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ANTES DO FILTRO SOLAR
by Metrô 47
Gosto de escrever e falar sobre memórias. Não à toa me tornei contadora de histórias. Depois de estudar e apresentar os contos de autores e os registros da tradição oral, me vi atraída recentemente pela pesquisa e coleta de relatos feitos diretamente com as fontes, ou seja, de vidas e pessoas reais. Esse trabalho me lembra o estilo da crônica – que muito me agradava quando cursava Jornalismo – em que a realidade ganha toques de literatura. Assim, mesclando entrevistas e fatos com arte, passei a desenvolver o projeto “Vozes e Memória: o que os antigos falavam”. Seu conteúdo traz dizeres de moradores antigos de Brusque e cidades vizinhas, categorizados em ditados, versinhos, crendices, cantigas, simpatias e vocabulário. O resultado dessa coleta está publicado no site www. vozesememoria.com além de informações correlatas ao universo da oralidade. Para a parte artística do projeto, foram produzidos seis vídeos ilustrativos, em que personagens brusquenses têm voz e sotaques, devolvendo assim, de certa forma, o conteúdo vindo da palavra falada, passado pelo registro escrito, para sua forma original. Durante os meses de trabalho, entre conversas com as pessoas que me emprestaram suas memórias, me vi aguçando as minhas próprias. Brincadeiras de infância, versos e cantigas me vinham como flashbacks enquanto esperava o sono vir, durante o banho ou lavando louça. Acabaram não entrando no projeto, pois o recorte dele exige que se enquadre na época “antiga” – o que delimitei, pela falta de um conceito exato, que seriam de moradores há mais de 60 anos da região escolhida. Desta forma, minhas anotações não poderiam ser incluídas. Então veio a chance de perpetuar e compartilhar essas lembranças: o convite desta revista que, ao propor o tema “verão”, me levou a relacioná-lo diretamente com as memórias de infância e adolescência. O clima de alegria, os cheiros e sensações desta época do ano, a possibilidade de brincar até mais tarde na rua, tudo isso que remete ao final de ano e início do próximo. Verão na minha infância e adolescência era sinônimo de férias escolares. E tenho mesmo a impressão de que estas duravam muito tempo, muitos meses. O entardecer era comprido, por conta do horário alterado, e assim a gente podia ficar na rua brincando até a noite, que não era escura. Os vizinhos se juntavam e a bola furada era perfeita para jogar vôlei tendo o portão de casa como rede. Assim, vazia, ela ficava mais pesada e não ia parar do outro lado da rua com os saques e cortadas dos pouco habilidosos atletas. Brincávamos de fazer cabana nos terrenos baldios e, claro, levávamos para o banho da noite todo o barro impregnado nas roupas e unhas. Também ficávamos na calçada, contando piadas e brincando. O pé direito de cada um se juntava em roda, e então vinha o salto para trás acompanhado do grito “Rainha”. Era o nome da brincadeira de pisar no pé do amigo e suas sílabas correspondiam ao número de passos possíveis para cumprir o objetivo. Outros jogos que se valiam das palavras eram os que usávamos as mãos, com gestos e movimentos específicos, como que coreografados. Muitos tinham musiquinhas com letras sem sentido e cantadas com pausas entre as sílabas para marcar cada toque das mãos: “Dona Cacheta coluna recheada vai comer piolho com água e salada”, “Pepino Califórnia Babalu” e “Ema ema lagusta lagu-ê”, além da conhecida “Adoleta”. Diversão garantida vinda dos curtos recreios da escola, era pular elástico que, nas calçadas ao entardecer do início do verão, não tinha hora para acabar. Um elástico amarrado nas pontas era envolto em duas crianças e a terceira pulava no centro, dizendo palavras pausadas nas sílabas, para cada movimento de pés dentro, fora, em cima, puxando ou pulando o elástico. A cada série de palavras vencida, o elástico ficava mais alto, ampliando a dificuldade. Se não houvesse três crianças, pegávamos uma cadeira para