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É a crítica que mostra o caminho
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CAPÍTULO
É a crítica que mostra o caminho
MORELLI 40 ANOS – UMA HISTÓRIA DE SUCESSO
Os anos 1980 marcaram o fim do Regime Militar
no Brasil e a luta pelo retorno da democracia. Entre
o Movimento Diretas Já, de 1984, marcado por comícios no Vale do Anhangabaú e no entorno da Igreja da Candelária, e a volta efetiva do eleitor brasileiro às urnas em 1989, o País vivia um de seus mais turbulentos períodos na economia, desencadeado pela hiperinflação.
Empossado após a morte de Tancredo Neves, o último presidente eleito pelo Colégio Eleitoral, José Sarney encampou três planos econômicos baseados em um forte congelamento de preços: o Plano Cruzado, que cortou três zeros do antigo Cruzeiro em 1986; o Plano Bresser, em 1987; e finalmente o Plano Verão, que instituiu o Cruzado Novo e cortou mais três zeros da moeda. Os números da hiperinflação demonstram o fracasso destas iniciativas: alta de preços de cerca de 40% em outubro de 1989, saltando para 80% em março de 1990. Os preços eram remarcados diariamente.
Com a chegada das eleições presidenciais, o discurso sedutor de um jovem político que se intitulava “caçador de marajás” – isto é, servidores públicos com salários abusivos – conduziu Fernando Collor de Mello ao Palácio do Planalto. Foram 35 milhões de votos contra 31 milhões do adversário, o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva.
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Em 14 de março de 1990, às vésperas da posse de Collor, o presidente Sarney finalizou seu mandato decretando três dias de feriados bancários para evitar uma corrida aos bancos. No dia 16, quando ocorreu a posse de fato, a equipe econômica do novo presidente, que era liderada pela ministra da economia Zélia Cardoso de Mello, anunciou uma drástica intervenção na economia do País.
O Plano Brasil Novo, ou Plano Collor, como ficaria conhecido, trazia medidas relacionadas a finanças públicas, reforma do Estado, política cambial e comércio exterior. Também recuperava o nome Cruzeiro para a moeda brasileira. Foram inúmeras mudanças importantes, mas nenhuma delas é tão lembrada até hoje quanto o congelamento das cadernetas de poupança.
Em linhas gerais, o Plano Collor determinava que cada brasileiro poderia dispor de, no máximo, Cr$ 50 mil (o equivalente a cerca de R$ 6 mil, em 2020) de sua conta corrente ou na até então intocada caderneta de poupança. Todo o restante das economias de cada pessoa ou empresa permaneceria preso, congelado no Banco Central, com a promessa de que seria devolvido, corrigido, em um prazo de 18 meses. Na prática, era um confisco do dinheiro da população.
A notícia veio como uma bomba em todo o País. O assunto dominou todas as rodas de conversa, inclusive na Morelli. Na segunda-feira, 19 de março, a empresa não recebeu nenhum pedido novo. Mesmo quem tinha pouca relação com a área comercial estava assustado. Era o caso do chefe da ferramentaria, Gilmar Rossafa.
— E agora, Oraci? — Como assim “e agora”? — O que vamos fazer? O dinheiro de todo mundo está preso no banco! — Vou te dizer o que vamos fazer: a gente vai continuar trabalhando.
O momento era extremamente delicado, principalmente para as empresas que ficaram sem recursos para o fluxo de caixa para as despesas mais básicas. Como pagar os fornecedores? Como pagar os funcionários? E, como todos os consumidores foram afetados, ninguém estava disposto a comprar nenhum produto, a menos que fosse de primeira necessidade. O objetivo do governo era frear a hiperinflação, mas as medidas deixaram a economia completamente estagnada.
A maioria dos empresários brasileiros adotou medidas de proteção ao seu negócio, demitindo, parando a produção e cancelando investimentos. Muitos simplesmente entraram em pânico, sem poder usar o próprio dinheiro para honrar suas dívidas. O temor não
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era infundado. Nos meses seguintes, milhares de empresas fecharam as portas e geraram um efeito em cadeia, prejudicando toda a economia.
Voltando aos primeiros dias logo após a posse do novo presidente, Oraci lutava para que sua empresa não se deixasse contaminar pelo alarmismo do mercado. Ao contrário da maioria dos empresários, ele enxergou uma oportunidade na crise. Com menos dinheiro circulando no mercado, mais ortodontistas deveriam passar a comprar bráquetes nacionais ao invés de importados. Se a Morelli adotasse as medidas corretas, o Plano Collor não seria uma ameaça ao futuro da empresa, e sim uma oportunidade para crescer ainda mais.
