos, tais como estas o “boom” dos estudos acerca de pessoas serem mais suscetíveis a gênero e sexualidade na década violências físicas, psicológicas, de 90 no mundo, forçaram os sesimbólicas e institucionais. “Es- tores da sociedade a reconhecer sas pessoas têm seu acesso à saú- seus privilégios e propor uma de, educação, segurança e traba- ‘descolonização’ das identidalho dificultados por conta da sua des consideradas desviantes”, diz orientação sexual ou identidade Brune. Desta maneira foi posde gênero. Nesse ponto, o contex- sibilitado que tais situações puto traz adoecimento, tais como dessem ter mais voz, tirando-as
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A questão do alistamento Era para ser a comemoração do décimo oitavo aniversário, imaginem só, o tão sonhado 18 anos que colocava a não mais “pré-adolescente” na vida adulta. A data tinha o caráter de uma ocasião festiva, afinal era mais um ano de muitas conquistas, porém o presente veio de uma outra maneira. A Lei n.° 174/99 poderia estar no mais belo embrulho e, mesmo assim, nunca seria o melhor presente, afinal nela está a obrigatoriedade do alistamento militar para aqueles que possuem, na certidão de nascimento, o reconhecimento de sexo masculino. Difícil entender o motivo pelo qual isso é obrigatório, pior ainda é relacionar o desconforto e incômodo capaz de invadir a vida de uma pessoa Trans essa atitude. A vontade do aniversário parecia regredir os dias ao invés de aproximar da data. Era como se soubessem que algo ruim as 60
esperavam, e realmente esperava. Fazer 18 anos já não parecia uma boa ideia. Os sentimentos já mesclavam suas mentes. Ora raiva, ora vergonha. Não conseguiam entender a necessidade daquilo, afinal um papel é mais capaz de definir seu próprio gênero? A data se tornou pesadelo, e não pensar nisso era inevitável. As filas davam medo, o que eles fariam assombrava ainda mais qualquer coisa que poderia acontecer naquele dia. O certificado de reservista parecia algo já distante, e a pergunta ainda pairava: para que elas precisavam passar por isso? Fato é que muita coisa ainda se camufla na sociedade, e, nesse caso, o maior fardo dessas meninas é que raramente alguém se coloca no lugar delas. Foi noticiado em vários portais uma fatalidade que fere os direitos humanos e causa ainda mais
medo para elas: Jovem trans têm dados vazados após alistamento militar: “Medo de alguém querer me matar” - Transexual denuncia constrangimento em alistamento militar em Osasco - Estudante transexual é fotografada por militar ao fazer alistamento, é exposta na internet e recebe ameaças. O que esperar desse pesadelo onde a própria “segurança” te causa medo? Marianna Lively tem 18 anos e sofreu essa assustadora perseguição, recebendo ligações e até mesmo visitas em sua casa. Como a lei a obrigou, no dia 23 de setembro de 2015, ela esteve no 4º Batalhão de Infantaria Leve, em Osasco (SP), para se alistar no serviço militar. A jovem, que é transexual, foi fotografada dentro do quartel e teve sua imagem espalhada pelas redes sociais, assim como sua ficha de inscrição, com seu nome de registro, que ela não usa. Não
FOTO: MATHEUS BERTOLINI/CAROLINA TOSETTI
bastava seu medo e a discriminação que enfrentara nas horas dentro do quartel, ela precisou sofrer de transfobia, ser humilhada, ameaçada e, mais uma vez, esquecida para a sociedade. Quase um ano depois, nada aconteceu. Elas possuíam duas alternativas: primeira - vestirem a coragem e enfrentarem esse desafio. segunda - esperarem a lei olhar para seus direitos. Bem, a segunda estava muito fantasiosa para a realidade dessas meninas, bastou-se então vestir (mais uma vez) sua melhor roupa: a própria valentia do seu cotidiano. “É horripilante ter que ir a um quartel de exército.” Lucien Pugliese acabou de completar 18 anos e já enfrenta esse medo. “Só de ter que ir é uma humilhação, as pessoas trans necessitam de melhores atendimentos. Não precisamos fazer os exames juntos, mas precisamos sofrer essa humilhação?”
Pode parecer pouco, mas as transgêneros precisam ir até a junta de serviço militar, na data estipulada com seus documentos. Lá o título de reservista é emitido junto com a discriminação que elas enfrentam nesse dia. Olhares, piadas, cochichos e coisas que é melhor nem imaginar, acontecem nesse momento. Daniela Sales, 37 anos, se assumiu trans após os 18. Mesmo assim, reconhece que o alistamento é um episódio constrangedor. Segundo ela, a exposição ao ridículo é visível. Ela ainda acha que esse episódio pode ser traumático para uma menina tão jovem e sem maturidade suficiente para contornar a situação, tendo consequências na vida social e emocional, como isolamento e até mesmo retração na aceitação própria. “Preconceito sempre vai existir, acho que a melhor maneira de contornar é tendo uma
postura educada e inteligente, conhecendo seus direitos e deveres como cidadã, lembrando sempre que, pra ter respeito, é preciso saber respeitar. Quanto ao período de alistamento, deveria partir das autoridades um meio menos constrangedor para tal situação”, completa Daniela. Por leis melhores, por maiores cuidados e olhares de justiça, e não de discriminação. Isso é esperado por cada uma que já sentiu na pele a dor do tiro dessa guerra. Enquantos formos meros desconhecidos e a humanidade ficar em segundo plano, meninas, meninos, lésbicas, gays, idosos, travestis, transexuais...seres humanos... continuarão sendo segregados pelas diferenças. Que não deixemos de lutar pela igualdade, como disse Henry David Thoreau: “Nunca é tarde para abrirmos mão dos nossos preconceitos.” 61
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COLETIVO] Carolina Leonel
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les se organizaram a partir do interesse comum em estudar e pesquisar teatro autoral. Interesse inicialmente despretensioso que talvez tivesse, apenas, a mínima pretensão de movimentar esse “lugar-comum” de um grupo de pessoas que buscava semana a semana, no alvoroçado ano de 2013, trocar experiências, exercícios e práticas
que experimentassem diferentes formas do fazer teatral. A partir dessa movimentação, outras foram se fazendo necessárias e urgentes de acontecer. Dizem que quem semeia um ato pode acabar colhendo um hábito e, esse hábito, acaba se tornando um destino. Nesse ponto é que surge o rumo desse grupo de pessoas: O Corpo Coletivo. 63
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ra uma segunda-feira qualquer de julho. Deveria estar frio, mas sabemos muito bem da oscilação climática de Juiz de Fora. Em alguma rua da cidade, pouco mais de 20 pessoas se reuníam num espaço amplo e convidativo. À meia luz, acontecia uma oficina de teatro. Um cheiro de café pairava sob o teto e aquecia mais aquela noite. Todos se movimentavam, conversavam, se olhavam e ensaiavam. Tudo em movimento. Cenas eram ensaiadas, apresentadas e discutidas. No coletivo. Em coletivo. Quem assumia o espaço era o diretor Rodrigo Portela que imprimia sua marca n’OAndarDeBaixo -espaço de criação do Corpo Coletivo- e incorporava traços desse espaço para a sua dramaturgia. Noutro canto do lugar, Carú Rezende, uma das “peças” que (trans)forma esse organismo vivo, me dava atenção e me contava sobre o Corpo Coletivo. Basicamente, o coletivo surgiu a partir do interesse em estudar e pesquisar teoricamente o teatro autoral. Ba-
sicamente. Isso porque outras questões foram se mostrando essenciais. As trocas de experiência e aprendizado começam a tomar forma e, de repente, essa forma se expande para além da fronteiras imaginárias. Talvez estudar teatro não seja o suficiente. Talvez ele precise atingir. Atingir pessoas, lugares, ideias e perspectivas. A partir desses encontros, o grupo criou uma cena curta que participou do Festival de Cenas Curtas e foi premiada. Aí eles não pararam mais, e o Corpo Coletivo começou a, de fato, tomar forma. O Corpo Coletivo hoje é Carú Rezende, Hussan Fadel, Vinícius Cristóvão e Rafael Ski. Mas não se limita a esses organismos. São eles quem se empenham para manter o espaço e impulsionam o movimento, mas também topam ideias e são elas que, para Carú, impulsionam parcerias e novos projetos. “Não existe uma fórmula para ser do Corpo Coletivo, a gente de repente se conecta por um projeto em comum e outros nascem por afinidade”.
O Corpo
Hussan Fadel
Vinícius Cristóvão
Rafael Ski
FOTOS: DIVULGAÇÃO SITE
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Carú Rezende
FOTO: CAROLINA LEONEL
Teatro
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D A E N B D A A I R X O
O AndarDeBaixo é uma iniciativa do Corpo Coletivo. É um lugar-espaço que surgiu da necessidade do grupo ter um espaço de criação, produção e inspiração. É um espaço antropofágico, na parte baixa da cidade, que não é somente a sede do Corpo Coletivo. É um espaço de criação aberto, também, para que outros artistas, individualmente ou não, possam explorá-lo. É um espaço de teatro, mas também de cinema, literatura, música, artes visuais, instalações artísticas. É um espaço pra movimentar e ser movimentado. É um espaço pra ser. Logo, são. Eu, como narradora observadora dessa reportagem, passei algumas horas nesse “território” e pude perceber porque ele é tão envolvente e acolhedor. No AndaDeBaixo, os andares
acima, ao lado, à frente e, mesmo abaixo, parecem não existir. Lá dentro temos um mundo de possibilidades. As horas não passam: nós é que passamos por elas. Ao som de Beirut, Vinícius e Hussan guiam uma oficina de montagem. A atenção da mente está com os movimentos e expressões do corpo. À Rua Floriano Peixoto, número 37, segundo andar. À primeira vista você podemos ficar um pouco perdidos ao tentar encontrar uma portinha estreita em meio a tantas outras. É necessário olhar, dar um procuradinha, conferir se anotou direito o endereço e subir as escadas. Sim, subir. O AndarDeBaixo se eleva. Talvez seja proposital para que nós possamos reparar que o “marginal e subterrâneo” também (r)existe.
