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Eu não vendia. Eles compravam

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CAPÍTULO

Eu não vendia. Eles compravam

MORELLI 40 ANOS – UMA HISTÓRIA DE SUCESSO

O sucesso de Oraci também pode ser explicado

muito em função de seu estilo de vida. Ao longo de toda a sua vida, nunca foi dado a excessos. Ao contrário de outros pequenos empresários, que se serviam dos lucros do seu negócio para as despesas de suas famílias, Oraci permanecia solteiro, disciplinado e adepto a uma vida simples. Dessa forma, ele conseguia guardar dinheiro suficiente para comprar terrenos em regiões mais distantes do centro, nos arredores da Metalúrgica Nossa Senhora Aparecida, bem perto da recém-inaugurada avenida marginal do Rio Sorocaba.

Foi o caso do lote no Jardim Pelegrino, onde levantaria as paredes de seu barracão. Ainda frustrado com a recusa de Nelson Muscari, já tinha traçado seus próximos passos enquanto as obras no novo endereço não ficavam prontas.

— Eu ia começar a divulgar. O plano era fazer cartões e correr pelas oficinas da época para ficar conhecido. Eu tinha os equipamentos preparados, era só colocar no torno. Eu fazia isso na oficina, sabia o caminho das pedras. Pensava que teria serviço, um dinheirinho garantido.

Ninguém seria capaz de imaginar que os serviços de usinagem mecânica não seriam necessários. Isso foi possível graças a outro Nelson que entrou na vida de Oraci. Seu nome: Nelson Siqueira.

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46 Tratava-se de um amigo que trabalhava como encarregado na Eletropaulo (que na época ainda levava o nome de Light) e que frequentava a oficina Martins Morelli. Nas horas de folga, o sujeito aparecia para ajudá-lo na parte elétrica da oficina.

A proximidade com Siqueira trouxe a Ortodontia de volta à vida de Oraci. Seu filho nascera com fissura labial, uma anomalia congênita que costuma ser resolvida com a combinação de tratamentos cirúrgico e ortodôntico. Seu filho era tratado na cidade de Bauru, a cerca de 300 km de Sorocaba, onde existe um dos centros de referência para o tratamento da doença, o Hospital de Reabilitação de Anomalias Craniofaciais (HRAC/USP) – também chamado de “Centrinho”. Lá, ele conhecia importantes ortodontistas e pesquisadores.

Quando Nelson soube que Oraci havia descoberto um jeito de produzir os caríssimos bráquetes ortodônticos, percebeu que poderia unir as duas pontas. Assim, Nelson pediu para ver os bráquetes e o equipamento na Rua Sevilha, na casa dos pais de Oraci.

Em meio às ferramentas dispostas na edícula da casa de Seu José, Nelson viu o plástico grosso ser retirado de cima das duas máquinas, uma em cima e outra embaixo da mesa. Ouviu o barulho dos motores e os cliques das serras usinando. Segurou em suas mãos alguns dos bráquetes de aço cortados naquele instante, bem como outros, já polidos nos ensaios anteriores. Eram muito parecidos com as peças que já tinha visto no Centrinho.

— O Nelson Siqueira levou uma porção de bráquetes para Bauru. Ele chegou lá dizendo que “lá em Sorocaba tem alguém fazendo essa pecinha”. O pessoal chegou a fazer chacota com ele. Aquilo era impossível na visão deles, que só conheciam os produtos importados.

Havia motivos para tamanha incredulidade: para ter acesso a materiais ortodônticos em representantes como a Brasil Orthodontic, era preciso uma autorização por escrito, assinada por um professor, concentrando o acesso destes artigos a profissionais habilitados. Além do atestado, havia ainda o alto custo de importação, restringindo tratamentos a pessoas com um poder aquisitivo elevado, pacientes com anomalias graves, universidades ou hospitais de referência, como o próprio “Centrinho”.

Depois que aquele momento de desconfiança foi superado, veio a curiosidade. Ali, diante deles, estavam bráquetes genuinamente brasileiros. Os professores e especialistas de Bauru ficaram muito interessados quando puderam analisar as peças com seus próprios olhos. No encontro seguinte com Oraci, Nelson Siqueira já tinha em mãos o primeiro pedido oficial de bráquetes para a Morelli. A Ortodontia voltava à vida de Oraci com força total.