Na semana em que houve o anúncio da ministra Zélia, Oraci reuniu sua equipe de gestores e apresentou seu plano: a empresa deveria continuar apostando na estratégia baseada em preços competitivos e disponibilidade de estoque.
Estava na hora de arregaçar as mangas. O setor de compras não poderia deixar faltar matéria-prima. Por telefone, todos os pedidos de compra de materiais foram confirmados e novos orçamentos foram realizados. Com a equipe da fábrica, a ordem era aumentar o volume de produção. Enquanto outras empresas reduziram o ritmo de trabalho (ou mesmo pararam), a Morelli acelerou. Nenhum funcionário foi dispensado.
O fato dos componentes ortodônticos serem pequenos e armazenados com facilidade também favoreceu o plano de Oraci. Para empresas de outros ramos, seria impossível fazer algo parecido: nem todos podiam produzir e armazenar seus produtos em grande quantidade demandando tão pouco espaço. Quem trabalhava sob encomenda, por exemplo, parou.
Outro desafio era manter o entusiasmo da equipe com os salários em dia. Para honrar minimamente este e outros compromissos diante do congelamento das contas, eram necessários empréstimos bancários. Situação que, para a Morelli, estava sendo vivenciada pela primeira vez.
— Felizmente, a empresa sempre teve ótima saúde financeira e isso nos colocou em vantagem na hora de pedir o empréstimo. O banco sabia que era uma medida para garantir a folha de pagamentos, por isso não houve dificuldade.
Enquanto o País sofria por conta das intervenções do Plano Collor, Oraci testemunhava o êxito de sua estratégia. A permanente dificuldade em importar, somada à falta de dinheiro circulando, levou muitos ortodontistas que ainda não eram clientes da Morelli a procurarem por produtos nacionais, mais baratos e com disponibilidade imediata para entrega.
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76 — Se você Em menos de três anos de mandato, o presidente Collor parar, vai ficar foi flagrado em um esquema de corrupção e, em seguida, depara trás." posto. À medida que o mercado brasileiro foi se recuperando do Plano Collor, as vendas cresceram ainda mais. A Morelli se consolidou como a fabricante líder de material ortodôntico no Brasil. O momento foi tão importante que Oraci passou a contar sua história em dois momentos: antes e depois do Plano Collor.
Na visão de Oraci, o crescimento da empresa, a partir de 1990, representou uma virada também na Ortodontia brasileira. Com o acesso aos materiais vendidos a preços mais justos, o tratamento ortodôntico ficou mais acessível a toda população. Foi o momento em que houve a efetiva democratização da Ortodontia no Brasil.
Com o crescimento da Ortodontia, toda a Odontologia também se beneficiou. Uma lição que Oraci dividiu com o mercado: — Se você parar, vai ficar para trás. O mundo não espera por você.
A Morelli ainda precisaria dar outro grande passo: fazer com que a comunidade ortodôntica acreditasse nos produtos nacionais com a mesma força de Oraci. –– * ––
Oraci acompanhava de perto a expansão de sua fábrica, com as
obras em ritmo permanente no cruzamento das alamedas Jundiaí e Casa Branca. Apesar de ter desenvolvido sua visão comercial de forma autodidata, sua preocupação se debruçava no setor produtivo, pautado por custo, produção e volume. A tal ponto de fazer circular rumores pelos corredores, sempre que se ouvia alguém procurando por ele: “deve estar por aí, botando a mão na graxa”. Pode até soar pejorativo, mas não havia como negar: seu entusiasmo era exatamente esse.
Firme em sua estratégia vertical, mantinha forte o desejo de produzir toda a linha de produtos ortodônticos. Ao menos nos primeiros 15 anos, alguns itens, como caixas de plástico, bolsas de pano para arco extraoral, casquetes e mentoneiras para tração, dependiam de fornecedores externos. E uma singularidade: na relação de itens, constavam discos para polimento e compostos para colagem produzidos pela 3M – que viria a se tornar, anos mais tarde, uma das concorrentes da Morelli no mercado.
