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Se alguém já fez, dá para fazer

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CAPÍTULO

Se alguém já fez, dá para fazer

MORELLI 40 ANOS – UMA HISTÓRIA DE SUCESSO

Em 1974, o novo empreendimento de Oraci

era a oficina de automóveis Martins Morelli, que ele

tocava em sociedade com os irmãos Valdir e Ildefonso Martins. O estabelecimento ficava na Rua Mascarenhas Camelo, no bairro sorocabano de Vila Santana. Todos os dias, Oraci encarregava-se pessoalmente de abrir suas portas às 7h, para garantir que nenhum serviço atrasasse. Se não houvesse serviço a ser feito, o mais metódico dos três sócios também chegava às 7h, na esperança de que algum cliente aparecesse, mesmo aos sábados, quando o expediente era encerrado ao meio-dia.

Além dos clientes, outros conhecidos de Oraci Morelli e dos irmãos Martins frequentavam a oficina para bater papo e aproveitar momentos de disponibilidade dos equipamentos para usinar. Uma dessas pessoas era Miguel Banhos Catalunha, grande amigo de Oraci. Miguel foi seu contemporâneo no curso profissionalizante do Senai em Votorantim: quando Oraci iniciou tornearia mecânica, Miguel já cursava o segundo ano de ajustagem.

Em 1977, após deixar a ferramentaria da General Motors, Miguel estava às voltas de uma máquina injetora automática Pic Boy 15, que daria início à sua empresa de artefatos plásticos, a Soroplast.

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32 Certo dia, em um sábado daquele ano, Miguel foi procurar Oraci em sua oficina por outra razão. Ele aproximou-se com um tubo de vidro estreito nas mãos. Dentro, havia uma peça metálica bem pequena, totalmente incomum, com aproximadamente 2 mm de largura e 3 mm de comprimento. Dava para ver ainda que o minúsculo artefato possuía pequenos colchetes, posicionados próximos aos cantos, formando uma canaleta estreita na horizontal.

— O Miguel apareceu na oficina com uma pecinha dentro de um tubo de vidro comprido — recorda-se Oraci — dizendo que recebeu a peça das mãos de um homem desconhecido chamado Nelson Muscari. O sujeito procurava por um torneiro que fosse capaz de copiar aquela peça. Miguel disse ao homem: “Eu não tenho como fazer essa peça tão pequena, mas conheço uma pessoa que consegue”. Por isso, me indicou ao Dr. Nelson Muscari, um ortodontista prático de Sorocaba que estava em busca de uma solução para a falta de produtos ortodônticos no mercado.

Miguel se despediu e deixou um papel com o número do telefone de Muscari. Oraci ficou mais alguns minutos observando o tubo de vidro, que continha um bráquete padrão da prescrição Edgewise, slot .022”, presumivelmente da marca alemã Dentaurum. Obviamente, àquela altura de sua vida, Oraci não tinha essas informações. Não sabia absolutamente nada sobre Ortodontia e desconhecia a finalidade daquele pequeno dispositivo.

— Naquela época, um tratamento ortodôntico era para poucos, diziam ser o preço de um carro. Aquela peça foi meu primeiro contato com um bráquete. Eu nunca tinha nem mesmo visto uma pessoa com aparelho na boca.

Oraci permaneceu observando o bráquete com atenção. Em certo momento, começou a reconhecer determinados padrões no formato da peça. Eram similares às milhares de experiências passadas operando o torno e trabalhando na oficina de joias na adolescência.

— Eu era metido e me senti desafiado. A peça era diferente de tudo que estávamos acostumados a fazer na oficina. No entanto, eu me lembro de ter pensado: “Se alguém já fez, é porque dá para fazer”.

Oraci enxergou aquela pequena pecinha metálica como um desafio, e o estímulo provocado pela vontade de reproduzir aquele bráquete foi o início da Morelli.

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Pouco mais de três anos antes do encontro com Miguel, aos 22

anos, Oraci já andava por Sorocaba em seu carro próprio, um VW Fusca 1300 bege.