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Era bom demais para ser verdade. Oraci decidiu pegar seu Fusca e dirigir até a capital para se certificar de que não teria problemas com a fabricação e venda daqueles produtos. Dirigiu-se a um escritório de registro de marcas e patentes, na rua Senador Feijó, no centro de São Paulo. Após ser recebido por um encarregado, mostrou a ele um de seus bráquetes e questionou: era possível produzi-lo legalmente? Haveria risco de ser multado por algum órgão público ou processado por alguma outra empresa?

— Este produto já é vendido no Brasil há mais de 12 anos?

— Sim.

— Existem propagandas veiculadas deste produto?

— Tem, sim.

— Você gastou bastante para produzir este material?

— Bom, eu passei dois anos construindo as primeiras máquinas.

— Amigo, eu sugiro que você continue produzindo. Caso apareça algum problema, você pode voltar aqui.

Já se passaram 40 anos. Oraci nunca precisou retornar àquele escritório.

A primeira encomenda de bráquetes foi produzida ao redor

da antiga mesa, no quarto dos fundos da casa de José e Zenaide. O próprio pai de Oraci ajudava-o em algumas noites, checando o mecanismo que posicionava o fio de aço laminado na fresadora. Considerando que novas solicitações viriam de Bauru, chegava o momento do galpão no Jardim Pelegrino começar a se estruturar para fabricar as peças.

Além das máquinas, ferramentas e fios de aço, era preciso ter gente. E o primeiro auxiliar de Oraci na produção foi o Zezinho.

Zezinho? Ora, mas João Rosatti não é o funcionário número um?

— Não sei se todo mundo sabe, mas eu só fui o primeiro a ser registrado porque eu

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48 tinha meus documentos, tudo certinho – revelou João – mas quando eu comecei, o Zezinho já trabalhava no barracão.

Zezinho, ou José de Souza, morava em um sítio no bairro dos Aleixos, em Taquarituba, cerca de 260 km distante de Sorocaba, e foi indicação de algum conhecido de Oraci. Não entendia nada de Ortodontia, como todos que estavam ali, mas era eficiente nos processos mecânicos de produção. E isso bastava.

O convite ao antigo aprendiz da oficina Martins Morelli também já havia sido feito. Mesmo com Oraci fora da sociedade, Joãozinho poderia ter continuado no antigo emprego.

— Eu não sei o que seria do meu futuro. Mas, eu decidi trabalhar ao lado do Oraci. Na época, ele avisou que talvez não pudesse pagar muito além do salário mínimo, mas logo no primeiro mês já me deu um dinheirinho a mais. Fiquei muito contente.

Aos 18 anos, João Rosatti conciliava as atividades rotineiras com o Tiro de Guerra, formação de reservistas do Exército. Ao sair do quartel, ainda pela manhã, voltava para casa, trocava de roupa, pegava uma marmita e cumpria o expediente no barracão a partir das 11 horas, antes do almoço. Ficava até o fim da tarde.

A funcionária número três da empresa foi Angela Morelli, que assumiu as funções administrativas do negócio. Assim como seus irmãos, começou a trabalhar muito cedo, como auxiliar em um mercadinho familiar. A experiência no caixa despertou a paixão por números e planilhas. Fez o curso de contabilidade e datilografia, alimentando o sonho de trabalhar em um escritório. Dona Zenaide foi determinante no início de sua carreira.

— Minha mãe fazia todo mundo trabalhar. Eu morria de vergonha de pedir emprego. Ela me pegou pelo braço, saiu pela cidade e me fez bater na porta de todos os escritórios, perguntando se tinha vaga. Isso foi muito marcante.

Deu certo. Foram três anos em um escritório de contabilidade, até que Zenaide, mais uma vez, deu um empurrãozinho na filha. Foi ela quem perguntou a Oraci: “por que você não leva a Angela para a sua empresa nova?”. Além de cuidar da contratação dos funcionários, documentação fiscal e outros processos burocráticos, Angela também fazia o atendimento ao cliente pelo telefone. Também gerenciava o estoque de peças, no armário de aço com gavetas de arquivo.

Desde a primeira entrega de produtos, os ortodontistas de Bauru passaram a sugerir melhorias, além de solicitar diferentes especificações de bráquetes, bem como tubos, fios

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e elásticos. Oraci corria atrás. Além dos novos perfis de bráquetes para o laminador, desenhava processos para fabricar novas peças, a começar pelos tubos. Após estender um modelo, deduziu que era preciso uma máquina para estampar, isto é, cortar uma fita de metal no formato planejado e outra para dobrá-la.