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Entre os artigos mais vendidos, os elásticos ortodônticos sempre rivalizaram com bráquetes e tubos. Os elásticos intraorais não eram fabricados em Sorocaba: a empresa comprava tubos cirúrgicos de látex na Alta Flex, no bairro do Ipiranga, em São Paulo; estes eram cortados de acordo com a espessura e diâmetro desejados. Havia, no entanto, uma insatisfação, pois a fabricante não dispunha de todas as medidas reivindicadas pelos ortodontistas.
Também não havia interesse algum em produzir, mesmo sob encomenda, canos com dimensões específicas. A solução começou a se revelar em um lance que envolveu sorte, generosidade, insistência e perspicácia. Começou com um telefonema: era Chico, dono do bar e mercearia no fim da rua, além de “padrinho” da filha de Oraci, Mônica.
— Ô, compadre! Tenho um amigo aqui, o Valter, que está precisando de um dinheiro emprestado. E eu não posso ajudar. Você consegue? Ele é gente boa, eu garanto!
Oraci poderia simplesmente negar. Se o fizesse, estaria contrariando seu próprio estilo: além da consideração ao amigo, ele nunca deixou de receber e atender quem o procurasse.
— Manda ele aqui, Chico!
Valter chegou ao escritório, sentou-se diante do dono da Morelli e começou a bater papo, enquanto via uma folha de cheque com o valor desejado (R$ 1 mil) ser preenchida.
“E o que você faz?”, indagou Oraci.
— Eu trabalho com látex. Faço diversos produtos, como balões infláveis para festas, touca de natação, manguito para aparelho de pressão…
Surpreso, Oraci voltou seus olhos para sua mesa desarrumada e, entre papéis e outros itens, pegou um tubo e alguns elásticos já cortados que estavam por ali.
— E você produz isso aqui?
— Não, mas posso te ajudar a encontrar alguém que faz.
Nas semanas seguintes, o Valter, amigo do Chico, empenhou-se em procurar fabricantes e possíveis recursos. Primeiro, convidou Oraci para uma viagem a São José dos Campos. Lá encontrariam um sujeito de Votorantim, que estava com uma máquina parada.
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— Depois da visita, eu disse ao Valter: mesmo se o vendedor quisesse me entregar aquela máquina de graça, eu não aceitaria. O equipamento era praticamente sucata.
Em outro final de semana, foram conhecer uma pequena indústria de luvas na cidade de São Roque. Mais uma vez, nada feito. No sábado seguinte, a peregrinação continuou nos arredores de São Roque, mais precisamente no distrito de Mailasqui, a 60 km de Sorocaba. Em uma chácara, encontraram um senhor com feições asiáticas chamado Pedro. Oraci o chamava simplesmente de “japonês”.
— A oficina dele parecia um galinheiro, era muito suja, mas tudo bem. O importante é que eu perguntava se dava para fazer algumas coisas e ele respondia de um jeito que a gente percebia que ele entendia do negócio.
Durante o papo, surgiu outra história inimaginável. Pedro, o japonês, demonstrou certo aborrecimento ao saber que a intenção era fabricar produtos ortodônticos. Isso porque há algum tempo apareceu por lá um doutor de Sorocaba que, na hora de investir no negócio, desistiu. Sem citar nomes, tudo indicava ser o mesmo homem que havia procurado por Oraci anos antes. Uma obra extraordinária do acaso, o que estimulou Oraci a demonstrar segurança.
— Pedro, quanto você quer para montar esta máquina e deixá-la funcionando?
Ouviu uma oferta exata: R$ 18.600,00. Nem mais e nem menos. Aparentemente, o japonês queria apenas recuperar o dinheiro e tempo investidos no projeto encomendado pelo tal doutor de Sorocaba.
Considerando o que a Morelli despendia com a fornecedora, era uma grande pechincha, mesmo se o aparato não funcionasse. Sem pensar duas vezes, Oraci sacou o talão de cheques do bolso.
— Olha, Pedro, prefiro que você dê uma olhada onde será instalado o equipamento. Mas, você já quer que eu deixe a entrada agora?
Na segunda-feira, Pedro visitou a fábrica e logo começou a trabalhar. Em pouco tempo, fez funcionar a máquina que deu início à linha de elásticos e látex com fabricação própria.
O investimento no aparato foi amortizado rapidamente. A fábrica seguia firme em sua curva acelerada de crescimento.