Fazia o trajeto entre a casa onde morava com os pais e as irmãs mais novas na Rua Sevilha, Vila Hortência, e a Fábrica de Aço Paulista, a antiga Faço – um gigante parque metalúrgico que começara a ser erguido na Avenida Independência, no bairro Éden, nos anos 1960. Provavelmente, chegou a lembrar que, quando era menor, não havia nada além de chácaras e sítios na região a nordeste do centro, onde hoje ficam Éden, Iporanga e Aparecidinha, por onde cortaria a “Castelinho” (a Rodovia José Ermírio de Moraes) já no final de 1974.

Um século depois da chegada dos trens, Sorocaba vivenciava o declínio da atividade que a tornou famosa e, ao mesmo tempo, um novo salto. Com a substituição dos trilhos pelas estradas como base para o sistema de transportes, a Companhia Sorocabana deu lugar às Rodovias Raposo Tavares, em 1954, e Castelo Branco, em 1967. A estratégia desenvolvimentista traçada no Plano de Metas do Governo Juscelino Kubitschek contribuiria para a diversificação de atividades industriais. Também foi uma resposta ao progresso do parque industrial de Votorantim, ao sul da cidade, emancipado em 1965.

Cabem aqui dois registros relevantes. O primeiro: até a publicação deste livro, Oraci manteve guardado na garagem de seu pai, José Morelli, o seu Fusca 1974, que se transformou em uma relíquia. Até hoje, aos 98 anos, José preserva o carro e dá partida a fim de mantê-lo funcionando. O segundo: conforme amadurecia profissionalmente, Oraci desenvolveu um grande interesse pelos processos industriais. Ele se tornou capaz de observar um objeto qualquer e traçar o caminho mais simples e eficiente para fabricá-lo em uma linha de produção, tendo como base ferramentas e máquinas de usinagem mecânica.

O convite para a sociedade com os irmãos Martins veio em 1974, quando Oraci iniciava sua jornada como instrutor de tornearia mecânica do Senai. Conhecido dos tempos em que trabalhavam juntos no Parque Capuava, em Santo André, Valdir Martins procurou Oraci com o desejo de abrir uma oficina de tornearia e conserto de automóveis junto ao seu irmão. A presença do antigo colega de ferramentaria como sócio representaria, além da habilidade com o torno, uma injeção de confiança ao projeto.

A Martins Morelli abriu as portas fazendo de tudo um pouco em seus dois barracões independentes. Em um deles, Ildefonso cuidava das tarefas que remetem ao senso comum da expressão “oficina mecânica”: ele identificava com facilidade qualquer defeito de um carro com motor carburado. No outro barracão, Valdir, Oraci, um par de tornos, plaina

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34 e máquina de solda trabalhavam na manutenção e confecção de peças. A oficina atendia clientes como a locadora de máquinas pesadas Movicarga; a fabricante de máquinas gráficas Catu; a antiga Petersen, que fazia injetoras; entre outros. Um dos serviços recorrentes era a manutenção de peças do trem de laminação da Nossa Senhora Aparecida, pioneira do setor metalúrgico na cidade que se tornaria parte do Grupo Villares em 1988.

Depois de alguns anos, os serviços da oficina ficaram escassos. Apesar dos Martins se destacarem por sua experiência no ramo e por sua honestidade nos negócios, Oraci queria mais, queria buscar novos desafios.

Aos 15 anos de idade, o auxiliar Joãozinho – ou melhor, João Rosatti – era um espectador atento da dedicação empreendedora do chefe, mesmo quando os negócios da empresa não iam bem.

— Eu chegava cedo e o Oraci já estava lá. Quando não tinha serviço, o Oraci não parava quieto e também não me deixava de braços cruzados. Ele aproveitava o tempo para me ensinar a tornear panela, disco de freio, induzido do motor de partida etc.