Este e outros engenhos para curvar tubos, bráquetes e bandas funcionavam à base de uma alavanca. As atribuições eram divididas por todos, praticamente. Até mesmo Angela separava alguns minutos de folga para “bater pecinhas”, como diziam. A caçula Sonia, que na época estudava Pedagogia, ainda consegue reviver aquele esforço.

— Minhas amigas perguntavam o que eu fazia e eu respondia: “eu bato pecinhas”. Ninguém sabia o que era. Eu pegava as peças com uma pinça e puxava uma alavanca pesada. Fiz isso durante anos, até terminar o ensino colegial. Ainda hoje, às vezes sonho que estou entortando peças…

Sonia foi registrada como auxiliar de escritório. Na prática, trabalhava de casa: era responsável pelas primeiras embalagens. Colocava as peças em cima de um pano ou cobertor branco sobre a mesa da cozinha, separava e contava dez unidades de cada tipo de bráquete ou tubo. Com uma colher de café, embalava-as em sacos plásticos usados para fazer geladinho. Por fim, grampeava-os com uma etiqueta datilografada, com a descrição dos materiais.

Todo esse processo artesanal, obviamente, seria inadmissível nos dias de hoje. No entanto, foi um retrato de como Oraci e seus primeiros colaboradores fizeram tudo o que foi necessário para colocar a Morelli em atividade no início dos anos 1980.

Para que os produtos ficassem com aspecto mais profissional, Oraci e Angela aperfeiçoaram este processo: substituíram o papel grampeado por carimbos personalizados, com o nome da Morelli e a descrição das peças, além de uma seladora rudimentar construída por Oraci. Sonia também carimbava os saquinhos plásticos, deixava-os secar no quintal e vedava-os com as peças contadas.

— Ele desenvolveu um rolinho que era aquecido com uma espécie de lamparina acesa com álcool, aquecendo e fechando a embalagem. Aquilo era dos infernos. Se não tivesse pressão e ritmo correto na hora de cortar, aquilo puxava tudo e a embalagem se perdia. Tinha que fazer tudo de novo. Eu gostava mesmo era do grampeador, era mais fácil.

A caçula da família Morelli recebia proporcionalmente à quantidade de kits com peças finalizadas. Por conta disso, trabalhava a qualquer hora enquanto não estava na sala de

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50 aula do antigo segundo grau e, na sequência, do curso de Pedagogia. Quanto mais peças embalava, maior era seu pagamento.

— Eu colocava minha mãe para trabalhar. Meu pai, que nessa época já estava aposentado, ajudava também. Eu terceirizava o trabalho. Acho que o Oraci nunca soube disso...

Todo o esforço de Oraci, Zezinho, João Rosatti, Angela, Sonia e outros pioneiros era recompensado pelo retorno positivo dos primeiros clientes, que reconheceram três princípios que sempre acompanharam a Morelli em toda sua história. O primeiro é o preço: os produtos eram comercializados a um custo dez vezes mais baixo que os similares importados. O segundo é a disponibilidade para produzir e armazenar peças, entregando-as prontamente. Por fim, o terceiro eram seus ouvidos permanentemente dispostos a ouvir sugestões e críticas.

— A qualidade era muito inferior ao que produzimos hoje. Era inferior também aos importados da época. Mas, a carência do mercado era muito grande, por isso tudo o que a gente produzia era vendido rapidamente. Quer dizer, a gente não vendia. Eles é que compravam.

Após um ano, a Morelli estava em plena atividade. No galpão rústi-

co com piso de cimento queimado, conhecido como “vermelhão”, erguido com blocos de concreto em um terreno 10 m x 30 m, ficavam as máquinas para produzir bráquetes, o torno Nardini 220 M II, plaina, máquina de solda, bem como outras ferramentas e materiais. Atrás de divisórias plásticas, em um cubículo de 3 m x 3 m, ficava o escritório onde Angela cuidava da administração. Ela dispunha de uma mesa de madeira comprida, onde ficavam a máquina de escrever e uma calculadora de manivela antiga. No canto, um armário de arquivo com gavetas de aço funcionava como estoque de peças, tudo comprado de segunda mão. Aos fundos, Oraci construiu uma cozinha, onde desde sempre preparava e oferecia café para os funcionários, um banheiro e um quarto, onde passava a noite. Morava no lugar onde trabalhava, economizando com segurança, telefone, água, luz e transporte.