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“Pra mim, O AndarDeBaixo representa uma manifestação física de um trabalho que é muito subjetivo. É um lugar externo que demarca um território interno. Ele organiza nossas criações, nossos desejos e não só isso, ele estimula. O AndarDeBaixo é uma referência à estética e à ética que a gente trabalha. É uma quase uma referência política no sentido de como é o nosso pensamento politico com a arte. É onde estão as culturas que não são vistas, culturas que são deixadas de lado. A arte já é marginal, ela já está nesse andar de baixo. A Arte está num lugar profundo, enterrado, subterrâneo e essencial.” Carú Rezende
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Teatro
Projeções Colaborativas: A Criação A Partir Do Olhar Sobre Si “Nós somos pré-humanos, ainda não somos humanidade. Porém, o teatro pode ajudar a eclosão da humanidade. Ela só vai existir quando houver solidariedade e, no teatro, isso é possível”. A frase anterior é de Augusto Pinto Boal, dramaturgo, diretor, ensaísta teatral e criador do Teatro do Oprimido, umas das influências e referências do teatro político-social que o Corpo Coletivo busca ser, fazer e transpor. Sob a perspectiva desse método, todos nós somos teatro, embora nem todo mundo o faça. Ser teatro, é ser humano, ou seja, aquele que carrega, em si, o ator e espectador de si mesmos. Para Hussan, os trabalhos e projetos do Corpo Coletivo buscam, dessa maneira,
visto, podemos imaginar e sentir que o que é passado não é simplesmente atuação. São projeções colaborativas desse ser humano teatral, cheio de angústias e perplexidades, que existe em cada um de nós. Essa solidariedade de que Boal nos fala, talvez seja o compromisso de um com o outro e, cada um deles, a todos. Trabalhar em conjunto é experimentar e ajustar. É se acertar no trabalho do outro para potencializar o seu. É ter “posicionamentos fluidos, mas com responsabilidades. É construir, atuar, produzir, montar, ensaiar para si e para o outro. É um pouco de tudo isso que o Corpo Coletivo busca ser e inspirar.
acostumadas a usar. É como um As oficinas são oferecidas pe- músculo que a gente não exerciriodicamente pelo grupo. Elas ta, daí ele não aflora. São muito também são trocas. Práticas en- legais as oficinas porque, mais tre o Corpo Coletivo e as pes- do que montar uma e apresensoas. Atualmente, duas oficinas tar, você sai daqui pensando. E, de montagem estão acontecendo pensando, vai e escreve quatro semanalmente. A partir delas, ou cinco linhas ou desenha... outro(s) espetáculo(s) virão. A mesmo que não mostre a ninideia é chegar, participar, inter- guém, aquilo ali fez o músculo da poesia ser tensionado.” cambiar ideias e fazer. A partir delas, o grupo fazer despertar o lado criativo que, Transe Teatral Com o teatro, podemos não essegundo eles, todos nós temos. tabelecer relações, mas o encon“Todo mundo tem a poesia dentro de si, as pessoas só não estão tro acontece. Estamos passando
pelos dias de julho. Logo agosto desponta e novos trabalhos do grupo, também. Naturalmente, a construção coletiva se torna um processo, um método. Não se busca achar respostas, mas, encontrar direções. Limitar pensamentos é empobrecer as perspectivas do mundo. Tudo o que vivenciam e enxergam com e no outro pode vir a ser material de criação. De recriação. Influências estão em toda parte: estímulo e criatividade dependem da capacidade de olhar e reparar.
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mostrar o teatro em cada pessoa, em cada lugar. “Esse teatro social é uma reflexão a partir do pensamento crítico; o que se percebe como oprimido e opressor? Temos que olhar muito para o nosso contexto. Uma arte política é uma arte também sentida, a gente sobre o nosso espaço. A gente em primeiro lugar porque cada um sabe o que que quer pra si. E, depois, também acreditamos que o espectador, quando assiste e está imerso no nosso processo, também tem esse movimento de desconstrução do óbvio”. Com esse contexto de inspiração, conseguimos recortar nosso olhar para os espetáculos e trabalhos já desenvolvidos pelo grupo. Embora não tenhamos
Oficinas
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Teatro
SUBSTANCIAIS Casa dos Espelhos - Por Vinícius Cristóvão “Casa dos Espelhos é um espetáculo que fala do espírito humano. Exalta questões internas dos personagens que são externadas ao público e reconhecidas por ele. É um solo teatral em que existe a personagem, é condicionada pelo seu reflexo. E, quando qualquer coisa é condicionada a qualquer outra, e isso a domina, acontece uma angústia. O espelho é um reflexo sobre isso. Sobre essas angústias. É um espetáculo que exalta uma linha questionadora do ser humano sobre si. O que é interessante, também, é que vamos voltar com esse espetáculo, o que é um processo muito interessante porque nos mostra que nunca estamos prontos, as-
sumimos isso. Ao mesmo tempo, é estranho. Estranho porque é antigo, é potente, mas é antigo. Meu registro já está abrindo pra outros, abrindo possibilidades. Isso que é bacana de reparar”. Coisas Invisíveis - Por Carú Rezende “Coisas Invisíveis traz essa reflexão de si mesmo para crianças. É, de certa maneira, uma mesma forma de dizer a mesma coisa. É um espetáculo em que fica evidenciado aquilo que a gente quer dizer quando fala sobre um texto ter camadas. O fato de ele ter acontecido depois do Casa dos Espelhos, mostra uma evolução do nosso trabalho, da linha da mensagem que queremos passar. Acho que os traba-
lhos do Corpo Coletivo até aqui mostram o que a gente quer falar sobre o mundo para ele, estando nele. O Coisas Invisíveis é uma dessas formas de falar”. Pessoas Extraordinárias: oficina de criação de personagens anônimos - Por Hussan Fadel “Foi uma oficina de processo para diferentes atores e artistas da cidade. A oficina, que foi contemplada pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura Murilo Mendes, durou seis meses. Teve a rua como musa inspiradora e a ideia de estabelecer um lugar em que fosse possível se apropriar da rua e torná-la parte do nosso discurso. Tudo isso por meio do teatro.” ARTE: CAROLINA LEONEL
FOTOS: CAROLINA LEONEL FOTO: CAROLINA LEONEL
Quer explorar mais desse universo teatral? Acompanhe o Corpo Coletivo e as atividades oferecidas Facebook.com/corpocoletivo www.corpocoletivo.com
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FOTO: PEDRO SOARES
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Rio 2016
De Juiz de Fora para o mundo Cidade é sede de nove delegações Olímpicas e se estrutura para receber centenas de estrangeiros durante os jogos do Rio de Janeiro Caroline Ferreira
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tiveram boas impressões. Um deles é o intercambista e jornalista Beya Kabelu, de 20 anos. Ele estuda na University of Gloucestershire, uma faculdade estadual do Reino Unido, e veio ao Brasil para ser voluntário nas Olimpíadas. Beya conversou com a Periscópio sobre a sua rotina na cidade. Ele está no município há aproximadamente um mês aprendendo melhor o idioma. Apesar da dificuldade com o português, o jovem diz ter se adaptado bem: “Juiz de Fora é uma cidade muito tranquila. Eu estou gostando muito daqui, as pessoas são muito acolhedoras. Alguns costumes são um pouco estranhos, mas, no geral, a experiência tem sido muito boa.” A UFJF tem recebido estes turistas e investido na infraestrutura para dar suporte às delegações.
Antes da chegada oficial das delegações estrangeiras, a cidade já havia tido uma prévia deste megaevento, com a passagem da Tocha Olímpica, no dia 15 de maio. Para Juiz de Fora, autoridades consideram que é preciso aproveitá-lo, tanto no campo turístico, quanto econômico.
O local para o Global A vinda das delegações olímpicas de China, Canadá, China, Egito, Eslováquia, Estados Unidos, Estônia, Polônia e Qatar para Juiz de Fora altera o cenário da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e também de outros pontos da cidade. Os atletas começaram a chegar no dia 22 de julho e vão treinar na Faculdade de Educação Física e Desporto (Faefid), além de
FOTO: CAROLINE FERREIRA
s Olimpíadas do Rio de Janeiro, que vão acontecer a partir do dia 5 de agosto, trazem uma oportunidade única de visibilidade para o Brasil, já que centenas de países estarão representados por seus atletas durante os 16 dias de competição. Mas antes dos jogos, as delegações começam a chegar ao país e terão como sede não só o Rio, mas outras cidades. Uma delas é Juiz de Fora, que vai receber nove delegações de oito países. A primeira a movimentar o campus da Universidade Federal de Juiz de Fora, onde serão feitos os treinamentos, é a da China, que chegou no dia 22 de julho. Turistas e profissionais de comunicação já estão no município para se adaptar à rotina do país e afirmam que
Beya vai participar como voluntário das Olímpiadas e está produzindo um documentário sobre a experiência no Brasil
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Rio 2016 FOTO: CAROLINE FERREIRA
parou por mais de um ano para receber a Tocha Olímpica. Sérgio Rodrigues explica ainda que, mesmo com a política em efervescência, a economia tendo oscilações diárias, um evento deste tipo tem a capacidade de unir os povos. “As Olimpíadas têm essa função, de agregar os povos. Mesmo neste momento conturbado, o brasileiro terá um sentimento de patriotismo, de pertença ao país”.
Despontar a Universidade A Rumos recebeu cinco intercambistas que participam do dia a dia da empresa
em áreas próximas ao campus, como a BR-440, onde irão fazer treinos de corridas. Para acompanhá-los, equipes técnicas de seus países e jornalistas estrangeiros estarão na cidade, que vem se estruturando para recebê-los. A estrutura envolve serviços, como hotéis, restaurantes, transporte público, conservação dos pontos turísticos, entre outros. As Olimpíadas não trarão apenas história, mas há a expectativa de retornos imediatos para a economia local. Isso é o que garante a coordenadora do Departamento de Incentivo ao Turismo da Prefeitura de Juiz de Fora, Tatiana Herdy Hill. Ela explica que, mesmo antes da passagem da Tocha, a Administração já havia começado a investir no setor, criando o projeto ‘Juiz de Fora Fique Mais’. “É nossa oportunidade de divulgar nossas riquezas e belezas naturais. E, além disso, a nossa infraestrutura.” A coordenadora ainda afirma que, após a passagem do símbolo Olímpico, a Prefeitura realizou um levantamento sobre quantos turistas estiveram na
cidade na ocasião, o que surpreendeu. “Neste levantamento, no Terreirão do Samba, que foi o último ponto em que a Tocha passou, nós observamos a movimentação de brasileiros, do Rio de Janeiro, Angra dos Reis; e estrangeiros, como angolanos.” Neste momento, Juiz de Fora se coloca como ‘vitrine’, salienta Tatiana. Então, a longo prazo, se posiciona como uma potencial cidade turística. “Nós estamos mostrando o nosso potencial, por meio deste projeto ‘Juiz de Fora Fique Mais’ onde nós oferecemos novas possibilidades ao turista de vir a cidade, a prolongar a sua estadia, e até voltar à cidade, que tanto tem encantado os turistas” finaliza. Para o vice-prefeito de Juiz de Fora e coordenador do Comitê Olímpico da cidade Sérgio Rodrigues, Juiz de Fora terá grande retorno. “Em mais de 515 anos de Brasil, nós nunca tivemos uma Olimpíada, e tão cedo teremos outra oportunidade. Para as gerações mais jovens, é um estimulo muito grande para a prática esportiva”. Sérgio lembra que Juiz de Fora se pre-
Em relação à UFJF, o diretor da Faculdade de Educação Física e Desportos (Faefid), Maurício Bara, ressalta a importância do evento para a instituição de ensino. “Nos sentimos privilegiados, pois são poucas as universidades do país que estão recebendo as delegações, e nós esperamos que este movimento todo perdure, com retornos positivos para os alunos e para a faculdade.” De acordo com o diretor, a participação dos alunos tem sido extensa. Dentre os estudantes da faculdade, cerca de 145 estão participando ativamente da organização e cerca de 200 estão atuando na Diretoria de Relações Internacionais. “Nós temos realizado, inclusive, reuniões e capacitações para esses alunos que se interessaram em participar ativamente do evento, e temos tido bastante receptividade deles.” Maurício reitera que a aproximação dos acadêmicos com atletas de alto rendimento gera uma mudança de olhar sobre este campo, que hoje tem carecido de incentivo da população. “O contato dos alunos com a população especial de atletas de alto rendimento faz com que eles olhem para o esporte de maneira diferente. Essa mudança não é imediata, mas a gente que está na di71
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reção da faculdade nota que isso acontece de ciclos em ciclos”.