Desta maneira, o adolescente aprendeu o básico do ofício de torneiro. Mais do que isso, o auxiliar tornou-se uma testemunha daquele momento histórico em que Miguel Catalunha entrou na oficina com um tubo de vidro na mão e o misterioso bráquete dentro dele. Um episódio que, de certa maneira, definiu os rumos da Ortodontia no Brasil. Anos mais tarde, Rosatti viria a ser o funcionário número um da Morelli. Até hoje, durante as visitas guiadas à fabrica, Joãozinho é apresentado ao grupo como o colaborador mais antigo, que estava ao lado de Oraci antes mesmo da empresa nascer.

Os anos 1970 foram marcados pelas ações mais violentas da

ditadura militar. A tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog nas dependências do DOI-CODI, em 1975, culminaram com manifestações a favor da democracia, fortemente reprimidas por tropas da PM – como a que se viu no campus Monte Alegre da PUC, em Perdizes, quando cerca de mil estudantes, professores e funcionários foram presos a mando do secretário de Segurança Pública do Estado, Coronel Erasmo Dias.

Nos agitados dias daquela década, o desenvolvimento e a difusão da Ortodontia continuavam notadamente no eixo Rio-São Paulo, com forte expansão no estado paulista: além da Faculdade de Odontologia da USP, na capital, e da Faculdade de Odontologia de

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Piracicaba, novos cursos de pós-graduação foram criados em Bauru (1973) e Araçatuba (1976), intensificando o poder da Ortodontia no interior. O Congresso Paulista de Ortodontia, que vinha sendo realizado pela SPO desde 1968, ganhou corpo e contava com cada vez mais participantes ao longo da década de 1970.

Apesar de se mostrar um segmento extremamente promissor, o crescimento da Ortodontia no Brasil ainda esbarrava em um problema: a escassez e os valores proibitivos de material para tratamentos ortodônticos. Todos os materiais necessários para a execução de tratamentos eram fabricados apenas no exterior. Inaugurada pela empresária argentina Pilar Ostivar em 1955, a importadora Brasil Orthodontic era a única referência. Após 20 anos, apenas o endereço mudou: da Praça da República para a Avenida Paulista. Mas, as taxas de importação continuavam altíssimas.

Enquanto a firma de Pilar Ostivar representava marcas como Unitek, dos EUA, além de outras, os irmãos Erich e Enis Marquart, mantenedores da Dental Gaúcho e pioneiros na comercialização de artigos gerais, começavam a introduzir produtos da alemã Dentaurum e da norte-americana Rock Mountain. Ainda na década de 1970, Stelio Ribeiro iniciou seu comércio de produtos ortodônticos no Rio de Janeiro.

Com estas poucas alternativas, o acesso a tratamentos ortodônticos era restrito a quem tinha algum poder aquisitivo.

— Pelo que a gente ouvia falar, o produto na época era escasso e difícil de comprar. Tinha que ter uma autorização do professor ou da escola. Talvez quisessem proteger a especialidade limitando o acesso de profissionais não habilitados.

A alternativa aos preços inacessíveis era para poucos: profissionais muito interessados e alguns pequenos laboratórios faziam seus próprios materiais, o que consumia tempo e exigia habilidade extra.

O cirurgião-dentista Nelson Rubens Muscari era um deles. O ajuste de um arco metálico, posicionado na canaleta dos bráquetes presos aos dentes por meio de uma banda, pressiona os dentes e provoca uma resposta biológica, deslocando-os aos poucos até alinhá-los. Cabe ao profissional estabelecer uma relação próxima ao seu paciente, avaliar suas necessidades e, com o resultado em mente, refinar este conjunto ao ajustar posição, torque, angulação e rotação de cada bráquete.

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— Ele passou a acreditar que Para ampliar a aplicação dessas técnicas, Muscari foi eu poderia fazer buscar informação na metalurgia. Em suas andanças por um bráquete." oficinas de Sorocaba, acabou esbarrando em Miguel Catalunha. Logo depois, recebeu um telefonema de Oraci. Marcou o encontro em seu consultório, na Rua São Bento, centro de Sorocaba. Recebeu um rapaz magro, tímido, vestindo um macacão sujo de graxa. O ortodontista decidiu testá-lo. — Ele me mostrou uma peça metálica simples, uma chapinha dobrada, fácil de fazer. Era um bráquete de Ponce. Perguntou se eu conseguia fazer outra igual. Eu respondi: se você me emprestar um alicate velho, sem uso, eu faço e ainda te mostro como você mesmo é capaz de fazer. No outro dia fui entregar a peça e o alicate. Ele viu, ficou entusiasmado e passou a acreditar que eu poderia fazer um bráquete.