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Quando a Morelli resolveu, por conta própria, expor seus
produtos em um evento voltado aos profissionais da área, Fernando
Collor de Mello já havia sofrido impeachment. Seu vice, Itamar Franco, era o novo presidente do Brasil. Em seu curto governo, o político mineiro teve um importante papel na retomada econômica do País, em parceria com o seu Ministro da Fazenda, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que liderou a implantação do Plano Real. O golpe certeiro acabou com a hiperinflação e finalmente deu espaço para a construção de uma moeda estável para sustentar o crescimento da frágil economia brasileira. Nos anos seguintes, o sucesso do Plano Real daria a Fernando Henrique dois mandatos na Presidência da República.
Entre o final dos anos 1980 e o começo da década de 1990, a maioria das empresas ainda não possuía belos estandes, como se vê atualmente nos grandes eventos para cirurgiões-dentistas. Os expositores contavam apenas com mesas discretas, um pano azul escuro, um letreiro e algumas peças espalhadas sobre o tecido. Foi assim que a Morelli começou sua participação nos eventos nacionais, em uma das edições pioneiras da Jornada Odontológica de Piracicaba, realizada pela Faculdade de Odontologia da Unicamp.
Àquela altura, é verdade, Oraci já havia vencido muito de sua timidez. No entanto, ainda não era um sujeito completamente desembaraçado, do tipo que os vendedores costumam ser, principalmente quando o assunto fugia de sua área de conhecimento.
— Quando encostava um ortodontista no balcão e fazia algum comentário técnico, como “seu gancho do tubo 45 tem que ser mais para mesial”, eu não entendia nada. Por isso, eu sempre torcia para ele falar sobre política, mulher, futebol, religião, pesca... qualquer outro assunto! Eu não sabia nada sobre Odontologia. Hoje, eu consigo até argumentar tecnicamente com um profissional, mas no começo ninguém me ensinou nada. Como eu iria saber? Confesso que, às vezes, eu até torcia para o cliente ir embora.
Bem antes da estreia oficial da Morelli em eventos do setor, os produtos da empresa já circulavam nos principais congressos por meio de uma “loja volante” representada pela Dental Laser, de Nelson de Véqui. Na prática, a tal loja volante era apenas um gaveteiro com peças ortodônticas embaladas em saquinhos plásticos grampeados. Os produtos da Morelli eram vendidos a profissionais e estudantes que carregavam sacolas e ajudaram a espalhar os produtos Brasil afora. Quem não conhecia, aproveitava para chamar mais dois ou três colegas, enquanto Nelson de Véqui fazia seu trabalho de relacionamento. Mesmo décadas mais tarde, professores daquela época ainda lembram e perguntam pelo primeiro “garoto-propaganda” da empresa.
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Congressos e eventos sempre representaram um poderoso termômetro de popularidade para a Morelli, além de contribuírem para seu crescimento no “boca a boca”. Na mesma medida, a barreira da qualidade também aumentava. O preconceito com os produtos nacionais poderia ser estimado em números: a cada três clientes da jovem fabricante brasileira, dois eram simpatizantes da Morelli. Eles recomendavam e apoiavam a evolução da empresa, ajudando no aprimoramento do produto. O terceiro cliente, no entanto, era muito barulhento. Questionava a qualidade do bráquete da Morelli de forma mal-educada, e até mesmo agressiva. O que fez diferença a favor da Morelli é que Oraci se manteve sempre aberto aos comentários sobre seu produto.
— Nossa sorte é que muitos profissionais e professores apoiaram a Morelli durante nossa evolução, sempre ajudando através das críticas e sugestões.
Além dos eventos, outra importante arena comercial onde os bráquetes fabricados por Oraci começaram a travar suas batalhas eram as faculdades de Odontologia, conforme lembra José Humberto Gonçalves. Antes de se tornar promotor da Morelli, costumava visitar as turmas de pós-graduação para comercializar as marcas de produtos internacionais, como o curso de mestrado do Instituto Metodista de Ensino Superior, em São Bernardo do Campo, que estava sob a coordenação do professor Júlio Wilson Vigorito. Com sua maleta cheia de produtos em mãos, era uma ótima oportunidade para engatar algumas vendas de alicates, fios e bráquetes importados. No entanto, anos depois, acompanhando o movimento de mercado, começou a incorporar os produtos nacionais da Morelli em seu portfólio.
Desde os primeiros cursos ministrados nos anos 1950, 1960 e 1970, a formação especializada em Ortodontia ainda era restrita a poucos núcleos de ensino. Até meados dos anos 1980, eles ainda se concentravam nos grandes centros. Na cidade do Rio de Janeiro, destacava-se o curso pioneiro da UFRJ idealizado por José Édimo Soares Martins.
