Brusque Ilustrada: Verão

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Antes do

filtro solar G

osto de escrever e falar sobre memórias. Não à toa me tornei contadora de histórias. Depois de estudar e apresentar os contos de autores e os registros da tradição oral, me vi atraída recentemente pela pesquisa e coleta de relatos feitos diretamente com as fontes, ou seja, de vidas e pessoas reais. Esse trabalho me lembra o estilo da crônica – que muito me agradava quando cursava Jornalismo – em que a realidade ganha toques de literatura. Assim, mesclando entrevistas e fatos com arte, passei a desenvolver o projeto “Vozes e Memória: o que os antigos falavam”. Seu conteúdo traz dizeres de moradores antigos de Brusque e cidades vizinhas, categorizados em ditados, versinhos, crendices, cantigas, simpatias e vocabulário. O resultado dessa coleta está publicado no site www. vozesememoria.com além de informações correlatas ao universo da oralidade. Para a parte artística do projeto, foram produzidos seis vídeos ilustrativos, em que personagens brusquenses têm voz e sotaques, devolvendo assim, de certa forma, o conteúdo vindo da palavra falada, passado pelo registro escrito, para sua forma original. Durante os meses de trabalho, entre conversas com as pessoas que me emprestaram suas memórias, me vi aguçando as minhas próprias. Brincadeiras de infância, versos e cantigas me vinham como flashbacks enquanto esperava o sono vir, durante o banho ou lavando louça. Acabaram não entrando no projeto, pois o recorte dele exige que se enquadre na época “antiga” – o que delimitei, pela falta de um conceito exato, que seriam de moradores há mais de 60 anos da região escolhida. Desta forma, minhas anotações não poderiam ser incluídas. Então veio a chance de perpetuar e compartilhar essas lembranças: o convite desta revista que, ao propor o tema “verão”, me levou a relacioná-lo diretamente com as memórias de infância e adolescência. O clima de alegria, os cheiros e sensações desta época do ano, a possibilidade de brincar até mais tarde na rua, tudo isso que remete ao final de ano e início do próximo. Verão na minha infância e adolescência era sinônimo de férias escolares. E tenho mesmo a impressão de que estas duravam muito tempo, muitos meses. O entardecer era comprido, por conta do horário alterado, e assim a gente podia ficar na rua brincando até a noite, que não era escura. Os vizinhos se juntavam e a bola furada

Lieza Neves

era perfeita para jogar vôlei tendo o portão de casa como rede. Assim, vazia, ela ficava mais pesada e não ia parar do outro lado da rua com os saques e cortadas dos pouco habilidosos atletas. Brincávamos de fazer cabana nos terrenos baldios e, claro, levávamos para o banho da noite todo o barro impregnado nas roupas e unhas. Também ficávamos na calçada, contando piadas e brincando. O pé direito de cada um se juntava em roda, e então vinha o salto para trás acompanhado do grito “Rainha”. Era o nome da brincadeira de pisar no pé do amigo e suas sílabas correspondiam ao número de passos possíveis para cumprir o objetivo. Outros jogos que se valiam das palavras eram os que usávamos as mãos, com gestos e movimentos específicos, como que coreografados. Muitos tinham musiquinhas com letras sem sentido e cantadas com pausas entre as sílabas para marcar cada toque das mãos: “Dona Cacheta coluna recheada vai comer piolho com água e salada”, “Pepino Califórnia Babalu” e “Ema ema lagusta lagu-ê”, além da conhecida “Adoleta”. Diversão garantida vinda dos curtos recreios da escola, era pular elástico que, nas calçadas ao entardecer do início do verão, não tinha hora para acabar. Um elástico amarrado nas pontas era envolto em duas crianças e a terceira pulava no centro, dizendo palavras pausadas nas sílabas, para cada movimento de pés dentro, fora, em cima, puxando ou pulando o elástico. A cada série de palavras vencida, o elástico ficava mais alto, ampliando a dificuldade. Se não houvesse três crianças, pegávamos uma cadeira para substituir uma das bases. Com duas cadeiras também era possível brincar sozinha. Privilégio era ter vizinha filha de donos de confecção que nos cediam largos elásticos bem resistentes. Eu não passava as férias inteiras na praia, como a maioria dos meus amigos. Nessa época, Brusque já migrava para o litoral para curtir a estação quente, onde muitos tinham casa. Comigo era diferente. Meus pais sempre tiveram comércio e, por isso, não havia recesso para eles e, consequentemente, para mim. Na infância eu morava numa casa, em cima de um morro no Jardim Maluche. De lá de cima lembro de ver a enchente que chegou aos telhados e também acompanhei a construção da pracinha – local que virou ponto


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