substituir uma das bases. Com duas cadeiras também era possível brincar sozinha. Privilégio era ter vizinha filha de donos de confecção que nos cediam largos elásticos bem resistentes. Eu não passava as férias inteiras na praia, como a maioria dos meus amigos. Nessa época, Brusque já migrava para o litoral para curtir a estação quente, onde muitos tinham casa. Comigo era diferente. Meus pais sempre tiveram comércio e, por isso, não havia recesso para eles e, consequentemente, para mim. Na infância eu morava numa casa, em cima de um morro no Jardim Maluche. De lá de cima lembro de ver a enchente que chegou aos telhados e também acompanhei a construção da pracinha – local que virou ponto
de encontro dos amiguinhos e de uma brincadeira nova: uma tirolesa (que não conhecíamos por esse nome, e chamávamos de “roldana”). Durante o dia, muitas vezes, eu e meu irmão tínhamos de ir para a loja com meus pais. E lá, naquela era sem celular e Internet, inventávamos brincadeiras atrás do balcão, com carimbos, adesivos e papel de presente. Muitas caixas de sapatos nos cercavam e com as vazias fazíamos brinquedos que nos entretinham entre o tédio e um lanchinho. Gosto de pensar que era justamente aí que brotava a criatividade, em meio ao ócio infantil, quando o brincar não era proposto pelo que estava fora de nós, e sim, o contrário. Tínhamos o hábito de tomar café e comer pão – assim como era pela manhã – na refeição noturna. Por causa do calor dessa época do ano, vivíamos o deleite de beber, em substituição, refrigerante gelado e o sanduíche às vezes vinha como pão picante, que também saía da geladeira. Outro sabor de verão eram os cubinhos de gelo que fazíamos com suco, geralmente o colorido capilé, e que nos deliciavam com seu refresco e doçura. O Natal era celebrado em Brusque, em casa. Depois vinham os dias de puro marasmo, quando a cidade ficava vazia e silenciosa. O comércio funcionava por conta das trocas de presentes. No Ano-Novo seguíamos para a praia, onde além dos castelos de areia e banho de mar, usufruíamos dos jogos. Variavam entre os de tabuleiro e as cartas, que perderam a preferência com a chegada do videogame Atari. Tenho lembranças de umas vizinhas da casa de praia, eram três irmãs. Brincávamos todos os dias, durante alguns verões. Não lembro os nomes e nem de onde eram. Reflexo de um tempo sem muitos registros, sem contatos. O caminho até a praia tinha calçamento rústico e muitos terrenos com mato. Nem parecia a selva de prédios de hoje. Na adolescência, já morando no Centro, em apartamento, minhas férias passaram a ser mais curtas, por conta de uma ou outra recuperação no colégio. Era nesse clima de dezembro que as papelarias começavam a expor as agendas do ano seguinte e, eu, escritora de diários, fazia minha escolha cuidadosa, pensando na companhia que teria durante todos os 12 meses que viriam. Por isso, além da capa ser bonita, tinha que ter bastante espaço para escrever e colar os recortes da Capricho. As canetas coloridas e perfumadas também participavam da compra e seriam parceria dos escritos – todos guardados até hoje. Por volta dos meus 14 anos, numa temporada em Balneário Camboriú (que os brusquenses chamam apenas de Balneário como se fosse o único e não fosse um adjetivo) lembro das primeiras campanhas para uso do protetor solar. Era algo estranho: passar um creme para não se queimar do sol. Não se falava em radiação, nem camada de ozônio. Os perigos dessa época eram menos perigosos. Tudo isso guardado num baú de memórias – que muitas vezes falha – e faz parte de um tempo coletivo, retrata uma faceta do cotidiano da cidade nas décadas de 80 e 90 e, assim, revela traços do lugar e das gentes. Porque acredito na força das narrativas continuo buscando e registrando, compartilhando e propondo novos relatos. Porque em meio às turbulências e dúvidas, frente ao desânimo e más notícias, acredito que somos feitos de histórias.
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Lieza Neves