Formando a opinião Alunos e professores de outros cursos da federal também têm a oportunidade de vivenciar este momento. É o caso da Faculdade de Turismo, que já tem recebido intercambistas do Reino Unido para atuarem na Empresa Júnior Rumos. Atualmente participam do projeto cinco intercambistas de diversas cidades britânicas. O coordenador de marketing da empresa, Luiz Paulo Damasceno, explica que a seleção ocorreu por meio da Prefeitura de Juiz de Fora (PJF) “A partir daí, os estudantes estrangeiros vieram para a nossa empresa e, ao mesmo tempo que aprendem o português, atuam na Rumos, auxiliando na elaboração de eventos, por exemplo”. O intercambista e jornalista,
Beya Kabelu, está se adaptando à realidade do país. Ele diz ter gostado muito da culinária brasileira. “Eu gostei muito daqui do Brasil, a culinária é muito boa, como coxinha, caipirinha... Coisas que não existem lá em Londres. Possivelmente, eu poderia até morar aqui no Brasil, ou em Juiz de Fora, porque a experiência está sendo muito interessante.” Beya quer levar um pouco do que viveu aqui no Brasil para Londres e mostrar como foi a estadia em Juiz de Fora e o trabalho voluntário no Rio de Janeiro. Ele está fazendo um filme: “Esse documentário vai mostrar como eu passei esse período aqui no país aprendendo português e trabalhando nas Olimpíadas. Pois nós temos uma lá em Londres diferente do que realmente acontece aqui.” Sobre isto, Beya explica que, em Londres, os grandes veículos de
comunicação, como BBC e The Sun, enfatizam os problemas que o Brasil tem enfrentado e por isso provocam alarde nos britânicos. “O zika vírus, o impeachment e a corrupção são muito enfatizados nos jornais de Londres. O que dá a ideia de que as Olimpíadas aqui no Brasil vão ser um fracasso. Mas quando cheguei aqui, percebi que não é bem assim, e por isso eu senti ainda mais a necessidade de fazer esse documentário e exibir futuramente na faculdade, por exemplo.” Alguns jornais de Londres vêm reafirmando o estereótipo brasileiro. A emissora pública BBC lançou recentemente um vídeo sobre as Olimpíadas, enfatizando que a cidade sede dos jogos é um lugar selvagem habitado por panteras, onças e jacarés, que são retratados como esportistas e que praticam algumas modalidades esportivas presentes no
Conheça as delegações que estarão em Juiz de Fora
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A equipe de 40 integrantes chega no final de julho e o atletismo, esporte da delegação que irá ficar na cidade, já rendeu 26 medalhas ao país.
O país tem estreiante nesta Olimpíada e será apenas a segunda Olímpiada de um dos 15 colocados no heptlato no Mundial de Pequim, em 2015.
Na última edição dos jogos, ficaram em segundo lugar no quadro geral de colcação de medalhas em atletismo. Uma das promessas para esse ano é Su Bingtian, eleito atleta do ano de 2015 e na China
A equipe do Qatar de cinco integrantes têm Mutaz Barshim como atual campeão mundial em salto em altura., obtido em pequim no ano passado.
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Jogos Olímpicos. O vídeo gerou polêmica entre os internautas. Alguns defenderam que a emissora foi preconceituosa, e outros comentam que ela apenas enfatizou as riquezas naturais do Brasil. O vídeo até agora tem mais de 400 mil visualizações. Uma marca norueguesa, no entanto, ressaltou o futebol como parte importante do país. A marca de artigos esportivos XXL All Sports United retrata, em um vídeo de dois minutos, crianças que jogam uma partida de futebol numa comunidade do Rio de Janeiro e que lutam para entregar uma carteira perdida. O vídeo conta com a participação de Ronaldinho Gaúcho, ícone do futebol brasileiro. Beya comenta que os jornais em Londres têm o poder de persuadir as pessoas a pensarem de determinada forma. “A partir desse recorte que eles
dão de como é Brasil, pesquisar se essa é a verdade exatamente. Eu, como estudante de jornalismo, tenho essa consciência de que não se pode fazer isso e que se deve pesquisar e formar a sua própria opinião sobre determinado assunto.” O intercambista, que tem pouca experiência de estudo em jornalismo, mas já trabalhou em grandes jornais, como o The Sun, comenta que Brasil, mesmo tendo problemas sociais e políticos, não deixará de ser influência no esporte. “Na Copa do Mundo, o Brasil teve um triste resultado contra a Alemanha, por exemplo. Mas esse resultado nunca poderá apagar a história que o país tem, no futebol principalmente, com grandes jogadores do passado, como Pelé, Garrincha, e outros mais novos, como Kaká e Ronaldinho Gaúcho.” Para o jornalista esportivo bra-
sileiro Inácio Novaes, a grande oportunidade das Olimpíadas pode fazer com que os jornalistas se capacitem mais para a cobertura dos jogos. “O Brasil tem uma cultura muito futebolista, todo mundo é especialista em futebol. Com os jogos Olímpicos, não é assim, e por isso o interesse cai muito.” De acordo com Inácio, a mídia tem o poder de fazer com que a população se interesse pelas modalidades esportivas menos populares. Para ele, a capacitação do jornalista é fundamental para que esse interesse aumente. “Quanto maior for a cobertura de determinada modalidade, ela será mais vista pela população sem dúvida. Isso aconteceu na época em que o Guga ficou muito famoso, e a cobertura do tênis aumentou por conta dele e, consequentemente, mais pessoas começaram a praticar o esporte”, lembra.
Conheça as delegações que estarão em Juiz de Fora
A equipe de vôlei é campeã invicta do torneio pré-olimpíco africano, a equipe egípcia de vôlei disputará pela quinta vez as Olimpíadas.
O atletismo paralímpico do país já obteve mais 1000 medalhas em doze edições dos Jogos. Na modalidade Olímpica, os atletas já conquistaram cerca de 50 medalhas em 26 edições.
A equipe de atletismo americana possui um dos maiores competidores da modalidade decatlo. Ashton Eaton vira a Juiz de Fora junto com sua esposa, que é da delegação canadense
O país tem o atleta campeão em marcha atlética de 50 quilômetros, Matej Tóth. 73
Em busca de uma vida sustentável e longe do estresse Cada vez mais pessoas procuram modelos alternativos à rotina dos grandes centros. Na região de Juiz de Fora, a Fazenda Ananda Kiirtana é um destes lugares Raquel Cataldi
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dicaram o caminho e, ao chegar, notei que talvez os cerca de 40 moradores – com idades entre poucos meses a várias décadas de vida – não fizessem muita questão de serem encontrados. A placa, pequena e simples, se apresentava tímida na porteira. Já da porteira pude ver uma parte do casarão antigo que hoje
funciona como sede da Unidade Mestra Ananda Kiirtana, adquirida em 1989 por um grupo de praticantes da filosofia Ananda Marga. Fui recebida por Hugo, um dos moradores com quem eu havia trocado e-mails antes da visita. Enquanto se apresentava, ele explicou que ao ser iniciado à Ananda Marga, todos recebem
Principais Ecovilas no Brasil
FOTO: RAQUEL CATALDI
idade, trânsito, barulho, poluição, violência: essas palavras fazem parte do cotidiano de grande parte da população. Mas para alguns, viver em meio a tanto estresse não é mais uma opção. Buscando uma melhor qualidade de vida, cada vez mais pessoas procuram maneiras alternativas de viver. Uma delas são as ecovilas, modelos alternativos ao padrão insustentável das sociedades modernas, incorporando os antigos conhecimentos com a moderna ciência e filosofia. No núcleo do modelo está a celebração da diversidade cultural, espiritual e ecológica e o impulso para se recriar comunidades humanas em que as pessoas possam redescobrir as relações saudáveis e sustentáveis consigo mesmas, a sociedade e a Terra. O modelo de ecovila tem proposto soluções viáveis para erradicação da pobreza e da degradação do meio-ambiente, e combina um contexto de apoio sócio-cultural com um estilo de vida de baixo impacto. Em 1998, as ecovilas foram nomeadas oficialmente na lista da ONU das 100 melhores práticas para o desenvolvimento sustentável, como modelos excelentes de vida sustentável. Um exemplo de ecovila está localizado entre montanhas, muito verde e uma paisagem deslumbrante: é a Fazenda Ananda Kiirtana, em Belmiro Braga, a 37km de Juiz de Fora. O nome pode causar estranheza para quem, assim como eu, esteja pouco familiarizado com a espiritualidade indiana. Talvez, por isso mesmo, o lugar seja mais conhecido na região como Fazenda dos Monges. E na hora de pedir informação na estrada, foi através desse apelido que consegui encontrar o lugar de minha reportagem. Dois homens que trabalhavam no campo me in-
Na comunidade, vivem cerca de 40 pessoas, entre crianças e adultos
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FOTO: RAQUEL CATALDI
Sociedade
Nos templos, não é permitida a entrada com calçados
um nome espiritual, escolhido por um Dada (um monge), em uma cerimônia similar ao batismo. Portanto, Hugo, na verdade, é conhecido por todos da fazenda como Hitendra. Era domingo, dia da semana em que a comunidade recebe visitas e outros praticantes da Ananda Marga. Cheguei ao final de uma
cerimônia de entoação de mantras e meditação com os monges. Estavam todos reunidos dentro de uma sala que funciona como uma espécie de templo, na qual a entrada só é permitida sem sapatos. Do lado de fora, algumas crianças brincavam de bola no gramado em frente ao casarão. Após a meditação, foi hora do almoço com-
partilhado, somente com alimentos lacto-vegetarianos ou veganos. Além disso, nada de alho ou cebola, pois prejudicam a meditação. Enquanto o grupo almoçava, eu e Hitendra fomos conversar em um lugar mais calmo, debaixo de algumas árvores. Ele começou a me explicar o que de fato é a Fazenda Ananda Kiirtana e a Ananda Marga. A Ananda Marga é uma organização socioespiritual criada por Shrii Shrii A nandamurti, grande pensador e mestre espiritual que viveu de 1921 a 1990. Fundada na Índia em 1955, está hoje presente em mais de 180 países. A organização procura combinar práticas espirituais (meditação, posturas de Yoga, conduta moral e dieta natural adequada) com o serviço dinâmico ao próximo (escolas, clínicas médicas, orfanatos, cooperativas, asilos para idosos e outros projetos para o benefício da humanidade). Uma das formas de serviço social proposta por Anandamurti foi a criação de Unidades Mestras, centros de referência e experimentação para criação de uma sociedade nãocapitalista, utilizando tecnologias sociais, serviço ao próximo e práticas espirituais, tudo isso baseado na Teoria da Utilização FOTO: ARQUIVO - FAZENDA ANANDA KIIRTANA