Em São Paulo, além de Bragança Paulista e São Bernardo, já haviam cursos de especialização em Araçatuba, Araraquara e Piracicaba, além da capital, onde o professor Sebastião Interlandi coordenava os trabalhos na Fousp e, é claro, no “Centrinho”, em Bauru, onde os bráquetes Morelli deram seus primeiros passos. Era um tempo em que a pós-graduação exigia mais dos futuros profissionais: Ortodontia interceptativa, preventiva, uso do typodont…
O valor competitivo das peças permitia que o aprendiz pudesse treinar seus conhecimentos em pacientes a preços mais baixos ou mesmo de graça. Nas salas de aula criadas pelo professor Décio Rodrigues Martins, passaram nomes como Ajalmar Maia e Luís Garcia, que contribuíram para a popularização da Morelli em suas cidades de origem, em
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Natal e Recife. Airton Alvarenga, atual consultor técnico e ortodontista da Morelli, também fez sua especialização em Bauru. E, no início da carreira, também passou por uma fase em que esteve contaminado pelo preconceito em relação aos produtos nacionais.
— Eu levei oito anos fazendo minha especialização. Naquela época era mais difícil e os produtos da Morelli não eram valorizados pelos professores. Eles diziam: “você vai usar em alguns casos, não tem jeito. Mas, a indicação será sempre a de utilizar os produtos importados para os pacientes que puderem pagar”.
José Humberto tinha a mesma percepção. Muitos de seus clientes estavam propensos a utilizar o produto nacional, mas existiam outros que se dedicavam a criticar publicamente a Morelli no início dos anos 1990. Um deles era o professor Miguel Neil Benvenga, que coordenava a Faculdade de Odontologia da Universidade São Francisco, em Bragança Paulista, conforme lembra José Humberto.
— Mais tarde, o professor viu a evolução do produto, visitou a fábrica e até teve um bráquete batizado com o seu nome. Mas, houve uma época em que ele não aceitava os produtos da Morelli em hipótese alguma. Se algum aluno usasse os bráquetes fabricados pelo Oraci em seus casos clínicos, ele reduzia a nota ou reprovava. Dizia que “não era Maria do Carmo para usar sucata”.
Maria do Carmo, no caso, era a personagem interpretada pela atriz Regina Duarte na novela global Rainha da Sucata, que fez um enorme sucesso no início da década. Esse tipo de provocação não foi a única enfrentada pela jovem fabricante de Sorocaba. Os ortodontistas da velha-guarda apelidaram a empresa de “Morelão” para depreciar os produtos fabricados por ela.
Oraci procurava ouvir as críticas ao seu produto como forma de corrigir os problemas, sem se deixar abater. Ele acreditava que alguns apontamentos poderiam indicar o caminho que seu produto teria de percorrer para buscar a evolução. Sua postura sempre foi permanentemente aberta, defendendo-se das ofensas sem revidar. Mesmo durante o período de hiperinflação, a política de devoluções para clientes insatisfeitos levava em conta o preço reajustado. Diante de uma reclamação, não havia resistência: a ordem era mandar material sem cobrar, muitas vezes sem forçar o cliente a devolver a peça defeituosa.
Os negócios da empresa continuavam crescendo rapidamente, apesar da campanha negativa. Havia uma gigantesca demanda reprimida por bráquetes que fossem entregues com rapidez e por preços dentro da realidade brasileira. Diante desse cenário, a Morelli poderia surfar nessa onda por muitos anos sem preocupações.
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Mesmo sabendo que as queixas dos críticos eram potencializadas pelo preconceito e pelo descrédito em relação aos produtos nacionais, Oraci estava consciente de que seu produto precisava melhorar. Estava na hora de calar os detratores e colocar a Morelli lado a lado com as melhores marcas do mundo.
Sozinho, no entanto, ele não daria conta de se dedicar ao refinamento produtivo e de construir uma imagem positiva de sua empresa. Era preciso descentralizar a estrutura da Morelli e reforçar a equipe.
Ao longo de sua trajetória, Oraci valeu-se de uma combinação
inteligente de capacidades. Ele sabe arquitetar processos de fabricação por meio de máquinas. Também exercita o olhar ao outro, identificando as aptidões na mesma medida em que procura reconhecer os valores que ele compartilha. Isso ajuda a entender o fato da Morelli manter funcionários com 20 anos, 30 anos ou mesmo 40 anos de empresa. É claro que, como as pessoas são mais imprevisíveis do que as máquinas, essa análise nem sempre foi infalível.