Oraci ouviu de Nelson que a peça naquele tubo de vidro era importada, não havia nada similar sendo produzido no Brasil. Caso alguém fosse capaz de produzir aquela peça em série e atender ao crescente volume de profissionais interessados, teria em mãos um negócio promissor.

A oportunidade estava ali, bem diante de Oraci. Estava na hora dele usar todo seu talento e inventividade para mudar a história da Ortodontia brasileira. –– * ––

Oraci sabia que era inviável produzir peças metálicas pequenas

artesanalmente. Além disso, a confecção manual de bráquetes tornaria o preço das peças ainda mais caro que o das importadas. Era preciso desenvolver uma máquina capaz de produzir grande quantidade de peças e manter um padrão consistente. Paralelamente, era preciso manter o ritmo de trabalho na Martins Morelli. Além de seguir um rígido horário de expediente, Oraci ainda pediu autorização para o sócio Valdir para trabalhar naquele projeto fora do horário de expediente da oficina ou quando não houvesse serviço a ser feito.

Nesse ritmo e em regime de “hora extra”, estudando e pesquisando sozinho, ocupava as noites e os sábados desenhando o processo de reprodução do bráquete. No papel, ficaria assim: primeiro era preciso laminar um longo fio de aço seguindo o perfil da peça; em seguida, cortar o fio na transversal em partes milimetricamente iguais; por fim, polimento e acabamento.

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Para o primeiro estágio, Oraci usou sua experiência da adolescência como ajudante na oficina de joias. O laminador do ourives é composto por dois rolos sobrepostos e uma engrenagem, usada para aproximá-los de acordo com a espessura que se deseja comprimir metais como ouro e prata. Em um laminador manual, é preciso girar a manivela e passar o lingote metálico entre os cilindros em um processo que se repete por várias vezes, até chegar no formato desejado. Alguns destes rolos apresentam sulcos quadrados ou arredondados (chamado “meia cana”), tradicionalmente usados para definir o formato de anéis. Oraci se inspirou neste método e, com a ajuda do torno Nardini (modelo 220 M II), fez cilindros de aço tendo como base o bráquete que dispunha.

— A base da máquina parecia um plano que, em mecânica, é chamado de “rabo de andorinha”. É como se fosse uma meia cana de aliança, com duas garrinhas. Eu fiz um primeiro modelo em madeira, depois mandei fazer em ferro fundido. Daí, fui usinando na oficina.

Nos primeiros testes, Oraci obteve o perfil de um bráquete laminando um fio de cobre. Foi o suficiente para saber o diâmetro adequado para a matéria-prima final. Assim, foi para Diadema em seu Fusca bege rumo à trefilaria Citral, que na época pertencia à metalúrgica Nossa Senhora Aparecida.

— Eu fui atendido por um engenheiro suíço. Expliquei que precisava de um fio com 2,50 mm, 2,55 mm de diâmetro, e que fosse em aço inoxidável que pudesse colocar na boca sem prejuízo à saúde. Ele me olhou sério e respondeu: “você não vai conseguir laminar isso aí”. “Pois eu gostaria de tentar”, respondi a ele. Era esse tipo de comentário que me dava ainda mais motivação.

O engenheiro da Citral se propôs a ajudar com a matéria-prima, mas não conseguiria entregar um lote pequeno: mesmo se tirasse uma ponta de um pedido grande, daria 50 kg de fio. Oraci encomendou uma carga do material sem pensar duas vezes. Esperou algumas semanas para voltar ao Grande ABC e retirar dois rolos de aço. Mais tarde, no quintal da casa na Rua Sevilha, aqueceu o fio na medida certa, girou a manivela de 1 metro do laminador com cuidado e, como se respondesse ao que ouviu do suíço, passou o fio pelo laminador adaptado até conseguir o perfil sem destruir os cilindros, muito menos trincar ou amassar o lingote fino de aço.