Retiro Setorial de Inverno de 2015; evento é um dos principais captadores de renda da comunidade
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FOTO: ARQUIVO - FAZENDA ANANDA KIIRTANA
Sociedade
Durante os retiros espirituais, a meditação ocupa grande parte da programação
hospedagem para eventos e cursos, como os retiros espirituais, q ue a comunidade se sustenta. Perguntado sobre como foi morar na fazenda, Hitendra responde: “Em algum momento da minha vida eu encontrei as ecovilas, já fazia ioga e era vegetariano. Eu morava em Campinas, estudava na Unicamp e fiquei lá depois de formar. Então conheci um grupo formado por pessoas proutistas da Ananda Marga. Eu comecei a vir em retiros na fazenda e a
conhecer pessoas que tinham a mesma ideia de morar em comunidades espirituais. Esse processo durou quatro anos até dar certo”. Mas para morar em Andanda Kiirtana, não basta só querer. É preciso ter vontade de contribuir com a comunidade. “Em geral as pessoas vem, conhecem, ficam inspiradas e querem morar aqui. Mas geralmente elas conhecem só os retiros, não o dia-a-dia. Nossa vida aqui é muito mais pragmática do que só meditação, FOTO: RAQUEL CATALDI
Progressiva (PROUT), que é uma proposta alternativa aos modelos socioeconômicos decadentes do capitalismo e do comunismo. Foi dentro dessa proposta que a Unidade Mestra Ananda Kiirtana foi criada. O primeiro projeto, a escola Sol Nascente, foi iniciado em 1991 e atende ainda hoje crianças de 3 a 7 anos, além realizar projetos extracurriculares com jovens da região. Também foram experimentados diversos métodos de cultivo, sendo que atualmente, a unidade mestra conta com algumas áreas de agrofloresta, um pomar e uma horta comunitária. Além da escola e da produção agrícola, os moradores de Ananda Kiirtana promovem diversos cursos e eventos, sendo que os mais importantes são o Retiro Setorial de Inverno e o Retiro de Ano Novo, nos quais se reúnem grande parte dos praticantes da filosofia na América do Sul. Além disso, os moradores produzem pães orgânicos que são vendidos em padarias e mercadinhos da região. É através da venda dos pães e dos pacotes de
Casa bioconstruída, feita de barro
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Sociedade FOTO: ARQUIVO - FAZENDA ANANDA KIIRTANA
embora tenha muito disso também. A gente precisa de braços para fazer o negócio crescer. Não é uma aposentaria, um spa”, Hitendra explica bem-humorado. Durante a conversa, fiquei curiosa sobre o perfil dos moradores. De onde eles vinham e o que buscavam? Hitendra contou que as pessoas vinham de todos os lugares. Atualmente, há moradores que vieram do Estado de São Paulo, como ele, do Rio Grande do Sul, do Rio de Janeiro e até do Acre. O que elas procuravam, e acharam, foi uma melhor qualidade de vida e, principalmente, espiritualidade. “Eu fumava maconha todo dia em busca de bem-estar, a minha felicidade era baixíssima. Eu não sabia disso, mas hoje eu olho pra trás e consigo ver. Minha relação com o trabalho não era interessante. Eu trabalhava na IBM com software livre, o que eu achava bem legal, mas utilizado de uma forma muito capitalista. Eu comecei a perceber que a minha capacidade de fazer coisas é muito grande. Consigo trabalhar em menos tempo. Fico quase o dia inteiro trabalhando e no final de semana também, mas não me canso. Não me sinto triste. Não
Primeira plantação da Fazenda Ananda Kiirtana, na década de 90
sinto necessidade de procurar coisas para me divertir, já sou satisfeito no dia-a-dia. As coisas que a gente faz aqui já nos trazem satisfação”, comenta. Mas para tudo correr bem, como em qualquer comunidade, há regras a serem seguidas. Uma delas é não consumir qualquer tipo de substância psicoativa, como drogas, que de acordo com a filosofia do Ananda Marga, prejudicam a meditação. Além disso, há a preocupação com o meio ambiente. Por isso, as casas na comunidade seguem a linha da bioconstrução. Fora essas regras, a máxima seguida por todos é a do bom-senso e boa convivência. Todos procuram viver em harmonia entre si mes-
mos e com a natureza. Depois da conversa, fizemos um tour pela fazenda. O terreno de mais de 400 metros quadrados tem uma vista privilegiada do relevo montanhoso da região. A sensação que passa é de um lugar não necessariamente parado no tempo, mas certamente o ponteiro do relógio parece andar de forma diferente por lá. Me despedi e fui embora aliviada por saber que, em meio a uma sociedade doente, há outras formas de organização social. Ananda Kiirtana, simples e despretensiosa, pode até ter semelhanças com tempos passados, mas talvez seja o futuro. E se não for, ao menos podemos sonhar. FOTO: RAQUEL CATALDI
A fazenda combina um estilo de vida de baixo impacto ao meio ambiente
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Violência
M de Mulher, M de Medo A violência que não se apaga Vítima de violência doméstica fala sobre as agressões físicas e morais vividas em um casamento de quase duas décadas. Ela deu a volta por cima e conseguiu colocar fim à rotina de medo e vergonha Ruth Gonçalves
Vergonha. Esse é a palavra na fala acuada de uma mulher vítima de violência doméstica. É o relato de uma, mas o sentimento pode ser encontrado no depoimento de todas. Mais do que vergonha, incompreensão, ansiedade, medo e silêncio. Muitas sofrem agressões semanais, outras tantas são agredidas diariamente no ambiente doméstico, mas se mantêm caladas. No entanto, aos poucos, campanhas vêm alertando estas vítimas de que é preciso dar o seu grito de liberdade, não aceitar e denunciar. V., 50 anos, resolveu agir e por fim a um casamento, no qual a violência doméstica passou a ser realidade. Foram várias agressões físicas e verbais praticadas pelo companheiro. Ela conta que o marido sempre foi uma pessoa difícil de lidar, teimoso, genioso, e que não aceitava as coisas facilmente. Foram quase 20 anos de casamento e dois filhos. Ela recorda-se que, apesar de tudo, ele não era violento no início,
com um processo de separação. O “Isso veio depois”. “A primeira agressão aconteceu advogado aconselhou, na época, em 2005. Aí se passou um ano a tentativa de retirar o marido da mais ou menos, e tudo ficou casa onde a família morava, um por isso mesmo. Depois, vieram processo de separação de corpos duas seguidas. Isso já foi no fim na Justiça. Devido às agressões e mesmo. No meu ponto de vista, aos filhos do casal, que chegaram ele queria medir força para até a presenciar algumas violências, mostrar que era forte, pensando: a juíza determinou que o marido não poderia ‘assim ela não vai querer separar’. Eu já "A primeira agressão mais ficar na residência até tinha conversado com aconteceu em 2005. Aí ele que já não estava as audiências se passou um ano mais do processo dando mais. Acho ou menos, e tudo ficou que foi nesse sentido.” por isso mesmo. Depois, de separação. “Não entrei Além de muitas vieram duas seguidas. em contato agressões verbais, foi agredida com tapas e Isso já foi no fim mesmo." com a polícia, só advogado. socos. Ele atingia em V., vítima de outras partes do corpo, Ele aceitou menos o rosto. Uma violência doméstica sair, quando o vez deixou uma marca oficial de justiça em 2005/2006 foi até a nossa no braço, conta ela: “Eu casa com o acho que a marca física nem é tanto, mas é o emocional. mandado judicial, ele não mediu forças, saiu.” Isso conta mais.” Logo após a última agressão Quando questionada de física, V. tomou uma atitude. porque não procurou nenhuma Procurou um advogado e entrou autoridade policial, V. relata 79
Violência
que queria evitar a exposição e poupar os filhos: “Eu não quis procurar a polícia, ia ser doloroso para ambas as partes, principalmente para os meus filhos, avós, familiares em geral.” “Meu advogado me avisou que poderia ser muito perigoso tentar tirá-lo de casa, ele poderia vir e fazer novas agressões, já que eu não queria envolver polícia. O advogado me alertou que ele poderia ficar mais violento ainda, poque a pessoa se sente acuada; mas não foi o caso, ele não fez nada disso, aceitou a situação e saiu de casa.” O caso de V. integra parte do alto índice de violência contra a mulher. Infelizmente nem todas as agressões se solucionam desta maneira, sem mais ocorrências de violência.
Realidade em números
FOTO: DIVULGAÇÃO/PJF
A classificação dos crimes contra a mulher é baseada na Lei11.340/2006, conhecida como a Lei Maria da Penha. Na legislação atual brasileira é entendido como violência contra a mulher toda:
Violência física: qualquer conduta que ofenda a integridade ou a saúde corporal da mulher, como lesão corporal, homicídio, tortura e agressão. Violência psicológica: ações que lhe causem dano emocional, diminuição da autoestima ou que lhe prejudique, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição e outros. Violência sexual: qualquer ato que constranja a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; nessa categoria se encaixam por exemplo, o assédio sexual, o estupro e o estupro de vulnerável. Violência patrimonial: qualquer conduta que retenha, subtraia, ou destrua objetos, instrumentos de trabalho, bens ou recursos econômicos; nessa categoria se encaixam a apropriação indébita, extorsão, furto e roubo. Violência moral: calúnia, difamação ou injúria.
Casa da Mulher atende no térreo e Delegacia da Mulher funciona no 2º andar.
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Em Juiz de Fora, as vítimas deste tipo de crime recebem o apoio da Casa da Mulher. Inaugurado em 2013, o espaço oferece serviço de assistência social, psicólogas, serviço jurídico, plantão de duas policiais femininas e o apoio da Patrulha de Prevenção à Violência Doméstica, que faz plantão na unidade. No segundo andar do prédio, funciona a Delegacia Especializada da Mulher, com duas delegadas, escrivãs, investigadores, e todo o trabalho de atendimento à mulher. As instalações funcionam de segunda a sexta-feira, das 8h às 18h na Rua Uruguaiana, 94, bairro Jardim Glória.