Para auxiliá-lo na tarefa de enxergar o melhor dos colaboradores, trouxe de volta sua irmã Sonia. Já formada em Pedagogia e, após 12 anos atuando na rede de ensino pública paulista, voltou à Morelli para um desafio bem diferente dos tempos em que batia pecinhas ou vedava saquinhos na sala de casa. Oraci lhe deu a missão de implantar o setor de Recursos Humanos na Morelli. O ano era 1993. Quando chegou, encontrou apenas dois responsáveis pelos registros e folha de pagamento.
— Corri atrás do meu sonho, passei no concurso público e dei aulas em escolas do Estado. Cheguei ao cargo de direção em uma delas, na periferia da cidade. Eu já estava desgastada, não só com a distância, mas também com a área da Educação. Deixei minha profissão antiga, voltei a estudar, fiz vários cursos, muita pesquisa em outras empresas e vim montar o RH.
Sonia integrou seus conhecimentos em Pedagogia com gestão de pessoas, entusiasmando-se em cada realização de processo seletivo. Foi ela que contratou a primeira secretária administrativa da empresa, já em 1997. Rosemeire Aparecida Guimarães foi além de suas atribuições rotineiras: transformou em planilhas estruturadas toda dúvida que encontrava sobre como eram os processos de vendas, relacionamento com revendedores, estoque, emissão de notas fiscais e expedição.
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Por conta disso, Rose participou intensamente da reformulação do catálogo e padronização dos códigos de produtos. Especificações com pouco critério lógico, como por exemplo o bráquete S1 C - 06 Z, o tubo TDTGRUUR e o elástico EL - 200 foram substituídos por uma sequência numérica: 10.31.208, 20.11.511 e 60.01.200, respectivamente.
Os dois primeiros indicam a família do produto, tal como bráquetes, arcos e acessórios; os dois seguintes, a subfamília ou categoria a qual pertence; por fim, os três dígitos finais representam o item propriamente dito. A novidade foi distribuída aos revendedores no catálogo de 1998, que já contava com 90 páginas e tabelas com os códigos antigos e novos.
No ano seguinte, o chefe de Rose foi desligado. Oraci fez uma nova reestruturação: atribuiu os setores de expedição e estoque à gerência administrativa, hierarquicamente abaixo de Angela Morelli. Também deu autonomia para a área de vendas cuidar do atendimento aos revendedores, além de um movimento que estava dando os primeiros passos: as exportações.
— Ele já conhecia o meu trabalho e a sua postura sempre foi essa, direcionando pessoas de acordo com suas habilidades. Mas, fiquei muito surpresa quando o Oraci me disse que eu seria a coordenadora de vendas.
Oraci formalizou ainda o setor de Marketing Estratégico, contratando José Damian Alix Fernandez. Além de traçar estratégias para o lançamento de produtos, ele institucionalizou ações que já existiam informalmente, como as visitas diretas a clientes e representantes.
Outra novidade foi a promoção de visitas à fábrica – algo que Oraci sempre estimulou e conduziu, mas que virou instrumento de relacionamento permanente, proporcionando excursões de estudantes e ortodontistas a partir de 2000.
— Até hoje, estamos de portas abertas para receber a visita dos ortodontistas. Acredito ser um excelente marketing da empresa, passa a segurança de mostrar que temos uma fábrica produzindo no País, garantindo a disponibilidade do material.
Também era preciso encontrar alguém que pudesse facilitar a conexão entre a fábrica e os clientes, além de referendar as peças assinando como responsável técnico. O primeiro nome a ocupar este cargo foi o do cirurgião-dentista Rui de Menezes, que fazia parte do grupo de ortodontistas que eram admiradores da Morelli. Ao encontrar Oraci em um congresso, ele mesmo se ofereceu para prestar consultoria, sem custo, à Morelli.
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Logo, Rui foi contratado formalmente, dividindo os afazeres em sua clínica, na cidade paulista de Registro, no Vale do Ribeira, os atendimentos em seu consultório no bairro da Pompéia, na capital do estado, e as visitas à Sorocaba às sextas-feiras, quando participava de reuniões sobre projetos e melhorias. Rui também formulou um cartaz com especificações técnicas para ortodontistas, que foi emoldurado e distribuído nos escritórios e corredores da empresa. Esse tipo de material de treinamento ajudava a equipe leiga na compreensão do vocabulário usado pelos ortodontistas. Àquela altura, Oraci já sabia a importância do pleno domínio da terminologia e dos principais fundamentos da profissão.