Naquela época, a Morelli produzia 12 itens diferentes, entre tubos e bráquetes destinados à técnica Edgewise. Eram cerca de três mil bráquetes por mês, vendidos rapidamente. Mas, a novidade ainda precisava ser reconhecida além dos raros ortodontistas de Sorocaba, dos pesquisadores e professores de Bauru, e, em certa medida, no “boca a boca” entre estes profissionais. Para isso, Oraci e Angela armaram um plano de divulgação por meio da forma de comunicação mais eficaz da época: a mala-direta postal.

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Primeiro, providenciaram um modelo de carta para ser replicado em uma gráfica, com os dados da Dental Morelli no cabeçalho, além de um espaço na folha timbrada para datilografar data e informações do remetente. O texto padrão começava assim:

“Prezado senhor: fabricamos peças para Ortodontia e tomamos a liberdade para enviar à V. Sa. um cartão de amostras para a apresentação dos nossos produtos”.

A ficha de amostra, também impressa na gráfica, tinha dimensões semelhantes a um cartão de visitas. Era uma lista com a descrição dos itens e os preços, em Cruzeiros. Ao final de cada linha, os bráquetes e tubos relacionados eram colados, um a um, por Angela.

A carta ainda oferecia um desconto especial em compras acima de 50 dezenas de peças, além de explicações de ordem logística: o envio das peças seria feito pelos Correios; também constavam os dados para transferência bancária (ou “ordem de pagamento”) para o Banco do Brasil em até 30 dias. No rodapé do papel timbrado, um campo para a assinatura de Oraci João de Vechi Morelli – que, na prática, era rubricado por Angela.

Com as cartas e envelopes prontos, era hora de prospectar. Contaram com as famosas Páginas Amarelas, catálogo telefônico de produtos e serviços, disponível para consulta no prédio da Telesp, a companhia telefônica estadual, na Rua da Penha, no centro de Sorocaba. Havia listas do Brasil inteiro, de onde foram obtidos endereços de dentistas e ortodontistas. O retorno vinha tanto por escrito quanto por telefone. Angela atendia.

— Eu acho que, naquela época, isso era inovador. Hoje isso é comum, mas as pessoas não tinham costume de receber mercadoria pelo correio. E a maioria estranhava. “Mas, você vai me mandar? E eu posso pagar depois?” Eles ficavam admirados com essa confiança.

Oraci tinha convicção de que, por ser um produto altamente especializado, com necessidade permanente do profissional, poucos fariam compras avulsas: seriam potenciais clientes recorrentes. Foi um bom palpite. Eram raros os pedidos por correspondência que deixavam de ser pagos.

— Naquela época não havia cadastro. Se o cliente desse o endereço de entrega ou até mesmo o apelido do cachorro, a gente enviava. Se ele quisesse comprar de novo, teria de manter o pagamento em dia.

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Pela manhã, os pedidos eram checados por Angela. Os materiais, embalados por Sonia e estocados no armário, eram separados sobre a mesa do escritório. Cada pedido era embalado e endereçado em caixas de papelão padronizadas pelos Correios. No meio da tarde, Angela colocava as caixas em uma sacola e, de ônibus, levava para a agência da Rua São Bento.

— Eles precisavam vistoriar o que estava sendo despachado. Como não conheciam aquelas peças, eu tinha que abrir as caixas, mostrar os saquinhos plásticos e esclarecer o que era. Ficavam curiosos, nunca tinham visto aquilo. Demorou um ano até me conhecerem. Daí, ficamos parceiros, não precisava mais explicar.

As respostas dos ortodontistas atestavam, além do interesse pelo desenvolvimento dos produtos, a carência do setor. Novos pedidos vinham acompanhados por todo tipo de felicitação, desejo de avaliar os materiais, entre outras manifestações entusiasmadas.

A mensagem enviada em junho de 1981 pelo Dr. José Luiz Ribeiro de Souza Fleury é um exemplo representativo. Além de sugerir a fabricação de bráquetes e tubos usados na técnica ortodôntica de Begg, o ortodontista faz um alerta: a Morelli representaria, em sua visão, uma ameaça ao status quo.

“Confessamos que foi uma alegria imensa saber que alguém se interessou em fabricar aqui mesmo no Brasil (e pertinho de nós) produtos ortodônticos... É nosso dever informá-lo de que as ‘firmas estrangeiras' e/ou ‘interessadas' tudo farão para prejudicá-lo, visto ser o seu um produto similar, porém sem competição no preço; produto este que não depende das chamadas ‘importadoras' que taxam a mercadoria como, quanto e quando assim o desejarem... Caro Oraci (se você me permitir chamá-lo assim), esteja preparado para as propostas escabrosas que por certo irão aparecer”.