A fresadora, máquina responsável por serrar milimetricamente na transversal o fio já modelado e produzir peças iguais, foi sendo projetada, construída e adaptada por Oraci. Aos olhos de um observador leigo, era uma engenhoca curiosa. O fio era apoiado em

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38 uma roda de bicicleta, que girava à medida em que avançava em direção à serra circular. Para não queimá-la ou parti-la, era preciso mandar óleo de usinagem para lubrificar e refrigerar: esta era a função de uma bombinha de gasolina, retirada de um Fusca. Já o motor que fazia o sistema funcionar era uma redutora de velocidade de uma máquina de lavar roupa Bendix.

Nas noites e finais de semana na oficina, Oraci modelava, usinava e finalizava os rolos do laminador e a estrutura das peças, materiais retirados de outras máquinas e sucata de ferro que formariam a fresadora. Assim como fez com o laminador, montava a fresadora em casa, na edícula aos fundos do quintal. O pai, José, chegava do trabalho e também auxiliava Oraci. Objetos e ferramentas ficavam sobre uma antiga mesa de madeira maciça, que até aquela época era o espaço favorito das irmãs Angela e Sonia. A caçula lembra dos quase dois anos em que precisou trocar seu espaço de lazer.

— Angela e eu ficávamos muito ali, lendo gibi, estudando e brincando. No momento em que Oraci começou a montar a máquina e levar suas ferramentas, a gente sabia: perdemos a mesa. Não podíamos mais usar.

Na primeira versão da fresadora, um manípulo de moto marcava o passo: Oraci, manualmente, acionava um comando para frear enquanto a serra cortava o fio; outro comando puxava a sequência, preparando o próximo corte. Em uma segunda versão, mais avançada, um esquema de cames, eixos giratórios desenhados e produzidos por Oraci no torno, automatizou o sistema. Para que o engenho pudesse funcionar sem supervisão, teria que desligar sozinha. Assim, uma linha de pesca amarrada a um peso puxava uma roldana, formada pelos aros de bicicleta. A máquina, regulada e com o peso dois metros acima, serrava os pequenos bráquetes até o peso chegar ao chão, desligando uma chave. A mãe, Zenaide, não gostava nada disso, como lembra Sonia.

— Aquela máquina fazia muito barulho. Oraci ficava até tarde da noite testando e martelando. Mas, na parede ao lado do quintal morava outra família. Minha mãe ficava muito preocupada com o incômodo que ela poderia causar. Já eu, ainda uma criança, não via a hora daquele trambolho sair dali, queria minha mesa de volta.

Nas primeiras semanas de desenvolvimento, Nelson Muscari visitou a casa da família Morelli algumas vezes. A frequência chegou a duas vezes por semana após os primeiros testes da máquina fresadora. Veio a primeira sugestão de melhoria no processo, derivando uma segunda máquina: ela serrava a canaleta no perfil de aço, que se tornaria o slot do bráquete, antes do fio passar pela fresadora. Também era possível dar polimento nas

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primeiras peças, tarefa que Oraci realizou na oficina de joias onde trabalhou e aprendeu as técnicas para tal.

Restava, ainda, um teste definitivo: um paciente com má-oclusão. Adivinhe quem foi o primeiro a usar bráquetes fabricados por Oraci Morelli em um tratamento ortodôntico? Acertou quem se lembrou de Joãozinho.

— Não sei como foi exatamente, mas lembro que Oraci conversou com o Dr. Nelson para que ele colocasse um aparelho em mim. Quando começamos a trabalhar, meus dentes eram para fora e tinha um buraco entre eles, cabia um dedo. Não eram todas as peças fabricadas pelo Oraci, não existia uma linha completa, mas alguma coisa foi usada.