— Informação é importante. Por isso, eu encomendei esse mapa ao Rui para todo mundo poder entender o que é mesial, distal, torque positivo, negativo etc. Depois, o pessoal da engenharia aprimorou a arte e ela é usada até hoje em nosso catálogo. Fiquei sabendo que tem até professor que usa esse material em sala de aula.
Rui também contribuiu para a criação de um consultório odontológico dentro da Morelli, de maneira que os funcionários da empresa e seus familiares pudessem contar com boa saúde bucal. A partir de 1995, a equipe foi reforçada pelo cirurgião-dentista Alexandre Moris.
— O Rui identificou necessidades clínicas na boca dos funcionários, que precisavam ser executadas previamente. Foi quando entrei, fazendo a parte de clínica geral.
Alexandre não foi o primeiro nome a ser sondado. A empresa tentou contratar o cirurgião-dentista que atendia a família de Sonia, Airton Alvarenga.
— Eu estava envolvido com muitas coisas, não dava para mim. Indiquei o Alexandre, pois já conhecia muito bem o trabalho dele. Anos depois, foi a vez dele me indicar. Ele está me devendo um churrasco há décadas, e eu estou devendo um a ele. Um dia a gente acerta essa conta!
Rui de Menezes ficou na Morelli até 2001. Inteligente e excêntrico, o ex-funcionário é lembrado por Oraci por um episódio que se tornou folclórico dentro da empresa.
— Era como se o Rui fosse um eterno calouro de faculdade. Teve uma vez que ele recebeu um funcionário da Morelli para atendimento e, antes de pedir para sentar na cadeira, perguntou a ele se usava relógio. Ao ouvir que sim, pediu que ele tirasse o relógio e, rapidamente, tomou-o da mão do paciente e jogou o relógio no lixo. “Para que você quer um relógio? Não sabe usar! Está atrasado!”.
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Se pudéssemos comparar a Morelli a um time de futebol, o setor
administrativo seria a defesa; o núcleo baseado na clínica funcionaria como o meio-campo; e o ataque ficaria com a equipe de produção, que também contava com a participação direta de Oraci. A metáfora, no entanto, não é muito usada. O dono do time não gosta de futebol.
Em 1995, a Morelli seguia com o plano de reforçar seu elenco, e isso resultou na contratação de Emanoel Ribeiro de Almeida. Ele trazia para Sorocaba a experiência adquirida em empresas como Catu e ZF para liderar o setor de controle de qualidade e estruturar o laboratório de análises metalográficas. Era o passo necessário para que a Morelli pudesse realizar ensaios mecânicos e químicos em amostras de matéria-prima e produtos finais. O primeiro encontro entre o dono da fábrica e o futuro coordenador da Qualidade Assegurada é mais uma das histórias pitorescas de Oraci.
— Estava dirigindo a minha F-1000, ano 1981, descendo a rua que fica atrás da fábrica, que ainda era de terra. A Mônica devia ter uns três anos e estava dormindo na cadeirinha. De repente, veio um fusquinha querendo entrar na mesma rua que eu. Ele abriu demais a curva e acabou batendo no para-lamas. Felizmente, ninguém se machucou. A caminhonete praticamente não teve nenhum dano, mas o fusca amassou bastante. Emanoel desceu do carro preocupado, veio perguntar se estava tudo bem. Vi que ele tinha boa natureza, pois assumiu o erro imediatamente. Aí fomos conversando, perguntei o que fazia, e eu o contratei.
Outro nome importante do setor produtivo da Morelli já se interessava pelas máquinas antes mesmo de se formar em Engenharia Mecânica. Filho de Antônio José, irmão mais velho de Oraci, Roger Morelli morava com a família em São Roque na época em que visitava a casa do avô na Vila Hortência.
— Quando eu era criança e ia na casa do meu avô, eu via que tinha umas traquitanas fazendo barulho e minhas tias mexendo nos saquinhos. Eu gostava de ver aquilo. Era a empresa funcionando lá no quintal do Seu Zé. Mas, eu não imaginava que em algum momento eu trabalharia na Morelli.