Na mesma carta, o Dr. Fleury comunica ainda o envio de uma correspondência ao Dr. Júlio Wilson Vigorito, então presidente da Sociedade Paulista de Ortodontia. O texto considera as vantagens e a valorização de uma indústria nacional, o que representaria a redução dos custos e a independência das peças importadas. Ainda propunha:

“Que a SPO convide, sempre que possível, esta indústria, por ocasião dos eventos ortodônticos (congressos, palestras etc.), para expor seus produtos... Solicitar aos colegas, através da SPO, que ofereçam ideias à nova indústria que se inicia, no sentido de ajudarmos esta indústria, pois assim nós estaríamos também nos ajudando.”

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Anos mais tarde, Oraci receberia uma cópia deste documento. As duas cartas estão emolduradas e destacadas no museu da empresa. Tornaram-se um agradecimento a todos que concordaram (e ainda concordam) com as sugestões do Dr. Fleury.

O telefone tocou e Oraci Morelli estava preocupado. Antes de

atender, precisava respirar fundo e demonstrar firmeza e tranquilidade. Na outra ponta da linha, um ortodontista começava a conversa com um coloquial “Está tudo bem por aí?”.

— Como vai o senhor? Está tudo bem, sim! O que o senhor deseja, doutor? É só pedir!

Oraci anotou o pedido e voltou ao trabalho para tentar organizar sua oficina. Naquele instante, o barracão da Dental Morelli estava completamente tomado por uma inundação.

Era o verão de 1983, mais um ano em que as chuvas castigaram Sorocaba. Era comum o nível da represa de Itupararanga, próxima à nascente do Rio Sorocaba, acusar a pancada e acionar o alerta de quem vivia próximo ao curso das águas. A rua Professor Luiz Amaral Wagner, no Jardim Pelegrino, começava em uma das margens. A uns 200 metros da calha do rio, na casa de número 55, funcionava a oficina.

Três dias antes do telefonema, Oraci e os quase 20 funcionários que produziam bráquetes, tubos e arcos no barracão de 168 m2 foram surpreendidos por uma visita dos funcionários da prefeitura. Eles faziam uma advertência: todos deveriam abandonar o prédio da Morelli, pois a forte chuva estava elevando rapidamente o nível do rio e a previsão era de que a água subiria mais cinco metros além do leito. Nem todos ficaram preocupados, pois o histórico de outras enchentes que se abateram sobre a região mostrava que aquele imóvel estava em uma área segura. Mesmo se o nível da água avançasse, dificilmente atingiria as casas do alto da rua. Oraci estava entre os céticos.

“Essa turma da prefeitura é exagerada. Vamos esperar para ver se a água vai subir tudo isso mesmo”, disse Oraci na época.

O que poucos sabiam naquele instante é que, por conta da vazão, as comportas da represa de Itupararanga foram abertas. Na manhã seguinte, apenas o teto das casas no início da rua estava visível, deixando os moradores perplexos. A água alcançou a rampa da entrada do barracão de Oraci, obrigando-o a improvisar a passagem para a oficina com tábuas largas e compridas. Cravou ainda um cabo de vassoura no quintal, usando-o para medir a extensão do alagamento.

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54 — Se eu dissesse que a empresa estava debaixo d’água, o cliente nunca mais voltaria

Quando a água da enchente entrou pela porta a telefonar." do barracão, Oraci dispensou a maior parte dos funcionários e pediu a alguns colaboradores que o ajudassem a desmontar as máquinas. Carregaram peças para os fundos e, com uma escada, subiram para a laje que ficava sobre o quarto e a cozinha. Guardaram cuidadosamente motores do torno e da plaina, além das máquinas adaptadas para a produção, no espaço entre o forro de concreto e o telhado. O armário de aço, com o estoque de peças, foi levado para a casa dos pais de Oraci. — Quando eu fui deitar, a água ainda estava baixa. Eu pensei: não adianta ficar acordado. Se o nível subir e chegar em mim, eu desperto. Acordei cedo e vi meus sapatos boiando naquela água suja. Não saí da cama e fiz um risco na parede, para saber se o nível da água estava subindo ou descendo. Liguei a TV, esperei... Continuava subindo. Fiz mais um risco na parede. Tanto as marcas da parede quanto o cabo de vassoura no quintal controlavam a altura da inundação, que parou nos 50 cm, acima da altura dos joelhos.