Estupro coletivo Juiz de Fora tem registrado e divulgado nos últimos meses diversos casos de estupro e assédio sexual. Entre eles chamou mais atenção o estupro coletivo de uma jovem de 13 anos, que aconteceu na Vila Olavo Costa. Segundo a coordenadora da Casa da Mulher, Rose França, outros estupros coletivos já ocorreram na cidade. No entanto, este ganhou mais visibilidade por ter ocorrido logo após a denúncia de um estupro coletivo no Rio de Janeiro. O debate em torno das denúncias de estupro e como os inquéritos policiais são apurados aumentou depois do caso emblemático do Rio. O estupro coletivo sofrido por uma jovem no Rio chocou e mobilizou boa parte das mulheres. “Aumentou o número de denúncias. Já tiveram outros casos de estupro coletivo registrados aqui na Casa anteriormente, mas ainda não existia essa visibilidade. Aí vem o papel importante da imprensa, porque as outras meninas têm coragem de denunciar. É muito
Violência
importante a informação na de Pronto Socorro (HPS), que é medida certa, porque ela entra o Centro de Referência em Juiz dentro dos lares e, muitas vezes, de Fora nessa questão. O HPS vai entra onde a polícia não chega, acionar a Polícia Militar, que irá onde o poder público não chega. até lá para elaborar um boletim de Quando há informação é que a ocorrência. O ideal é que ela não pessoa percebe que ela é uma troque roupa, não tome banho, vítima, ela toma coragem para não faça nada, principalmente denunciar”, diz Rose. em casos de estupro se houver “Se tiver no nosso horário de conjunção carnal ou qualquer atendimento, o caso vem direto prática de ato libidinoso.” aqui para a Casa. A própria A vítima deve comparecer à Polícia Militar, a Delegacia em delegacia após essas primeiras Santa Terezinha encaminham. ações, para pedir providências, Quando não está no nosso porque, segundo informações horário de funcionamento da delegada, toda mulher a delegacia de plantão faz o maior de 18 anos depende do atendimento e depois encaminha comparecimento e pedido para aqui pra Casa pra nossa equipe abertura de investigação. O poder dar continuidade. Quando mesmo não se aplica a casos com se trata de violência doméstica menores de 18 anos. Tomado o todos os casos vêm sim pra Casa/ conhecimento da ocorrência, a Delegacia da Mulher.”, explica delegacia já inicia o inquérito. Rose França. A psicóloga Sara Rodrigues, A Delegacia da Mulher realizou um trabalho com disponibiliza o atendimento mulheres vítimas de violência. completo às vítimas. Como Segundo ela, com base nas por exemplo, medidas observações feitas durante os protetivas necessárias, como a atendimentos, se constatou impossibilidade do uma grande agressor se aproximar ocorrência de "A primeira coisa é ir da mulher há danos psíquicos ao Hospital de Pronto determinados metros, às mulheres Socorro (HPS), que é o afastamento do lar e o Centro de Referência que sofreram pedido de alimentos algum tipo de em Juiz de Fora nessa provisórios para violência, como questão. O HPS vai os filhos. Quando acionar a Polícia Militar, por exemplo, estabelecidas as o transtorno que irá até lá para medidas protetivas, de estresse pós elaborar um boletim de se acaso o agressor traumático, ocorrência." descumprir alguma transtorno delas, ele vai depressivo, Ângela Fellet, responder também quadros de pelo crime de ansiedades, delegada desobediência, fobias, dentre podendo até ser outros casos, decretada a prisão preventiva do também foi observado o uso agressor. abusivo de álcool e drogas. Em caso de a mulher sofrer “Eu participei da coleta de qualquer tipo de violência, a dados no projeto de mestrado delegada Ângela Fellet, aconselha: da psicóloga/professora Andréia “A primeira coisa é ir ao Hospital Monteiro Felippe, a qual realizou
uma pesquisa na Delegacia de Mulheres de Juiz de Fora no ano de 2013, intitulada: Transtorno de estresse pós traumático (TEPT) em mulheres vítimas de violência praticada por parceiro íntimo. Com o objetivo geral de investigar a relação entre esse estresse (TEPT) e a violência, com ênfase nas vítimas atendidas pelo setor de psicologia da Delegacia. A partir do rastreamento dos sintomas do TEPT, obteve-se a prevalência de possíveis casos do transtorno em 82,9% das mulheres entrevistadas. Houve uma associação positiva entre depressão e TEPT, e negativa entre TEPT e percepção de suporte social.”, explica Sara.
Cultura do estupro A Casa da Mulher de Juiz de Fora registrou, de 2013 até maio desse ano, 50 casos de estupro. Além de estupro, há registros de 511 agressões físicas e 974 agressões psicológicas, somente nesse período de janeiro a maio de 2016. Quando observado o levantamento feito pela Casa, o número de atendimentos totais feito pela instituição, considerando todos os tipos de agressões, sofreu visível aumento: em 2013 foram 1.308 casos. Em 2014, cerca de 1.867 mulheres receberam atendimento, e em 2015, foram registrados 2.231 casos, quase o dobro de 2013. Segundo informações da rede de enfrentamento da Secretaria de Estado de Defesa Social (SedsMG), em dados coletados de 2013 a 2015, a Zona da Mata está em quarto lugar nos registros de casos de violência doméstica e familiar contra a mulher em todo o estado. A classificação organizada pela Seds leva em conta as Regiões 81
Violência
Integradas de Segurança Pública do Estado de Minas Gerais (Risp), que são atualmente divididas em 18 Regiões. A Risp de Juiz de Fora envolve os municípios de Além Paraíba, Cataguases, Carangola, Leopoldina, Muriaé, Rochedo de Minas, entre outros. A região registrou 11.708 casos em 2013. No ano seguinte, foram de 11.744, enquanto, em 2015, foram 11.171 casos de violência doméstica. Cansadas da cultura do estupro, termo utilizado para identificar os costumes machistas e as “justificativas” de um estupro, ditas pelos homens, as mulheres foram para as ruas protestar. A disseminação do discurso machista
e dessa cultura discriminatória contra as mulheres não é de hoje. A mulher, hoje, não tem liberdade real do seu corpo e da sua vida. Ela anda pelas ruas com medo, sem saber o que pode encontrar na próxima esquina. A advogada Lailah Aragão, que também é integrante do coletivo feminista classista Ana Montenegro, vê a cultura do estupro como um dos fatores determinantes no aumento dos casos de violência contra a mulher. “Isso tem a ver, sim, com a cultura do estupro. A gente visualiza a cultura do estupro não isolada em ações, mas como uma estrutura que se perpassa na educação, no trabalho, nas relações familiares.
Porque, na cultura do estupro, a mulher não é dona do seu corpo, não tem o domínio, e, aí, quando a gente tem um ser humano que não tem o domínio do próprio corpo, quem vai mandar nesse corpo? É um corpo fácil de ser objetificado.”, finaliza. V.., do começo da reportagem, relembra o sentimento que tem da violência pela qual passou: “Isso nunca apaga da vida da gente, nunca. Não apaga porque você se expõe, eu me expus ao advogado, juiz. E não apaga no referente aos filhos também, porque a gente, a mulher sempre acha que está fazendo errado, entendeu? De tomar essa atitude. Entra ano, sai ano... mas nunca apaga.”
INFOGRÁFICOS: LETICYA BERNADETE
Números fornecidos pela Casa da Mulher de Juiz de Fora. Levantamento feito pela instituição desde 2013 até Maio de 2016 revela o aumento nos atendimentos à mulheres, principalmente nos casos de estupro, agressão física e psicológica.
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Cidadania
Vencendo a violência escolar com a inclusão da comunidade Colégio no Bairro Santa Cândida supera estigma e envolve famílias Igor Santos
M
na Escola Estadual Ali Halfeld, no Bairro de Lourdes, de onde foram levados três computadores, uma caixa com ferramentas, uma máquina de solda, uma furadeira, uma escada de alumínio e um carrinho de mão. Quando os funcionários chegaram para trabalhar na segunda-feira (18), encontraram as portas arrombadas.O prejuízo não é apenas material, mas pedagógico e psicológico, já que os computadores são equipamentos usados para o ensino na entidade. Além disso, estes episódios violentos acabam transformando o lugar que deveria ser da diversidade, do ensinamento e da inclusão em um espaço segregador, cheio de grades e cadeados. Os arrombamentos também mostram, muitas vezes,
FOTO: DIVULGAÇÃO E.M. SANTA CÂNDIDA
ais do que rondar as escolas, a violência tem cada vez mais sido um problema frequente dentro dos muros das instituições de ensino. São problemas de todos os tipos, que vão desde o abuso sexual até agressões contra estudantes e professores, passando pelos arrombamentos. No caso das agressões, somente este ano, de janeiro a junho, foram 31 registros, segundo levantamento da Polícia Militar, o que representa um aumento de 40,9% em relação ao mesmo período do ano passado, quando foram 22 ocorrências. Em relação aos outros registros, o número tem se mantido estável (ver quadro). Nos casos de arrombamentos, o mais recente aconteceu em julho
A cultura hip hop está presente até na fachada da Escola Municipal Santa Cândida
a dificuldade de o outro entender a escola como um espaço público A saída para resolver esse problema pode estar justamente pelo portão de entrada das escolas. Fazer parte da comunidade e deixar a comunidade fazer parte da escola. Tentar transformar o meio em que está inserida. Segundo o sociólogo e professor José Maria da Silva, ela tende a reproduzir os problemas da sociedade. “Resolver totalmente (a violência escolar), não penso que seja possível, visto que vivemos numa sociedade com contradições enormes, com violência em seu dia a dia, com enorme desigualdade de renda e oportunidades. Assim, claro, a escola tende a ser reprodutora dessas mazelas nas demais instâncias sociais. Mas, sim, as parcerias entre as organizações da sociedade civil e a escola podem ser benéficas para o conjunto escolar. Cito algumas dessas parcerias: aulas extra escola aos alunos, de arte, de teatro, de música, de pintura etc. que possam acolher os alunos em atividades que lhes propiciarão um encontro e reconhecimento de si mesmos.” Esse é o caso da Escola Municipal Santa Cândida. Mesmo estando em uma região conhecida por ser violenta, a escola foi à luta. A forma? Integrando família e escola e permitindo que os alu83
FOTO: DIVULGAÇÃO E.M. SANTA CÂNDIDA
Cidadania
A capoeira é uma das atividades oferecidas aos alunos na escola
nos discutissem, na instituição, o que eles viviam fora dela. A professora de Português Eliana Santos foi diretora do colégio por seis anos. Ela afirma que deu continuidade a um projeto já existente. “A escola tinha um trabalho voltado pra questão da violência junto à comunidade. Em sala de aula, nós não tínhamos registros de violência. A escola sempre procurou minimizar a violência dentro de sala”, explica. O caminho encontrado para superar o problema no entorno e manter os jovens na escola foi por meio de projetos sociais. Tudo começou com um trabalho sobre Consciência Negra e, a partir daí, nunca mais parou. “Nós averiguamos que o hip hop
era uma cultura bem marcante e que os alunos gostavam muito da dança, do grafite.Trouxemos também a capoeira, oficinas de jornal, de rádio. Foi muito bom. Isso envolveu bastante os alunos e, a partir de agora, eles cuidam da escola e se sentem valorizados. Esse foi o caminho que encontramos”, afirma Eliana Santos. A cultura serviu para aproximar os jovens e movimentos sociais. A oficina de hip hop é feita em parceria com o Coletivo Vozes da Rua, também sediado no Bairro Santa Cândida. A militante do Coletivo, Adenilde Petrina Bispo, considera essa interação fundamental para o crescimento dos jovens. “Muitos que estão com a gente falam que a cultura
hip hop os salvou do outro caminho. E essa parceria com a escola, a escola abraçando esse movimento dos jovens, na vida do jovem, isso é muito importante, porque ele começa a descobrir. Então ele procura estudar, procura se informar, procura conhecer mais. E, quanto mais ele conhece, mais ele entende porque as coisas acontecem”, explica. O trabalho é reconhecido pelos pais e responsáveis pelos estudantes que frequentam a escola. Uma verdadeira conquista. Eliana conta: “A gente percebe que isso melhorou muito a relação dos pais com a escola, eles acreditam no trabalho que é feito junto aos alunos. Quando a escola chama, eles comparecem. Foi um trabalho em que a gente acreditou e não pode parar. A gente deixa claro qual a função da escola e qual a função dos pais.” A dona de casa Márcia de Fátima Henriques da Silva é uma das mães que participam ativamente da Escola Municipal Santa Cândida. Márcia faz parte do colegiado da instituição desde a sua fundação: “É um colégio muito bom mesmo. Tem uma procura muito grande, vários bairros da região procuram essa escola: São Benedito, Vila Alpina, São Sebastião, todos ali por perto, Vitorino Braga. A gente participa de tudo que eles fazem lá, nada é feito sem a comunicação do colegiado. Às vezes, eles chamam a gente para ajudar a resolver o problema de
FONTE: POLÍCIA MILITAR
5 Ocorrências policiais registradas em Juiz de Fora nos primeiros semestres de 2015 e 2016
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2015 2016 %
Ameaça
Calúnia
Corrupção Estupro de Lesão de Vulnerável corporal Menores
Vias de fato/ Agressão
49 53 +8,1%
02 01 -50%
01 00 -100%
22 31 +140,9%
01 00 -100%
19 20 +5,2%
Outras infrações contra a pessoa 16 19 +18,7%
Cidadania
Violência faz parte do coti- no envolvimento da instituição escolar com o entorno: “Nós tediano Estando situada em uma região que convive com o uso e o tráfico de drogas, a escola precisa tratar do assunto em sala de aula. A violência e o crime fazem parte da vida dos alunos. Uma tarefa espinhosa, mas que, para a professora Eliana Santos, nunca deve impedir que o trabalho continue. “O que eles vivenciam é muito real e forte. A pessoa ver um tio, pai, o irmão ser assassinado. E se a escola não entrar com uma contrapartida, não entrar com algo que seja muito forte com eles… A escola tinha que ter algo forte para atraí-los. Nós conseguimos que alunos dessem continuidade aos estudos, entrassem na faculdade, entrassem no mercado de trabalho”, afirma. Além de alunos com familiares que perderam a vida no envolvimento com o crime, a Escola Municipal Santa Cândida teve ex alunos assassinados. Para que esse tipo de situação não se repita, Eliana, mais uma vez, aposta
FOTO: DIVULGAÇÃO E.M. SANTA CÂNDIDA
alguma criança. E sempre conseguimos resolver a situação.” A filha dela, de 13 anos, frequenta o colégio. Outros dois filhos de Márcia já estudaram na Santa Cândida e hoje estão no mercado de trabalho. A dona de casa mora no bairro há 32 anos e se lembra da conquista que foi abrir um colégio no bairro. “Foi muita luta para conseguir, quando ela começou, foi no farol de uma Igreja Católica aqui.” Mas a luta contra as armadilhas e os perigos da rua é uma constante. Mesmo com tanto trabalho, não se pode descuidar. Afinal, o tráfico e o uso de drogas estão bem próximos dos limites da escola. Segundo Eliana Santos, a solução para resolver os problemas também passa pelas parcerias. “Nós temos que avançar. Não adianta a escola ficar isolada do resto do bairro. Em parceria com a Igreja, nós fomos ocupando mais espaços. Havia um local abandonado que era ponto de tráfico. Onde era esse trajeto abandonado, nós ocupamos esse espaço e melhorou bastante.”