Apesar da formação de engenheiro mecânico, Roger assumiria sua primeira experiência na área técnica ao ser convidado por Oraci para ocupar o setor de Projetos Industriais, em 1996 – época em que estavam começando o projeto da prescrição Roth. Isso foi antes dos setores industriais e de produtos se desmembrarem, possibilitando o envolvimento em praticamente todos os processos, inclusive o desenvolvimento de novos equipamentos.
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Acompanhou de perto a curva de crescimento da empresa, época em que o volume de produção aumentava em dois dígitos, ano a ano, de forma forte e estável, até assumir o cargo de Diretor Industrial. Se Oraci gostasse de futebol a ponto de usá-lo como metáfora, certamente diria que Roger é o artilheiro do time Morelli.
— A gente formou uma equipe muito boa. Fui delegando tarefas e algumas pessoas se destacaram. O Roger ajudou muito quando entrou aqui. Depois dele, a empresa cresceu muito tecnicamente. E continua crescendo.
A virada rumo à excelência e qualidade seria questão de tempo. Mas, ela não viria antes de sua maior crise de imagem, lembrada por ortodontistas e funcionários até hoje.
Durante o ano de 1997, os canais de atendimento da Morelli
começaram a receber diversas reclamações que apontavam para um
mesmo problema.
Durante a manutenção do tratamento, os ortodontistas identificavam manchas escuras ao retirarem a ligadura dos pacientes. As bases das peças exibiam linhas escurecidas nas áreas onde a escovação não alcançava.
A primeira ocorrência foi tratada como qualquer outra reclamação: novas peças foram enviadas imediatamente. Com o aumento das ocorrências, veio a investigação para detecção da origem. O problema estava na fita metálica, usada entre o corpo do bráquete e a tela, que servia de base para soldagem. Havia uma variação da composição em parte do lote desta matéria-prima: excesso de ferrite, algo não detectado durante a análise das amostras.
Até esse diagnóstico, muitos bráquetes com potencial de oxidação na boca já tinham sido vendidos. O transtorno foi gerenciado por meio de ações de informação e relacionamento. As peças que estavam na fábrica foram identificadas e descartadas. Como o aço inox não é magnético, ao contrário do ferro, as peças eram encontradas facilmente quando atraídas por meio de um imã.
Todas as peças comprometidas foram recolhidas do mercado. Clientes também tiveram seu material substituído. Rose enviou um informativo a todos os distribuidores alertando para a troca do produto.
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— Lembro que fomos às revendas da região, Ivo e eu, com um imã nas mãos. A gente passava nas embalagens e recolhia o que grudava. A gente não sabia o nome, mas é o que hoje chamamos de recall.
Oraci lembra que a oxidação dos bráquetes era uma questão puramente estética. Apenas os ortodontistas percebiam.
— O fato de escurecer não tirava a eficiência da peça. Também não causava prejuízo para a saúde. A gente detectou isso. A maioria substituiu, fez a correção. Foi uma dor de cabeça, mas a gente não reduziu venda e nem cliente.
De fato, as vendas da Morelli naquele período estabilizaram. Os apoiadores compreenderam, viram o esforço e continuaram fortalecendo a marca com sugestões. Mas, quem já contestava o “Morelão” fez mais barulho. Mesmo após 20 anos de desenvolvimento contínuo, muitos clientes passaram a alardear que o bráquete da Morelli “escurece a base".
O episódio, nem de longe, ameaçou a liderança em vendas da Morelli. No entanto, abriu espaço para que outros fabricantes começassem a conquistar mercado.
Quando o tema é o relacionamento com o cliente, Oraci reafirma como um mantra: “São as críticas que mostram a direção”. Esta ideia mostrou sua força à medida que a Morelli se aproximava do ano 2000: a seriedade, a simplicidade e a capacidade de ouvir clientes fortaleceram o vínculo da Morelli com os ortodontistas. A antiga suspeita de Airton é uma demonstração.
— Houve uma grande evolução na empresa como um todo. Desde que comecei a trabalhar aqui, eu também evoluí. Hoje, 100% dos produtos que uso nos pacientes é Morelli. Não tem outra marca.
Além da credibilidade, o novo milênio traria um salto inovador e substancial nos processos de produção. Chegou a hora de Oraci abrir uma nova empresa.
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O projeto da prescrição Roth começou a ser desenvolvido em meados dos anos 1990, no mesmo período em que a empresa modernizava seu parque industrial.