A primeira fabricante brasileira de produtos ortodônticos estava nascendo ali, naquela bancada de madeira. Tudo caminhava para uma futura parceria entre Oraci e Nelson, mas um desentendimento poderia colocar tudo a perder.

Considerada a obra-prima do cantor e compositor cearense

Belchior, o álbum Alucinação foi lançado em 1976. Provavelmente, é lembrado por fãs da MPB por sua primeira faixa do lado A, “Apenas um rapaz latino-americano”, sucesso nas rádios ao final daquela década. Não seria surpresa alguma se esta fosse uma das fitas cassete no porta-luvas do Fusca bege. Faria todo sentido ainda se, na virada da década rumo aos anos 1980, Oraci abrisse a caixa, colocasse-a em um rádio toca-fitas TKR cara preta e, após viajar ao som de “Velha roupa colorida” e “Como nossos pais”, chegasse à quarta faixa: “Sujeito de sorte”.

Sorte é uma palavra constante em qualquer conversa com Oraci sobre a história da Morelli.

— Eu nem sabia o que era Ortodontia. Um belo dia, me entregam um bráquete na mão e me pedem para criar um equipamento que pudesse copiá-lo. Era o produto certo, sendo lançado na hora certa e no país certo. Diga-me se isso não é sorte?

Sem dúvida, o acaso abriu as portas para Oraci. No entanto, vale ainda destacar outros adjetivos que possibilitaram a realização de seu projeto: perícia, disciplina, dedicação e eficiência. Normalmente, sorte está ligada a situações envolvendo escolhas. Como escolher a melhor opção sem necessariamente saber o que os outros ao seu redor vão fazer? Há circunstâncias em que as escolhas possíveis representam verdadeiras apostas.

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Oraci Morelli e Nelson Muscari tinham que decidir: perder algo no presente para, quem sabe, ganhar algo no futuro. Após dois anos pesquisando, executando e conseguindo produzir uma série de bráquetes no quintal de casa, Oraci já tinha em mente sua opção. Naturalmente, o desgaste da sociedade com os irmãos Martins na oficina também contribuiu para uma conversa franca. Após quase sete anos chegava ao fim a sociedade.

— Na época, a Martins Morelli estava com pouco serviço no setor de usinagem. Eu cheguei para o Valdir e disse: a sociedade é muito boa para começar uma empresa, mas a gente não se sente tão livre. Acredito que chegamos em um patamar em que cada um de nós já consegue andar com as próprias pernas. O Valdir concordou e começamos a pensar na divisão.

Na oficina, Ildefonso era responsável pelo conserto de carros, enquanto Oraci e Valdir trabalhavam na fabricação de peças industriais. No início, tudo começou com base em três lotes semelhantes, cada um tinha um torno, um terço dos instrumentos de medição, um terço das ferramentas e um terço dos materiais, sendo dois barracões em um terreno de 800 m2 .

Em seu Fusca bege, Oraci levou Nelson Muscari para tratar da nova sociedade. Ficaram ao lado da máquina, no quintal. Na sala, Angela e Sonia podiam sentir o calor da conversa. Oraci disse a Nelson que precisava de apoio para começar a produzir os bráquetes. A ideia era instalar a fábrica de materiais ortodônticos em um dos barracões da oficina, na Mascarenhas Camelo. Para isso, Nelson deveria comprar metade do imóvel da oficina. Oraci, que já era dono de um terço, complementaria o investimento para ser dono da outra metade. Assim, estaria configurada a nova sociedade entre Nelson e Oraci.

A proposta de Oraci ainda previa que ele ficaria um ano sem receber, tempo suficiente para recuperar o investimento inicial.

Havia chegado a hora de botar o dinheiro na mesa. Até aquele momento, Nelson Muscari não havia apoiado financeiramente nenhuma das etapas para o desenvolvimento das máquinas. Nas palavras de Oraci, o diálogo daquela noite seguia o mesmo roteiro: a aposta, como se diz, era “barbada”; mas, Nelson parecia querer jogar apenas com as fichas de Oraci.