mos ex-alunos que se envolveram com drogas e acabaram sendo mortos. Então a escola tem que cuidar, para a gente não perder esses alunos para o tráfico. Se não fizer um trabalho além de passar conhecimento, só isso não é suficiente, a gente tem que buscar trazer alguma coisa que eles gostem de fazer. Não podemos tapar os olhos”. Nem sempre é fácil. A professora Eliana Santos destaca um momento em particular como bastante complicado no período em que dirigiu a Escola Municipal Santa Cândida: “Teve um ano que foi muito difícil, teve tiroteio na porta da escola. Nós buscamos parceria com a Polícia Militar. Tem o projeto Proerd (Programa Educacional de Resistência às Drogas), que visita uma vez por semana o colégio, conversa com os alunos, fala qual é o papel da polícia. E o fato de ter esse trabalho junto com a Polícia Militar foi ajudando bastante.” Apesar das dificuldades, o que dá força a Eliana Santos é o fato de ela ser moradora da região. A educadora mora no Bairro São Benedito, Zona Leste, vizinho ao Santa Cândida: “Por eu ser da comunidade, acho que isso me deu forças para lutar. E tive a ajuda da equipe, envolvida, que gosta da escola, que entende a comunidade, os alunos.”
Prevenção do Poder Público
Diálogo com os pais: objetivo da direção é trazê-los para o ambiente escolar
O Programa Educacional de Resistência às Drogas (Proerd) é o principal projeto da Polícia Militar no combate à influência do crime sobre os jovens. De acordo com a PM, o projeto consiste em um esforço colaborativo entre Família, Escola e Polícia Militar. O Proerd tem a missão de ensinar 85
Cidadania
o jovem a saber tomar decisões são baseadas apenas na ponta do acertadas e a visão de construir problema, que é onde a violência um mundo em que os jovens sai- aparece. Na verdade, a raiz do bam respeitar os outros e tenham problema a ser atacada encontraum comportamento longe das se em etapas anteriores da vida drogas, da violência e de com- dos alunos. É como um iceberg, portamentos pevemos somente rigosos em geral. a ponta, mas, “Tratar sobre esse Para a Sargento o que está por assunto abertamente, baixo da água Daniele, do 2º Batalhão de Polícia isso seria de muita aju- é muito maior. Militar de Juiz de da. Com essa cultura do E uma possível Fora, o mérito é solução está levar a mensagem estupro, que é grave na exatamente ali, do combate às nossa sociedade, seria onde não se vê”, drogas até jovens afirma. muito importante.” que eventualmenApesar dos Ione Maria Moreira, casos de viote convivem com delegada lência nas inso tráfico em suas casas. “Quando tituições de o militar orienta ensino, a assesas crianças a ficarem longe das soria de Comunicação da Secredrogas, têm muitas que vivem taria de Educação da Prefeitura dentro de casa essa situação de de Juiz de Fora, afirma que as um pai preso, envolvido com o ocorrências dentro das escolas tráfico. Muitos que vivem em da rede municipal são raras, e comunidades com a presença do poucas tiveram destaque ulticrime conseguem se afastar dele, mamente. A assessoria afirma por terem tido aulas do Proerd.” também que as ocorrências, em Mas existe quem tenha um geral, são corriqueiras. olhar crítico para a ação policial nas escolas. Para o sociólogo e A preocupação com a vioprofessor José Márcio da Silva, lência sexual as ocorrências no meio escolar Além da criminalidade connão são caso de polícia. “Eu acredito bastante no papel do poder tra o patrimônio e do medo do público para ajudar a melhorar tráfico, outros casos preocupam os índices de violência na esco- no entorno das instituições, que la, mas não acredito que a polí- é a violência sexual contra os cia possa ter uma atuação muito jovens. O exemplo mais forte e positiva nesta questão. Principal- recente desse problema foi o esmente, porque nossa polícia não tupro coletivo de uma jovem de está preparada para atuar preven- 13 anos, ocorrido em 16 de jutivamente em situações de confli- nho no Bairro Vila Olavo Costa, to. E não podemos criminalizar Zona Sudeste. A adolescente foi a violência nas escolas. A violên- estuprada coletivamente após cia escolar é uma questão social sair com uma amiga e outros e familiar, não uma questão de dois jovens de uma festa junina polícia. Já o poder público não na escola onde estuda. Os jovens foram até uma casa somente pode, como deve se envolver em prol de uma escola me- abandonada no mesmo bairlhor e mais integradora. As ações ro para a prática consentida de que estão sendo encaminhadas relações sexuais. Chegando lá, 86
porém, os suspeitos chegaram ao local e tentaram estuprá-las. A amiga da vítima conseguiu se salvar após se identificar como irmã de um traficante do Bairro Vila Ideal, Zona Sudeste. Os dois rapazes que acompanharam as garotas também foram embora do local. A jovem de 13 anos acabou sendo estuprada por vários homens durante horas. Segundo a Polícia Civil, o número de suspeitos de terem praticado o crime, chega a 13. Para a delegada de Mulheres Ione Maria Moreira, falta um diálogo franco e aberto com os jovens, o que poderia ajudar a prevenir casos de violência sexual: “É necessário que se tenha um entendimento com os pais, um esclarecimento maior com eles. Ainda que a internet dê o acesso a informações, a mãe tem um papel muito importante em relação às filhas. Tem que conversar abertamente sobre o que está acontecendo, principalmente para aquela adolescente que está ali na mudança de corpo, ela está se tornando mulher. Então eu acho que essa questão é fundamental para atuar de forma preventiva, para a adolescente se proteger mais. A necessidade, a vida do dia a dia, a mãe tem que trabalhar, tem que cuidar de casa, acaba não tendo muito diálogo com os filhos. Eu acho essencial esse esclarecimento, esse diálogo entre mãe e filha.” Na visão da delegada, a escola também pode participar e ajudar a educar o jovem sexualmente, principalmente se há falta de diálogo em casa. “Tratar sobre esse assunto abertamente. Principalmente nesse tempo que a gente está vivendo. Com essa cultura do estupro, que é grave na nossa sociedade, seria muito importante.”
FOTO: CARLA GONÇALVES
Esporte
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Esporte
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cas pessoas participavam na época. As corridas tinham preços baixos, o valor equivalente à medalha que o corredor recebia ao completar. Os participantes eram pessoas mais simples, com menos dinheiro. Não era tão popular quanto as corridas de rua são atualmente. Yvone também praticava ciclismo como hobby, com uma bicicleta de Moun-
tain Bike. Ela conta que começou então a investir na natação, e revela ser esse o seu ponto fraco. O próximo passo foi adquirir uma bicicleta speed, para treinar para o esporte em específico, e aos 42 anos começou a competir nos eventos da cidade.
Lawrene Gonzalez também teve na corrida o seu primeiro contato com o triathlon. Competidora amadora, encontrou a natação após uma lesão. Após o período de recuperação, correndo apenas distâncias curtas, Lawrene já se dedicava às duas modalidades da mesma forma. O próximo passo foi comprar a bicicleta, adaptando os treinos para o triathlon. A mudança, como conta, foi gradual. “Comecei a correr em 2011. Nadar em 2012 e a pedalar em 2014”. No começo, foi uma adaptação difícil, foram cerca de 2 anos para se sentir confortável com os treinos intensos. “Você acostuma a correr para lá e para cá. Você também adquire um preparo que não sente mais o cansaço exaustivo mesmo em treinos muito longos ou fortes. O mais difícil é a pessoa ter força de vontade de manter a continuidade.” Para alguns atletas, o desejo de participar de uma competição tão elaborada quanto o triathlon já existe, precisa apenas de um incentivo inicial. Foi o caso do militar Marcelo Mateus, que tinha interesse pelo esporte desde os anos 80, mas achava que o triathlon não estava ao seu alcance. Hoje com 46 anos, começou a praticar triathlon há 6, por incentivo de
ARTE: MATHEUS BERTOLINI
oco, dedicação e esforço físico. Estas são algumas características essenciais para o atleta de triathlon, modalidade esportiva cujo número de adeptos vem crescendo em Juiz de Fora em várias faixas etárias. Mas a dedicação necessária não é pra qualquer um. Alguns atletas recorrem para treinos até mesmo na madrugada, que perdem o horário de almoço para se dedicar a pedaladas, corridas e braçadas, enquanto outros atletas estão em busca de melhorar a própria performance antes de chegar à próxima competição. A porta de entrada para o esporte, na maioria dos casos, é a corrida, passando depois para o ciclismo e a natação. Este é o caso da professora de educação física Yvone Berg, que acompanhou o crescimento da participação das mulheres nas competições de triathlon desde seu começo no esporte. Ela conta que começou a se dedicar primeiro ao duatlo,enquanto ainda tinha dificuldades para natação. Depois, em 2010, conseguiu conciliar os três esportes. Sua história no esporte começou como corredora amadora, com 28 anos, já fazendo parte do ranking. Yvone conta que pou-
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um amigo que, segundo Marcelo, foi fundamental para seu começo no esporte, no triathlon do Xterra em 2010. Marcelo já contava com experiência em corrida e natação, mas o ciclismo não fazia parte dos seus treinos. Nos intervalos de educação física do trabalho, Mateus encontra tempo para encaixar seus treinos, uma pequena facilidade que poucos praticantes do esporte tem. A rotina de treino e do emprego é um dos fatores mais difíceis de se conciliar para um praticante amador de triathlon. Marcelo Mateus treina as três modalidades durante a semana, antes de ir para o trabalho e, por vezes, até mesmo à noite, além dos fins de semana.