Oraci levou o colchão molhado para a laje e providenciou vassouras, sabão em pó e uma mangueira, para poder começar a limpeza assim que a água baixasse. Enquanto isso, puxou os fios do telefone por cima da mesa do escritório e atendia aos telefonemas como se nada estivesse acontecendo. — Na minha cabeça, se eu dissesse que a empresa estava debaixo d’água, o cliente nunca mais voltaria a telefonar. Ninguém gosta de se associar a quem não está bem.

Em pouco menos de uma semana, a água já tinha baixado. Nesse dia, os funcionários já estavam na porta, preparados para o recomeço – a maioria deles vivia nos arredores e também se ocupou com o alagamento em suas próprias casas. Eles lavaram o chão e as máquinas, ajeitaram tudo no lugar e voltaram ao trabalho. — Felizmente, ninguém ficou doente, não houve acidentes, não perdemos clientes. A gente limpou tudo e ninguém percebeu nada. Passou. Agora me diga: não foi uma experiência legal?

Qualquer empresário veria um episódio assim como uma tragédia. Oraci parece se divertir ao rever os desafios que superou. –– * ––

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Na época em que a Morelli enfrentou a enchente, Oraci já contava

com quase 20 funcionários. Com exceção de João Rosatti, Zezinho e o irmão dele, Zé Carlos, todos os outros eram moradores dos arredores. Era preciso dar conta da fabricação enquanto pesquisava e desenvolvia novidades: para montar um arco extraoral, testava a resistência de diversas amostras confeccionadas com arame e solda.

Rosatti também apoiava Oraci na linha de produção da usinagem: cortava os rolos de arame e orientava o manuseio do laminador, retirava o perfil, posicionava na fresadora e, em seguida, na máquina que serrava o slot dos bráquetes e trabalhava no corte, dobra e soldagem dos tubos. Zezinho começou lixando e retirando rebarbas das faces e pontas das peças (antes de Oraci criar uma máquina para automatizar o processo), além de lapidar as peças nas caixas de polimento manual.

À medida que a empresa crescia, ia recrutando os moradores da região. Logo após a enxurrada de 1983, Nilton Redondo da Silva era apenas um vizinho prestativo ajudando com a limpeza do barracão, afinal todos haviam sido atingidos e não custava nada ajudar.

— Eu trabalhava na antiga Ciane, a Companhia Nacional de Estamparia. Fui demitido e esse período, com muitos dias de chuva, coincidiu com a enchente. Eu ajudei a limpar a Morelli quando a água começou a baixar e eles também foram nos apoiar em nossa casa. Todo mundo se ajudou. Foi quando a Angela perguntou se eu estava trabalhando e me convidou para ajudá-la.

Enquanto o barracão ainda estava parado por conta da enchente, Nilton viu Oraci se aproximar enquanto preenchia uma ficha curricular. “Você gostaria de começar a trabalhar logo? Hoje não vai dar, a casa está meio suja. Mas, pode vir amanhã”, lembra o atual funcionário do Departamento de Vendas, antes de assumir o cargo de assistente de Angela no escritório.

Antes de começar o expediente, Oraci abria o portão de madeira, tirava o carro da garagem e puxava as mesas para seus funcionários trabalharem. Ao final do expediente, puxava tudo para dentro, guardava o carro e se recolhia para os fundos. A jornada da Morelli já não cabia mais no barracão. Ou, nas palavras de Oraci, “para entrar um, saíam dois”. Era preciso mudar.

Ao mesmo tempo, ele perceberia que o crescimento da Morelli não viria das vendas diretas ou indicações. Elas seriam rapidamente superadas por um modelo de comercialização que determinaria como o mercado de Ortodontia se estabeleceria. Sem surpresa, este paradigma começaria com mais um importante membro da família. E, por mais improvável que pareça, seu nome (também) era Nelson.

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Depois de passar uma temporada trabalhando ao lado de Oraci como auxiliar na oficina mecânica, João Rosatti iria para a Morelli como um dos primeiros funcionários, ao lado de José de Souza (Zezinho) e Angela Morelli.

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As amostras enviadas aos cirurgiões-dentistas, acompanhadas por uma carta padrão, ajudaram de forma significativa na divulgação da Morelli, no início dos anos 1980.

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Primeiras páginas da carta enviada pelo Dr. José Luiz Ribeiro de Souza Fleury, em junho de 1981. Ele fazia um alerta a Oraci: cuidado com as ameaças “dos maus brasileiros ou estrangeiros”. Hoje, a carta é um dos destaques no museu dedicado à história da Morelli.

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