— Não, não vamos comprar o barracão – disse Nelson. Acho melhor você alugar uma casa e começar a produzir. Eu posso ser o fiador.

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— Aluguel? Eu tenho condições de comprar o imóvel sozinho. O que estou buscando é uma sociedade. – retrucou Oraci.

— Escuta, você não acredita quando eu falo que este é um bom negócio?

— Eu acredito no negócio. Mas, eu não acho que o senhor acredite.

— Quer dizer que você está me chamando de mentiroso?

— Sim, estou.

A conversa tensa acabou com as chances de uma sociedade. Naquele momento, Nelson disse que queria comprar as máquinas. “OK. Estão vendidas”, disparou Oraci. Só precisava calcular o valor, levando em conta o tempo de desenvolvimento e despesas com materiais. Pediu para que retornasse após alguns dias.

Oraci não lembra exatamente qual foi o valor computado, mas fez uma estimativa: não era um valor muito alto, talvez o equivalente à metade do preço de carro popular da época. Em 1979, um VW Fusca custava cerca de 84 mil cruzeiros, o que, em 2021 representaria aproximadamente R$ 50 mil. É possível presumir que todas as máquinas foram oferecidas por um valor equivalente a R$ 25 mil nos dias atuais.

No reencontro, Nelson chegou a pedir um “precinho bom e parcelado” antes de ouvir a oferta. Oraci deu suas condições: ensinaria quem ele quisesse, preferencialmente um jovem formado no Senai, para operar os equipamentos. Estava disposto a entregar as máquinas, ensinar como operá-las e deixar todo o processo produtivo encaminhado. Ao apresentar o valor, fez a maior exigência: o pagamento teria que ser feito à vista, em dinheiro.

— Ora, em dois anos de pesquisa, o único investimento financeiro dele foi o primeiro bráquete. Estávamos nos desentendendo naquela discussão, não queria pegar meia dúzia de cheques. Não tinha outra oferta. Eu preferiria jogar a máquina fora, a vender abaixo do preço ou parcelado ao Dr. Nelson.

Inconformado, Nelson ainda repetiu frases sobre o potencial do negócio e sua credibilidade, mas saiu dali sem acordo. Sonia também não gostou de saber que a máquina continuaria ali atrapalhando suas brincadeiras.

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Oraci simplesmente jogou uma lona preta por cima das máquinas e assim poderia ter acabado a história da primeira fabricante brasileira de produtos ortodônticos. Quatro décadas mais tarde, fica fácil falar sobre a gigantesca oportunidade que se perderia ali caso a fábrica nunca fosse criada. Naquela época, no entanto, ninguém poderia dizer, com certeza, exatamente como seria o futuro.

Junto com as máquinas, Oraci decidiu jogar seus planos futuros para a Ortodontia para debaixo daquela lona preta. Com o fim da sociedade com os irmãos Martins, Oraci ficaria com o torno Nardini e algumas ferramentas. Valdir e Ildefonso ainda comprariam a parte do imóvel que pertencia a Oraci, continuariam com a oficina e manteriam os clientes. A proposta estava apalavrada, mas poderia ficar melhor com a perspectiva de um novo negócio.

Oraci redefiniu o foco de suas energias na criação de uma nova oficina. A expectativa era de que o futuro de Oraci estaria na retífica de autopeças, em discos e panelas de freio. Já estava com o torno Nardini e ferramentas específicas para este serviço prontos para funcionar. Esse futuro planejado, no entanto, nunca se concretizou. O destino da Ortodontia brasileira já estava escrito e passava pelas mãos de Oraci.

Aos olhos de um observador leigo, a máquina de aquecer o fio laminado para alívio de tensão, criada por Oraci para produzir os primeiros bráquetes da Morelli, era uma engenhoca bastante curiosa. Diversas máquinas do mesmo período estão hoje expostas no museu da empresa.

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Depois de serem lavadas, a peças passavam por um processo de secagem criado por Oraci.

Primeira geração de bráquetes produzidos pela Morelli, no início dos anos 1980, marca o nascimento da indústria ortodôntica brasileira.

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