Disciplina do atleta Para Lawrene Gonzalez, o triathlon é ligado à disciplina do atleta. A vontade e o foco de treinar é essencial para encontrar o horário para os treinos, com atletas treinando até de madrugada, como conta. Desde seu começo no esporte, em 2014, já participa de competições como atleta amadora. Completou provas como o Rio Triathlon, a All Limits, em Belo Horizonte, e começou a explorar as prova como Meio Iron, além de alguma corridas e travessias durante o ano. Lawrene conta que a dinâmica do esporte é o que a mantém mo-
tivada, a possibilidade de treinar modalidades diferentes, cada uma com suas características. A mudança constante do raciocínio e das atividades mantém a atleta motivada. Ela também destaca a importância da cobrança pessoal durante os treinos; “Gosto de fazer tudo aos poucos. Não me cobro demais, porque assim enjoa. Quando estou com vontade treino forte, quando não estou, faço um treino mais tranquilo. Assim, nunca perco a vontade. Nunca deixo de fazer os treinos porque a continuidade é muito importante, mas não vejo problemas em aliviar de vez em quando. Com esse meu ritmo me vejo fazendo triathlon até quando for possível. Esse é o meu desejo.” Já para Yvone Berg é a variação de modalidades que a fez se apaixonar pelo esporte. Apesar de praticar triathlon há 6 anos, Yvone acredita não ser muito tempo e gostaria de ter começado mais cedo, apesar de se destacar na sua categoria nas provas que compete. Por ter dificuldade no treino de natação no começo, Yvone competia em Duathlon, onde o atleta completa um percurso de ciclismo e de corrida, se destacando como umas das primeiras das provas. No triathlon encontrou competidores mais experientes, mas também se destacou. Sua melhor marca foi sé-
timo lugar geral, e também conta que, na sua categoria, já recebeu diversas medalhas de primeiro e segundo lugar. Por ser um esporte que exige muito do atleta, Marcelo explica que o praticante de triathlon precisa, além da paixão, de consciência, pois o esforço necessário, por vezes, pode passar dos limites do praticante, como conta Marcelo.“Nâo é fácil mas a gente tem uma filosofia que ,quando dói, para, pois é meio de vida e não meio de morte, e sempre treinar de forma que dê prazer”.
Técnicas específicas Carlos Almeida, atleta amador há 6 anos, acredita que o triathlon tem um aspecto atrativo, pois não evolve só força, mas também as técnicas específicas de cada modalidade, percebendo a melhora gradual em cada uma das 3 modalidades, na concentração e, consequentemente, a performance no triathlon. Completando 47 anos e com o objetivo de começar os treinos para o Meio Iron e o Ironman, Carlos conta que sua motivação está ligada diretamente ao aperfeiçoamento da sua própria performance, em superar seu tempo anterior em cada modalidade; completar as distâncias de forma mais rápida, com menor esforço e maior qualidade possível. FOTO: CARLA GONÇALVES
Para Carlos ao escolher uma competição é preciso que 3 fatores principais estejam em equilíbrio: o financeiro, o treinamento e, se for o caso, viagens.
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FOTO: CARLA GONÇALVES
A Busca por Equilíbrio O preparador físico Pablo Casadio explica que o treinamento para o triathlon muda de intensidade dependendo da finalidade do praticante. A fins de recreação, o esperado são de 3 a 4 treinos por semana, de forma a quebrar a rotina e se divertir. Grupos de pessoas que treinam por lazer, sem grande intensidade nem sempre precisa de orientação profissional, já que não assumem uma rotina muito intensa de treino. Quem procura o esporte por performance, ou até mesmo estética, para entrar em forma, precisa de mais horas de treino e mais dedicação, chegando a 8 treinos na semana. Entra-se nesse ponto no aperfeiçoamento dos resultados, procurando de maior qualidade nos treinamentos e
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melhor condicionamento. A diferença para atletas profissionais, que visam ganhar competições e fazer do esporte, uma carreira, é a intensidade dos treinos. Pablo explica que esses competidores podem chegar a 30 horas semanais de treinamento, com até 15 sessões de treino por semana, contando com musculação, além das 3 modalidades do triathlon. Segundo Pablo, quando um atleta assume um ponto de vista de melhora de performance e superar seus limites, a rotina torna-se outra. É preciso conciliar trabalho, treinamento e vida social, fator de grande importância. O cuidado necessário é igual ao de um atleta profissional, pois são muitos fatores envolvidos. Treina-se muito, mas também é pre-
ciso produzir no trabalho, cuidar do lado familiar, do círculo de amizades, ter tempo de descanso e cuidar da alimentação. O papel do educador físico também é de gerar consciência que há tempo suficiente para evoluir no esporte e conciliar as diferentes funções de forma saudável, como conta Pablo, de forma a viver bem praticando esporte, por um longo período e sem lesões sérias. “Um amador não depende do esporte para ganhar dinheiro e não deve ter uma rotina do esporte como se fosse uma rotina de trabalho, é preciso uma rotina de esporte dedicada, algumas horas do dia para ter evolução e se aperfeiçoar, mas o objetivo principal de um amador e gerar motivação, estar bem, ter saúde.”
Som na vitrola Larissa Garcia
Qualidade sonora, vontade de ter uma forma palpável da música, charme, saudosismo, tendências vintage ou retrô, esses são alguns dos motivos que levam produtores, artistas e admiradores a, ainda hoje, gostarem e, até mesmo, preferirem o vinil.
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m 2010, a única fábrica de discos do Brasil voltou a funcionar no Rio de Janeiro. Os proprietários da Deckdisc, motivados pelo crescimento de vendas nos Estados Unidos e Europa, acreditaram nesse mercado e reativaram a Polysom. Dois anos depois, a produção já havia aumentado 110%, um total de 24.120 LPs (Long Playing). De acordo com um dos atuais proprietários, João Augusto, “ o vinil é fundamentalmente uma experiência tátil, visual e auditiva. É uma experiência de manusear as quase 200 gramas do disco nas mãos, colocá-lo no toca discos, observar magníficas artes estampadas em 31x31cm, ler o encarte e a contracapa, trocar de lado e ainda ouvir um som que tem vantagens cientificamente comprovadas sobre qualquer som digital”.
FOTO: LARISSA GARCIA
Entre ipods e toca-discos “Na atualidade, toda tecnologia digital está disponível com facilidade. Mas sinto que a gente quer ter uma fuga para o analógico, o vintage. E você pode fazer a escolha de ir para algo mais antigo, sem renegar o novo, para ter uma experiência diferente.”
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diferente”- Carime Elmor LPs na estante, relógio e aparador de livros em formato de vinil, uma vitrola ligada tocando Paul Mcartney, nas costas de Carime, um gramofone tatuado e ela pronta para, pela primeira vez, ser a fonte de uma entrevista e não a jornalista.
Uma menina expressiva, nos gestos, na fala e em cada detalhe do seu quarto. Permita-me descrevê-lo um pouco mais. Uma de suas paredes é preta, cheia de quadros com temas musicais, Beatles por toda parte, móveis antigos repaginados, almofadas coloridas em cima da cama que foi da FOTO: LARISSA GARCIA
Pedi licença para literalmente entrar e conhecer o mundo de dois jovens: Pedro Tavares, 21, estudante de artes e design e Carime Elmor, 22, estudante de jornalismo.Eles nasceram na década de 1990, quando o LP estava se tornando obsoleto e os CDs ascendiam no mercado. Hoje, mais de 20 anos depois, com internet, Spotyfy, ipods, fones de ouvido, eles veem no vinil uma forma charmosa, agradável e diferente de experienciar a música. “Na atualidade, toda tecnologia digital está disponível com facilidade. Mas sinto que a gente quer ter uma fuga para o analógico, o vintage. E você pode fazer a escolha de ir para algo mais antigo, sem renegar o novo, para ter uma experiência
Carime passou a ganhar vinis de presentes dos amigos e familiares
Música
“Parece que a gente está no estúdio, na sala de controle. Ouvindo os caras tocando. Não parece uma gravação. É como se fossem a voz deles. O vinil é fantástico”,
Influenciado pelos pais, Pedro conta que não tinha como escapar da música. “Quando os dois casaram, eles tinham duas opções, comprar uma televisão ou uma aparelhagem de som. E, pensando no que seria mais útil e prazeroso, dispensaram a TV”. Ele Começou a fazer aula de baixo aos 14 anos e aprendeu sozinho a tocar outros instrumentos, como guitarra e piano. Fui até a casa do Pedro no dia mundial do rock (13 de julho). No caminho, ouvi Engenheiros do Hawaií, Led Zeplin, já que, todas as rádios faziam suas homenagens. Eu já estava imersa nesse ritmo contagiante e, quando entrei no quarto dele para conhecer seus discos , me vi diante de um cenário musical admirável. Guitarras, baixos e violões pendurados, quadros e canecas dos Beatles e, na estante, uma seção só de LPs. Com muito carinho e cuidado, ele colocou vários na cama para me mostrar e falou um pouco sobre seus favoritos. Quando pedi para fotografar, ele não sabia qual deixar mais evidente. “Esse dos Mutantes precisa aparecer. Esses dos Beatles também”. “O vinil, para mim, tem uma qualidade superior, o som é mais potente e menos artificial.
FOTO: LARISSA GARCIA
avó, uma estampava o rosto da Frida Kahlo. Na mesa de estudos, um diálogo retrô e moderno: máquina de escrever, notebook e um ipod. Ah, não poderia me esquecer das suas câmeras analógicas. Carime me mostrou os seus vinis e, assim que vi o do Milton Nascimento, sua voz se tornou o bg da nossa conversa. A ligação dela com o universo retrô veio através da mãe, e isso também se expressa em sua roupas, que ela tem prazer de procurar em brechós. “Eu tenho um fascínio com a década de 60. Gosto das músicas, sou apaixonada por Beatles. E foi a época em que houve uma grande revolução da liberdade sexual e de pensamento”, comenta. Todo esse envolvimento começou cedo em sua vida. “Eu tenho uma amiga de infância, Clarice, da minha cidade, Três Rios (RJ). A avó dela era a personificação da década de 70, vestia calça flare, tamancão. Sempre que a gente ia à casa dela, ela estava ouvindo música francesa nessa vitrola (apontou com o dedo). Ela gostava de por Edith Piaff. Eu adorava ouvir e ficar conversando com ela. Então, quando ela faleceu, a mãe da Clarice disse: Minha mãe ficaria muito feliz se você herdasse’. E foi um presentão, ela linda, toda de madeira e funciona super bem”, relembrou Carime. Nesse momento, a música parou, e Carime se levantou para colocar o lado B. Pela primeira vez, eu vi o funcionamento de uma vitrola, com olhos admirados. O vinil une duas de suas paixões, o vintage e a música. “Eu escuto mp3 o dia inteiro no ipod. Mas o vinil é outra experiência, é um momento diferente. Você espera o disco todo tocar, depois ouve o outro lado. Não dá pause, não pula as faixas. O vinil é uma coisa bonita, é uma obra de arte”.
O formato digital é muito comprimido. Eu estava ouvindo um disco com um amigo meu, num toca disco novo, de muita qualidade, e eu lembro que a gente falou. ‘Parece que a gente está no estúdio, na sala de controle, ouvindo os caras tocando. Não parece uma gravação. É como se fosse a voz deles’. O vinil é fantástico”, comentou Pedro . Pedro atualmente é baixista na banda Beatles Rock e toca guitarra com o cantor Filipe Alvim. No final do ano, Filipe vai lançar seu primeiro álbum em vinil. Sobre os cantores estarem voltando a gravar discos, Pedro opina que, além da qualidade, é uma tendência, pois o vintage está sendo mais valorizado: “É muito legal essa capa grande, esse discão. Muitas vezes, as pessoas levam em conta o charme”. A música, para ele, é a sua melhor forma de expressão. “Eu realmente sou tímido, desse jeito que eu estou falando, pausado e pensando nas palavras. Na música, eu me solto de um jeito que eu nunca consigo de outra forma. Acho que, na música, diferente do resto da minha vida, eu sei o que eu estou fazendo. Não de um jeito prepotente. Mas é onde eu me identifico.” 93
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Por que lançar um álbum em vinil hoje? FOTO: ELIZA MÖLLER
Filipe Alvim, 25, cantor e compositor original de Juiz de Fora. Em outubro deste ano irá lançar seu 1º álbum, em vinil
Entre os vários títulos já prensados pela Polysom, estão álbuns de artistas, como Maria Rita, Pitty, Nação Zumbi, Ana Carolina, Fernanda Takai, Exaltasamba, Zeca Baleiro, Marcelo Jeneci, Rancore, Matanza, Legião Urbana, Los Hermanos e muitos outros. Além disso, a empresa criou a coleção “Clássicos em Vinil”, para relançar álbuns emblemáticos da música nacional. Entre eles: “Cabeça Dinossauro” (Titãs), “Todos os Olhos” (Tom Zé), “Nós Vamos Invadir Sua Praia” (Ultraje a Rigor), “A Tábua de Esmeralda” (Jorge Ben Jor). Para João Augusto, apesar do custo de produção do vinil ser mais alto, os artistas apostam nesse formato porque “a música deles ganha níveis tão mais elevados quando reproduzidas em vinil que até um gasto a mais passa a valer a pena”. O cantor juiz-forano Filipe Al vim irá lançar em outubro deste 94
ano o seu primeiro álbum, em vinil, através da Pug Records, selo independente de Juiz de Fora. Em maio, o cantor lançou o single “Vida sem sentido”, lado A, lado B, também em vinil, para divulgar o novo álbum.
“O mercado de vinil é uma coisa única e há um bom tempo já está crescendo. Quem é fã e colecionador tem os primeiros lugares garantidos na fila desse comércio. Eu acho legal a ideia de a pessoa ter um apego pelo objeto, criar um laço, uma história. E para o artista, é poder cuidar da arte, do encarte e elaborar o conteúdo, o que é essencial para passar sua mensagem”, fala. Sobre os desafios da música autoral, Filipe comenta que existem “todos os possíveis e imagináveis”. Mas sua vontade é mostrar sua música para “ o máximo de pessoas possível”. Segundo o cantor, a recepção do público ao seu single foi positiva. Para o disVinil com o single “Vida Sem Sentido”, co, “se continuar assim, eu ficarei muito feliz”, comenta. lançado em maio deste ano.
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Música e Maresia
certo. Mas foi preciso um empurrão de amigos e colaboradores para acontecer. A gente não faz nada sozinho. Acho também que estou conseguindo devido ao momento da indústria: a volta do vinil e a possibilidade de um artista independente lançar seu próprio selo e distribuir diretamente por meio de uma plataforma digital sem o intermédio de uma gravadora”, conta Dulce. De acordo com a cantora adi-
FOTO: ALEXANDRE EÇA
A cantora Dulce Quental lançou em junho deste ano um álbum inédito em vinil. Com canções gravadas nos anos 1990, o disco traz a marca atemporal da artista reunindo composições feitas em parceria com Frejat, George Israel e Luiz Carlini. O LP Música e Maresia (Cafezinho Edições/Discosaoleo) é o quinto de sua carreira e traz os estilos da
MPB, do pop, rock e blues, misturados ao existencialismo, que é marca da artista. Anteriormente, a artista já havia registrado em LP os álbuns “Avião de Combate” (1984, com o grupo Sempre Livre), “Délica” (1985), “Voz Azul” (1987) e “Dulce Quental” (1988). Em 2004, Dulce gravou o CD “Beleza Roubada”. “Eu sempre tive o desejo de lançar um disco com essas gravações. Esperava pelo momento
Show de Lançamento do álbum Música e Maresia, no Teatro Sesc Belenzinho (SP), em junho deste ano FOTO: DIVULGAÇÃO
cionar essas músicas a sua biografia é um passo importante para trabalhar em projetos futuros. “Algumas coisas são mais datadas do que outras, mas a compositora está presente ali e a cantora em forma. Uma boa referência para projetos futuros. Importante arrumar o baú antes de seguir em frente. Outros projetos virão. A voz está voltando com força”, diz. Paralelamente ao lançamento deste álbum em vinil, os três primeiros discos da artista foram colocados no mercado em edição digital, e se encontram disponíveis no Spotify. Isso mostra a pluralidade e o diálogo dos formatos disponíveis para que os cantores mostrem seus trabalhos.
Capa do Vinil Música e Maresia, com canções inéditas de 1994
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O fluxo de vendas do mercado de vinis antigos e raros também aumentou. Segundo o administrador da loja Museu do Disco, Maicon Cesca, durante os últimos cinco anos, as vendas triplicaram. “É muito positivo esse setor. A dificuldade é atender a demanda. Não é fácil conseguir, e o que conseguimos vai embora rápido”, relata. Situada na Avenida Getúlio Vargas, no Centro de Juiz de Fora, a loja reúne cerca de cem mil discos e, com certeza, muitas histórias por trás de cada um. Percorrer algumas estantes, é uma oportunidade de viajar no tempo. As capas revelam contextos de época e fases dos artistas. Garimpar, esse é o verbo usado por aqueles que, por prazer, passam horas procurando por um disco que lhes interessam, e a emoção de encontrar não tem preço. Esse é o caso de Carlos Antônio, qué é de Além Paraíba e apaixonado por vinis: “Aqui é o único lugar que eu encontro os raros”. De forma atenta e curiosa, analisa cada um, mas sua preferência é a seção de rock. “Desde novo, eu compro. Eu recebia meu salário e ia quase tudo embora em discos. Minha mãe ficava pra morrer”, conta.
FOTO: LARISSA GARCIA
Mercado
Fernando Fernandes, aposentado, abriu uma loja de vinis em Cordeiro - RJ
Em outra fileira, encontrei Fernando Fernandes, que já havia selecionado alguns LPs: “Eu vim procurar discos para revender”. Há dois meses, Fernando, que é aposentado, abriu uma loja de discos e dinheiro antigo na cidade de Cordeiro, interior do Rio de Janeiro. Para ele, esse mercado é muito bom. “Eu já tenho mais ou menos 20 clientes, e vai aumentar. Eu decidi investir, porque eu sei que tem preço. Além disso, os artistas voltaram a gravar, a fabricação de toca-discos voltou e eu revendo som usado também”. Segundo Maicon, a reposição do estoque da sua loja é feita comprando de pessoas físicas que querem vender. O preço da revenda tem uma grande
variação, e custa a partir de R$ 1,00. No entanto, existem LPs de R$ 200,00 , como alguns álbuns do Pink Floyd. O valor é determinado pela sua raridade, um LP do Roberto Carlos, que seja da primeira prensagem, pode custar em torno de R$ 2000,00 .
Onde comprar discos novos Em Juiz de Fora é possível encontrar vinis novos, lançados ou relançados, na loja Planet Music. Os valores são aproximadamente R$ 83,00 O endereço é - Rua Morais e Castro, 218 Bairro Alto Dos passos FOTO: LARISSA GARCIA
Loja Museu do Disco em Juiz de Fora, com um acervo de aproximadamente 100 mil vinis antigos e raros
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Discos ao Léo FOTO: DIVULGAÇÃO FACEBOOK
Cuidados com Vinil
1. Não pegar o vinil com os dedos, sempre pegar nas bordas, para não sujar e engordurar. 2. Sempre que for escutar, limpar. Pode ser usando uma escovinha apropriada ou um pano macio.
Léo Bitar, colecionador e proprietário da loja Discos ao Léo em Belém (Pará)
Leonardo Bitar, paraense e diretor artístico da empresa Discos ao Léo, está ligado ao vinil por amor e pelo trabalho. Desde criança, o disco é uma de suas paixões e, por isso, se tornou colecionador. Sua busca principal sempre foi pela primeira prensagem, isto é, o primeiro vinil da gravação original. “ Eu ia comprando disco repetido. Achava a primeira prensagem, tirava a segunda. Assim, além da minha coleção, foi formando outra com os repetidos. Foi daí que eu resolvi abrir uma loja no porão da minha casa. E, posteriormente, o selo fonográfico. Ambos, com o nome “Discos ao Léo”, porque me chamo Leonardo e porque é um trabalho aberto a todas as sonoridades”, explica. A ideia de ter o selo surgiu da vontade de incentivar artistas locais que ele enxergava potencial para lançar um LP. “ Os cantores nos procuram ou a gente os convida. É uma parceria que a gente faz. Às vezes, eles já estão com os álbuns gravados, daí nós fazemos
a masterização para o analógico”. Segundo Leonardo, a média de produção são 300 cópias por artista, que é o mínimo exigido pela Polysom. O máximo que já fizeram foram 500, para a cantora Dulce Quental e também para o guitarrista Pio Lobato. “ Para ser rentável, depende do artista e se o seu público consome vinil”, acrescenta.
Fabricar no Brasil De acordo com João Augusto, um dos proprietários da Polysom, a demanda existe e cresce no Brasil. Porém, o alto custo dos impostos torna o preço final muito alto. “De qualquer forma, conseguimos vender mais barato do que o importado, mas bem mais caro do que gostaríamos. Nosso plano é popularizar o produto. Um pouco de romance, tradição, saudosismo, sempre faz bem. O vinil não voltou para substituir nada, mas sim para se converter em mais uma opção de se reproduzir música”.
3. Para uma limpeza caseira, normalmente após três vezes de uso do vinil, as dicas são: lavar o disco e passar detergente no sentido anti-horário. 4. Não deixar secando ao ar livre. Depois que enxaguar bem, deixar secar um pouquinho e pegar uma toalha bem macia. Abra a toalha e coloque o disco no meio, apertar com cuidado a toalha sobre o vinil para sugar a água. 5. Guardar na capa e de preferência em um plástico. 6. A Cápsula e a agulha do aparelho utilizado para ouvir devem ser ajustadas do jeito correto, portanto, o ideal é ler o manual de cada um.
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